vendredi 23 novembre 2007

Cristologia: Judeus estudam Jesus

Judeus estudam Jesus
Jorge Pinheiro

Intelectuais e pensadores judeus nos últimos decênios iniciaram um caminho de aproximação e diálogo para entender o pensamento de um judeu chamado Jesus. Aqui vamos examinar brevemente o trabalho de três deles.

1. David Flusser

Entre esses intelectuais podemos citar David Flusser, que foi professor de Novo Testamento e Cristandade antiga na Universidade Hebraica de Jerusalém. Em 1968 foi publicado o seu texto "Jesus em Auto-Testemunhos e Documentos de Imagens", onde diz que Jesus nasceu em Nazaré, era primogênito, e teve quatro irmãos e irmãs. E que foi batizado nos anos 28/29 e morreu entre os anos de 30 e 33. É interessante que Flusser não nega a virgindade de Maria, ao menos explicitamente. Em sua biografia de Jesus, Flusser relata a formação dele, a tensão com a família, que só aceita sua pregação após a morte dele. Flusser refere-se ao batismo e a dotação do espírito como um evento histórico. Considera João, o batista, como o Elias escatológico e que, com Jesus, o reino de Deus teria começado.

Para Flusser, Jesus não foi teórico racionalista e, embora tivesse se voltado contra a teimosia dos piedosos bitolados, ele enfatizou o lado moral dos mandamentos, mas não propôs a sua abolição. Assim, para Flusser, Jesus foi um judeu que se sentiu enviado aos judeus. Os fariseus aparecem em Flusser, outra vez, como referência simbólica, e não historicamente, e são absolvidos de qualquer culpa na morte de Jesus. Flusser coloca a mensagem Jesus como produto periférico ao pensamento dos essênios, mas sem afirmar que Jesus tenha sido essênio. A questão do reino de Deus foi um ponto central da proclamação de Jesus, na qual estavam embutidas uma constelação de valores e não somente aqueles de dimensão social. Por isso, considera que a escatologia se realiza através de Jesus.

Em seu o livro "A Cristandade, uma religião judaica", Flusser fala de Maria, das raízes judaicas da Cristandade, da expectativa messiânica de Jesus, de Paulo e da missão como chamado à fraternidade. Reafirma que Jesus teria visto João como Elias e que Jesus teria sido o único judeu antigo a pregar o início do reino de Deus. Ele teria se visto como Messias. E diz que nos últimos anos empregou força e diligência para mostrar, tanto em hebraico como em inglês, que Jesus se viu realmente como o Messias, o Filho de Homem por vir. Segundo Flusser, Jesus teria mudou a escatologia judaica, ao afirmar que primeiro se realiza o reino do Céu e só depois vem o juízo final. Flusser enfatiza a importância da atividade terrena de Jesus, faz a defesa da messianidade de Jesus como o Filho do Homem, mas descarta a morte expiatória. Apresenta Jesus como judeu, antes e depois da ressurreição. E, assim, apresenta o judeu Jesus como único, divino, Messias. Flusser, dessa maneira, cria a possibilidade de diálogo.

Bibliografia

David Flusser, Jesus, São Paulo, Editora Perspectiva, 2002.
Nesse texto, Flusser utiliza a mais moderna metodologia científica no campo da análise textual, filológica, documental e arqueológica na qual a leitura dos Evangelhos se faz à luz dos Manuscritos do Mar Morto, da literatura pseudo-epigráfica e apocalíptica em conjunto com a do Velho Testamento, da tradição oral judaica, da cristologia e das fontes greco-latinas da historiografia clássica, este livro do historiador David Flusser apresenta um painel da reconstituição do semblante verossímil do judeu de Nazaré e a feição objetiva da realidade que lhe foi subjacente e o projetou na transcendência - a do judaísmo do século primeiro nas suas correntes conflitantes de pensamento religioso.

David Flusser, Judaísmo e as origens do Cristianismo, vols. 1 e 2, São Paulo, Imago, 2001.
No primeiro volume, Flusser objetiva eliminar preconceitos inatos e promover uma melhor compreensão das antigas fontes das duas religiões universais: o judaísmo e o cristianismo. Dentro desta perspectiva, o autor fixa como objetivo principal tratar de alguns problemas relativos ao judaísmo antigo e ao cristianismo primitivo. E no segundo volume, mostra que como o cristianismo surgiu entre os judeus, foi, portanto, um dia, parte do judaísmo. É esta busca por uma melhor compreensão das antigas fontes de duas religiões universais que encontramos neste livro. O autor elimina os preconceitos analisando a influência e essência das doutrinas de forma direta a partir de Jesus. O livro ainda traz alguns artigos eruditos que foram publicados em periódicos.


2. Geza Vermés

O judeu Geza Vermés, historiador britânico, estudou o Jesus histórico. Começou as suas exposições com dados sobre a pessoa de Jesus, e o apresentou como carpinteiro, professor, curador taumaturgo e exorcista, que atuou na Galiléia. Analisou também os títulos de realeza de Jesus: profeta, Senhor, Filho de Homem, Filho de Deus. E acabou por entrar no debate sobre a pessoa do Cristo. E fez isso a partir da literatura do intertestamento e dos rabinos. Para Vermes, é difícil dizer se, de fato, Jesus aceitou os títulos messiânicos ou se essa apropriação se dá posteriormente com o surgimento da igreja cristã.

Para Vermes, em todo o caso, Jesus poderia ser enquadrado num amplo espectro das personagens judaicas de seu tempo. Vermés não faz conjecturas sobre a motivação dos cristãos de apresentarem Jesus como o Messias, mas considera que esse seria um processo natural, já que o Evangelho era perfeito, mas a obstinação dos judeus em recusá-lo como Messias, a maior de todas as promessas divinas a Israel, foi o ponto alto de um erro, e este foi o motivo principal para que seus privilégios fossem transferidos aos não-judeus.

E quem foi o responsável por esta transição foi Paulo, pois a partir do momento em que foi reconhecido como apóstolo dos gentios (Rm 11.13; At 9.15), e sua missão dirigida aos não-judeus foi aprovada pela liderança da igreja em Jerusalém (At 15), a orientação original da atividade de Jesus foi radicalmente transformada. Não-judeus entraram na igreja em grande número, e ela fez, em conformidade com o modelo de conversão existente no Judaísmo daquela época, o seu melhor para satisfazer as novas exigências. Outra transformação decisiva, que tocava na substância em conseqüência do transplante do movimento cristão ao solo gentílico, atingia o status da Torá, que representava para Jesus a fonte da inspiração e o critério do seu modo de viver. Apesar de não ser esta a posição de Jesus, ela foi declarada não só facultativa, mas abolida. A Torá, que ele compreendia com simplicidade e aprofundamento, e que transpunha com integridade, foi definida por Paulo como um instrumento de pecado e morte. E Paulo se tornou por uma virada que criou o grande abismo entre Judaísmo e Cristandade.

Assim, para Vermes, a do cristocentrismo contra o teocentrismo de Jesus separaria, então, os cristãos dos judeus, mas não os judeus de Jesus. Pois Jesus de carne e sangue, visto e ouvido na Galiléia e em Jerusalém, intransigente e persistente no seu amor a Deus e ao próximo, estava convencido de que poderia contagiar os seus semelhantes pelo exemplo e ensino, com o seu apaixonado relacionamento ao Pai no Céu. E com o pássaro do tempo o judeu simples dos Evangelhos passou para o segundo plano e cedeu lugar à magnífica e majestosa figura do Cristo da igreja.

Bibliografia

Geza Vermes, Jesus e mundo do judaísmo. São Paulo: Loyola, 1996.
Os estudos contidos neste livro levam mais longe a investigação realizada nos livros de Geza Vermes, Jesus, o judeu e Os Manuscritos do Mar Morto e lançam luz sobre muitas questões importantes e controversas do período. Os tópicos incluem a importância dos Manuscritos do Mar Morto para os estudos judaicos e os estudos do Novo Testamento; a necessidade dos estudos judaicos para a interpretação do Novo testamento; e a compreensão que Jesus tinha de si mesmo. Este volume contém em particular as Conferências Riddell Memorial, "O Evangelho de Jesus, o Judeu", que representam uma continuação de Jesus, o judeu.

Geza Vermes, As várias faces de Jesus, São Paulo, Editora Record, 2006.
Vermes reorienta o conhecimento comum sobre Jesus com essa pesquisa provocante. Sua obra propõe uma nova abordagem, conferindo o mesmo peso ao Novo Testamento e aos escritos judaicos não-bíblicos. O objetivo é explorar os diferentes perfis do personagem que definiu dois milênios da fé cristã para analisar como e por que aquele palestino carismático foi elevado à condição divina de Cristo. O autor nos remete aos primórdios do cristianismo, permitindo a compreensão das condições históricas ocultas nos textos dos evangelhos mais antigos ao privilegiar o evangelho mais recente, o de João.

O autor de As Várias Faces de Jesus considera Cristo, a Igreja primitiva e o Novo Testamento como parte de uma interpretação do judaísmo. Ao despir as interpretações teológicas do contexto dos evangelhos, ele procura revelar a verdadeira identidade, a figura humana de Jesus, e esclarece como os Seus ensinamentos foram passados da versão original à nossa civilização.

Geza Vermés, O autêntico Evangelho de Jesus, São Paulo, Editora Record, 2006.
O autor relaciona, compara, classifica e examina diferenças entre os ditos atribuídos a Jesus nos Evangelhos Sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) ao longo de nove capítulos. Assim, analisa temas essenciais do cristianismo como a oração, a Última Ceia, os momentos próximos à morte e a ressurreição de Cristo, as maldições, o exorcismo e as bem-aventuranças preservadas em formas distintas pelos evangelistas.


3. David H. Stern

O rabino David H. Stern publicou nos Estados Unidos uma tradução do Novo Testamento introduzindo anotações a partir das raízes judaicas presentes nos textos. Em seu trabalho, o conceito “promessa e cumprimento” tem importância central. Jesus cumpriu as promessas do Antigo Testamento. Textos como os de Gn 3.15; 12.3; 17.19; 21.12; 28.14 ou Nm 24.17-19 e ainda muitos outros, remetem a Jesus. O Novo Testamento é visto, então, como a Nova Torá. O fim desta Torá é o Messias, que oferece justiça a cada um que confia nele.


Bibliografia

David H. Stern, O Novo Testamento Judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007.
Porque esta versão do Novo Testamento difere das demais? Porque este Novo Testamento Judaico deixa transparecer sua judaicidade originária e essencial. Todas as outras versões do Novo Testamento em português — há literalmente dezenas — apresentam sua mensagem na abordagem lingüística, cultural e teológica dos não-judeus cristãos.

E o que há de errado com isso? Nada! Ainda que o Evangelho seja de origem judaica, ele não existe só para os judeus, mas também para os não-judeus. O próprio Novo Testamento deixa isso muito claro, portanto, é apropriado que sua mensagem seja comunicada aos não-judeus de forma a lhes impor o mínimo possível de outra bagagem cultural. E esta abordagem tem sido bem-sucedida: milhões de não-judeus depositaram sua confiança no Deus de Avraham, e Yitz’chak e Ya‘akov e no Messias judeu, Yeshua.

O Novo Testamento é um livro judeu. Entretanto, chegou o tempo de restaurar a judaicidade do Novo Testamento. Pois o Novo Testamento é de fato um livro judeu — escrito por judeus, que trata majoritariamente de judeus e que tem por público alvo judeus e não-judeus. É correto adaptar um livro judeu para a melhor apreciação dos não-judeus, mas não ao preço de suprimir sua judaicidade inerente. O Novo Testamento Judaico evidencia suas características judaicas a partir do título, da mesma forma que o nome Judeus por Jesus une duas idéias consideradas incompatíveis e completamente dissociadas por algumas pessoas. Entretanto, essa separação não pode existir. A figura central do Novo Testamento, Yeshua o Messias, Era um judeu nascido de judeus em Beit-Lechem, cresceu entre os judeus em Natzeret, ministrou aos judeus na Galil, morreu e ressuscitou na capital judia, Yerushalayim — tudo isto em EretzYisra’el, a terra dada por Deus ao povo judeu.

Além disso, Yeshua ainda é judeu, porque ainda está vivo, e em nenhum lugar a Escritura afirma ou sugere que ele tenha cessado de ser judeu. Seus doze seguidores mais íntimos eram judeus. Durante anos todos os seus talmidim eram judeus, alcançando o número de “dezenas de milhares” só em Yerushalayim. O Novo Testamento foi escrito inteiramente por judeus (Lucas era, ao que tudo indica, um prosélito do judaísmo); e sua mensagem é dirigida “especialmente ao judeu, mas também ao não-judeu”. Os judeus levaram o Evangelho aos não-judeus, e não o inverso. Sha’ul, o principal emissário aos não-judeus, foi durante toda a sua vida um judeu praticante, como evidencia o livro de Atos. De fato, a principal questão no início da comunidade messiânica (“igreja”) não era se um judeu poderia crer em Yeshua, mas se um não-judeu poderia se tornar cristão sem se converter ao judaísmo. A expiação vicária do Messias tem sua raiz no sistema sacrificial judaico. A ceia do Senhor origina-se da Páscoa judaica. A imersão (“batismo”) é uma prática judaica. Yeshua disse: “A salvação vem dos judeus”.

A própria Nova Aliança foi prometida pelo profeta judeu Jeremias. O próprio conceito do Messias é exclusivamente judeu. A bem da verdade, o Novo Testamento completa o Tanakh, as Escrituras hebraicas outorgadas por Deus ao povo judeu; de forma que o Novo Testamento sem o Antigo é tão possível quanto o segundo pavimento de uma casa sem o primeiro, e o Antigo sem o Novo é como uma casa sem teto. Além do mais, muito do que está escrito no Novo Testamento é incompreensível à parte do contexto judaico. Eis aqui um exemplo, extraído de muitos outros. Yeshua disse literalmente no Sermão do Monte: “Se o seu olho for mau, todo o seu corpo estará em trevas”. O que é um “olho mau”? Alguém que desconheça o pano de fundo judeu poderia supor que Yeshua estivesse falando sobre algum tipo de encantamento. Todavia, em hebraico, possuir um ‘ayin ra‘ah, “olho mau”, significa ser sovina; ao passo que ter um ‘ayin tovah, um “olho bom”, equivale a ser generoso. Yeshua está simplesmente incentivando a generosidade e desestimulando a avareza. E esse entendimento combina muito bem com os versículos do contexto: “Onde estiver seu tesouro, aí também estará seu coração [...] você não pode ser escravo de Deus e do dinheiro”.

Contudo, a melhor demonstração do caráter judaico do Novo Testamento é também a prova mais convincente de sua veracidade, ou seja, o número de profecias do Tanakh — todas muitos séculos mais velhas que os acontecimentos registrados no Novo Testamento — cumpridas na pessoa de Yeshua de Natzeret. A probabilidade de que qualquer pessoa pudesse se encaixar em dezenas de condições proféticas por mero acaso é infinitesimal. Nenhum candidato farsante ao messiado, como Shim‘on Bar-Kokhva ou Shabtai Tzvi, cumpriu mais que umas poucas. Yeshua cumpriu todas as 52 profecias referentes à sua primeira vinda. As restantes serão cumpridas quando ele retornar em glória. Dessa forma, o Novo Testamento Judaico considera normal pensar no Novo Testamento como algo judeu.

Há três áreas adicionais nas quais o Novo Testamento Judaico pode ajudar em relação a tikkun-ha‘olam (“conserto do mundo”): o anti-semitismo cristão, a recusa judaica de receber o Evangelho e a separação entre a igreja e o povo judeu.

1. O anti-semitismo cristão. Inicialmente, um círculo vicioso de anti-semitismo cristão se alimenta do Novo Testamento. O Novo Testamento não contém nenhuma forma de anti-semitismo, mas desde os primeiros dias da igreja, os promotores desse conceito têm distorcido o Novo Testamento para justificar-se e se infiltrar na teologia cristã. Alguns tradutores do Novo Testamento, ainda que não tenham sido anti-semitas, absorveram a teologia anti-semita e produziram traduções antijudaicas. Os leitores dessas traduções acabaram assumindo posturas anti-semitas e hostis ao judaísmo. Alguns desses leitores se tornaram teólogos que refinaram e desenvolveram o caráter anti-semita da teologia cristã (eles poderiam até mesmo não ter consciência desse sentimento); ainda outros se tornaram ativistas em prol do anti-semitismo e perseguiram os judeus, pensando agradar a Deus enquanto procediam assim. Este círculo vicioso precisa ser quebrado. O Novo Testamento Judaico é uma tentativa de remover erros teológicos anti-semitas multisseculares e destacar positivamente sua judaicidade.

2. A desconfiança judaica em relação ao Evangelho. Em segundo lugar, apesar de mais de cem mil judeus messiânicos habitarem em países de língua inglesa, é óbvio que a maior parte do povo judeu não aceita Yeshua como Messias. Ainda que as razões possam incluir a perseguição cristã aos judeus, as cosmovisões seculares que cedem pouco espaço para Deus ou um messias, e a recusa de se arrepender dos pecados — o motivo principal é o sentimento de que o Evangelho lhes é irrelevante. Este sentimento se origina parcialmente do modo pelo qual o cristianismo representa a si mesmo, mas também da alienação induzida pela maior parte das versões do Novo Testamento. Com a ornamentação cultural cristã gentílica e suas justificativas teológicas antijudaicas, fizeram com que muitos judeus pensassem ser o Novo Testamento um livro não-judeu sobre uma divindade dos não-judeus.

O Jesus apresentado por eles diz pouco a respeito da vida judaica. Torna-se difícil para o judeu experimentar Yeshua o Messias como ele realmente é — amigo de todo judeu. Ainda que o Novo Testamento Judaico não consiga eliminar todas as barreiras entre os judeus e a confiança no seu Messias, ele remove alguns obstáculos lingüísticos, culturais e teológicos. O judeu que ler o Novo Testamento Judaico poderá experimentar Yeshua como o Messias prometido pelo Tanakh ao povo judeu; e poderá perceber que o Novo Testamento é tão importante para os judeus quanto para os não-judeus; e será confrontado com a mensagem integral da Bíblia, os dois Testamentos juntos, como verdadeiros, importantes e dignos de aceitação, a chave para a salvação pessoal e de seu povo.

3. A separação entre a comunidade messiânica e o povo judeu. Em último lugar, séculos de rejeição judaica de Yeshua e de rejeição cristã em relação aos judeus produziu a situação na qual nos encontramos: cristianismo é cristianismo, e judaísmo é judaísmo e os dois jamais se encontrarão. Além disso, muitos judeus e cristãos estão satisfeitos com essa situação. Entretanto, não é vontade divina a existência separada de dois povos de Deus. Os cristãos não-judeus que reconhecem sua união a Yisra’el, e não sua substituição, e os judeus messiânicos plenamente identificados com o povo e o Messias judeu, Yeshua, devem trabalhar conjuntamente para reunificar o grande cisma da história mundial, a divisão existente entre a igreja e o povo judeu. O Novo Testamento Judaico tem um papel a desempenhar na grande tarefa de reunir os dois grupos de forma a preservar a identidade judaica na comunidade messiânica, na qual judeus e não-judeus honram a Deus e seu Messias de acordo com o Tanakh e o Novo Testamento.

vendredi 16 novembre 2007

REFLEXÕES SOBRE A TEOLOGIA DA MISSÃO INTEGRAL

Por Jorge Pinheiro

Nesses estudos que começamos a desenvolver sobre a Teologia da Missão Integral queremos reafirmar alguns conteúdos e expor outros. Assim, começamos, à guisa de definição, afirmando que a TMI é comunicação e presença do evangelho. Com isso queremos dizer que essa teologia correlaciona comunicação e presença, sem colocar um sinal de igualdade entre essas realidades e sem declarar que necessitam sempre ser levadas a termo juntas. Na Teologia da Missão Integral, a comunicação tem conseqüências sociais porque convoca pessoas e comunidades ao arrependimento e ao amor pelos outros em todas as áreas da vida.

A Teologia da Missão Integral vê compromisso social como comunicação e presença, que tem conseqüências para a proclamação da boa nova que se dá através do testemunho da graça do Cristo. Quando há silêncio e cruzar dos braços diante dos sofrimentos do mundo, a Palavra é traída, já que nessas circunstâncias não há o que oferecer ao mundo.

A Teologia da Missão Integral tem como um de seus pilares a diaconia, que em seu sentido cristão significa serviço ao próximo. Diante da alegria pelo que Deus tem feito, ao abençoar as vidas, a Missão Integral propõe como resposta a promoção da diaconia. Nesse sentido, Missão Integral e diaconia são expressões que não podem vir separadas.

Nas primeiras comunidades cristãs, a diaconia teve característica singular de testemunho de fé por meio da vida solidária (At 2.44-45; 4.32-35), já que, como disse Paulo, "se um membro sofre todos sofrem com ele" (1Co 12.26). O fundamento dessa ação solidária repousa nos ensinos e prática de Jesus Cristo. Por isso, para a Missão Integral, o amor a Deus só é possível se este alcança o próximo (1Jo 4.20). Na prática, amar ao próximo consiste em propiciar dignidade humana e reintegração na sociedade (Mt. 9.35+). Por seu ministério e morte, Cristo assumiu a fraqueza humana e sofreu o poder de morte do mundo para, então, superá-los. Assim, a Teologia da Missão Integral desafia ao testemunho do amor de Deus, enquanto ação solidária.

A Teologia da Missão Integral é sentido e luta incondicional pela justiça, entendendo que a justificação pela graça, através da fé, não se refere apenas a fé posicional, mas existencial. É uma instrução de que falamos de Cristo na vida da comunidade de tal maneira que a justificação se transforma em vida aberta. E, assim, é fé material, política, e espiritual, já que transformação da pessoa e transformação estrutural estão correlacionadas. Ser, fazer e dizer, então, estão no coração da teologia da missão integral.


A Teologia da Missão Integral
é uma teologia da transformação holística


1. É uma teologia da centralidade em Cristo, pois a vida de serviço sacrificial de Jesus é o paradigma. Em sua vida e por meio da sua morte, Jesus estabeleceu o modelo de identificação com os excluídos e o exercício da inclusão. Na cruz, Deus revela a seriedade com que Ele olha para a justiça e reconcilia consigo integrados e excluídos, ao cumprir com os requerimentos de sua própria justiça. No caminhar com os excluídos de bens e possibilidades, serve-se no poder do Senhor por meio do Espírito e encontra-se a esperança em submeter todas as coisas a Cristo.

2. É uma teologia da graça de Deus, que concede impulso à comunicação permanente onde todo e qualquer locus é campo privilegiado. Como receptores do amor somos pessoas agraciadas pela generosidade e aceitação dos demais. Tal graça define a justiça frente à situação-limite vivida pelo povo brasileiro, não somente como contrato que deve ser honrado, mas como serviço àquele que se encontra à margem, caído.

3. É uma teologia do Espírito, um convívio com o Espírito, já que este é o sentido cristão da palavra espiritualidade. Dessa maneira, a idéia de uma vida forte, a idéia da vitalidade de uma vida criativa a partir de Deus nos leva à espiritualidade, ou seja, a uma vida espiritualizada por Deus.

Por isso, podemos dizer: as pessoas procuram a Deus porque o Espírito as atrai para si. Estas são as primeiras experiências do Espírito no ser humano. E o Espírito as atrai como um imã atrai as limalhas de ferro. O íntimo e suave atrativo de Deus é experimentado pela pessoa em sua fome de viver e em sua busca de felicidade, que nada no universo pode satisfazer ou saciar.

A espiritualidade da vida se opõe à mística da morte. Quanto mais sensíveis as pessoas se tornam para a felicidade da vida, mais sentem a dor pelos fracassos da vida. Vida no Espírito é vida contra a morte. Não é vida contra o corpo, mas a favor de sua libertação e sua glorificação. Dizer sim à vida significa dizer não à guerra e suas devastações. Dizer sim à vida significa dizer não à miséria e suas humilhações. Não existe uma afirmação verdadeira da vida sem luta contra tudo que nega a vida.

O Espírito é o acontecer da presença atuante de Deus, que penetra até o mais íntimo da existência humana. Ele atua como força de vida no ser humano e transforma aqueles que se encontram sob o senhorio de Cristo.

Cria espaço, põe em movimento, leva da estreiteza para a amplidão. Cria o horizonte e nas nossas vidas amplia o horizonte. Na experiência com o Espírito, Deus não é experimentado somente como Pessoa da Trindade, mas também como aquele espaço e tempo de liberdade onde o ser humano pode se desenvolver.

E onde está o Espírito há liberdade. Com essa experiência do Espírito, Paulo falou sobre a liberdade cristã. Mas para falar da liberdade no Espírito é necessário começar pela fé.

A fé é geralmente entendida como uma concordância formal com a doutrina da igreja ou como uma participação na fé da igreja. Mas a fé que liberta é mais do que isso, é uma fé que nos envolve pessoalmente. A fé que me faz livre não é somente a fé com a qual eu concordo, mas aquela que me leva a partir e repartir o pão e o vinho. Tal fé pessoal é sempre comunitária e o início de uma liberdade que renova inteiramente a vida e vence o caos.

Essa fé é uma experiência que não abandona aqueles que a vivenciam realmente: é libertação do medo para confiança, reviver para uma esperança viva, amor incondicional à vida.

Para a fé que parte e reparte pão e vinho, a liberdade não consiste nem na compreensão de uma necessidade histórica, nem na autonomia sobre si próprio e sobre a propriedade, mas sim no ser tocado pela necessidade do outro que sofre. Fé significa assim, posicionamento existencial, ser criativo diante dessas gentes brasileiras, com suas comunidades, com Deus e no seu Espírito. Crer leva a uma vida criativa e vivificante pelo amor. Crer, por isso, significa ultrapassar os limites da realidade determinada pelo passado marcado pela escravidão e pela exclusão e buscar as possibilidades da vida que não se realizaram. E é essa fé que livra da força do mal, da lei das obras e do poder da morte e leva a uma comunhão direta com o meu próximo e eterna com Deus. Essa é a base e o fundamento da liberdade no Espírito.

4. É teologia da imagem de Deus, e nesse sentido uma teologia para os excluídos, que como todos os humanos são portadores da imagem de Deus Criador. Pessoas e comunidades excluídas de bens e possibilidades têm conhecimentos, habilidades e recursos. Tratar tais pessoas com dignidade significa propiciar condições para que sejam arquitetos de mudança em suas comunidades. Trabalhar com elas envolve a construção de relações que conduzem a uma mudança mútua.

5. É uma teologia para a Igreja, porque Deus por sua graça tem dado as comunidades de fé o desafio da comunicação. O futuro da comunicação se define em termos de expansão do reino de Deus, capacitando as gentes para que transformem suas comunidades. As comunidades de fé devem gerar espaços e tempos de inclusividade, como fruto natural do chamado que receberam. As pessoas e mesmo as comunidades são atraídas por este fazer de amor das comunidades cristã. E é a partir daí que são impactadas pela mensagem cristã.

6. É uma teologia para o Reino de Deus, comunitária, porque a experiência de caminhar com as comunidades excluídas deixa uma interrogação sobre o que significa ser comunidade de fé. A igreja pode ser mera instituição ou organização, mas é nas comunidades de fé em Jesus que se concretizam os valores do Reino. A participação dos excluídos na vida das comunidades de fé possibilita o encontro de novas maneiras de ser igreja no contexto da cultura brasileira, ao invés de ser simples reflexo dos valores da subcultura dominante. A comunicação tem credibilidade na medida em que adota uma aproximação encarnada. Com freqüência as comunidades de fé têm-se dedicado à obtenção de dinheiro, êxito e influência. A comunidade que Jesus Cristo denominou seu pequeno rebanho faz parte do Reino de Deus. As tradições eclesiásticas não podem dificultar o que a Igreja já fez pela expansão do Reino. A igreja pode enfrentar o problema da miséria quando trabalha com os miseráveis e, a partir daí, pressiona atores sociais com a sociedade civil, os governos e o setor privado, sobre a base do respeito mútuo e o reconhecimento do papel de cada participante.

7. É uma teologia social, de apoio às transformações sociais que favoreçam os excluídos e caminhem na direção de acabar com a miséria no Brasil. Vejam de onde vierem essas ações transformadoras. Tais atividades se ampliam para incluir avanços em direção à transformação de valores, o reconhecimento da dignidade das comunidades e a cooperação em questões de justiça. Com sua presença ao lado dos excluídos, as comunidades de fé colocam-se numa posição singular que favorece o trabalho para restaurar a dignidade concedida por Deus, apresentando valores para que produzam recursos próprios e criem redes de solidariedade.

8. É uma teologia da cidadania, de consciência de direitos e deveres de cada pessoa como integrante de uma coletividade, entendendo-se essa coletividade em todas as instâncias do Reino de Deus e de sua presença no mundo. Isso pressupõe a igualdade, que transpõe barreiras de nível sócio-econômico, de etnia, de faixa etária, de sexo, de cultura, de situação civil, de deficiência física, de instituição e, também, pressupõe a unidade na pluralidade, pois trata da existência humana sobre a face da terra, e seu direito à vida, à liberdade, à propriedade, ao trabalho, à educação, à saúde, ao entretenimento e à cultura. É uma teologia por si só inclusiva, pois se contrapõe à opressão, à omissão, à rejeição e à massificação. É também uma teologia espacial, pois considera o mundo como oikos, precisando ser preservado, cuidado, adaptado, sinalizado, para usufruto e bem estar do ser humano; o que integra as demais criaturas de Deus, como parte de seus direitos e deveres, de coroa da Criação.

9. É uma teologia ecológica, que envolve o uso responsável e sustentável dos recursos da criação de Deus e a transformação das dimensões morais, intelectuais, econômicas, culturais e políticas da vida. Isto inclui a recuperação de um sentido bíblico de mordomia. O conceito bíblico do sábado recorda que se deve por limites ao consumo. Os cristãos integrados no Brasil devem usar sua riqueza e seu poder a serviço dos demais. É um compromisso de trabalhar para libertar os ricos de sua escravidão ao dinheiro e ao poder. A esperança de tesouros no céu livra da tirania de Mamon.

10. É uma teologia do amor, da paz e da reconciliação, porque num mundo de conflitos e tensões étnicas tem-se falhado na tarefa de construir pontes. A Teologia de Missão Integral trabalha pela reconciliação entre comunidades divididas etnicamente, entre integrados e excluídos, entre opressores e oprimidos. Reconhece o mandato de falar por quem não pode clamar por si mesmo e, também, a necessidade de defensoria tanto para tratar da injustiça estrutural, como para resgatar o próximo necessitado. Essa teologia clama por outra globalidade, solidária, pois a globalização excludente é o domínio de culturas que têm o poder de promover seus produtos, tecnologias e imagens além de suas fronteiras. A luz deste fato, as comunidades de fé com sua rica diversidade desempenham um papel singular por ser uma comunidade verdadeiramente global.

E, por fim, nessas reflexões da Teologia da Missão Integral para nosso continente, diremos que é uma teologia da solidariedade latino-americana, que faz a crítica da globalização selvagem e chama pessoas e comunidades cristãs à uma solidariedade com a América Latina, construída ao redor de propostas e ações de justiça e paz. A Teologia da Missão Integral considera que os países desenvolvidos devem reconhecer seu papel no desenvolvimento de uma economia global solidária, onde estão incluídas novas formas de pensar e agir em relação ao continente latino-americano.

A Teologia da Missão Integral reconhece o valor do planejamento, da organização, da avaliação e de outras ferramentas similares, mas afirma que estas devem estar a serviço do processo de construção de relações e valorização dos excluídos latino-americanos, sejam eles pessoas ou comunidades.

Dessa maneira, a Teologia da Missão Integral faz um chamado à solidariedade latino-americana, entendendo que pessoas e comunidades cristãs devem ajudar aqueles que clamam pelos Direitos Humanos essenciais e apoiar aqueles que se dedicam a melhorar as condições de vida e possibilidades das populações na América Latina.

jeudi 1 novembre 2007

EINSTEIN E OS CAMINHOS DA CRIAÇÃO

A COSMOGONIA JUDAICA E O CONCEITO ESPAÇO-TEMPO EM GÊNESIS UM
Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Aos olhos de Hitler e de seus fiéis, conforme descreve Raphaël Draï [La Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie (Paris: Presses Universitaires de France, 1966) 1], existia um perigoso pensamento judaico, caracterizado por sua essência maléfica, inspiradora da física de Einstein, da literatura de Kafka, da música de Schoenberg e da psicanálise de Freud. Deixando de lado os delírios hitlerianos, podemos dizer que há um criativo e fecundo pensamento judaico, que através dos séculos soube combinar Torah e conhecimento, ética e epistemologia. Nosso propósito é, numa primeira aproximação, mostrar que os estudos judaicos dos conteúdos de Gênesis Um produziram uma epistemologia que interliga o conceito espaço/tempo em Gênesis Um com a teoria da relatividade. Essa dialética tem especial importância para a teologia cristã, já que a partir dela podemos entender melhor a realidade de Gênesis Um.

No começar Deus criando o fogoágua e a terra.
E a terra era lodo torvo e a treva sobre o rosto do abismo
E o sopro-Deus revoa sobre o rosto da água.
[Tradução de Augusto de Campos in Bere’shith, A Cena da Origem, SP, Perspectiva, 1988, p. 45].

O desafio maior para quem analisa significações é o próprio exercício da leitura. O desejo de conservar a linguagem pode levar a uma solução oposta àquela se pretende. Considerar o simbólico como abstrato e irrelevante é, em última instância, separar signo e objeto. Assim quando um texto passa a ser apenas e somente um conjunto fechado costumamos dizer que compreendemos o referido texto. Mas ao fazer isso, na verdade, eliminamos a possibilidade de restaurar sua intenção original e de ultrapassar a letra para captar o sentido primeiro de seu autor. Logicamente, esse midrash tem como ponto de partida, e exige como garantia, a compreensão do primeiro discurso.

Em novembro de 1942, o poeta e crítico Ezra Pound afirmava que “o mistério profundo da vida é descobrir porque os outros não compreendem aquilo que se escreve e diz. A coisa parece simples e clara ao escritor, mas outros o tomam em sentido diferente. E se gastam anos para saber porque e como” [Ezra Pound, Lettere 1907-1958, Milão, Feltrinelli Editore, 1980, p. 7]. Logicamente, como autor e crítico, Pound falava de hermenêutica em seu sentido laico, que não implica na inesgotabilidade do texto sagrado. Produto não inspirado, esse texto, fruto da inteligência e arte de um homem, pode ser percorrido por outro homem em sua totalidade, arrancando do discurso poético os elementos lógicos que lhe deram constituição, interpretando-o com tal maestria e clareza quanto poderia fazê-lo seu próprio autor. Mas mesmo assim, como alerta Pound, isso pode transformar-se em tarefa de anos.

Interpretar o texto bíblico, decifrá-lo, arrancar dele significações é um desafio que não se resume a um homem ou a um curto período de anos. É nosso pressuposto que Gênesis Um enquanto palavra/ordem do Deus criador apresenta mais conteúdos do que é perceptível na leitura de toda uma geração. Aqui há uma dialeticidade que permanecerá no equilíbrio de seus contrários, sem solução ou síntese enquanto houver história: a revelação do que é perfeito dá-se através de um instrumento imperfeito, a linguagem humana. Nossa necessidade histórica de interpretar nasce daí, dessa inadequação entre significante e significado. “A tarefa do intérprete consiste, pois, na explicitação da mensagem divina, através do raciocínio bem dirigido. As conclusões a que se chega nada acrescentam ao significado do texto, pois já estavam contidas ali desde sempre; embora para ele sejam novas, uma vez que diferem do que está escrito, em si mesmas não o são, porque estavam gravadas no subsolo do texto que se interpretou. Contudo, sendo a Bíblia obra de um ser infinito, as interpretações jamais se esgotam. Cada novo corte no texto aprofunda o seu sentido, mas é sempre possível avançar mais. Elas se sucedem através do tempo, porém, por mais surpreendentes que pareçam, têm a garantia de se situarem no mesmo campo inicial”. [Renato Mezan, Freud: A Trama dos Conceitos, SP, Perspectiva, 1982, p. 342].

Exatamente, por isso, parto do pressuposto de que a teologia judaica nos últimos mil e novecentos anos apresenta uma hermenêutica bastante criativa do Gênesis Um. Essa hermenêutica ou midrash não ficou restrita aos círculos rabínicos, mas fez parte da tradição e da cultura do judaísmo através dos séculos. Escritores, artistas e cientistas judeus utilizaram esses conhecimentos em seus campos de trabalho. Einstein conhecia essas fontes, em parte desconhecidas para o mundo cristão, mas ricas e cheias de significados para todo intelectual judeu. Por isso, esta releitura da teoria do caos tem como roteiro a cosmogonia judaica e as idéias centrais da teoria da relatividade.

Albert Einstein era judeu, acreditava em Deus criador, mas não aceitava o conceito bíblico de Deus pessoal. Foi um sionista militante durante toda sua vida, a ponto de em 1952 lhe ser oferecida a presidência de Israel. Não aceitou. Estava casado com a física. “As equações são mais importantes para mim porque a política é feita para o presente, ao passo que uma equação é algo para toda a eternidade”. [Stephen W. Hawking, Uma Breve História do Tempo, RJ, Rocco, 1988, pp. 240-241].

DO TZIMTZUM AO PROCESSIO DEI AD EXTRA

Apesar de seus matizes, o judaísmo mostrou uma coerência em relação à hermenêutica de Gênesis Um, a defesa da criação ex nihilo. Assim, o recuo de Deus para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo finito, é desenvolvido na teoria da contração, em hebraico tzimtzum. Essa teoria formalizada pelo rabino Luria (1534-1572) é uma das concepções mais surpreendentes do pensamento judaico. Isaac Luria, um dos maiores expoentes da tradição mística no judaísmo, nasceu no Cairo, mas desenvolveu seu ministério em Safed, na Palestina.

A expressão tzimtzum significa originariamente concentração, mas acabou sendo entendida como retirada. Segundo Scholem, Luria partiu de textos do Midrash, onde encontramos que Deus concentrou sua Shekiná, sua presença divina, no Santo dos Santos, assim todo seu poder retraiu-se num único ponto. É assim que surge a expressão tzimtzum. [Exod Raba ao Êx 25:10, Lev. Raba ao Lv 23:24; Pessikta de Rab Kahana, Ed. Buber 20 a; Midrasch Schir Ha-Schidim, Ed. Griinhut (1899), f. 15b, citado por Gershom Scholem, A Mística Judaica, SP, Perspectiva, 1972, p. 263].

Infelizmente, as duas expressões, concentração e retirada, que deveriam ser entendidas como complementares, já que Deus se retira e então concentra a sua luz sobre este ponto, passa a dividir os estudiosos em dois grandes grupos: os que defendem o tzimtzum como base para a doutrina da creatio ex nihilo e também para aqueles que defendem a doutrina da emanação (em hebraico atsilu) ou processio Dei ad extra.

Dessa maneira, o próprio Luria, apesar de partir de uma expressão que naturalmente deve levar à creatio ex nihilo, torna-se o principal expositor dentro do misticismo judaico do processio Dei ad extra, que tem por base não um processo no tempo, mas uma estrutura da realidade, enquanto emanação, criação, formação e ação. Assim, para esses rabinos, níveis inferiores de realidade emanaram de níveis superiores que, por sua vez, tiveram origem em Deus. Dentro dessa concepção há um midrash, a teoria do vaso quebrado, que trabalha com a hipótese de que o mundo foi feito de remanescentes de mundos anteriores, que Deus havia destruído. Uma conhecida lenda rabínica explica esse processo como o desprender de uma chama de carvão da roupa de Deus.

“No princípio (Gênesis 1:1), a vontade do Rei começou a gravar signos na esfera superior. Do recesso mais oculto, uma negra chama brotou do mistério do ein sof, o Infinito, como um novelinho de massa informe, como que inserido no aro dessa esfera, nem branca nem preta, nem vermelha nem verde, de nenhuma cor. Somente depois de distender-se como um fio, produziu ela cores para luzir em si. Do âmago da chama, jorrou uma fonte da qual brotaram cores e se espalharam sobre tudo embaixo, oculto na ocultação mais misteriosa do ein sof. Mal rompeu ela, inteiramente irreconhecível, seu círculo de éter, sob o impacto da irrupção, um ponto oculto, superno fulgiu da irrupção final. Aquém desse ponto está excluído todo conhecimento e por isso ele é chamado reschit, princípio, a primeira palavra do Todo”. [O Princípio, Sefer ha-Zohar (Livro do Esplendor), in J. Guinsburg, Do Estudo e da Oração, SP, Perspectiva, 1968, p. 605].

Apesar de sua riqueza teológica, não estaríamos longe da verdade ao classificar a doutrina da emanação como um panenteísmo, que define o mundo material como o desdobramento de Deus em diferentes níveis. E porque o mundo existe dentro de Deus, os defensores do processio Dei ad extra consideram necessário descobrir o que há de divino nos fenômenos do cotidiano.

Se entendermos, porém, a teoria do tzimtzum, como a relação dialética de dois movimentos, o da retirada e o da concentração ficará mais fácil aproveitar os estudos de Luria. O tzimtzum explica o recuo de Deus para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo finito. Como Deus é infinito, sem o tzimtzum não haveria o nada no qual pudesse produzir a estrutura espaço/tempo de uma criação separada. É interessante notar, que se por um lado a dialética da autocontração e concentração divinas deu origem ao mundo material, o choque entre o movimento restritivo e o transbordante amor de Deus criou também a possibilidade do mal. Nesse sentido, a cosmogonia judaica, vê a criação em primeiro lugar como consciente autolimitação e na seqüência como revelação e julgamento. E como julgamento é entendida a imposição de limites, ele faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Em outras palavras: se o mal é uma probabilidade que surge da dialética amor divino e retração, o julgamento passa a ser inerente a tudo na criação, já que todas as coisas estão determinadas enquanto limites.

A tradição do debate sobre a creatio ex nihilo é antiga no pensamento judaico. Na verdade, podemos dizer que começa a ser realizada no segundo século. Por isso, não é de estranhar que encontremos reflexões profundas sobre Gênesis Um nos séculos posteriores. Assim, em um dos textos mais representativos do pensamento caraíta, movimento medieval de retorno à letra da Escritura, considerado por muitos um protestantismo judeu de coloração pietista, a “Explanação dos Mandamentos”, de Aha Nissi ben Noah de Bassorá, que ensinou em Jerusalém na segunda metade do século IX, lemos:

“No primeiro dia, Deus criou sete coisas: o céu, a terra, as trevas, a luz, a água, o abismo e o vento (Gn.1:1-12). Primeiro criou tohu e bohu (a solidão e o caos), dos quais surgiu a terra (Gn.1:1-2). Criou as trevas: ‘Ele formou a luz e criou as trevas’ (Isaías 45:6). Criou o vento, conforme a palavra: ‘e criou o vento’. Criou a água, pois com a criação da terra havia água. Criou o abismo, para que a água tivesse uma profundidade e uma submersão. Criou a luz (Gn.1:3). Para a criação do mundo foram necessárias quatro coisas: a ordem, o trabalho, a determinação e a proclamação” [Nissi ben Noach, Explanação dos Mandamentos, in J. Guinsburg, op. cit., p.309]. Nesse texto aparentemente tão simples, encontramos dois conceitos muito importantes: tohu e bohu fazem parte da criação e para que haja criação é necessário ordem.

Outro grande teólogo judeu, que fez oposição ao pensamento caraíta, foi Saadia Gaon (892-942). Influenciado pela efervescente teologia do Islã e pelo pensamento helenístico clássico, Gaon combateu a presença heterodoxa, de tendência maniqueísta, os remanescentes de Filo e a crítica gnóstica. Seu texto sobre a doutrina da creatio ex nihilo é de uma profunda beleza, apesar de apresentar imperfeições normais ao conhecimento da época, como, por exemplo, sua visão geocêntrica. Mas, de forma brilhante enfrenta opositores bem parecidos aos que encontramos hoje em dia.

“Aqueles que acreditam na eternidade do mundo procuram provar a existência de algo que não tem começo nem fim. Por certo, nunca depararam com uma coisa que percebessem, pelos sentidos, sem ser começo nem fim, mas procuram estabelecer sua teoria por meio de postulados da razão. Semelhantemente, os dualistas empenham-se em provar a coexistência de dois princípios separados e opostos, cuja mistura fez que o mundo viesse a ser. Sem dúvida, nunca testemunharam dois princípios separados e opostos, nem o pretenso processo da mistura, mas tentaram suscitar argumentos derivados da razão pura em favor de sua teoria. De maneira similar aqueles que acreditam numa matéria eterna consideram-na como um hilo, isto é, algo em que não há originalmente qualidade de quente ou frio, de úmido ou seco, mas que se transforma por uma determinada força e assim produz aquelas quatro qualidades. Indubitavelmente, seus sentidos nunca perceberam uma coisa carente de todas essas quatro quantidades, nem jamais perceberam um processo de transformação e a geração das quatro qualidades como é sugerido. (...) Assim sendo, é claro que todos concordam em admitir alguma opinião concernente à origem do mundo que não tem base na percepção sensorial”. [Saadia Gaon, Criação Ex-Nihilo in J. Guinsburg, op. cit., p. 316].

Para sua defesa da criação ex-nihilo, Gaon trabalha com quatro argumentos, três dos quais muito bem expostos: de finitude do universo, estrutura e acidentalidade. “(...) continuou a afirmar que nosso Senhor, louvado e enaltecido seja, informou-nos que todas as coisas foram criadas no tempo, e que Ele as criou do nada (...). Ele nos comprovou essa verdade por meio de sinais e milagres, e nós a aceitamos. Examino ainda mais nesta matéria com o intuito de saber se ela podia ser comprovada por especulação como foi comprovada por profecia. Achei que era este o caso por um certo número de razões, da quais, devido à brevidade, selecionei as quatro seguintes: 1. A primeira prova baseia-se no caráter finito do universo (...). 2. A segunda prova é derivada da união de partes e da composição de segmentos. Vi que os corpos consistem de partes combinadas e de segmentos ajustados entre si (...). 3. A terceira prova baseia-se na natureza dos acidentes. Verifiquei que nenhum dos corpos são desprovidos de acidentes que os afetem direta ou indiretamente. Animais, por exemplo, são gerados, crescem até que alcançam sua maturidade, então, definham e se decompõem. Então eu disse a mim mesmo: Será que a terra como um todo é livre destes acidentes? (...) 4. A quarta prova baseia-se na natureza do tempo. Sei que o tempo é triplo: passado, presente, futuro. Embora o presente seja menor do que qualquer instante, tomo o instante como se toma um ponto e digo: Se um homem tentasse em seu pensamento ascender deste ponto no tempo ao ponto mais elevado, ser-lhe-ia impossível fazê-lo, porquanto o tempo é agora admitido como infinito e é impossível ao pensamento penetrar no ponto mais remoto daquilo que é infinito.” [Saadia Gaon, Quatro Argumentos para a Criação, idem, op. cit., pp. 317-320].

De todos os pensadores judeus medievais, talvez o mais conhecido fora dos meios judaicos, seja o talmudista francês Shlomo bar Itzhak, o rabi Rashi de Troyes (1040-1105). Exegeta, Rashi apresenta uma tradução para o versículo um de Gênesis que leva em conta estrutura e acidentalidade: “No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, a terra era vã...” E segundo seu midrash, o texto não está preocupado em mostrar a ordem da criação, mas em afirmar o ato criador de Deus. Rashi mostra-se preocupado com o sentido literal, mas define claramente sua hermenêutica: “Todo texto se divide em muitos significados, mas, afinal nenhum texto está destituído de seu sentido literal” [Herman Hailperin, Rashi and the Christian Scholars, Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1963].

A DIALÉTICA DA ESTRUTURA E ACIDENTALIDADE

Dessa maneira, tanto para expositores da creatio ex nihilo como para os defensores do processio Dei ad extra a intenção primeira de Gênesis-Um é apresentar Deus como criador, que utiliza tohu e bohu como matéria prima para a formação do universo. E é a partir dessa relação entre criação e revelação, que os estudiosos judeus entenderão a redenção, já que o fim messiânico ou estágio final do mundo revelado significa uma volta ao começo, uma nova criação.

“A Redenção deveria ser conseguida não por um movimento tempestuoso na tentativa de apressar crises e catástrofes históricas, mas antes pela remarcação do caminho que conduz aos primórdios da Criação e da Revelação, ao ponto em que o processo do mundo (a história do universo e de Deus) principiou-se a desenvolver-se dentro de um sistema de leis. Aquele que conhecia a senda pela qual viera podia ter esperanças eventualmente de poder retornar sobre seus passos”. [Gershom Scholem, A Mística Judaica, SP, Perspectiva, 1972, p. 248].

Assim, mais do que qualquer intencionalidade em apresentar a cronologia da criação, Gênesis Um apresenta uma ordem enquanto dialética da estrutura e acidentalidade. Esse processo é interpretado por Scholem como “o primeiro ato, o ato do tzimtzum, no qual Deus determina e (...) limita a Si mesmo, é um ato de julgamento que revela as raízes dessa qualidade em tudo o que existe. Essas raízes do julgamento divino subsistem em mistura caótica com o resíduo da luz divina que remanesceu, após a retirada ou retraimento original, dentro do espaço primário da criação de Deus. Então um segundo raio de luz emanado da essência do Ein-Sof traz ordem ao caos e põe o processo cósmico em movimento, ao separar os elementos ocultos e moldá-los em nova forma” [Iossef ibn Tabul in Gershom Scholem, Kiriat Sefer, vol. XIX, pp. 197-199].

E dois escritos antigos nos mostram que a doutrina da creatio ex nihilo tem suas bases tanto no Tanach, como apócrifos intertestamentários. Lemos em Isaías: “Assim diz Iahveh, teu redentor, aquele que te modelou desde o ventre materno. Eu, Iahveh, é que fiz tudo, e sozinho estendi os céus e firmei a terra. Com efeito, quem estava comigo?” (Is.44:24). E em II Macabeus 7:28: “Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles existe. Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os fez, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma”. Esta, aliás, é a primeira afirmação explícita da criação ex nihilo.

A primeira vista, a cosmogonia judaica define a centralidade de Gênesis-Um no ato criativo de Deus apenas enquanto espacialidade. Seria uma busca do lugar, da centralidade espacial. O que leva muitos a afirmarem que não há nenhum elemento espaço-temporal em Gênesis. Mas, isso não é verdade. Em 1740, Anton Lazzaro Moro, cristão novo, geólogo e exegeta italiano, desenvolveu uma sofisticada defesa da hipótese espaço-temporal em Gênesis Um. Dizia ele que tudo que está “envolto e fechado” precisa de um tempo para libertar-se e tornar-se evidente, e que Deus, ao criar a natureza, colocou-se com administrador das leis criadas. Daí conclui: “Quando a Escritura afirma que ‘Spiritus Dei ferebatur super aquas (...)’ indica uma função que traz consigo sucessão de tempo” [Anton Lazzaro Moro, De Crostacei e degli altri Corpi Marini che si Truovano su Monti, 1740, in Paolo Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos, São Paulo, Editora Unesp, 1992, p. 345].

Desenvolvendo sua tese espaço-temporal, explica que toda a criação sofreu duas produções diferentes, que precisam ser cuidadosamente separadas: “a primeira é a do nada pela mão imediata do criador; a outra provém do seio das segundas causas acionadas pelo administrador da natureza. A primeira produção é instantânea e é ato divino proporcionado pela onipotência e eternidade de Deus; a segunda [produção] implica que o ato divino seja adaptado às exigências da natureza que Deus estabeleceu em cada coisa” [Idem, op. cit., p. 345]. A partir daí sua cosmogonia é surpreendente. Explica que é Deus quem moveu circularmente “a celeste matéria de todo o planetário vórtice”, obrigando essa matéria que formaria o Sol a colocar-se no lugar que lhe era destinado. Constatando que seja qual for a velocidade que se queira atribuir ao movimento diário do Sol e de seu vórtice, “isso não aconteceu num só dia e em só vinte e quatro horas”. A formação do Sol, assim como a produção dos planetas, afirma Moro, “comprova que aqueles seis dias não foram de medida igual aos dias modernos, mas que foram espaços de tempo de duração muito mais longa, ou seja, de uma duração proporcional à atividade das causas segundas e à exigência dos efeitos produzidos; espaços esses que foram chamados dias, conforme o costume freqüentemente usado nas Escrituras de exprimir com o nome de dias certos espaços de tempo longos e indeterminados” [Idem, op. cit., p. 347]. É interessante ver como a física do século vinte, principalmente aquela que sofreu influências dessa mesma cosmogonia, traduziu para uma nova linguagem antigos conceitos.

É verdade, que desde Aristóteles a ciência avaliou equivocadamente o conceito tempo, considerando-o absoluto, sem relação imediata e causal com o espaço. Pensou um tempo sem ambigüidades, achando que se fosse medido corretamente, entre dois espaços ou eventos, o intervalo de mensuração seria sempre igual. Durante séculos, inclusive para Newton, o tempo foi independente do espaço. Mas, em 1905, Einstein tornou pública uma nova teoria de espaço, tempo e movimento, que ele chamou de relatividade especial. Comprovada em experiências de laboratório, essa teoria, aceita pela grande maioria dos físicos atuais, levanta algumas hipóteses simplesmente impressionantes, como a equivalência da massa e da energia, a elasticidade do espaço e do tempo e a criação e destruição da matéria. Dez anos depois, na seqüência da teoria anterior, Einstein publica a sua teoria da relatividade geral, com novas e surpreendentes previsões: a curvatura do espaço e do tempo, a possibilidade de que o universo seja finito, mas ilimitado e a possibilidade de o espaço e o tempo se esmagarem, deixando de existir.

”(...) estas considerações levou-nos a conceber teoricamente o universo real como um espaço curvo, de curvatura variável no espaço e no tempo, de acordo com a densidade de distribuição da matéria, susceptível porém, quando considerada em larga escala, de ser tomado como um espaço esférico. Esta concepção tem, pelo menos, a vantagem de ser logicamente irrepreensível, e de ser aquela que melhor se cinge ao ponto da teoria da relatividade geral”. [Albert Einstein, Considerações Cosmológicas sobre a Teoria da Relatividade, in O Princípio da Relatividade, H. A Lorentz, A. Einstein, H. Minkowski, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1958, pp. 239-240].

E ao criticar a teoria do tempo absoluto, Einstein vai mostrar que à medida que o deslocamento de um objeto se aproxima da velocidade da luz, sua massa aumenta mais rapidamente, de forma que gasta mais energia para aumentar sua velocidade. Por isso, muito possivelmente nunca possa atingir a velocidade da luz, pois deixaria de ter massa intrínseca. O importante dessa teoria é ter modificado a compreensão de tempo e de espaço. Antes, considerava-se que a velocidade da luz era a distância que ela percorre, dividida pelo tempo que leva para fazer isso. Agora, compreendemos que a velocidade pode ser a mesma, mas não a distância percorrida. A partir da teoria da relatividade, o conceito de simultaneidade, ou seja, da existência de um mesmo momento em dois lugares diferentes, deixou de ter qualquer significado em termos de universo.

O TEMPO ENQUANTO NÃO-DETERMINAÇÃO

Em linguagem da física da relatividade o tempo gasto é a velocidade da luz multiplicada pela distância que a luz percorreu. Temos então várias medidas de tempo, ou seja, medições diferentes entre dois eventos ou espaços. Gênesis nos apresenta este conceito de tempo com yom que aparece como não-determinação-quando em Gn 3:5; não-determinação-período em Gn.1:14,16,18; não-determinação-época em Gn 2:4. Deixamos de ter, então, dois conceitos separados e absolutos: o tempo e o espaço, para termos um, o espaço-tempo. Ora, um evento é algo que acontece num determinado ponto do espaço e logicamente num tempo também determinado. Só que não há separação entre essas duas unidades. Uma das premissas da teoria da relatividade, conforme expõe Stephen Hawking [Uma breve História do Tempo, RJ, Rocco, 1988, pp. 35-60], é que o tempo corre mais lentamente perto de um corpo volumoso. Assim, na Terra, para tomarmos um exemplo que nos interessa, o tempo é mais lento que em outros planetas ou luas de menor massa. Isto porque existe uma relação entre energia da luz e sua freqüência. Quanto maior a energia, maior a sua freqüência.

Dessa maneira, à medida que a luz percorre verticalmente o campo gravitacional da Terra perde energia e sua freqüência diminui. Em outras palavras, espaço e tempo são quantidades dinâmicas. Quando um corpo se move no universo afeta a curva do espaço-tempo e, por sua vez, a curva do espaço-tempo afeta a forma como os corpos se movem e as forças atuam. Só que, e esse conceito é importantíssimo para a relatividade geral, não há como falar de espaço-tempo fora dos limites do universo. Essa premissa é interessante, pois descarta a idéia de um universo imutável, que sempre existiu, para trabalhar com a possibilidade de um universo que teve início, é plástico e encontra-se em expansão.

Ora, o que Gênesis está mostrando é que o universo teve um início, que a criação não é um mito. “Não há nenhum paralelo bíblico aos mitos pagãos que relatam a morte de deuses mais velhos (ou poderes demoníacos) pelos mais jovens; não se acham presentes nos tempos primevos quaisquer outros deuses. As batalhas de Iahveh com monstros primevos, aos quais é feita ocasionalmente alusão poética, não são lutas entre deuses pelo domínio do mundo. As batalhas de Iahveh com Raabe, o dragão, Leviatã, no mar, a serpente veloz, etc., não são esclarecidas pela referência ao mito da derrota de Tiamat por Marduc e sua subsequente tomada do poder supremo”. [Yehezkel Kaufmann, A Religião de Israel, São Paulo, Perspectiva, 1989].

Assim, para a teoria da relatividade o universo tem começo como singularidade, que ficou conhecida como Big Bang e deverá ter um final também singular, o colapso total ou Big Crunch. Mesmo sem querer forçar, o Big Crunch nos leva ao texto de Pedro: “Ora, os céus e a terra estão reservados pela mesma palavra ao fogo (...) O dia do Senhor chegará como ladrão e então os céus se desfarão com estrondo, os elementos, devorados pelas chamas se dissolverão e a terra, juntamente com suas obras, será consumida” (II Pedro 3.7 e 10). Só que, como o espaço-tempo é finito, mas sem limites, o Big Crunch poderia levar a uma concentração de energia tal, que muito possivelmente possibilitaria a formação de um novo universo. E essa formulação nos leva a outro texto bíblico: “Vi então um céu novo e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra se foram (...)” Apocalipse 21.1.

“De forma semelhante, se o universo explodisse novamente, deveria haver um outro estado de densidade infinita no futuro, o Big Crunch, que seria o fim do tempo. Mesmo que o universo como um todo não entrasse novamente em colapso, haveria singularidades em algumas regiões determinadas, que explodiriam para formar buracos negros. Essas singularidades seriam o fim do tempo para quem ali caísse. Na grande explosão e demais singularidades todas as leis são inoperantes. Então, Deus ainda teria tido completa liberdade para escolher o que aconteceu e como o universo começou”. [Stephen Hawking, op. cit., p. 236].

Ora, como a expansão do universo implica em perda de temperatura, que é uma medida de energia, quando o universo dobra de tamanho, sua temperatura cai pela metade. Assim, quando Deus cria o universo, supõe-se que tinha tamanho zero e temperatura infinitamente quente. Mas à medida que se expande, a temperatura cai. Isso explica porque o universo é tão uniforme, e parece igual mesmo nos mais diferentes pontos do espaço. Uma das consequências, caso consideremos o fiat divino como o Big Bang, é que a partir da grande explosão não houve tempo de a luz se deslocar por ilimitadas distâncias. É por isso que Gênesis apresenta em primeiro lugar tohu e bohu, as trevas e o abismo, e só no versículo três o surgimento da luz.

É interessante ver que uma das possibilidades que alguns físicos baralham, um pouco a contragosto, é a de que Deus escolheu a configuração inicial do universo por razões que não temos condições de compreender. Consideram que os acontecimentos do surgimento do universo não se deram de forma arbitrária, mas refletem um ordem comum. Hawking, como não é teólogo, opta por uma variável que chama limitação caótica ou escolha ao acaso. Dentro desse ponto de vista, o universo primordial surgiu como caos. Ora a segunda lei da termodinâmica mostra que há essa tendência no universo, e que a ordem e o equilíbrio, ou seja, a vida, que é a forma mais organizada da matéria, surge como oposição a este caos.

“Einstein uma vez formulou a pergunta: ‘Que nível de escolha Deus teria tido ao construir o universo?’ Se a proposta do não limite for correta, ele não teve qualquer liberdade para escolher as condições iniciais. Teria tido, ainda naturalmente, a liberdade de escolher as leis a que o universo obedece. Isto, entretanto, pode não ter sido um grau assim tão elevado de escolha. Pode ter sido apenas uma, ou um pequeno número de teorias completas unificadas, tal como a teoria do filamento heterótico, que são autoconsistentes e permitem a existência de estruturas tão complexas quanto os seres humanos, que podem investigar as leis do universo e fazer perguntas acerca da natureza de Deus”. [Stephen Hawking, op. cit., p. 237].

“Toda variação de entropia no interior de um sistema termodinâmico pode ser decomposta em dois tipos de contribuição: a entrada exterior de entropia, que mede as trocas com o meio e cujo sinal depende da natureza dessas trocas, e a produção de entropia, que mede os processos irreversíveis no interior do sistema. É essa produção de entropia que o segundo princípio define como positiva ou nula”. [Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, Entre o Tempo e a Eternidade, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 53].

“(...) as leis científicas não distinguem entre as direções para frente e para trás do tempo. Entretanto, há pelo menos três setas de tempo que distinguem o passado do futuro, que são a seta termodinâmica, direção do tempo em que a desordem aumenta; a seta psicológica, direção do tempo na qual se recorda o passado e não o futuro; e a seta cosmológica, direção do tempo em que o universo se expande mais do que se contrai. Demonstrei que a seta psicológica é essencialmente a mesma que a termodinâmica, de modo que ambas sempre apontam para a mesma direção. A proposta do não limite para o universo prevê a existência de uma seta termodinâmica do tempo bem definida, porque o universo deve começar num estado plano e ordenado. E a razão por que se observa esta seta termodinâmica se adequar à cosmologia é que os seres inteligentes só podem existir na fase de expansão”. [Stephen Hawking, idem, op. cit., pp. 210, 211].

Coerente com sua visão de que Deus não joga dados com o universo, Einstein dará um feroz combate às teses de acausalidade na mecânica quântica, defendidas pelas escolas de Copenhagem e Gottingen. “Não posso suportar a idéia de que um elétron exposto a um raio de luz possa, por sua própria e livre iniciativa, escolher o momento e a direção segundo o qual deve saltar. Se isso for verdade, preferia ser sapateiro ou até empregado de uma casa de jogos em vez de ser físico”. Citado por Franco Selleri, Paradoxos e realidade, Ensaios sobre os Fundamentos da Microfísica, Lisboa, Fragmentos, 1990, p. 41. Em 1944, voltaria à carga: “Nem sequer o grande sucesso inicial da teoria dos quanta consegue convencer-me de que na base de tudo esteja o indeterminismo, embora saiba bem que os colegas mais jovens considerem esta atitude como um efeito de esclerose. Um dia saber-se-á qual destas duas atitudes instintivas terá sido a atitude correta”. [Ibidem, op. cit. p. 59].

Guardadas as devidas proporções, Agostinho, pai e mestre da igreja cristã, também considera que o caos transcende o tempo. “E por isso o Espírito, Mestre do vosso servo, quando recorda que no princípio criaste o céu e a terra, cala-se perante o tempo. Fica em silêncio perante os dias. O céu dos céus, criado por Vós no princípio, é, por assim dizer, uma criatura intelectual, que apesar de não ser coeterna convosco, ó Trindade, participa contudo da vossa eternidade. (...) Sem movimento nenhum desde que foi criada, permanece sempre unida a Vós, ultrapassando por isso todas as volúveis vicissitudes do tempo. Porém, este caos, esta terra invisível e informe não foi numerada entre os dias. Onde não há nenhuma forma nem nenhuma ordem, nada vem e nada passa; e onde nada passa, não pode haver dias nem sucessão de espaços de tempo” [Santo Agostinho, Confissões, XII, 9, SP, Abril, 1973, pp. 264, 265].

O bispo de Hipona faz claramente uma separação, não somente neste texto, entre os céus dos céus, uma dimensão além dos limites da ciência, e “o nosso céu e a nossa terra” (universo), que segundo ele é terra. Para ele é totalmente compreensível que essa terra fosse “invisível e informe”, pois estava reduzida a um abismo sem luz, exatamente porque não tinha forma. Diríamos hoje, não há espaço-tempo. E, de maneira brilhante, tenta uma definição, apesar de alertar para suas limitações: “um certo nada, que é e não é”. Interessante, Nissi ben Noach diria praticamente a mesma coisa.
“O conceito de tempo não tem significado antes do começo do universo. O que foi apontado pela primeira vez por Agostinho, quando indagou: O que Deus fazia antes de criar o universo?”[Stephen Hawking, op. cit., p. 27].

Conhecemos as três principais teorias cristãs sobre a criação: tudo é criação original, teoria da brecha e teoria do caos. A partir do que vimos, gostaria de fazer alguns acréscimos à teoria do caos:

1. O versículo primeiro de Gênesis-Um está fora do espaço-tempo. Nesse sentido refere-se à dimensão divina do céus dos céus conforme explicita Agostinho. A criação do espaço-tempo começa com o próprio caos, que não deve ser entendido como negação ou pura ausência, mas como entropia. É ex-nihilo enquanto universo-espaço-temporal que surge, mas não enquanto realidade de Deus, que repousa naqueles quatro conceitos enumerados por Noach: determinação, proclamação, trabalho e ordem.
2. O tempo não pode ser medido pois não é cronológico, é o tempo da ordem/organicidade de Deus. Isso é explicável porque não há um tempo, mas diversos tempos. A criação implica na expansão do espaço-tempo. Assim o espaço-tempo de Gênesis 1:3 é totalmente diferente do espaço-tempo de Gênesis 1:12. Yom em Gênesis-Um só pode ser entendido enquanto tempo não-determinado.
3. Toda discussão que tente uma polaridade entre evolução teísta ou criação de seis dias de vinte e quatro horas não procede. Isto porque o espaço-tempo entre os seis dias não são iguais. Há criação e expansão da massa, o que na Bíblia traduz-se em criação e sustentação. “És tu, Iahveh, que és o único! Fizeste os céus, os céus dos céus, e todo o seu exército, a terra e tudo o que ela contém, os mares e tudo o que eles encerram. A tudo isso és tu que dás vida, e o exército dos céus diante de ti se prostra”. (Neemias 9.6).