dimanche 6 février 2022

Europa e missões

A missão no contexto europeu
Jorge Pinheiro  
Montpellier, 10/12/2020


"Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens. Devemos, portanto, compartilhar sua preocupação pela justiça e reconciliação em toda a sociedade humana e pela libertação dos homens de todo tipo de opressão ... expressamos penitência tanto por nossa negligência quanto por ter às vezes considerado o evangelismo e a preocupação social como mutuamente excludentes". John Stott  

Duas ou três coisas

Quando me perguntam por que fazer missão na França, eu parto do que, realmente, está acontecendo hoje na Europa, e que os jornais e revistas nos relatam sobre isso.
Ao som de bateria e teclado, quatro back vocais dão o tom do culto na igreja, enquanto são acompanhados por fiéis que, com os braços erguidos, louvam e repetem as letras projetadas no telão. Logo acima, pode-se ler Dieu est amour. A cena, comum nas igrejas brasileiras, é novidade na França, que viu a fé protestante renascer nos últimos anos.
A presença dos muçulmanos traduziu a primeira abertura para a naturalização da expressão religiosa em lugares públicos na França. Mas isso criou um problema: tanto a condição de migrantes quanto a identidade associada a uma religião com grande visibilidade fez da população muçulmana um alvo de discriminações e intolerâncias.
Mas voltemos aos jornais e revistas francesas. Longe do anonimato das ruas, nas manhãs de domingo na entrada da Église Réformée de Belleville a recepção é calorosa e personalizada. 
“É a proximidade entre nós, os pastores, e nossos fiéis que faz a força do movimento protestante", afirma Amos Ngoua Mouri, pastor da Communauté Évangélique la Bonne Nouvelle, no norte de Paris.
Segundo Frédéric Rognon, professor de Filosofia das religiões na Faculdade de Teologia Protestante de Estrasburgo, na França, "os protestantes expressam a fé de forma contemporânea, enquanto os cristãos tradicionais utilizam ainda modelos antigos que não respondem à realidade da vida atual. 
“O lado da expressão pública da fé protestante, quase publicitário, choca numa cultura francesa que relega a religião ao domínio privado”, afirma Fath, garantindo porém que as coisas estão mudando no país da laicidade. O pastor Mouri, por exemplo, confirma que o movimento protestante é cada vez mais reconhecido.
A presença do Islã na França decorreu da colonização do mundo muçulmano e a questão da presença árabe-muçulmana, ou seja, da migração, tornou-se uma questão fundamental da política da União Europeia. Nas próximas décadas se estima que cerca de 70 milhões de pessoas serão migrantes na Europa. Donde, é inútil negar as razões da crise europeia, já que a gestão da migração, principalmente, a presença muçulmana, deve respeitar os direitos à vida. Mas tanto a União Europeia como os Estados-membros não sabem, nem tem como resolver o desafio.
Para vencer o ódio e construir cidadania, a missão deve defender uma cidadania, por exemplo, que inclua as crianças migrantes, nascidas fora da Europa. O que pode ser enquadrado nas regras do reagrupamento familiar. Ou seja, a cidadania deve ser europeia em primeiro lugar, e ser válida para migrantes e refugiados. Para os povos em diáspora que escolhem esta terra europeia como cidade de refúgio.
Ao se falar de crianças, devemos lembrar que, segundo a UNICEF, o número de crianças refugiadas dobrou entre 2005 e 2015, e essas crianças desenraizadas devem ser levadas em consideração.
Qualquer que seja seu status, uma criança é uma criança. Assim, os milhões de crianças refugiadas que tiveram que deixar seus países devem ser protegidas e ter pleno acesso a todos os seus direitos, garantidos pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. O grande número de crianças afetadas nos obriga a agir. Cada uma delas tem esperanças e sonhos. Conflitos violentos, perturbações causadas pelas mudanças climáticas não devem impedir que essas crianças tenham um futuro.
Para entender a escala do fenômeno, aqui estão alguns dados: 11 milhões de crianças são refugiadas ou requerentes de asilo fora do seu próprio país. Isto é o equivalente à população da Bélgica. 17 milhões de crianças foram deslocadas à força de suas casas. Cerca de 50% das crianças refugiadas vêm da Síria ou do Afeganistão.
Entre 2005 e 2015, o número de crianças migrantes aumentou 21%. Quanto ao número de crianças refugiadas, ele dobrou durante este período. Ou seja, 28 milhões de crianças foram deslocadas à força. Entre os 164 mil refugiados e migrantes que entraram na Europa em 2017, 29 mil são crianças. Mais de 90% das crianças que chegam à Itália estão sozinhas ou foram separadas de suas famílias. Cada uma delas enfrenta perigos consideráveis em sua jornada em busca de segurança. A rota do Mediterrâneo central, que está entre as mais perigosas, também é a mais utilizada. No final do percurso, essas crianças são frequentemente confrontadas com condições de acolhimento deploráveis: detidas, vítimas de discriminação, acumulam traumas que prejudicam o seu desenvolvimento. Muitas delas não têm acesso à educação ou aos serviços básicos de saúde. E outras optam pelo suicídio.
Vamos pensar a partir da teologia. Quando pensamos em missiologia na Europa e logicamente na França, devemos ouvir e ver o grito dos migrantes, muçulmanos e refugiados a partir do conceito de outro. E se não fizermos assim, vamos ver o próximo como se fosse uma projeção, e deixamos de entender a alteridade.
O renascer do protestantismo
Na França, a cada dez dias uma nova igreja evangélica abre as portas, de acordo com dados do CNEF -- Conselho Nacional dos Evangélicos da França.  

“A primeira razão é simplesmente a necessidade de esperança”, explica o sociólogo batista Sébastien Fath, especializado na história do protestantismo francês e autor dos livros Do gueto à rede, o protestantismo evangélico na França; e A nova França protestante, desenvolvimento e crescimento no século XXI.

"O contexto de crise, que atinge a sociedade francesa, tem por consequência um certo número de patologias sociais, como a solidão. O Estado não pode fazer tudo, as prestações sociais e capacidades de intervenção são em geral fragilizadas, pois há menos dinheiro público. A igreja evangélica responde às necessidade que o Estado não se encarrega mais”, avalia Fath, que enfatiza o caráter otimista do discurso evangélico, em um país onde o pessimismo é a regra.

Fath explica que embora a fé cristã esteja chegando a todos as classes sociais, inclusive às mais favorecidas, ela vem atraindo jovens e imigrantes, principalmente aqueles originários das antigas colônias francesas.

"Muitos franceses estão desencorajados diante da crise e da globalização. Há uma certa depressão e uma necessidade de perspectiva”, diz Fath. Já para Étienne L’Hermenault, pastor batista e ex-presidente do CNEF, o crescimento das igrejas evangélicas é fruto da sede espiritual. "A crise não é simplesmente financeira, mas também moral. Há um cansaço de uma sociedade que perdeu muitas referências e que busca valores”, argumenta.

Fath crê que o retorno ao protestantismo está ligado também à crise do discurso político. “Os franceses estão decepcionados com a política. O país que, durante muito tempo exportou pensamento político, se desencantou com as soluções políticas, há 15 ou 20 anos atrás”, avalia.

Evitar a realidade que nos circunda e fugir de uma leitura humana e presencial do Cristo nos remete à frase proposta por Tertuliano de Cartago, escritor cristão do século III, "credo quia absurdum!". Creio porque é um absurdo.

Esse absurdo paradoxal atinge o concreto e nos chama a mergulhar na imensidão do divino humano. Fechemos os olhos e digamos como aquele judeu que se chamou Paulo, o Pequeno: "Os judeus pedem um sinal, e os gregos sabedoria, mas nós pregamos o Cristo crucificado, que é um escândalo para os judeus e uma loucura para os gregos”.

Absurdo, escândalo, paradoxo... assim como o fundamento da fé, a mesma fé que justifica Abraão no meio da loucura de um pai que deve sacrificar o "filho da promessa". Portanto, a fé deixa de ser a emuná hebraica, que define uma posição militar, e se torna um paradoxo. Nenhuma ilusão ou devaneio, mas a loucura da confiança no divino, que não podemos compreender.

Como disse Paul Tillich, herdeiro de Hegel e do jovem Marx, a práxis é a mediação entre a ontologia e a realização da realidade. Essa correlação, que para Tillich se tornará um método, é a busca de superação da dialética anterior, que tratava do conhecimento do ser e de suas manifestações fora da práxis histórica. Devemos, nesta reflexão sobre missão na alta-modernidade europeia fazer essa passagem construindo uma lógica que não será hegeliana nem marxista no sentido clássico, mas buscará correlacionar ontologia, lógica e metodologia na dinâmica da práxis missiológica.

Essa correlação com a exterioridade caracteriza a mobilidade da missiologia integral que é uma missiologia da práxis. Desenvolve, assim, o caminho da correlação entre exterioridade e ontologia face à dinâmica da práxis, tratando de formulações de métodos que acompanham a superposição de horizontes ontológicos. Desse modo, tal missiologia coloca a afirmação da exterioridade como fonte anterior às demandas da ontologia, o que leva a uma intersecção comum: a ética.

Por isso, a missão na alta-modernidade deve ser construída a partir de duas leituras: o próximo como revelação de um mistério que nasce da liberdade, e da igreja como comunidade que denuncia os poderes que negam a milhões de pessoas a possibilidade a bens e direitos. A fé nasce do ato da inteligência -- essa é uma forma de ver. Mas quem, realmente, vai além do que vemos? Em primeiro lugar, a esperança de que o outro se revele. Ou seja, a possibilidade de produção e reprodução da vida que está além da visão do rosto. Assim, missiologia para a Europa na alta-modernidade significa pensar o outro, mas um outro que se revela na história, que é o mistério da nossa liberdade. Acreditar na revelação deste próximo é entender o significado da história.

Para que a missão seja integral devemos descobrir o significado do presente histórico, quer venha da África ou de regiões desfavorecidas do planeta. E o significado do presente histórico é profecia, é a palavra. Mas falar para quem? Na modernidade, falar ao outro nos levou à leitura formal do ir. Atravessar os mares e ir até os confins da terra. Devemos ir, sim. É claro que a profecia deve falar do significado dos acontecimentos presentes para nossa vida cristã. E isso é igreja. Mas, nesta alta-modernidade de caos e crise, o desafio não é apenas ir, mas receber. Vivemos na localidade global, não somos chamados somente a ir, mas a receber, porque muçulmanos, migrantes e refugiados estão entre nós, conosco. Assim, missão na alta-modernidade é receber e viver no chão da vida a realidade da fé.

A missão reconhece a vida do ponto de vista integral: onde o outro se apresenta como próximo, irmão, e não como como estranho, diferente, excluído. E esse é o conceito cristão de outro, sempre próximo, mesmo fisicamente distante, que no encontro nos pede novas atitudes e comportamentos.

A atividade missiológica é uma atividade de confronto que diz respeito a pessoas que sabem que muitas vezes devem discordar, pois não somos espectadores passivos.

A integralidade é uma contribuição para a questão metodológica, pois parte daquilo que está fora da igreja e mesmo do nosso círculo de amizades, que reconhece a existência da liberdade humana como graça de Deus. A lógica da missiologia moderna era dialética, não chegava ao horizonte do mundo, não incluía o outro porque anulava em sua alteridade. Mas, a missão integral nos apresenta um momento antropológico, uma maneira diferente de viver a missiologia, já que é uma missão holística, que abrange tanto o evangelismo e a presença junto às igrejas, quanto a responsabilidade social. 

Desde 1974, a missão integral influencia o mundo latino-americano, mas hoje se faz necessário que seja presença em todo o mundo, em especial na Europa. Ela nos mostra que o ser humano e a comunidade estão localizados além do horizonte da totalidade. Ser integrado, porque o outro é um ser inteiro, é o fulcro para novos desenvolvimentos. No entanto, o ponto de partida do discurso metódico é a externalidade do outro. Como alternativa à dialética que trabalha com a contradição, a identidade e a diferença, o princípio não é o da identidade, mas o da distinção. O estar e ser integral segue uma sequência, a totalidade é posta em causa pelo questionamento provocador do outro. Ouvir a palavra é ter consciência ética, é aceitar a palavra questionadora de quem fala. É ouvir e ver a necessidade real daqueles que estão na Europa, mas que tiveram sua ancestralidade longe dela.

Não podemos esquecer que 2,4 milhões de pessoas de países não pertencentes à Comunidade Europeia imigraram para a Europa em 2018. E que das 446 milhões de pessoas que viviam na Europa em 2019, 21 milhões eram de países que não pertenciam à Comunidade Europeia. Nas próximas décadas, segundo projeções da própria União Europeia, 70 milhões de africanos, principalmente jovens, migrarão para a Europa. O que isso diz a nós missionários?

A missão é holística

Utilizar o método da integralidade da missão significa aceitar eticamente o grito daqueles que chegam fugidos da miséria, da guerra e do extermínio. Essa ação é constitutiva, condição da possibilidade de compreensão: resulta na adoção da exterioridade, lugar do exercício da consciência crítica. 

A integralidade da missão é a afirmação da exterioridade: não é apenas a negação de um estado de coisas. É a superação da totalidade moderna a partir da transcendentalidade daquele que nunca esteve dentro. O momento é crítico por isso: é a superação do pensamento dialético negativo, mas não o nega, porque a dialética não nega a ciência, ela simplesmente a assume e a completa. Afirmar a exterioridade é alcançar o impossível para o sistema, o imprevisível para o todo, que decorre da liberdade. É somente por meio de um envolvimento integral que alguém pode se comprometer com o outro, a ponto de arriscar a vida na luta pela conquista de cidadania e direitos deste outro. Como resultado, a missão integral é prática: é uma uma pedagogia que visa a realização da alteridade humana.

A expressão missão integral foi criada na década de 1970 por membros da Fraternidade Teológica Latino-americana. A palavra integral, em espanhol e em português é usada para descrever a integridade do pão, pão integral, pão de trigo integral. Assim, a expressão é usada para descrever uma compreensão da missão que afirma a importância de expressar o amor de Deus e o amor ao próximo por todos os meios possíveis. Seus teóricos, dos quais eu citaria três, René Padilla, Samuel Escobar e John Sttot, enfatizaram a amplitude do Evangelho e da missão cristã. E usaram o conceito de missão holística para mostrar que a missão não deve se basear na dicotomia entre evangelismo e envolvimento social.

Mas o conceito não é novo: está presente no Novo Testamento e no ministério de Jesus. Missão integral é uma expressão que nos leva à compreensão de que a missão é holística, não é dualista, nem dialética. 

A missão integral já fez uma jornada de cerca de cinco décadas. Em 1966, o Congresso da Missão Mundial da Igreja, realizado em Wheaton, Illinois, reuniu evangélicos de 71 países. A Declaração de Wheaton declarou que "nós somos culpados de um isolamento antibíblico do mundo que muitas vezes nos impede de enfrentar e lidar honestamente com suas preocupações" e a "falha [da igreja] em aplicar os princípios bíblicos a problemas como racismo, guerra, explosão populacional, pobreza, desintegração familiar, revolução social e comunismo”.  

E naquele mesmo ano, o Congresso Mundial sobre Evangelização em Berlim reafirmou a concepção tradicional da missão, que chamamos de moderna. Billy Graham, neste Congresso, disse que se a igreja voltasse à sua tarefa principal de proclamar o evangelho, ela teria um impacto muito maior nas necessidades sociais, morais e psicológicas das pessoas do que poderia alcançar por meio de qualquer outra ação. 

Mas logo depois tivemos o Congresso Internacional sobre Evangelização Mundial em Lausanne, 1974, o mais importante encontro cristão do século XX, que propôs a missão integral como método para chegar aos desterrados neste novo momento da pregação do Evangelho.

Depois do Congresso de Lausanne, a missão integral cresceu. E na Inglaterra, em 1980, se elaborou um documento -- "Um Compromisso Evangélico com Estilo de Vida Simples" --, que reafirmou nosso compromisso com a justiça dentro da concepção de missão.

E em 1982, a Consulta Internacional sobre a Relação entre Evangelismo e Responsabilidade Social entendeu que a responsabilidade social é uma ponte e parceira do evangelismo. Ou seja, os dois são, na verdade, inseparáveis. 

Um ano depois, a Consulta sobre a Igreja, realizada em Wheaton, Illinois, publicou "Transformação: A resposta da igreja às necessidades humanas", que foi a mais profunda afirmação cristã da missão integral. Fez a denúncia da injustiça, e uma crítica àquelas igrejas que através do silêncio dão seu apoio tácito ao status quo sócio-econômico.

Depois de "A Questão Judaica", Marx fez a crítica econômica do cristianismo. Essa crítica foi dirigida às igrejas, porque para Marx elas eram a expressão da miséria. Mas também criticou a religião quando analisou o fetichismo da mercadoria, porque para ele a leitura religiosa do mundo real não desapareceria enquanto as atuais condições de vida não fossem superadas. Mas, em que consiste essa leitura do mundo real? Ora, o olhar religioso vê a existência separada das relações construídas pelo ser humano. E essa existência independente das relações sociais, essa existência irreal, é um reflexo de outro real. Essa divisão entre aparência que oculta a existência e oculta a realidade é esta idolatria do fetichismo da mercadoria. Estranho fetichismo, que consiste nisto: ele oculta o caráter social do trabalho e se manifesta como se este fosse um caráter material dos próprios produtos do trabalho. Ou seja, em relação à mercadoria, e infelizmente para o mundo da religião alienada, a realidade está separada das relações de trabalho, do essencial concreto e de seu produto. Vê-se, então, uma realidade aparente, como se o valor da mercadoria pertencesse de direito à sua própria estrutura independente. É esta visão de mundo alienada, separada da realidade, que a missão integral se propõe denunciar.

Uma missiologia para a Europa na alta-modernidade é uma ética da vida. Não é apenas uma razão estratégica que visa levar a revelação aos alienados de seu destino, mas deve ser capaz de integrar os princípios de vida que posicionem o outro, o próximo e o diferente como análogos.

O sistema-mundo nesta alta-modernidade de caos e crise, ao tornar impossível a produção e reprodução da vida, aprofunda seu caos e crise semeando a exclusão de bens e direitos. As vítimas são milhões de pessoas que estão aqui do nosso lado. Fome e miséria são cavalos do Apocalipse. Cabe, portanto, à missão elevar a ética como recurso diante de uma humanidade em perigo. Esta missiologia é responsável pela solidariedade que parte do critério da vida em relação à morte, da caminhada digna no caminho da fronteira, entre os abismos da irresponsabilidade ética e a paranoia fundamentalista.

Estamos aqui diante do sujeito histórico que aponta para a esperança escatológica, que se abrirá para ir além da alta-modernidade, onde o ser humano terá pleno direito de produção e reprodução da vida. E a missão, exatamente por ser holística, deve compreender que esta ação e esta postura não negam o análogo de Cristo, mas deve deixar de ser uma hermenêutica teórica e se desenvolver como uma presença que leva a uma transformação real.

É por isso que a missão apresenta um princípio universal: a defesa do direito à produção e reprodução da vida de cada ser humano. Esse princípio é objetivo e subjetivamente negado pelo sistema-mundo e pela globalização.

A revelação é palavra

Missão integral é revelação. E revelação é palavra, é linguagem e pessoalidade, é ver o próximo, ouvir a pessoa, caminhar com ela. Por isso, a missão corre no fio da navalha: por um lado está a negação da presença e recepção do diferente, daquele que veio de longe e, por outro, o fundamentalismo pró-integração, que quer fazer dele um igual a nós. Por isso, abrir-se para receber, e tudo o que isso implica, rompe a discussão moderna entre o paradoxo e a dialética do Cristo. Não há paradoxo porque Cristo é análogo e o método é holístico. 

E não nos esqueçamos das palavras do profeta Miquéias (6:8): "O que o Senhor requer de você senão que faça justiça, ame a bondade e ande humildemente com seu Deus". A nossa missiologia mostra que Deus criador e mantenedor existe nesta esperança e nesta possibilidade de produção e reprodução da vida. E Cristo não é uma monstruosidade ou um paradoxo, mas análogo. Assim, os que vem de longe, verão que Deus existe e Cristo é pessoa, Deus que se fez carne por amor a nós.

E volto ao Goddard de "Duas ou três coisas que sei dela", quando ele cita o Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein: "Os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem." Mas, então, vemos Juliette cruzar Paris e dizer: "Mas o mundo sou eu".


Bibliografia

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samedi 29 janvier 2022

Para pensar a imago Dei

Afin d'étudier et de penser la théologie de l'être humain, c'est-à-dire l'imago Dei, nous devons nous concentrer sur des questions fondamentales pour cette étude : le défi du Christ, le défi de l'humain et le défi de l'interprétation. Mais, même ainsi, il est nécessaire de penser à deux autres questions qui sont présentes dans cette relation causale et définitive - la révélation et la théologie.


Para pensar a imago Dei

Uma observação necessária

Jorge Pinheiro



Para estudar e pensar a teologia do ser humano, ou seja, a imago Dei, devemos nos debruçar sobre questões fundamentais para este estudo: o desafio do Cristo, o desafio do humano e o desafio da interpretação. Mas, ainda assim, é necessário pensar duas outras questões que estão presentes nesta relação causal e definitiva -- revelação e teologia.


E nessa introdução necessária, desejamos analisar com você, caro leitor, ainda que a voo de pássaro, o fato de que a teologia que nasce dos textos antigos da tradição hebraica muitas vezes é abordada apenas sob um de seus aspectos, a auto-manifestação da divindade, deixando de lado seu aspecto fundante: de que nos textos primeiros da teologia judaico-cristã estamos diante de um diálogo, pois toda construção desses textos implicou em interação, na existência de um personagem, que muitas vezes deixamos de ver sua centralidade, a espécie humana, que não somente participa do diálogo, mas vive. E é a partir daí, da teologia que nasce da construção dos textos antigos enquanto diálogo, que deve partir toda e qualquer análise da imago Dei, enquanto teologia do ser humano.

 

A questão antropológica no processo da construção dos textos antigos da tradição hebraica é determinante, pois não basta ouvir, o desafio é viver. Nesse processo desigual e combinado presente nos textos antigos da literatura hebraica podemos distinguir elementos que se sobrepõem e se complementam. Dentre eles, o mais fascinante é a questão do significado e da significação que estes textos constroem na história do povo hebreu e por extensão no imaginário da tradição cristã. A construção dos textos antigos da tradição hebraica dá-se através de um processo de adequação histórica e linguística.


Entretanto essa construção não demanda unicamente a apreensão de uma determinada realidade. Faz-se necessário que esta realidade seja lida através de uma construção de análise e síntese. Como premissa fundante, temos que reconhecer uma justaposição entre compreensão intuitiva e conhecimento discursivo. A compreensão intuitiva vem de imediato à mente sem que se tenha à frente uma determinada realidade, palpável e visual, ao passo que o conhecimento discursivo requer passar de algo conhecido, através de uma série de juízos, à apreensão do ainda não apreendido. Ao primeiro processo chamamos juízo sintético e ao segundo juízo analítico.


Tal construção dos textos antigos hebraicos não se deu simplesmente como processo de adequação da mente humana, individual e coletiva, ao novo que lhe era apresentado. Impôs-se que o novo inerente ao processo cognoscitivo tivesse um significado. Uma relação em que o ser humano operou como ser significante e o novo como significado. Desta forma, a construção dos textos antigos não se processaram entre realidades que não são históricas, mas em relação espacial e temporal, exigindo para que a interação entre o ser humano e a realidade se estabelecesse como algo maior, alguma coisa além de ambos, da pessoa coletiva e da própria realidade em que estava situada esta coletividade, deixando assim de ser causal e tornando-se essencial. No processo da construção dos textos antigos o ser humano, enquanto pessoa e coletividade, também encontrava-se em construção, pois não havia senhorio pleno do processo. Era um ser colocado no tempo e no espaço, que estabelecia relação com a realidade que o circundava, que o cercava dentro do processo cognoscitivo enquanto dimensão humana e histórica.


Outro pressuposto é a natureza genética da linguagem, que se encontrava em constante construção. Dessa maneira, significante e significado estavam intimamente ligados à linguagem, enquanto construção cultural e histórica. Assim, compreendemos que dependendo da utilização de determinado objeto ou realidade o ser humano constrói conhecimento de determinada forma e no processo pode construir conceitos diferentes a partir de um objeto ou realidade anteriores. Podemos inferir ao que isso conduz. 


A construção dos textos antigos está ligada à vida do ser humano, já que será a própria experiência humana que agregará valor ao objeto ou realidade antes conhecidos e vividos. Dessa maneira, o velho gerará o novo, uma essência que transcende, uma universalidade, a partir da própria experiência de vida, que em teologia podemos chamar de obediência ao mandamento de Deus. Mas ainda não definimos a importância do ser significante e do significado dentro do processo da construção dos textos antigos. Se tal construção é histórica, é importante notar que ela própria age sobre a vida humana, pessoal e coletiva, sobre a historicidade do ser humano. E mais do que isso, ao definir a historicidade humana muda o próprio meio onde o ser humano vive e atua. Dessa forma, a construção dos textos antigos cria processos de formação, escalas de valores, normas e condicionamentos. E é aí que reside toda a problemática dessa construção enquanto conhecimento: como o ser humano, a partir da construção dos textos, num primeiro momento presa à oralidade e só depois gravada em pedra e registrada em manuscritos, pode conhecer a Deus e dar um sentido ao mundo que o cerca, assim como achar seu papel dentro de todo esse complexo?


A verdade da construção dos textos antigos é o significado que uma determinada realidade tem para a comunidade e a pessoa. Há uma construção intuitiva, quando a experiência da própria construção produz uma interação entre o humano, pessoal e coletivo, e a divindade, sem que essa experiência necessariamente influa no processo discursivo de conhecimento. Mas mesmo neste caso o ser humano não abandona ou perde sua formação. Não deixa de ser aquilo que é: pessoa inserida em determinada comunidade. Mesmo quando esse processo dá-se sem elaboração discursiva, é intuitiva, o ser humano está condicionado pela historicidade de ser que conhece. 


E dentro dessa condicionante sempre se processa a interação ser humano e realidade. Aqui, afetividades e sentimentos, que geralmente passam despercebidos, são realçados. Isso porque nesse momento específico, determinada realidade passa a ter significado, que mesmo não sendo inerente, exige que se lhe dê um. E nesse caso o conhecimento da construção faz do ser humano um ser significante. Assim a construção dos textos antigos dá ao mundo um significado imanente. O ser humano, enquanto pessoa e comunidade, através da construção do texto passa a ter significado, contudo este conhecimento e o significado dado não se dão sem história, mas dentro das limitações de sua própria obediência dos limites e regras que vão sendo definidos. Podemos, então, concluir que a partir da construção da antiga literatura hebraica, teológica e religiosa, o ser humano torna-se significante na construção da comunidade, pois através do conhecimento construído é ele quem historicamente pode modificar causas e efeitos, imprimindo ao processo nova direção.


Como se processa a relação entre significado e significante quer no caso isolado da interação entre ser humano e realidade, quer no caso de todo o processo da construção dos textos antigos? Se dentro do conhecimento da construção do texto o ser humano é um ser significante podemos, então, ver que a escala de valores do sistema ético, oferecido por esta construção à comunidade, torna-se parte integrante do significado dado ao mundo pela própria construção. Portanto, dentro de uma interação significante/significado existem elementos dinâmicos de transformação. O universo é o mundo do ser humano, em que ele constrói seu habitat. Através do significado dado pelo ser humano à natureza, dentro de um significado de utilização que lhe empresta, ele atua sobre ela produzindo cultura e transformação.


A construção dos textos antigos, enquanto relação entre significante e significado é dialética. Pois se ela faz da pessoa e da comunidade ser significante, permite a ambas transferir ao mundo que as cercam a cosmovisão que utiliza essa mesma significação. Ao fazer significante a sua realidade, o ser humano dá origem a transformações, engendra causas e passa à construção do futuro, já não como sonho, mas como realidade. Para viabilizar tais transformações é necessário que transfira, enquanto comunidade, novos significados aos processos históricos e sociais. Através da relação estabelecida entre significante e significado encontraremos as causas de conotações. Um dos exemplos desse processo encontramos no livro das Origens, quando a divindade ordena a circuncisão do clã de Abraão. A circuncisão, antes um costume presente em algumas tribos da Palestina, recebe a conotação de aliança. E a circuncisão, enquanto aliança, passa a ser marca de uma comunidade especial, separada, é mandamento do Eterno. Mas isso só acontece historicamente, quando pessoas e comunidade vivem tal ordenança. É, então, que a circuncisão faz de cada homem hebreu significante dessa construção, dando significado cultural, histórico e teológico ao ato de corte do prepúcio. 


Nesse sentido, revelação traduz o processo de construção dos textos antigos judaico-cristãos, conforme exposto acima, e, por isso neste trabalho damos a devida importância à linguística e à antropologia, para podemos construir uma teologia do ser humano, enquanto imago Dei. Por isso, consideramos que quando deixamos de colocar os desafios do Cristo, do humano e da interpretação em diálogo com a imago Dei compreendemos de forma fraturada questões fundamentais quanto ao destino humano. Por isso, assim definimos nosso caminhar na construção dessa teologia do ser humano, construída com três momentos: o metodológico, o da leitura dos textos antigos, e o contextual-contemporâneo, quando a teologia do ser humano invade nossa vida, como desafio de ação e transformação.


Assim, desejamos que o leitor compreenda este processo de construção dos textos antigos, enquanto desafio ético, e possa caminhar nesta teologia do ser humano, que desafia à ação e transformação.








vendredi 28 janvier 2022

Aletheia e a perda de sentido

Aletheia, em grego antigo ἀλήθεια, verdade, no sentido de desvelamento, de a-lethe, é a negação do esquecimento. Para os pensadores pré-socráticos physis, logos e aletheia formavam a base primeira do pensar filosófico. 

Aletheia transcende o humano, por ser uma palavra que se coloca fora do tempo, antes do tempo, como fundamento do tempo. É a palavra da justiça, que envolve a memória, confiança, poder de persuasão e adesão última. 

Os pensadores pré-socráticos não trabalhavam uma oposição rígida entre verdade e falsidade, por isso outros pares de opostos como memória e esquecimento, certo e errado, confiança e engano rompiam esse padrão. 

Aletheia é um conceito aberto, e não uma correspondência de julgamento. É um conceito mítico, que expressa a força da physis enquanto natureza, cosmo. Traduz a verdade dos justos e dos sábios, mas é frágil, sujeita a erro e à fraude -- uma palavra para o léthé. 

Aletheia, assim, para os pensadores pré-socráticos significava fora do lethe, fora do esquecimento, e nos fala da experiência de colocar-se fora de uma situação que a princípio deveria ser esquecida ou deixada de lado. É uma experiência ontológica. Não é apenas uma recurso de linguagem. É um conceito governado pelo lethe. Baseia-se no fato de que é necessário desvelar, trazer à revelação aquilo que estava fora ou colocado no esquecimento. Este é o âmago da expressão entre os pensadores pré-socráticos e poetas como Homero e Hesíodo. 

Desde Platão, em sua Alegoria da caverna, aletheia aparece como o brilho da idéia. Mas, há um pressuposto presente no pensamento de Aristóteles, que vai influenciar todo o pensamento moderno, quando aletheia é entendida enquanto dimensão lógica: uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Ou seja, aletheia aparece, então, ligada ao princípio da não-contradição. Aletheia passa a traduzir a idéia de que algo realmente não pode ser e não-ser. 

E no pensamento moderno, aletheia ressurge no pensar matemático, em Descartes, e no fenômeno, em Kant. E será entendida como o "intellectus adaequatio". Assim, aletheia passa a ser compreendida na modernidade como uma correspondência entre a idéia e a coisa. Ou seja, quando esta construção do conhecimento é estabelecida a aletheia é atingida. 

Mas será Martin Heidegger quem confrontará a posição aristotélica, ao entender que a lógica fica em suspensão em relação à aletheia do ser, quando se aplica o princípio da contradição em um círculo. 

Martin Heidegger voltou ao significado original da ideia de aletheia, partindo dos pré-socráticos, Parmênides, Heráclito, Anaximandro e também de Homero, o poeta. Para os primeiros pensadores pré-socráticos, três temas -- physis, logos e aletheia -- estão em contato, porque são conceitos fundamentais para se pensar a filosofia. E essa relação deve ser mantida. 

Heidegger põe em xeque o postulado aristotélico, e volta às origens gregas para desconstruir a dimensão lógica do conceito aletheia. Ou seja, retorna à compreensão ontológica de aletheia, que exige deixar de fora do conceito a idéia exclusiva de acordo e retidão de julgamento. E assim, em Heidegger, aletheia volta a ser um conceito aberto, como fora para os pensadores pré-socráticos, em especial para Parmênides. 

Para Platão, a aletheia é um evento, e não levar em conta que o evento ocorreu produz perda de sentido, porque esse esquecimento é perda metafísica de sentido, o que para Heidegger é catástrofe e colapso. 

Aletheia em Platão não é um acontecimento em processo, mas o resultado de um processo. O acontecimento é fato dado. Ou seja, estamos diante da mutação da essência e por extensão do ser. 

Para Heidegger, aletheia caminha pari passo com o bem. E isso está posto a partir de Platão, que na República, apresenta o bem supremo como regulador, é aletheia/bem. Ou seja, Platão vai além dos pré-socráticos Parmênides e Heráclito nas suas construções primeiras de aletheia. E Heidegger seguiu a trilha aberta por Platão. 

Martin Heidegger trabalha aletheia como inauguração do estar e não como um acordo de início. Assim o conceito aletheia remete, a partir de Heidegger, a duas compreensões fundamentais: (1) eficácia: o logos não está separado de sua realização, porque traduz as forças da natureza; (2) intemporalidade: o logos é pronunciado em um tempo que escapa a sucessão de passado, presente e futuro. 

Segundo Heidegger, não podemos afirmar que hoje a aletheia deixou de existir, mas que, como entendeu Emmanuel Levinas, deu-se em relação a ela uma perda de precisão, ou seja, de sentido. 



lundi 24 janvier 2022

Lendo Oséias com Jean Calvin (1)

Eu e você no mercado de escravos 
Pr. Jorge Pinheiro

No Brasil colonial existiram diversos mercados de escravos que mantinham o rentável tráfico negreiro
No Brasil colonial existiram diversos mercados 
de escravos que mantinham o rentável tráfico negreiro
https://www.preparaenem.com/historia-do-brasil/mercado-escravos.htm 


O livro de Oséias (750-725 antes da Era Comum), no primeiro testamento, apresenta as relações do Eterno e Israel como um casamento. Essa imagem será utilizada por Isaías, Jeremias, Ezequiel e pela comunidade cristã, na relação entre Cristo e sua igreja. Podemos dizer que o tema do livro é o imutável amor do Eterno. Oséias foi cidadão de Israel. 

Fala da infidelidade do povo que deposita confiança e esperança nos falsos deuses de outras nações. Oséias experimentou em sua vida familiar o que o Eterno estava vivendo com o povo e oferece perdão e amor à sua mulher, apesar do pecado e infidelidade dela. 

Oséias e Israel 

Oséias significa salvo ou salvação. Filho de Beeri, foi profeta nos dias de Jeroboão II, rei de Israel. Foi contemporâneo do profeta Amós. Seu ministério estendeu-se por volta do ano 750 a 725 antes da Era Coum, em Israel, reino do Norte. 

Oséias vivia em Samaria. Suas experiências familiares foram usadas pelo Eterno para servir de exemplo a Israel, e como parábola do que Deus sentia pelo seu povo. 

Ele se casou com uma sacerdotisa de Baal. Através da vida de Oséias e Gômer, o Eterno ilustrou a infidelidade espiritual de Israel (Os 1.2). No casamento tiveram três filhos: Jizreel (nome do vale onde Jeú matou o rei de Israel), lo-ruama (sem amor) e lo-ami (não é meu povo (Os 1.4,6,9). Esses filhos, conforme seus nomes dizem, sentiriam vergonha por causa da vida decaída da mãe (Os 2.1-5). 

Isto representava a situação do povo: haviam traído o Eterno, prostituindo-se com o culto aos ídolos, cometendo injustiças sociais, explorando os estrangeiros, órfãos e viúvas. Israel era esposa do Eterno, deveria ter uma vida digna e socialmente responsável. 

Oséias falou da queda do Reino do Norte diante da Assíria, como Jeremias falou da queda do Reino do Sul diante da Babilônia. 

O ministério de Oséias realizou-se depois do ministério de Amós que, embora fosse de Judá, profetizou à queda Israel. Oséias foi a última voz profética antes da derrota, quando a Assíria leva as dez tribos para o cativeiro no ano 722 antes da Era Comum. 

Oséias como Amós são os únicos profetas do Antigo Testamento, cujos livros foram dedicados inteiramente ao Reino do Norte, anunciando sua destruição. 

Quando Oséias iniciou o seu ministério, durante os últimos anos de Jeroboão II, Israel tinha prosperidade econômica e de paz política. Passados quinze anos da morte do rei, quatro de seus sucessores foram assassinados. Decorridos mais quinze anos, Samaria foi incendiada, e os israelitas foram deportados para a Assíria e dispersos entre as nações. 

Eu e você no mercado de escravos 

Textos: 

Oséias 1.2-3 
Quando o SENHOR Deus falou pela primeira vez por meio de Oséias ao povo de Israel, ele disse a Oséias: - Vá e case com uma prostituta de um templo pagão; os filhos que nascerem serão filhos de uma prostituta. Pois o povo de Israel agiu como uma prostituta: eles foram infiéis e me abandonaram. Então Oséias foi e casou com Gômer, filha de Diblaim. 

O texto ilustra de forma romântica a vida do profeta, que escolhe uma jovem que é sacerdotisa de Baal, deus pagão da fertilidade. Numa rápida e limitada contextualização, diria que é como se um pastor de igreja evangélica, apaixonado, se casasse com uma jovem que exerce funções sacerdotais numa religião não-cristã. Tinha tudo para dar errado. 

Oséias 2.2-13 
O SENHOR Deus disse ao povo: - Acusem a sua mãe, façam denúncia contra ela, pois ela não é mais a minha esposa, e eu não sou mais o seu marido. Peçam que ela pare de cometer adultério e que mande embora os seus amantes. Se ela não fizer isso, eu tirarei toda a sua roupa e a deixarei nua como no dia em que nasceu. Eu farei com que ela fique como um deserto, como uma terra seca, e ela morrerá de sede. E não terei pena dos seus filhos, pois são filhos de uma prostituta. Ela se entregou à prostituição e mostrou que havia perdido toda a vergonha quando disse: "Vou buscar os meus amantes, pois eles me darão comida e bebida, roupas de lã e de linho, azeite e vinho." - Portanto, vou pôr ao redor dela uma cerca de espinhos e vou construir um muro na estrada, para que ela não encontre o caminho. Ela correrá atrás dos seus amantes, mas não os alcançará; irá procurá-los, mas não os encontrará. Então dirá: "Vou voltar para o meu marido, pois, quando vivia com ele, eu era mais feliz do que agora." Ela não compreendeu que fui eu que lhe dei o trigo, o vinho e o azeite; fui eu que lhe dei muitos presentes de prata e de ouro, que ela ofereceu ao deus Baal. 

Ela não é monogâmica, está dentro da tradição do sacerdócio de culto à fertilidade. As tribos e nações pagãs – assim como as tribos e nações hebréias – tinham como preocupação suas taxas de natalidade. Ter filhos homens era sinônimo de prosperidade, por isso a comparação com as colheitas. Os rituais para a fertilidade nos cultos a Baal eram a tradução mística de uma necessidade: não desaparecer. O culto à fertilidade era uma forma de cultuar a vida. E, logicamente, a sexualidade estava diretamente ligada à fertilidade humana. O sexo era, então, visto como ato sagrado, e parte da ação das vestais, sacerdotisas, era o ato sexual com o adorador de Baal, pois como é em cima, é embaixo, ou seja, como é com Baal, é com os homens. Assim, a fertilidade era uma das razões do culto a Baal. Apesar de um jugo tão desigual, Oséias continuou a amá-la e sustentá-la. Os presentes que Gômer recebia de Oséias ela os creditava aos adoradores, e os dedicava ao deus Baal. 

Oséias 3.1-5 
O SENHOR Deus falou de novo comigo e disse: - Vá e ame uma adúltera, uma mulher que tem um amante. Ame-a assim como eu amo o povo de Israel, embora eles adorem outros deuses e lhes ofereçam bolos de passas. Fui e comprei a mulher por quinze barras de prata e cento e cinqüenta quilos de cevada. Eu disse: - Por muito tempo, você vai esperar por mim. Durante esse tempo não se torne prostituta, nem se entregue a um amante. E eu também esperarei por você. Será assim que os israelitas passarão muito tempo sem rei ou qualquer outro chefe, sem sacrifícios ou colunas do deus Baal, sem ídolos ou deuses do lar. Mas virá o tempo em que o povo de Israel voltará a adorar o SENHOR, o Deus deles, e eles serão governados por um descendente do rei Davi. Naquele tempo, eles adorarão o SENHOR com temor e receberão dele muitas bênçãos. 

No correr de sua vida de sacerdotisa cultual, Gômer derreteu-se de paixão por um homem que não a amava, que não se importava com ela, que passou a explorar seus dons de sacerdotisa e que, depois, quando Gômer perdera os atributos essenciais ao seu trabalho, jovialidade e beleza, ele resolve vende-la como escrava. 

Nos dias em que esta história aconteceu, vivia-se uma situação de escravidão em Israel, como aquela que o Brasil viveu durante 370 anos. Quando uma mulher era levada para o mercado de escravos, ficava nua de pé diante dos mercadores, compradores e da multidão curiosa. Foi para um mercado de escravos que Gômer foi levada. 

Vocês podem imaginar a confusão, a vergonha e os comentários na multidão quando viram Oséias? "Ele veio se vingar, ver ela receber o castigo que merece". 

Então começa o leilão. Alguém oferece dez barras de prata, outro oferece doze. E Oséias diz: "dou quinze barras de prata". Outro diz: "dou quinze peças de prata e cem quilos de cevada". Oséias diz: "dou quinze peças de prata e cento e cinqüenta quilos de cevada". Soa o martelo e Oséias ganha a mulher de volta. 

E a multidão comentava: 

Por que não deixou que ela fosse vendida como escrava? Por que pagou tanto dinheiro por uma prostituta de Baal? 

Oséias não comprou sua mulher para castigá-la, mas para salvá-la da escravidão. A história de Oséias ilustra uma outra história: o Eterno nos ama e nos comprou para nos livrar da escravidão. E na sua primeira carta o apóstolo Pedro (1.18-19) disse: 

Pois vocês sabem o preço que foi pago para livrá-los da vida inútil que herdaram dos seus antepassados. Esse preço não foi uma coisa que perde o seu valor como o ouro ou a prata. Vocês foram libertados pelo precioso sangue de Cristo. 

E na primeira carta aos coríntios (6.20) o apóstolo Paulo diz aos membros da igreja que estavam envolvidos com problemas de adultério e incesto: ele os comprou e pagou o preço. Portanto, usem o seu corpo para a glória dele. 

A primeira lição de Oséias é: 

Se você fosse servir ao Eterno, de hoje até o dia de sua morte, Ele não o amaria mais do que o ama agora. Porque o Eterno não o ama por causa do que você faz, Ele ama você apesar do que você faz. 

A segunda lição de Oséias é: 

Homens e mulheres que não conhecem ao Eterno, pessoas de corações partidos, lares desfeitos e vidas destruídas, pessoas que sofrem a escravidão do mundo e clamam, como Castro Alves em Vozes d'África: 

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? 
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes 
Embuçado nos céus? 
Há dois mil anos te mandei meu grito, 
Que embalde desde então corre o infinito... 
Onde estás, Senhor Deus?... 

A resposta de Oséias é: "O Eterno está ao seu lado" . 

Este é o Eterno que foi à cruz do Calvário, e que através do túnel de um túmulo vazio saiu em busca de homens e mulheres que tiveram suas almas leiloadas no mercado de escravos deste mundo tenebroso. 

Quando as pessoas gritam: "onde está o Eterno?" A resposta é sempre a mesma. o Eterno está aqui. Ele comprou você pagando com a vida e o sangue. As correntes foram quebradas. Você está livre. Venha, saia do mercado de escravos. Cristo, o Filho, quer abraça-lo. Venha, venha com fé. Não existe maior amor do que este: dar a vida pelo pecador. 

Lições de amor 

Oséias 2.14-23 
14 Deus diz ao povo de Israel: Vou seduzir a minha amada e levá-la de novo para o deserto, onde lhe falarei do meu amor. 15 Ali, eu devolverei a ela as suas plantações de uvas e transformarei o vale da Desgraça em porta de esperança. Então ela falará comigo como fazia no tempo em que era moça, quando saiu do Egito. 16 Mais uma vez ela me chamará de “meu marido”, em vez de me chamar “meu senhor” (meu baal). 17 Nunca mais deixarei que ela diga o nome baal, nunca mais ela falará desse deus. Sou eu o Senhor quem está falando. 18 Naquele dia, farei a favor dela uma aliança com os animais selvagens, com as aves, com as cobras, para que não ataquem a minha amada. Quebrarei as armas de guerra, os arcos e as espadas. Não havará mais guerra e o meu povo viverá em paz e segurança. 19 Israel, eu casarei com você, e para sempre você será minha legítima esposa. Eu tratarei você com amor e carinho, 20 e serei um marido fiel. Então, você se dedicará a mim, o Senhor. 21 Naquele dia, serei o Deus que atende: atenderei o pedido dos céus, os céus atenderão o pedido da terra, dando-lhe chuvas. 22 E a terra responderá produzindo trigo, uvas e azeitonas. Assim, eu atenderei as orações do meu povo de Israel. 23 Plantarei o meu povo na Terra Prometida para que eles sejam a minha própria plantação. E eu amarei aquela que se chama Não-Amada, e para aquele que se chama Não-Meu-Povo eu direi: “Você é meu povo” e ele responderá: “Tu és meu Deus”. 

1. Vou seduzir a minha amada e levá-la de novo para o deserto, onde lhe falarei do meu amor. 

O deserto foi um tempo de cuidado (Os 12.9) diferente do vale da Desgraça, onde Acã e sua família foram apedrejados por terem desobedecido a Deus levando despojos de Jericó. (Js 7.24-26). 

2. Ela me chamará de “meu marido” 

Isaías 54:4-5 Não temas, porque não serás envergonhada; não te envergonhes, porque não sofrerás humilhação; pois te esquecerás da vergonha da tua mocidade e não mais te lembrarás do opróbrio da tua viuvez. 5 Porque o teu Criador é o teu marido; o SENHOR dos Exércitos é o seu nome; e o Santo de Israel é o teu Redentor; ele é chamado o Deus de toda a terra. 

Oséias faz um trocadilho com a palavra baal, que era o deus da fertilidade dos cananeus, mas que quer dizer também senhor. Meu marido aqui tem o sentido de “meu amado”, “meu querido”, “meu homem” “meu herói” como no canto da sulamita em Cantares 1.12-14. 

3. E para sempre você será minha legítima esposa. 

Minha legítima esposa é uma nova aliança (Jr 31.31-34, Ap 19.7) construída com amor e carinho (Os 6.6, 11.3-4). 

Oseias e a metáfora Gômer, segundo Jean Calvin 

O reformador Jean Calvin (1509-1564), que a partir daqui vamos aportuguesar o nome dele, no Comentário sobre Oséias considerou a história de Gômer e seu casamento com Oséias uma parábola, ou seja, uma ilustração do sermão que o Profeta pregou aos israelitas. Pela importancia da exegese, publicamos aqui este texto de Calvino, que ele próprio chamou de Dissertação. 

Vá, ele diz, toma para ti uma mulher de devassidões e filhos de devassidões; e adiciona-se a razão, pois pela fornicação, ou libertinagem, tornou-se a terra dissoluta. Indubitavelmente, fala ele aqui dos vícios que o Senhor há muito agüentava com inexprimível paciência. Pela devassidão pois a terra se tornou desenfreada, para que não siga a Jeová. 

Muito labutam aqui os intérpretes, pois parece mui estranho que o Profeta tomasse por esposa uma meretriz. Dizem alguns que esse foi um caso extraordinário6. Decerto uma tal liberdade não teria sido tolerada em um mestre. Vemos o que Paulo requer em um bispo, e não há dúvidas de que o mesmo era requerido anteriormente nos Profetas: que suas famílias deveriam ser castas e livres de toda nódoa e mancha. Teria sido pois expor o Profeta ao escárnio de todos caso tivesse ele adentrado um bordel e tomado para si uma prostituta; pois ele não fala aqui apenas de uma mulher não casta, mas de uma mulher de devassidão, o que significa uma meretriz comum, pois é ela chamada uma mulher de devassidão, que desde muito tempo estava habituada a isso, a qual expunha a si mesma a todos, para gratificar-lhes o desejo, a qual se prostituía a si própria, não uma ou duas vezes, nem para alguns homens, mas para todos. Que tal fosse feito pelo Profeta parece mui improvável. 

Mas alguns replicam, como disse eu, que isso não deve ser reputado como regra comum, pois foi um mandamento extraordinário de Deus. E, todavia, não parece coerente com a razão, que o Senhor, dessa forma injustificável, faça com que seu Profeta seja desprezível; pois como podia ele esperar ser recebido ao aparecer diante do público, após haver trazido sobre si mesmo uma tal desgraça? Se ele houvesse se casado com uma mulher tal como a que é aqui descrita, deveria ter se ocultado por toda a vida em vez de se incumbir do ofício profético. A opinião de quem pensa que o Profeta tomara uma esposa semelhante à aqui descrita, por conseguinte, não é provável. 

Depois, um outro motivo, totalmente irresolúvel, milita contra eles; pois não apenas se ordena ao Profeta que tome uma esposa de devassidão, mas ainda filhos de devassidão, gerados por prostituição. Logo, é como se ele mesmo houvesse cometido prostituição7. Pois, se dissermos que ele se casou com uma mulher que dantes se conduzira com alguma indecência e falta de castidade (como Jerônimo em detalhes argumenta para desculpar o Profeta), a escusa é frívola, pois ele não fala somente da esposa, mas também dos filhos, visto que Deus teria a prole toda como sendo adulterina, e isso não podia ser o caso de um casamento legal. Por isso, quase todos os hebreus concordam com esta opinião, que o Profeta não esposou realmente uma mulher, mas que lhe foi ordenado a fazer isso em uma visão. E veremos no capítulo terceiro quase a mesma coisa descrita; contudo, o que está ali narrado não podia realmente ter sido feito, pois é mandado ao Profeta que se case com uma esposa que violara sua fidelidade conjugal e, depois de a ter comprado, retê-la em casa por um tempo. Isso, sabemos, não foi feito. Segue-se então que isso foi uma representação exibida ao povo. 

Alguns objetam dizendo que a passagem inteira, tal como dada pelo Profeta, não pode ser compreendida como aludindo a uma visão. Por que não? Porque a visão, dizem, foi dada só a ele, e Deus tinha em consideração o povo todo, em vez do Profeta. Porém, pode ser, e é provável, que visão nenhuma foi apresentada ao Profeta, mas que Deus apenas lhe ordenou proclamar o que lhe tinha sido dado como responsabilidade. Logo, quando o Profeta começou a ensinar, ele iniciou com algo desse jeito: “O Senhor me coloca aqui como em um palco, para vos fazer saber que me casei com uma mulher, uma mulher habituada a adultérios e prostituições, e que por ela gerei filhos”. O povo todo sabia que ele não fizera tal coisa; porém, o Profeta assim falou a fim de pôr perante seus olhos uma vívida representação. Tal, pois, foi a visão, uma exibição figurada, não que o Profeta soubesse disso por uma visão, mas o Senhor lhe ordenara a relatar tal parábola (modo de dizer), ou tal comparação, para que o povo pudesse ver, como num retrato vivo, a torpeza e perfídia desse. 

É, em suma, uma exibição, na qual a coisa mesma não é somente apresentada em palavras, mas também é colocada, por assim dizer, diante dos olhos deles de forma visível. A razão é acrescentada: pois pela devassidão a terra se tornou dissoluta. 

Vemos agora então como as palavras do Profeta devem ser entendidas; pois ele assumiu um personagem perante o público, e nesse personagem ele disse ao povo que Deus lhe havia ordenado tomar para sua esposa uma meretriz, e por ela gerar filhos adulterinos. Seu ministério não se tornou, devido a isso, desprezível, pois todos eles sabiam que ele sempre vivera virtuosa e sobriamente; todos sabiam que sua casa era isenta de todo vitupério; mas aqui ele se exibia nesse suposto papel, como o fez, uma imagem viva da vileza do povo. Tal é o significado, e não vejo nada forçado nesta explanação; e vemos, ao mesmo tempo, o sentido dessa oração: Pela devassidão a terra se tornou dissoluta. 

Oséias poderia ter dito isso numa palavra só, mas ele se dirigia ao surdo, e sabemos quão grande e quão estúpida é a loucura daqueles que se deleitam em suas próprias superstições e que não podem suportar qualquer censura. O Profeta, então, não teria sido levado em consideração, a menos que tivesse exibido, como em um espelho perante os olhos deles, o que desejava que fosse compreendido por eles, ainda que houvesse dito: “Se nenhum de vós pode conhecer a si mesmo de modo a reconhecer sua pública vileza, se sois vós tão obstinados contra Deus, pelo menos agora saibais, pelo meu personagem simulado, que sois todos adúlteros, e vossa origem provém de um bordel imundo, pois Deus assim declara a respeito de vós; e, como não estais dispostos a receber uma tal declaração, é agora posto perante vós em meu suposto papel”. 

Que ela não segue a Jeová, literalmente: De após Jeová, hwhy yrjam, me’acharei Yeowah. Vemos aqui qual é a castidade espiritual do povo de Deus, e qual é também a significação da palavra devassidão. Então, a castidade espiritual do povo de Deus é seguir o Senhor; e o que mais é esse seguir, senão aceitar que sejamos nós mesmos governados por sua palavra, e de bom grado obedecê-lo, estar pronto e preparado para qualquer obra à qual ele nos chame? Quando então o Senhor vai adiante de nós com sua instrução e nos mostra o caminho, e nos tornamos educáveis e obedientes, e olhamos para ele, e não nos desviamos, seja para a direita, seja para a esquerda, mas trazemos toda nossa vida à obediência de fé — isso é realmente seguir o Senhor; e é a mais bela definição da castidade espiritual do povo de Deus. 

E também podemos, a partir do oposto disso, aprender o que é se tornar dissoluto; tornamo-nos assim quando nos apartamos da palavra do Senhor, quando damos ouvidos às falsas doutrinas, quando nos abandonamos às superstições; quando, em suma, nos transviamos após nossos próprios planos, e não mantemos nossos pensamentos sob a autoridade da palavra do Senhor. Mas, quanto à palavra devassidão, mais será dito no capítulo 2; contudo, apenas quis por ora tocar brevemente no que o Profeta quer dizer quando repreende os israelitas por terem todos se tornado devassos. 

Dissemos nós, na Dissertação de ontem, que Deus ordenou a seu Profeta que tomasse uma mulher de prostituições, mas que tal não foi, em realidade, feito; pois que outro efeito podia ter tido isso, senão fazer com que ele se tornasse desprezível a todos? E, dessa maneira, sua autoridade teria sido reduzida a nada. Porém, Deus somente quis mostrar aos israelitas, mediante uma tal representação, que eles se jactavam sem razão; pois nada tinham que fosse digno de encômio, mas eram, de todos os modos, ignominiosos. É dito então: Oséias foi e tomou para si Gômer, a filha de Diblaim. rmg,,, Gômer, em hebraico, quer dizer falhar; e algumas vezes significa, ativamente, consumir; e, por isso, Gômer tem o sentido de consumo. Contudo, Diblaim são pastas de figo, ou figos secos reduzidos a uma pasta. Os gregos as chamam palaqaV palathas. Os cabalistas dizem aqui que a esposa de Oséias foi chamada por esse nome, porque aqueles que são muito dados à libertinagem finalmente caem em morte e corrupção. 

Assim, consumo é a filha de figos, pois por figos eles entendem a doçura das concupiscências. Mas ficará mais simples dizer que essa representação foi exibida ao povo, que o Profeta pôs diante deles, em vez de uma esposa, consumo, a filha de figos; ou seja, que colocou perante eles pastas de figos ou palaqaV, representando Gômer, que quer dizer consumo, e ele adotou uma maneira similar à dos matemáticos, quando descrevem suas figuras — “Se isso for tanto, então aquilo é tanto”. Podemos então compreender a passagem, que o Profeta aqui dá, para nome de sua esposa, as pastas deterioradas de figos; de modo que ela era consumo ou putrefação, nascida de figos, reduzida em tais pastas. 

Pois ainda persisto eu na opinião que ontem expressei, que o Profeta não entrou em um lupanar para tomar uma esposa para si: pois, de outro modo, teria ele gerado bastardos, e não filhos legítimos; pois, como foi dito ontem, a situação da esposa e dos filhos era a mesma. 

Fonte 

João Calvino, Comentário sobre Oseias, cap. 1, pp. 28-31, tradução para o português de Vanderson Moura da Silva, a partir da tradução inglesa de John Owen do original em latim. 
www.monergismo.com/textos/livros/Oseias-Comentario-livro_Joao_Calvino.pdf 

Oséias 3:1-5 
1 O Senhor me disse: "Vá, trate novamente com amor sua mulher, apesar de ela ser amada por outro e ser adúltera. Ame-a como o Senhor ama os israelitas, apesar de eles se voltarem para outros deuses e de amarem os bolos sagrados de uvas passas". 2 Por isso eu a comprei por cento e oitenta gramas de prata e um barril e meio de cevada. 3 E eu lhe disse: Você viverá comigo por muitos dias; você não será mais prostituta nem será de nenhum outro homem, e eu viverei com você. 4 Pois os israelitas viverão muitos dias sem rei e sem líder, sem sacrifício e sem colunas sagradas, sem colete sacerdotal e sem ídolos da família. 5 Depois disso os israelitas voltarão e buscarão o Senhor, o seu Deus, e Davi, seu rei. Virão tremendo atrás do Senhor e das suas bênçãos, nos últimos dias. 

Lendo Oséias com João Calvino 

Estamos fazendo nossa devocional hoje no capítulo 3 de Oseias. Como já dissemos, a palavra do Senhor foi pregada por ele nos tempos dos reis de Judá Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias; e, nos tempos do rei do norte, Jeroboão II (cerca de 786-746 a.C.), filho de Joás. 

Este capítulo completa a figura da vida familiar de Oséias. 

“Deveras, o Profeta quer dizer que Deus se antecipa a nós com sua mercê; caso contrário, temos o nosso acesso a ele tolhido. Então Deus, de sua boa vontade, adianta-se, estende-nos sua mão e, em seguida, vem o consentimento da nossa fé. Por essa razão Deus, primeiramente, fala aos israelitas, para que eles soubessem que eram agora reputados por povo dele: e então, após Deus haver testificado seu favor, eles respondem: Tu começastes, de agora em diante, a ser nosso Deus‟. Por isso, vemos que o princípio de todo bem vem de Deus, quando ele faz de estranhos, amigos, e adota como seus filhos aqueles que outrora eram seus inimigos”. (João Calvino, Comentário de Oseias, cap. 3). 

“A essência desse capítulo é que era propósito de Deus guardar, em firme esperança, as mentes dos fiéis durante o exílio, para que não fossem engolfados com desespero que os desfalecesse de todo. O Profeta falara antes da reconciliação de Deus com o seu povo; e ele, esplendidamente, exaltara tal favor quando disse: Vós sereis como no vale de Acor, eu restituirvos-ei a abundância de todas as bênçãos; em uma palavra, vós sereis, em todos os aspectos, felizes‟. 

A experiência profética de Oséias (1.2-3.5) 

Este trecho fala da experiência de Oseias com o seu casamento, o divórcio e o novo casamento com Gômer simbolizando o relacionamento de Deus com Israel, ou seja, era a sua experiência profética. 

Oseias contou a sua experiência familiar corno uma ilustração do relacionamento de Deus com o Reino do Norte, Israel. Esses capítulos podem ser divididos em três seções: 

A. A esposa e filhos de Oseias (1.2-2.1); a iminente destruição (1.2-9); a restauração (1.10-2.1) 

B. O castigo e a reconciliação (2.2-23) 

C. Oseias ama novamente (3.1-5). 

Mas, no meio-tempo, a miséria cotidiana do povo prosseguia. Deus, de fato, tinha determinado removê-los a Babilônia. Eles podiam, por conseguinte, ter se desesperado sob aquela calamidade, como se toda esperança de libertação lhes fosse inteiramente retirada. Por isso, o Profeta agora revela que Deus restauraria o povo à mercê, de modo que não apagaria imediatamente toda lembrança da ira dele Deus, mas que a intenção era continuar, por um tempo, com certa medida da severidade divina”. (João Calvino, idem, op, cit., cap. 3) 

O Senhor disse-me: "Ama essa mulher, mesmo que seja amante de outro e viva em adultério. Faz como eu, o Senhor, que amo os israelitas, apesar de se voltarem para outros deuses, desejosos das tortas de uvas " (V. 1) 

Oséias ama novamente 

Estaremos vendo neste curtíssimo capítulo de apenas cinco versículos que Oseias conta de modo autobiográfico a sua reconciliação com a esposa Gômer após o divórcio. Sua reconciliação prenunciou a reconciliação de Deus com Israel após o exílio. 

Foi o próprio Senhor quem disse a Oseias para ir outra vez amar uma mulher, amada de seu amigo e adúltera. O estarrecedor pedido de Deus, feito por causa de seu amor leal, protetor e generoso pelo Israel infiel (e não merecedor). 

E o Senhor continua a dizer e afirma que ama os filhos de Israel embora eles se desviem dele para outros deuses e amem passas de uvas ou bolos de passas. 

As iguarias preparadas com uvas passas e associadas a ocasiões especiais (2Sm 6.19); pode ter sido usada na adoração a Baal como um afrodisíaco (Ct 2.5). 

Em obediência ao Senhor ele vai e compra para ele uma mulher por apenas quinze peças de prata e um hômer e meio de cevada. O pagamento, aproximadamente metade em prata e metade em espécie, foi de cerca de trinta peças e isso representava quase o valor de um escravo; confira com Êx 21.32 (Se o boi escornear um servo, ou uma serva, dar-se-á trinta siclos de prata ao seu senhor, e o boi será apedrejado.). 

Podemos ver na restauração do povo de Deus três fases importantes: 

A restauração dos israelitas dispersos começou realmente a acontecer no Pentecoste (At 2.38-46). 

Ela continua pela pregação do evangelho por todo o mundo (Rm 1.16). 

Será somente completada com a inclusão dos judeus arrependidos no novo céu e na nova terra (Ap 7.9; cf. Rm 9.1-29). 

Depois disso, sem ter o seu rei, príncipe, sacrifício, coluna, éfode ou terafins, tornarão os filhos de Israel e buscarão ao Senhor, seu Deus e a Davi, seu rei. Essa é de fato Uma esperança messiânica direta. 

Oseias expressou a certeza de que servir a Deus, na restauração, incluía servir ao grande filho de Davi. O Novo Testamento indica que Jesus é o filho de Davi. 

O arrependimento para a vida, portanto, deve incluir o conhecimento de Jesus como Salvador e Senhor. 

Essa busca seria com tremor – vs. 5, ou seja, conhecer a soberania singular de Deus encheria o verdadeiro Israel de Deus de grande reverência (GI 6.15) – e nos últimos dias (terminologia derivada do resumo feito por Moisés do futuro de Israel, em Dt 4.30). Ele identificou "os últimos dias" com os dias do retorno do exílio. 

Deus mandou que Oséias tomasse de volta a sua esposa, aheb, porque Ele tem amor, carinho, amizade por seu povo, por isso mesmo depois do pecado de idolatria, arrependimento, perdão e reconciliação são possíveis. Recuperei então a minha mulher por quinze moedas de prata e seiscentos litros de cevada. (V. 2). Oséias obedeceu, comprando de volta a sua mulher. O valor pago equivale o valor de uma escrava. Mas se o boi matar um escravo ou uma escrava, o boi será apedrejado até morrer e o senhor do escravo ou da escrava, receberá do dono do boi trinta moedas de prata. (Êxodo 21:32). 

Por isso lhe digo: "Viverás comigo por muito tempo. Não pratiques a prostituição, nem te entregues a homem algum. E eu farei o mesmo para contigo." (3) Oséias e Gômer não voltaram imediatamente a ter relações conjugais. Ele esperou para ver se ela ficaria longe dos amantes. Não cometeria mais zanah adultério, fornicação, prostituição. Também o povo de Israel ficará por muito tempo sem rei e sem chefes, sem sacrifícios e sem monumentos religiosos, sem insígnias nem dados para oráculos. (4). Em relação à nação, Deus deixaria o povo sem liderança e sem as coisas necessárias para adorá-lo corretamente. Ao mesmo tempo, ficariam sem os ídolos. Mais tarde, o povo de Israel voltará a procurar o Senhor, seu Deus, e o descendente de David para seu rei. No futuro, procurarão com todo o respeito o Senhor e os seus favores. (5) No final, Israel seria reconciliado com Deus. Este versículo se refere à restauração espiritual do povo na nova Aliança. Davi simboliza Jesus. Os últimos dias se referem à época do novo Testamento. Por meio de Jesus, Israel espiritual se aproxima do Senhor. Pois pela fé que vos une a Jesus Cristo säo todos filhos de Deus. 27 Com efeito, todos os que foram baptizados em Cristo revestiram-se das qualidades de Cristo. 28 Näo há diferença entre judeus e näo-judeus, entre escravos e pessoas livres, entre homem e mulher. Agora constituem um todo em uniäo com Cristo Jesus. 29 E se säo de Cristo, entäo säo descendência de Abraäo e herdeiros de acordo com a promessa. (Gálatas 3:26-29), O povo retorna, mas ainda não está em plena comunhão com Deus. Assim o profeta indica um tempo entre a volta do cativeiro e a vinda de Davi Jesus) para fazer paz entre o povo e Deus. 

“Temos agora que considerar a segunda oração, acerca do Rei Davi. O Profeta nos diz que, quando os israelitas forem movidos pelo desejo de buscar a Deus, eles também buscarão a Davi, rei deles. Haviam se apartado, como é bem conhecido, da sua lealdade a ele; conquanto Deus houvesse posto Davi sobre todo o povo por este motivo — para que fossem todos felizes debaixo de seu poder e domínio, e permanecessem a salvo e seguros, como se contemplassem a Deus com seus próprios olhos; pois Davi era, por assim dizer, o anjo de Deus. Então, a revolta do povo, ou das dez tribos, era como uma renúncia ao Deus vivo. O Senhor disse a Samuel: Não foi a ti que desprezaram, mas a mim‟ (1 Sm 8.7): caso pior ainda com respeito a Davi, a quem Samuel, a mando de Deus, ungira, e a quem o Senhor honrara com tantos elogios notáveis; eles não podiam ter repelido o jugo dele sem rejeitarem abertamente, por assim dizer, ao próprio Deus. Por essa razão, não é sem fundamentos que Oséias, falando da penitência do povo, menciona isto de maneira inequívoca — que eles retornarão a Davi, rei deles: pois não podiam buscar a Deus de coração sincero sem se sujeitarem àquela autoridade legal à qual estiveram presos, não por homens, nem por acaso, mas por ordem de Deus”. 

“É absolutamente verdadeiro que Davi era então morto; porém, Oséias aqui expõe, na pessoa de um homem, aquele reino eterno que os judeus sabiam que duraria como o sol e a lua: pois bem conhecida lhes era esta indescritível promessa: Enquanto o sol e a lua brilharem no céu, eles serme-ão fiéis testemunhas, para que o trono de Davi continue‟ (Sl 72.5,18). 

O Novo Testamento deixou claro o preço final da redenção para o povo de Deus: o sangue de Cristo (1 Pe 1.18). 

Oseias comprou a sua mulher pelo preço ajustado e também lhe disse que ela deveria esperar por ele muitos dias sem se prostituir, sem ser a mulher de outro homem e ele, de sua parte, esperaria também por ela. 

As instituições políticas e religiosas básicas de Israel tanto as legítimas (o sacrifício e a estola sacerdotal; Êx 28.31) como as ilegítimas (postes-ídolos ou colunas [Dt 16.21-22] e imagens ou ídolos do lar (Zc 10.21) - seriam eliminadas como castigo). 

A menção de muitos dias se refere à ação profética do vs. 3 que simbolizava o período de espera anterior à grande restauração. O Novo Testamento ensina que essa restauração por tanto tempo esperada começou com a primeira vinda de Cristo e será completada com o seu retorno – (Rm 8.18-27). 

Estamos aguardando o retorno de Cristo e as conclusões das profecias relativas ao seu reino. Nossa esperança é a sua volta, pois o mundo não parece mesmo ter jeito, embora nele vivamos e estamos aqui para dar testemunho de nossa fé. 

Seria por muitos dias – vs. 4 – que ficaríamos sem rei, sem príncipe, sem sacrifício, sem coluna, sem éfode ou terafins. O desapossamento (ou seja, o exílio) levaria à restauração. A restauração não aconteceria sem um filho de Davi no trono (Am 9.11). Essa exigência foi cumprida por Jesus. 

Embora os exilados que retornaram nos dias de Zorobabel e depois sob a liderança de Esdras e Neemias tivessem demonstrado certo arrependimento, eles não o fizeram com bastante consistência. 

Por isso, após a morte de Davi, o Profeta mostra aqui que seu reino seria para sempre, pois ele sobrevivia em seus filhos; e, como parece, inegavelmente, eles normalmente chamavam seu Messias o filho de Davi. Devemos agora, necessariamente, vir a Cristo: pois Israel não podia procurar seu rei, Davi, que estava morto há muito tempo; mas teriam de buscar aquele Rei que Deus prometera da posteridade de Davi. Tal profecia, então, sem dúvida se estende a Cristo: e fica manifesto que a única esperança de o povo ser reunido era esta, que Deus atestasse que daria um Redentor. 

“Percebemos agora, então, o que o Profeta tinha em vista: os israelitas se tornaram degenerados; e, pela perfídia, deixaram de ser o verdadeiro e genuíno povo de Deus, já que continuavam apartados da família de Davi. O Profeta, falando da plena restauração deles, agora associa Davi com Deus; pois eles não podiam ser restaurados ao corpo da Igreja sem se unirem com os judeus na glorificação da mesma cabeça única. Contudo, precisamos, ao mesmo tempo, lembrar que o rei, a quem o Profeta menciona, não é Davi, que há muito estava morto, mas seu filho, a quem a perpetuidade de seu reino fora prometida”. 

“Tal doutrina é especificamente útil para nós; pois ela demonstra que Deus não é para ser procurado exceto em Cristo, o mediador. Qualquer um, então, que abandona a Cristo, abandona o próprio Deus; pois, como João diz: Aquele que não tem o Filho, não tem o Pai (1.ª de João 2.23). E os fatos mesmos provam isso; pois Deus mora na luz inacessível; quão grande, então, é a distância entre nós e ele? A não ser que Cristo, então, apresente-se a si mesmo para nós como uma pessoa intermediária, como podemos nós ir a Deus? Mas então, somente começamos a realmente procurar Deus quando voltamos nossos olhos a Cristo, que voluntariamente oferece a si mesmo para nós. Esse é o único caminho para se buscar a Deus de maneira acertada”. 

“Alguns, com mais refinamento, disputam que Cristo é Jeová, porque o Profeta diz que ele é para ser procurado de nenhum outro modo que Deus não o seja. Pela palavra, procurar, o Profeta deveras quer dizer que os israelitas não possuíam nenhum outro meio de estarem a salvo e seguros senão fugindo para debaixo da tutela e proteção do legítimo rei deles, a quem sabiam haver sido divinamente ordenado por eles. Isso, pois, não seria suficiente para confutar os judeus. Eu interpreto a passagem de uma maneira mais simples, como significando que eles buscariam o seu Deus na pessoa do rei, cuja mão e esforços esse tencionava empregar na preservação do povo”. 

“Segue-se mais adiante: E eles temerão Jeová e sua bondade nos últimos dias. O verbo pachad algumas vezes significa: temer, ficar apavorado como aqueles que estão tão aterrados que perdem toda a coragem. Porém, aqui deve ser tomado em um bom sentido, recear, como se afigura evidente pelo contexto. Depois, ele diz: Eles temerão Deus e a sua bondade. Os israelitas antes sacudiram o jugo divino: pois foi uma prova do petulante menosprezo deles erigir um novo templo; inventar, de sua própria volição, uma religião nova; e, em uma palavra, permitirem a si próprios uma desenfreada licenciosidade. Por isso ele diz: Eles, a partir de agora, começarão a temer a Deus, e persistirão no serviço dele”. 

“E ele acrescenta, e sua bondade; pela qual ele quer dizer que Deus não seria receado por eles, mas que esse docemente os atrairia para si mesmo, para que obedecessem espontânea, livre e, ainda, jubilosamente: e, indubitavelmente, Deus então nos faz sim realmente temê-lo, quando nos concede uma amostra de sua bondade. Pois a majestade divina infunde-nos terror; e nós, no meio tempo, buscamos lugares escondidos; e, caso nos fosse possível apartar dele, cada um de nós faria isso de forma contente; mas não é adorar a Deus com a devida glória quando fugimos para longe dele. É, então, um senso de sua bondade que nos leva a reverentemente temê-lo. 

Contigo, diz Davi, está o perdão, para que possas ser temido (Sl 130.4): pois, a não ser que os homens saibam que Deus está pronto para ficar em paz com eles, e se sintam seguros de que ele lhes será propício, ninguém o procurará, ninguém o temerá, pois, sem conhecer isso, não poderíamos senão desejar que sua glória fosse abolida e extinta, e que ele ficasse destituído de autoridade, para que não se tornasse nosso juiz. Mas todo aquele que provou da bondade do Senhor, assim ordena a si próprio para obedecer a Deus. 

O que o Profeta, então, tem em vista quando diz, eles então temerão a Deus, é isto, que compreenderão que ficaram miseráveis enquanto estiveram alheados dele, e que a verdadeira felicidade é se submeter à sua autoridade”. 

“Mas, ainda, tal bondade tem que ser alusiva a Cristo. Alguns tomam thubu, por glória, como em Êxodo 33; mas o nexo dessa passagem exige que a palavra seja tomada em seu sentido próprio. E a bondade divina, sabemos, é para ser exibida em nós em Cristo, para que nenhuma partícula dela seja procurada em nenhum outro lugar: pois dessa fonte devemos extrair tudo o que se refira à nossa salvação e felicidade de vida. Que, então, saibamos que Deus não pode ser de coração adorado por nós, senão quando o contemplamos na pessoa de seu Filho, e sabemos que ele nos é um Pai amoroso: por essa razão, João diz: Aquele que não honra o Filho, não honra o Pai (João 5.23)”. 

“Por fim, ele adiciona, no fim dos dias; pois o Profeta queria outra vez fazer lembrar aos israelitas do que ele dissera antes — que eles precisavam de longa aflição, pela qual Deus,gradativamente, reforma-los-ia. Ele então mostra que a perversidade deles era tal, que não seriam trazidos logo a uma mente direita: mas que isso seria no fim dos dias. Ao mesmo tempo, ele consola as mentes dos piedosos, para que eles, pelo cansaço, não ficassem desfalecidos: pois, conquanto não experimentassem de início a bondade divina, o Profeta os lembra de que não havia nenhuma razão para desespero, porque o Senhor manifestaria sua bondade no término dos dias”. 

“Podemos acrescentar que tal término de dias teve seu início no retorno do povo. Quando a liberdade foi outorgada aos judeus, para retornarem ao seu país, foi o término ou plenitude de dias de que o Profeta fala. Mas uma série contínua do retorno do povo até à vinda de Cristo precisa, ao mesmo tempo, ser percebida; pois o Senhor, ali, executou mais completamente o que declara aqui por seu Profeta. Por isso, em toda parte na Escritura, em especial no Novo Testamento, a manifestação de Cristo é colocada nos últimos tempos. Esse capítulo está agora explicado” (João Calvino, op. cit., cap. 3). 


Jean Calvin

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