lundi 30 novembre 2015

A nova esquerda -- primeira parte

A nova esquerda -- primeira parte
Jorge Pinheiro, PhD

Aparentemente, existem apenas dois posicionamentos extremos em relação à novidade que o Partido dos Trabalhadores representou na história política brasileira: a postura que considera o PT nada mais do que o último dos partidos comunistas; e a postura que vê no PT o início de algo inteiramente novo. Na verdade, as duas leituras desprezam o fato histórico de que a partir dos anos 60 surge uma nova esquerda no cenário político brasileiro e que está se fará presente na formação do Partido dos Trabalhadores. Podemos dizer, como já o fez Mondaini de Souza, que o Partido dos Trabalhadores constituiu na sua formação algo novo no cenário social e político brasileiro, mas novidade permeada de tradições e permanências legadas pelo passado. Ou como afirmou:

A nova esquerda traz em seu âmago – ora negando, ora afirmando – a velha esquerda, já que os agentes da renovação história têm como paradigma os agentes da conservação histórica, seja para negá-los abertamente ou para incorporá-los implicitamente. [1]

A nova esquerda do final dos anos 1960, em especial na França e Estados Unidos, se caracterizou por fazer uma leitura frankfurtiana, psicanalítica e rebelde do marxismo. Assim, autores como Herbert Marcuse, Wilhelm Reich e Rosa Luxemburg foram descobertos e transformaram-se em referenciais teóricos na leitura de Marx, em especial do jovem Marx de Os manuscritos econômico-filosóficos.

A petrificação da teoria marxista viola o princípio básico que a Nova Esquerda proclama: a unidade de teoria e prática. Uma teoria que não tenha acompanhado a evolução da prática capitalista não terá possibilidades de guiar a prática que visa à abolição do capitalismo. A redução da teoria marxista a sólidas estruturas divorcia a teoria da realidade e confere-lhe um caráter abstrato, remoto, ‘científico’, que facilita a sua ritualização dogmática”. [2]

Mas a teologia e o pensamento cristão, através de pensadores como Paul Tillich, influenciaram a nova esquerda. James Farrell [3] e Doug Rossinow [4] analisaram a importância da presença do pensamento cristão protestante e da espiritualidade evangelical na formação da nova esquerda norte-americana, que reafirmou valores ligados a ética social. Localizaram nessa presença, por exemplo, a dimensão moral do movimento dos direitos civis de Martin Luther King Jr. e o existencialismo cristão de Paul Tillich. Farrell e Rossinow foram unânimes ao afirmar que nos anos 1960, a vanguarda da nova esquerda norte-americana leu e discutiu Albert Camus, Dietrich Bonhoeffer e Paul Tillich. Em relação a Tillich, dois de seus livros marcaram essa presença na nova esquerda, a História do Pensamento Cristão e Coragem de Ser. Assim, para Rossinow, a nova esquerda trouxe para a mesa de discussão da política norte-americana o cristianismo reformado evangelical, o evangelho social e o feminismo popular. [5]

Marcuse e Reich, porém, foram os críticos do capitalismo posterior à Segunda Guerra mundial que discutiram o poder, a ideologia, a cultura e a repressão sexual a partir de novas perspectivas. Embora tenham trazido para o marxismo o ar fresco de uma leitura não dogmática e contextualizada de Marx, o poder para os dois ainda era visto apenas num sentido negativo, onde o futuro não existia, e se existia era como sombra ou barbárie. 

“Na fase suprema do capitalismo, a revolução mais necessária parece ser a mais improvável. A mais necessária porque o sistema estabelecido somente se preserva através da destruição global de recursos, da natureza, da vida humana, e das condições objetivas que poriam fim a tudo isso”. [6]

Assim, a nova esquerda viu a revolução como processo prenunciado sob forma ideológica pelas contra-imagens e contra-valores que contradiziam a imagem do universo capitalista, como “as manifestações de um comportamento não competitivo, a rejeição da virilidade brutal, o desmascaramento da produtividade capitalista do trabalho, a afirmação da sensibilidade, a sensualidade do corpo, o protesto ecológico, o desprezo pelo falso heroísmo no espaço exterior e nas guerras coloniais, o Movimento de Libertação das Mulheres (...), a rejeição do culto puritano, antierótico, da beleza e do asseio plásticos”. [7] Para a nova esquerda todas essas tendências contribuíam para o enfraquecimento do princípio do desempenho capitalista. Já nos anos 1980, essas questões do poder, da ideologia e da repressão sexual foram analisadas por dois outros teóricos, Michel Foucault e Félix Guattari, mas desde a perspectiva de inclusão, de atração do novo, que antes a nova esquerda não tinha visto. Assim, esses dois lados do processo capitalista, de destruição das forças produtivas, mas também de inclusão e apropriação da revolta cultural e ideológica, aparentemente antagônicos, serão debatidos pelos teóricos da nova esquerda, o que trouxe novos conteúdos, como o da biopolítica e da política do corpo, à teoria marxista.

Essas leituras não foram hegemônicas no pensamento da nova esquerda brasileira, que privilegiou a análise do “crescimento das forças anticapitalistas no Terceiro Mundo, (...) que reduz as reservas de exploração”, [8] mas estavam presentes nas discussões de uma parcela das lideranças, o que possibilitou nos anos 1980 uma leitura nova das questões de gênero, sexualidade e das questões nacionais que envolvem os povos indígenas e afrobrasileiros. Assim, a vanguarda da nova esquerda brasileira acompanhou os debates que aconteciam na Europa e nos Estados Unidos, leu marxistas não ortodoxos como Rosa Luxemburg, León Trotski e Che Guevara, e travou contato com pensadores cristãos, como Martin Luther King Jr. e Ernesto Cardenal. E se essa nova esquerda procurava levar a imaginação ao poder, por que não resgatar a ética humanista do socialismo?

A radicalização do movimento de massas nos anos 1960 e em especial a vitória da revolução cubana geraram as condições para o surgimento de uma nova esquerda desvinculada da tradição stalinista. A esta conjuntura acrescente-se um ingrediente novo, o crescimento da esquerda católica, em especial no movimento estudantil. É neste contexto que surgem duas organizações políticas que marcarão o pensamento da esquerda: a Política Operária-Polop, e a Ação Popular-AP. Mas aqui também se fará presente a influência do trotskismo, já que essa esquerda, parte da qual duas décadas mais tarde vai desaguar no Partido dos Trabalhadores, procurou nas idéias do revolucionário russo base para sua ação militante. Segundo Gorender,

A influência das idéias de Trotski não se restringiu ao trotskismo ortodoxo e orgânico. O crescimento do PCB e a sofisticação das suas teses reformistas impressionaram negativamente intelectuais do Rio, São Paulo e Minas Gerais, que aceitaram as idéias de Trotski sem rigor dogmático e buscaram outras fontes de inspiração em Rosa Luxemburg, Bukharin e Talheimer”. [9]

Notas
[1] Marco Antônio Mondaini de Souza, Da esquerda revolucionária pré-64 ao PT: continuidades e rupturas, São Paulo, FFLCH/USP, 1995, p. 8. 
[2] Herbert Marcuse, Contra-Revolução e Revolta, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978, p. 41. 
[3] James Farrell, “Review of Doug Rossinow, The Politics of Authenticity: Liberalism, Christianity and the New Left in America”, H-Pol, H-Net Reviews: 09.1998. Site: www.h-net.org/reviews (Acesso 15.10.2004). 
[4] Doug Rossinow, The Politics of Authenticity: Liberalism, Christianity, and the New Left in America, New York, Columbia University Press, 1998. 
[5] Doug Rossinow, op. cit., p. 312. 
[6] Herbert Marcuse, op. cit., p. 16. 
[7] Herbert Marcuse, op. cit., pp. 38-39. 
[8] Herbert Marcuse, op. cit., p. 16. 
[9] Jacob Gorender, Combate nas trevas, a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, São Paulo, Ática, 1987, p. 35.

A estação do Advento

Pastoral
A estação do Advento

A palavra Advento vem do latim e significa aproximação, chegada. É um tempo de preparação para a celebração do Natal do Senhor. Neste tempo, celebramos duas verdades de nossa fé: (1) a primeira vinda, o nascimento de Jesus em Belém de Judá e (2) a segunda vinda de Jesus, a Parusia. 

Assim, comemoramos a vinda do Filho de Deus entre os homens e vivemos na alegre expectativa da segunda vinda dele, em poder e glória.

O tempo do Advento não tem um número fixo de dias e depende sempre da solenidade do Natal. Ele possui quatro semanas e, por isso, quatro domingos celebrativos. 

O terceiro domingo do Advento é chamado de domingo da alegria, porque nos alegramos com a proximidade da celebração do Natal. 

O tempo do Advento se divide em duas partes. 

A primeira, que vai até a segunda semana de dezembro e é marcada pela espera alegre da segunda vinda de Jesus. 

A segunda parte, nos dias que antecedem o Natal, se destaca pela recordação sobre o nascimento de Jesus em Belém de Judá. 

Dois personagens bíblicos ganham destaque na celebração do Advento: Maria e João Batista. Ela porque foi escolhida por Deus para ser a mãe do Salvador, e ele porque foi vocacionado a ser o precursor – aquele que preparou o caminho -- do Messias. Ela porque soube acolher a Palavra e aceitou dar luz à Jesus. E João porque soube esperar nas promessas do Deus Eterno e agir anunciando e preparando a chegada da salvação. 

Maria e João Batista traduzem a realização da esperança messiânica judaica e o anúncio da plenitude dos tempos.

A espiritualidade do Advento é marcada por três atitudes básicas: (1) a preparação para receber o Cristo; (2) a oração e (3) a vivência da esperança cristã. 

A preparação para receber o Senhor se dá na vivência da conversão e da oração. Precisamos ter um olhar atento sobre nós e sobre a realidade que nos cerca e nos empenharmos para correspondermos à ação do Espírito de Deus, que quer restaurar em nós todas as coisas. 

O relacionamento com (1) o nosso corpo e os nossos afetos, (2) com nossos familiares, (3) nossa participação na vida da igreja e social devem estar no foco de nossa atenção. A preparação para celebrar o Natal exige de cada um de nós, de todos nós, um propósito firme de renovação interior.

Adoremos! Cristo o Senhor está chegando! 
Do pastor e amigo, Jorge Pinheiro. Pastor 

No domingo, 29 de novembro de 2015 celebramos na Igreja Batista em Perdizes o primeiro domingo do Advento.



dimanche 29 novembre 2015

Convergência Socialista, alguns arquivos...

De meus arquivos

FONDO CONVERGÈNCIA SOCIALISTA DE CATALUNYA (CSC). 

Documentación de su constitución, en julio de 1974, hasta el año 1976. Tras la celebración del I Congreso Regional, los esfuerzos de la F.S.M. se centraron en la consecución de la unidad socialista. Los primeros contactos se realizaron con Convergencia Socialista de Madrid, integrada en la Federación de Partidos Socialistas. El día 15 de mayo de 1977 se celebró un Congreso de Unificación en el que ambas formaciones políticas quedaron formalmente unificadas.

El Partido Socialista Obrero Español (PSOE) es el que va a recoger el masivo voto de izquierdas. Tras la muerte de Franco consigue dar una imagen de juventud, de dinamismo, de capacidad de organización, de aceptación internacional, que hace que la mayoría de la población acabe identificándolo con la oposición al régimen. Del 5 al 7 de diciembre de 1976, antes de la legalización, el PSOE organiza su primer congreso tras la muerte del dictador, el primero en España tras 32 años, el XXVII Congreso del partido, reuniendo en Madrid a personajes de la talla de Willy Brandt, presidente de la Internacional Socialista, Olof Palme, Primer Ministro de Suecia, Bruno Kreisky, Primer Ministro de Austria, Anker Joergeson, Primer Ministro de Dinamarca, el aplaudidísimo líder socialista chileno Carlos Altamirano, el italiano Pietro Nenni. Todos ellos han llegado para legitimar como secretario general de los socialistas españoles a Felipe González, que encabeza el partido junto a Alfonso Guerra desde el anterior Congreso de Suresnes, en el que la vieja guardia de Ramón Llopis les ha cedido el paso, no sin algún trauma.

La retórica utilizada en el 27º Congreso es extraordinaria: 

Altamirano propone unir los esfuerzos de comunistas y socialistas para construir un bloque anticapitalista de clase,
se usan positivamente palabras como marxismo y República,
se rechaza cualquier posible acomodo con el capitalismo,
se renueva la voluntad de mantener una escuela pública única,
se propone administrar la justicia mediante tribunales populares elegidos por los ciudadanos, 
se quiere implantar en España un modelo nuevo no implantado en ningún país. 

Todo esto euforiza a los militantes, mientras que, de cara al electorado, el lenguaje es extremadamente más moderado y consigue concentrar votos. Además, el PSOE logra reunir bajo sus siglas a Convergencia Socialista, de procedencia católica, y a otras agrupaciones socialistas, como por ejemplo a los catalanes del PSC, que durante el franquismo han llevado una vida prácticamente autónoma. Felipe González no conecta en cambio con el Partido Socialista Popular (PSP) de Enrique Tierno Galván, teóricamente más radical, pero que atrae en la práctica un voto más intelectual, diríamos que azañista, y obtiene 6 escaños en las elecciones.

La simpatía y el carisma de Felipe González junto al populismo de Alfonso Guerra, son en buena parte los responsables de que el PSOE pase del 10% que le vaticinan las encuestas antes de la campaña electoral al 29% (118 escaños) que consigue el 15 de junio.

O PST argentino, liderado por Nahuel Moreno, organizou a formação da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT), uma dissidência da IV Internacional -- Secretariado Unificado, em 1981, em Bogotá. Após a morte de Moreno, em 26 de janeiro de 1987, a LIT viveu sua crise no final dos anos 80 e início da década de 1990. O momento maior da crise foi o fracionamento do Movimento ao Socialismo, que substituira o antigo PST.

A tradição do trotskismo está representada em nosso país por diversas organizações que foram a continuidade uma da outra, mas ao mesmo tempo representaram diferentes fases da sua trajetória: a Liga Operária (1974-1978); o PST de curta vida (meses de 1978) e finalmente a Convergência Socialista (1978 – 1994).

FONTES DE ESQUERDA ONDE O PT BEBEU

O DNA político do Partido dos Trabalhadores formou-se quando o Muro de Berlim era símbolo da divisão ideológica do mundo e as organizações de esquerda seguiam à risca a cartilha marxista. Nas veias do partido criado em 1980, corriam o radicalismo latente de seus métodos de ação, a proposta de ruptura total com o capitalismo e o sonho da hegemonia política dos operários – características herdadas das fontes onde seus fundadores haviam bebido. A base foi assentada sobre o sindicalismo metalúrgico do ABC e sua irresistível capacidade de mobilização. Fora das fábricas, a força vinha das Comunidades Eclesiais de Base, ligadas à Igreja Católica. Umbilicalmente ligadas aos movimentos comunitários e atuantes no meio rural, as CEBs carregaram para dentro do PT uma organização espalhada por todos os cantos do País. O terceiro pé do tripé eram as organizações de esquerda. Naquele momento, militantes dessas correntes estavam sendo libertados ou voltavam para o País depois de longos exílios no exterior. Desembarcavam como “órfãos políticos”, nas palavras do historiador Jacob Gorender. Duramente reprimidas durante os anos de chumbo da ditadura militar, as organizações que os abrigavam haviam se reduzido a pequenos grupos clandestinos com atuação concentrada no movimento estudantil. Eram trotskistas, como O Trabalho e Convergência Socialista. Ou leninistas, a exemplo do Movimento de Emancipação do Proletariado e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Ou até maoístas como a Ala Vermelha. O PT oferecia para eles uma numerosa base operária e popular – que até então existia mais nos discursos desses grupos do que em seus quadros de filiados. Em contrapartida, entregaram ao PT conceitos políticos e métodos de organização partidária – antigas carências dos sindicatos e das CEBs.

O PT nasceu assim e assim ficou nos anos seguintes. Se a prática era inovadora, o ideário baseava-se em Trotsky e Stalin. Sua pregação consistia em “mobilizar o operariado explorado” para que, unido ao “campesinato excluído pelos grandes latifundiários”, criasse uma sociedade livre dos “vícios pequeno-burgueses”. Nela o poder “emanaria da ditadura do proletariado”, permitindo assim a “socialização dos meios de produção”, a “reforma agrária radical” e o “fim da propriedade privada.” Hoje esse emaranhado de jargões parece tão anacrônico quanto o Muro de Berlim. Mas durante anos essa marca colou como tatuagem na imagem do PT e transformou-se em um fardo eleitoral para o partido. 

Duas eleições presidenciais perdidas levaram seus dirigentes a suavizar as feições partidárias. Em 1995, a ala mais moderada, reunida em um grupo batizado de Articulação, abriu os cotovelos e empurrou para as margens do universo petista as tendências mais radicais. Não foi uma guinada fácil. As camisas-de-força impostas a essas correntes provocaram rachaduras que não cicatrizaram. A Convergência Socialista, por exemplo, abandonou o PT e criou o Partido Socialista dos Trabalhadores Unidos, o PSTU. O mesmo caminho foi seguido pela Causa Operária, e assim nasceu o Partido da Causa Operária (PCO). Outras se adaptaram às novas diretrizes. O Partido Comunista Revolucionário (PCR) dissolveu-se e permaneceu nos quadros petistas. Não fosse assim, seu mais 
famoso militante, José Genoino, talvez não fosse o candidato ao governo de São Paulo.

Mais silenciosos hoje, esses grupos fundiram-se, mudaram de nome, mas conservam os princípios ideológicos. Mantêm participação ativa, embora o controle esteja nas mãos do Campo Majoritário, sucessor da Articulação. A convivência de grupos cada vez mais estranhos entre si pode ser atribuída a Lula e José Dirceu. Foram eles, desde sempre, os costureiros dessa grande colcha de retalhos. Com o passar dos anos, ajudaram a transformar o PT em tecido resistente, aparentemente sem fissuras e com pespontos invisíveis aos olhos menos acostumados à política. Lula tem sido o nome aceito por todas as tendências. 

O ecletismo do PT é encontrado em outros partidos. Só que em seu caso isso é exposto publicamente. Até mesmo na criação de seu símbolo, a famosa estrela vermelha, a pluralidade foi registrada. Era uma noite quente de 1980 e um grupo de sindicalistas estava reunido em um boteco em São Bernardo. A conversa era regada a cerveja e rabo-de-galo, mistura de cachaça e cinzano. Um dos presentes, o jornalista Júlio de Gramont, rabiscava um guardanapo e mostrou para Lula: o desenho de uma estrela de cinco pontas. “Esse é o símbolo do PT”, teria dito. “As pontas representam a pluralidade.” Nas eleições de domingo 27, a estrela incorporou-se de vez à constelação política do País – algo que parecia impossível nos sonhos daquela noite de verão de 1980, mesmo sendo embalados por goles de cerveja e rabo-de-galo. Para muitos, essa história é lenda, mas quem se importa com isso?

Revista IstoÉ, Quarta-feira, 30 de Outubro de 2002
www.terra.com.br/istoedinheiro/270/economia/270_lula_fontes_esquerda

lundi 23 novembre 2015

A guerra da vida e nossas opções

Jorge Pinheiro

Deuteronômio 20:1 -- "Quando saíres para a guerra contra seus inimigos e vires os cavalos e carruagens e que são mais numerosos, não precisa temê-los, porque o Eterno, teu Deus, é contigo, ele te tirou da terra do Egito; (2) e acontecerá que, quando aproximar-se para uma batalha, o sacerdote vai chegar e vai falar com as pessoas; (3) e dizer: Ouve, ó Israel: você se lançará hoje para lutar contra seus inimigos. Não amoleça seu coração; não tenha medo, não se alarme, nem se quebrante diante deles; (4) pois o Eterno, teu Deus, acompanha você, para lutar por você, contra seus inimigos, para salvar você; (5) e vai falar aos guardas para dizer ao povo: quem é o homem que construiu uma casa nova e ainda não a estreiou? Volta para a casa, para que não morra na batalha e outro homem a estreie; (6) e quem é o homem que plantou uma vinha e não apreciou ainda seu primeiro fruto? Volte para a sua casa, para que não morra na batalha e outro homem desfrute do seu primeiro fruto; (7) e quem é o homem que se casou com uma mulher e não coabitou com ela? Volte para a sua casa, para que não morra na batalha e outro homem a leve; (8) e os guardas dirão às pessoas: quem é o homem de coração mole e tímido? Volte para casa para que o coração de seus irmãos não derretam como seu coração; (9) e acontecerá que, quando terminarem os guardas de falar ao povo, designará os oficiais das tropas na frente das pessoas".

O sacerdote que falou estas palavras é chamado -- miljama mashuaj cohen -- sacerdote ungido em circunstâncias de guerra. Antes de iniciar a campanha militar, ele pronuncia as palavras dos versículos 3 e 4, e faz três  perguntas à multidão reunida: "Quem é o homem que construiu...?" (v. 5) e um guarda repete a pergunta. "Quem é o homem que plantou uma vinha..." (v. 6) e um guarda repete a pergunta. "Quem é o homem que se casou com uma mulher...?" (v. 7) e um guarda repete a pergunta.

Casa, vinha, mulher. Esta é a moral judaica antiga, presente nos versículos 5, 6 e 7: antes do seu casamento, o homem deve possuir uma casa e ter um trabalho, que será mantido por ele e sua futura esposa, e só então pensar em casar. Um detalhe importante, porém, está presente no texto, o Eterno se preocupa com a sua vida material, ele quer que você usufrua da vida real, dos bens e frutos que você deve e pode conquistar.

Mas então o sacerdote faz uma quarta pergunta: "Quem é o homem que tem medo...?" (v. 8), e outro guarda repete as mesmas palavras ao povo.

Se os requisitos fundamentais para a construção da vida estão colocados e ordenados, e o Eterno se preocupa com eles e quer que você desfrute deles, você não pode temer os desafios, os perigos, enfim, a guerra da vida. 

Porque se tiver um coração mole e tímido contaminará, influenciará, os que estão ao redor de você. E a derrota e o fracasso serão inevitáveis. Por isso, o Deus Eterno diz nos versículos 3 e 4: "Ouve, ó Israel: você se lançará hoje para lutar contra seus inimigos. Não amoleça seu coração; não tenha medo, não se alarme, nem se quebrante diante deles; pois o Eterno, teu Deus, acompanha você, para lutar por você, contra seus inimigos, para salvar você".

Um pensar sobre as origens

Metáforas de nossa existência


Para os relatos das origens nos textos antigos da tradição judaica, o humano, construído à imagem e semelhança do eterno é síntese e projeção das forças da criação. E ao ter livre-arbítrio, um atributo da eternidade, tal imagem e semelhança se apresenta enquanto arquétipo conceitual e faz dele humano primordial.

hadam kadmon é uma expressão que traduz a idéia de humano primordial. Faz parte da compreensão de que aquele hadam era matrix, e nele estavam presentes os moveres originais da criação. Assim, hadam kadmon é diferente do hadam ha-rishon, o primeiro. Em hadam kadmon estava a consciência, a-vida, presente a partir daí na espécie. Estes moveres originais de hadam kadmon são os atributos ostensivos que a eternidade deu ao humano, ser coroa da criação, ter vontade específica e atuar no plano da criação a fim de construir seu destino.

A leitura dos textos antigos da tradição judaica não tem como função ou meta a compreensão científica do mundo físico, mas a construção da consciência. Dessa maneira, a revelação do Eterno ao ser humano, através dos textos antigos da tradição judaica, não é de como funciona o mundo e sua realidade, mas como devemos, enquanto pessoas e comunidades, colocar-nos sob missão do Eterno.

Os códigos culturais e de linguagem hoje são diferentes daqueles das épocas onde os relatos das origens surgiram. Assim, a melhor aproximação é analisarmos os relatos das origens nos textos antigos da tradição judaica em comparação com os relatos e tradições presentes nas culturas antigas das épocas referidas.

Existe uma leitura humana de seus relatos arquetípicos, onde se considera as metáforas das suas tradições religiosas como fatos. E como os relatos arquetípicos fundamentam a cultura e a linguagem, passamos a ter então culturas e linguagens que demonizam e segregam pessoas, grupos de pessoas, segundo a origem nacional, raça-etnia, religião e sexo, entre outros características. 

Uma dessas grandes metáforas é a de hawa. E a metáfora hawa traduz os encontros e desencontros de hebreus e povos palestinos nos séculos que antecederam à era comum. E mais tarde, os primeiros cristãos deram sequência a este movimento quando viveram, eles também, encontros e desencontros com as religiões de mistério do mundo greco-romana, com seus cultos à mãe-terra, à deusa-mãe. 

O primeiro cristianismo, que surgiu como facção do judaísmo, por questões de inserção e sobrevivência absorveu elementos da cultura e linguagem do mundo helênico. Estes cultos greco-romanos se inseriam em contextos religiosos e sociais muito antigos e, entre outros elementos, exprimiam a veneração da cor vermelha associada ao sangue menstrual. Na mitologia grega, a mãe dos deuses, Reia, Cibele para os romanos, traduzia a veneração ao próprio conceito de reia, que significa terra ou fluxo. Assim, dentro desta compreensão arquetípica, o humano fora formado a partir do barro vermelho.

A identidade da religião com a mãe-terra, a fertilidade, a origem da vida, aparece enquanto santidade da terra, que é o corpo da deusa. Assim, ao formar o humano, nas leituras sincréticas cristãs a eternidade parte do vermelho da terra e sopra a vida no corpo formado. A eternidade não é corpo, não está presente na forma, mas a mãe-terra está dentro e, também, na totalidade do mundo existente. O corpo de cada um, de cada uma, então, seria feito do corpo dela. Nessas leituras arquetípicas dá-se o reconhecimento da identidade universal de todos humanos.

No capítulo um do livro das origens, macho e fêmea são criados à imagem do Eterno. Algumas interpretações rabínicas consideram esta primeira criação um andrógino, porque a eternidade criou o humano à sua imagem, macho e fêmea. Na maioria das traduções ocidentais lemos que "o Eterno criou o homem à sua imagem, à imagem do Eterno o criou; ele criou homem e mulher (Gênesis 1:27). De fato, no texto hebraico a passagem está no plural: o Eterno criou da-terra à sua imagem, no sentido genérico de humano. Em seguida, o texto diz macho e fêmea foram criados. Não temos aí os pronomes próprios Adão e Eva, mas macho e fêmea.

Só no texto seguinte, no segundo capítulo do livro das origens, outro relato da criação, é que hawa, que tem vida, aparece. E a metáfora se fez relato factual, histórico, que ganhou força no judaísmo e, posteriormente, entre cristãos e muçulmanos. Assim, a metáfora arquetípica, lida a partir de hermenêuticas patriarcais, no correr dos últimos dois mil anos transformou-se em fato fundante das culturas monoteistas. E hawa passou a ser um pedaço de hadam. 

“Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar; E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada. Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma só carne”. (Gênesis 2: 21-24). 

Os estudos da psique, desenvolvidos a partir do século vinte, trabalham com a idéia de que a humanidade, em certa medida, guarda em seu psiquismo os arquétipos das origens enquanto espécie. E as metáforas das origens e de seus desdobramentos calam fundo nas emoções e percepções humanas de forma aparentemente instintiva. E todos entendemos o recado, o ser humano paga um preço ao optar por construir sua liberdade. Nesse sentido, hadam e hawa representam a condição humana, são arquétipos de nossa força e fraqueza enquanto humanos, seduzidos sempre por fatores aparentemente externos, como o desejo da conquista do mundo, do poder e do sexo, que nos seduzem de forma paradoxal, tanto para a expansão de limites, o que seria um bem, como para a limitação de nossas possibilidades, o que seria um mal.


dimanche 22 novembre 2015

O conservadorismo político evangélico no Brasil

Uma análise do conservadorismo político evangélico no Brasil a partir de Poder e Secularização, as categorias do tempo, de Giacomo Marramao.
Jorge Pinheiro


Em 1983, o cientista político italiano Giacomo Marramao lançou Potere e secolarizzazione , em que de forma contundente trabalha a controvérsia sobre tempo pagão e tempo cristão e, como consequência, a questão das imagens do mundo e as representações do tempo.

No Brasil de hoje e, sem dúvida, no mundo da globalidade, podemos falar de uma multidimensionalidade do tempo na cultura. Ora, antes, sem dúvida, o tempo deveria ser distintamente diferente para crentes e não-crentes, mas agora com a criação e combinação dos tempos artificiais produzidos pela tecnologia, os ritmos e tempos se interpenetram.

O conceito secularização não é apenas uma metáfora, que expressa o distanciamento progressivo da esfera religiosa enquanto poder, já que seu significado semântico continua em permanente construção. Para Marramao (1997), "a impossibilidade de reconduzir essa noção a uma concepção unitária não depende meramente, como no caso de outros termos característicos da modernidade, da sua polissemia ou polivalência semântica", mas necessita de uma "estrutural ambivalência de significado, a qual dá lugar a premissas antitéticas ou diametralmente inversas". 

Assim, o paradoxo maior da secularização mostra-se enquanto conflito Igreja versus secularidade, já que a Igreja assume uma caráter burocrático e a secularidade, cada vez mais, discute, opina e legisla sobre questões religiosas. Ou seja, há ou não um interseccionalidade de valores? A Igreja, e aqui estamos a falar dos evangélicos brasileiros, posa enquanto institucionalidade estatal e  a secularidade cria características religiosas.

Assim, é de se entender que a secularização, enquanto fenômeno interseccional, possui significado de afirmação e de oposição entre o espiritual e o secular. Dessa maneira, a secularização se apresenta hoje, esta alta modernidade sob três formas, o princípio da ação eletiva, o princípio da diferenciação/especialização progressiva, e o princípio da legitimação. E se falamos do princípio da ação eletiva, estamos a falar da emersão progressiva da pessoa na busca do significado do seu "eu" e da "consciência de si mesmo". Por isso, para Marramao (1995), "este aspecto comporta um modo cultural particular de estabelecer a linha de demarcação entre subjetividade e objetividade e, portanto, de construir a realidade social."

Já o princípio da diferenciação/especialização progressiva nos mostra que quando o princípio eletivo se torna afirmativo, a adoção do critério de escolha fica em aberto. Esse critério de escolha está no âmbito da racionalidade instrumental, assim, Marramao (1995) nos dirá que "a consequência disto é a relação estreitamente biunívoca que a se instaurar entre secularização e  aumento de complexidade do mundo social."

Ao analisar a politica evangélica no Brasil, dois autores traçam linhas bem demarcadas, sobre como se lançaram contra os direitos civis, democráticos, seculares. Para Cowan, “a direita política evangélica no Brasil tornou-se presuntiva, mas foram prefiguradas durante os processos simultâneos de redemocratização nacional e de politização evangélica na década de 1970 . Nesta encruzilhada, os líderes de várias denominações religiosas adotaram a linguagem de uma crise moral aguda, lançando as bases para uma direita evangélica. A própria crise moral tornou-se “nosso terreno”, o ponto de inserção dos evangélicos de direita na esfera política, e uma das várias questões-chave que dividem evangélicos reacionários e seus correligionários progressistas. Até o momento da Constituinte, a posição dos Batistas e Assembleianos, como vozes dos conservadores que apoiaram amplamente o regime militar e se opuseram às iniciativas de justiça social do ecumenismo de esquerda e ao comunismo, tinha sido estabelecida após anos de pronunciamentos que ligavam essas questões à crise moral.” 

E para Carneiro, “no Brasil, a formação da Assembleia de Deus por missionários suecos trouxe o que já se chamou de uma mistura do pietismo sueco com o patriarcalismo nordestino forjando a imagem popular do rigorismo do “crente” como alguém abstinente de todos os prazeres e de vestuário austero, que não gostava de dança nem de música e menos ainda de adornos corporais.

“Os novos cultos pentecostais acrescentaram, além dos elementos de transe e de práticas extáticas e de possessão, uma relativa abertura para um aggiornamento que levou algumas igrejas a se especializarem em segmentos jovens, de surfistas, roqueiros, etc. A diversidade de congregações traz as mais diversas atitudes, mas permanece nos grupos dominantes a identidade comum de abstinência como valor de pureza cristã. Quando essa atitude se torna um lobby político elegendo parlamentares e até candidatos presidenciais com a intenção de impor à sociedade os critérios particulares dessas igrejas estamos diante de um tipo de fundamentalismo religioso.

“No Brasil, o evangelicalismo evoluiu cada vez mais para a direita ao longo do período ditatorial e pós-ditatorial, constituindo o que já foi chamado de uma “nova direita” baseada na reação moral e cultural. Na ditadura houve uma distinção clara entre setores protestantes e evangélicos democráticos que se opuseram ao regime, como o pastor presbiteriano James Wright, fundador do Brasil Nunca Mais, e os grupos mais conservadores e anti-ecumênicos que apoiaram os governos militares.

“Esta ala direita se aproveitou de benesses do regime, cresceu e predominou. Sua atuação política mais destacada se deu em torno ao combate à pornografia, o alcoolismo, o tabagismo, o jogo, o divórcio, e a emancipação feminina. Defensores de que o lugar da mulher é no lar, se juntaram à Igreja Católica para se opor ao controle populacional e aos anticonceptivos.” 

Mas temos que ver, a partir de Marramao, que tal realidade se expressa de forma imagológica na política, fazendo com que as propostas evangélicas interseccionadas enquanto governamentais, quer no que se relaciona à pessoa, à família ou às comunidades, se entrelacem e produzam, como diz Giner, “mutações na vivencia e qualidade desses tempos”.  Assim, a bancada evangélica, presente hoje no Congresso brasileiro, expressa produções imagológicas de tempos, que apesar de suas volatilidades, acumulam de forma caleidoscópica mudanças no momento presente.

Em seu livro Passagem ao Ocidente, filosofia e globalização, de 2003, Marramao faz uma análise do pensamento contemporâneo e como este se debruçou sobre a investigação da globalização. Mas procura evitar a ocidentalização da abordagem, delineando uma política global.

Assim fez leituras de F. Fukuyama e Kojève e, consequentemente, ao fim da História e à universalidade do individualismo competitivo. Atravessa, então, o conflito de civilizações que, após o colapso do Muro de Berlim, viu o globo mergulhado num conflito intercultural mundial. E, chegou com S. Latouche, à concepção da expansão planetária de dominação da tecnologia sob o controle da razão instrumental.

Mas, para Marramao, a globalização deve ser vista como pressuposto típico da modernidade, na transição de um mundo fechado a um universo circum-navegável, que possibilita o encontro, mas também o choque de culturas, levando a sociedade a ser transformada por esse encontro diário, que se espraia a partir das megalópolis, mas que permanentemente desafia a nossa identidade.

No percurso dessa compreensão da globalidade, vai além da crise do Estado-nação, agora personificada pelo Leviatã democratizado de John Rawls. Aqui temos a reconstrução do princípio de universalidade da diferença, que se dá em esfera global, onde o mundo aparece como presença-imagem da racionalidade técnica e econômica, que influencia tudo e todos através da criação de um modelo único de sociedade e pensamento. E que, ao mesmo tempo, tira proveito da riqueza das diferenças para construir uma globalidade cosmopolita, onde todos podemos cultivar nossos politeísmo de valores.            

Mas globalidade e temporalidade, para Marramao, estão imbricadas. E para chegar à sua construção da temporalidade da globalização, fez a reconstrução das concepções de tempo nascidas na reflexão ocidental a partir da análise de Timeu de Platão, até chegar às discussões sobre a flecha do tempo na física. Mas, construindo uma reflexão sobre temporalidade/identidade, onde busca os pontos de contato entre as abordagens focadas na pessoa e as sociais.

Assim, faz a crítica da sociedade contemporânea, onde o presente é dominado pelo movimento incessante, onde ninguém consegue saborear o presente. E reconstrói a etimologia do tempo latino, onde são colocados o sentido interno de tempo, a síndrome temporal da pressa e a busca insana para se recuperar a posse da existência.

Donde, o tempo kairós, tão caro à escatologia judaico-cristã, se apresenta como interseção entre a realidade divergente de tempo privado e tempo público. Isto porque o tempo privado deixa de ser humano e passa a  depender de condições e variáveis que incluem desde a situação mundial às situações físicas e psíquicas, plasmando tempos esmagam pessoas e comunidades.

Dessa maneira, a síndrome da pressa, do tempo que falta, tornou-se parte do projeto moderno, numa racionalização da escatologia judaico-cristã, onde se busca o fim último do domínio da razão instrumental. Essa homogeneização, que se procura planetária, responde à síndrome da pressa repetindo, eternizando, a mesma cena neurótica, por não ser capaz de parar, considerando normal chegar sempre fora do tempo certo, tarde demais, vivendo a angústia e o trauma permanente da perda da oportunidade certa.

Mas este projeto moderno, afirma Marramao, está em crise, e devemos olhá-lo com distanciamento, superando Weber, já que a racionalidade instrumental é um fenômeno típico do Ocidente, que não surgiu em nenhuma outra cultura, nem mesmo na China. É com este distanciamento que devemos analisar o capitalismo, nos debruçando sobre outras culturas, humildes na certeza de que têm algo a dizer e que podem nos ensinar a escapar da sociedade contemporânea e aprender a viver no presente, debruçados sobre um presente escatológico, renunciando à idéia de que lá na frente algo bom e definitivo deve acontecer.

"Talvez ainda seja possível, benjaminianamente, introduzir na história aquela novidade capaz  de romper a homeostase e inverter na história o recuo entrópico do tempo: inaugurar uma transformação que não se faça plena de futuro, mas do presente, não mais do Homem mas do ser dos indivíduos, abrir o caminho a uma política umectativa finalmente interpretar o potencial liberador contido na perda do sentido da História". (Marramao, 1995, pp. 137-138).

Giacomo Marramao explora as características da modernidade e a função nela desempenhada pela intuição do tempo, tal como se condensa nas categorias de progresso, revolução e libertação. O ponto central do livro reside no desenvolvimento da nova categoria de sociedade antagonista, com a qual procura renovar o pensamento político de esquerda do nosso tempo, a partir do que chama uma ética transpolítica.

Michael Löwy trabalha esta questão a partir de uma leitura weberiana, o que matiza os contornos aparentemente demoníacos da presença evangélica na política brasileira. Para ele, “os evangélicos são, no fundo, uma religião mágica. Eles acreditam que, fazendo certos rituais, orações ou mesmo dando dinheiro para a igreja, terão seus problemas resolvidos. Isso, para parte da população, sempre foi assim. Mas devemos reconhecer que os evangélicos, pela ética protestante, calvinista, impõem uma série de proibições aos fiéis: não podem consumir álcool, drogas, ir a prostíbulos, jogar cartas. E isso melhora a situação da família, é fato. Por outro lado, essas igrejas são conservadoras, intolerantes, fundamentalistas e, na maioria das questões sociais, regressivas. Além do quê, desenvolvem uma pretensa teologia da prosperidade que faz elogios ao capitalismo, ao neoliberalismo, ao mercado e ao consumo, que é bastante negativo.” 

Ou seja, podemos, caso utilizemos critérios modernos de análise, falar em tempo da mentalidade conservadora versus tempo da mentalidade progressista. Mas tais critérios de análise, embora sejam aparentemente agradáveis e facilitadores, já não cabem na multidimensionalidade do tempo na cultura, que nos leva, a partir de Marramao, a falar de conflitualidade endêmica do mundo e, como consequência, dos dilemas que traz para a política e para a religião. 

Ou como diz Barrera, “a contraposição mecânica entre a efervescência religiosa, que carateriza hoje as sociedades latino-americanas, e o conceito de secularização leva ao erro comum de negar o processo de secularização e esconde uma superficial compreensão do conceito. Muito pelo contrário, a discussão de conceitos como “secularização”, “desencantamento do mundo” e “saída da religião” mostram que é precisamente nas sociedades secularizadas onde tornou-se possível a pluralidade religiosa que, ao nosso ver, é a maior evidência do enfraquecimento da influência social do outrora poder institucional religioso“. 

mercredi 18 novembre 2015

O que é capitalismo?

O QUE É CAPITALISMO? Uma conversa necessária i 
Por  Jorge Pinheiro ii 

Caros colegas. Vamos começar essas reflexões sobre o capitalismo lembrando que ele tem defensores. Claro está que em relação ao feudalismo, modo de produção que caracterizou a Idade Média, ele significou um passo a frente. Mas, hoje, muita gente que defende o capitalismo, na verdade, não entende o que ele significa, já que é um sistema opaco e sua natureza exploradora não fica evidente. 

Outros defendem o capitalismo porque são seus beneficiários e ganham dinheiro graças a ele. Há ainda os especialistas que, muitas vezes, são porta- vozes do sistema, como economistas, jornalistas, acadêmicos e representantes do pensamento único, que conhecem o sistema, mas por serem bem remunerados omitem determinadas questões em suas análises. 

Por isso, antes de analisar o capitalismo propriamente dito, vamos ver alguns dados de documentos das Nações Unidas. São informações sobre a crise atual e quando analisadas por instituições como G20, FMI, OMC e BIRD, estas chegam à estranha conclusão de que a crise do capitalismo se resolve com mais capitalismo. 

Mas, vamos aos números, sistematizados pelo Programa Internacional de Estudos Comparativos sobre a Pobreza, localizado na Universidade de Bergen, Noruega. 

Segundo a instituição, a população mundial era de 6,8 bilhões de habitantes em 2009. Desses,

1,02 bilhão de pessoas sofrem subnutrição crônica (FAO,2009);
2 bilhões de pessoas não têm acesso a medicamentos (www.fic.nih.gov);
884 milhões de pessoas não têm acesso à água potável (OMS/UNICEF 2008);
925 milhões de pessoas não têm moradia ou residem em moradias precárias (ONU Habitat 2003);

1,6 bilhões de pessoas não têm acesso à energia elétrica (ONU Habitat, Urban Energy);
2,5 bilhões de pessoas não são beneficiadas por sistemas de saneamento, drenagens ou não têm privadas domiciliares (OMS/UNICEF 2008);
774 milhões de adultos são analfabetos (www.uis.unesco.org);
18 milhões de pessoa morrem por ano devido à pobreza, a maioria crianças menores de cinco anos de idade (OMS);

218 milhões de crianças e jovens, entre 5 e 17 anos de idade, trabalham em condições de escravidão, em tarefas perigosas ou humilhantes, como soldados da ativa atuando em guerras e/ou conflitos civis, na prostituição infantil, como serventes, em trabalhos insalubres na agricultura, na construção civil ou indústria têxtil (OIT: “La eliminación Del trabajo infantil, un objetivo a nuestro alcance” 2006).

Entre 1988 e 2002, os 25% mais pobres da população mundial reduziram sua participação no produto interno bruto mundial (PIB mundial) de 1,16% para 0,92%; enquanto os 10% mais ricos acrescentaram fortunas em seus bens pessoais passando a dispor de 6,4% para 7,1% da riqueza mundial. 

Mas, o que é o capitalismo? 

O capitalismo é um sistema econômico caracterizado pela propriedade privada dos meios de produção, pela existência de mercados livres e trabalho assalariado. Na historiografia ocidental, a ascensão do capitalismo está associada ao fim do feudalismo, ocorrido na Europa no final da Idade Média. Mas, não podemos esquecer de outras condições também associadas ao capitalismo, como a existência de pessoas e empresas que investem em troca de um lucro futuro; o respeito a leis e contratos; a existência de financiamento, moeda e juro; e a ocupação para os trabalhadores a partir de um mercado de trabalho. 

A palavra capital vem do latim capitalis, que vem do indo-europeu kaput, que quer dizer "cabeça", uma referência às cabeças de gado, medida de riqueza nos tempos antigos. A conexão léxica entre o comércio de gado e a economia pode ser vista em nomes de várias moedas e palavras que dizem respeito ao dinheiro. O primeiro uso da palavra capitalista foi em 1848 no Manifesto Comunista de Marx e Engels; porém, a palavra capitalismo não foi usada. O primeiro uso da palavra capitalismo foi feito pelo escritor Thackeray, em 1854, com a qual quis dizer "posse de grandes quantidades de capital", e não se referir a um sistema de produção. 

Em 1867, Proudhon usou o termo capitalista para referir-se aos possuidores de capital, e Marx e Engels referiam-se à "forma de produção baseada em capital" e, n’O Capital, o capitalista é um possuidor privado de capital. 

Mas nem Proudhon, Marx ou Engels usou os termos em alusão ao significado atual da palavra capitalismo. A primeira pessoa que fez isso foi Werner Sombart em seu livro Capitalismo Moderno, de 1902. Max Weber, um colega de Sombart, usou o termo no seu livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de 1904. 

O capitalismo moderno começou com a Revolução Industrial e as revoluções burguesas: na Inglaterra, com a independência dos EUA e com a revolução francesa. É importante entender que capitalismo não é sinônimo de propriedade privada, embora ela seja fundamental para a sua existência. A propriedade privada já existia, por exemplo, nas tribos de Israel. Os regimes teocráticos, baseadas em leis ditas entregues por Deus, seguiam um modelo próximo ao feudalismo, com as terras pertencendo ao rei e os súditos trabalhando nelas. Ou seja, a existência de propriedade privada é antiga como a própria história.

Um pouco de história 

Foi com o crescimento da população, o desenvolvimento da agricultura, a criação das cidades e a multiplicação de trabalho, quando as pessoas passaram a viver em sociedades maiores, que se tornou necessária a organização da produção a partir de relações interpessoais. Assim, foram elaboradas leis para reger as relações interpessoais entre gente que não se conhecia. 

Depois, com o desenvolvimento dos transportes terrestres e marítimos, e a existência de cidades com grandes populações, surgiu o comércio internacional. As nações comerciantes eram as cidades-estado, com destaque para Atenas na Grécia, que nos séculos V e IV antes de Cristo inventou o sistema bancário. 

Contudo, a existência de escravos não permitiu o desenvolvimento da instituição da propriedade privada como no capitalismo moderno, pois a escravidão impossibilita o mercado livre e viola o direito de propriedade privada. 

Assim, o Império Romano se caracterizou pela liberdade relativa do comércio e da produção até o final do século terceiro depois de Cristo. A partir dessa data a implantação de controles de preços pelos imperadores suprimiu a liberdade econômica do Império. A economia do Império Romano, segundo alguns historiadores, tinha instituições capitalistas quase tão avançadas quanto as da Inglaterra no início da revolução industrial. Mas com o declínio do Império Romano e as invasões dos povos que os romanos chamavam de bárbaros, a organização social voltou a tomar feições tribais. 

Em seu período final, o feudalismo passou por uma crise devido à catástrofe demográfica causada pela epidemia da peste negra (peste bubônica) que dizimou 35% da população europeia. Depois da crise econômica e demográfica, o comércio desenvolvido pelas cidades-estado italianas permitiu à Europa viver certo crescimento comercial e urbano, o que aumentou e aprofundou as relações de produção capitalistas. Mas, nem tudo foi tão fácil, pois no final do feudalismo e início da idade moderna, a realeza expandiu seu poderio econômico e político através do mercantilismo e do absolutismo. Ou seja, através de doutrinas e práticas anticapitalistas. Niccòlo Machiavelli foi um dos defensores dessa postura anticapitalista, ao afirmar que "a unidade política é fundamental para a grandeza de uma nação". Com o absolutismo e o mercantilismo, o Estado controlou a economia e buscou nas colônias a riqueza necessária para garantir o enriquecimento da metrópole. 

E porque a propriedade privada necessita da liberdade de contrato para juntos formarem o sistema capitalista, no século XVI surgiu na Escola de Salamanca, alguns teólogos que apresentaram as primeiras ideias de uma economia capitalista liberal. Para eles, entre os quais estava Tomás de Aquino, a propriedade privada como moralmente neutra. Em última instância, antes dos protestantes, Tomás de Aquino já deixava aberta a ideia de que não era pecado ser capitalista. 

Mas como dissemos acima, foi com as revoluções burguesas no início da Idade Moderna que o capitalismo se estabeleceu como sistema econômico nos países da Europa Ocidental. Algumas dessas revoluções foram a Revolução Inglesa (1640-60), a independência dos EUA (4 de julho de 1776) e a Revolução Francesa (1789-1799), que construíram o arcabouço institucional de suporte ao desenvolvimento capitalista. 

A partir da segunda metade do século XVIII iniciou-se um processo de produção em massa, geração de lucro e acúmulo de capital. As sociedades superam os critérios da aristocracia, o privilégio de nascimento, por exemplo. Surgiram as primeiras teorias econômicas modernas: a Economia Política e a ideologia que lhe corresponde, o liberalismo. Na Inglaterra, o escocês Adam Smith publica Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações. 

As fases do capitalismo 

A primeira fase do capitalismo foi comercial. Predominou o produtor independente, artesão, mas generalizou-se o trabalho assalariado. A maior parte do lucro concentrava-se na mão dos comerciantes, não nas mãos dos produtores. Lucrava mais quem comprava e vendia a mercadoria, não quem produzia. 

Depois veio o capitalismo industrial, quando o trabalho assalariado já instalado, em prejuízo dos artesãos, separou os possuidores de meios de produção e o exército de trabalhadores. 

Na sequência tivemos o capitalismo financeiro, quando o sistema bancário e corporações financeiras passaram a controlar as demais atividades. 

E, atualmente, vivemos sob o capitalismo em sua fase informacional, que sem deixar de ser financeiro e industrial, toma como característica a importância do conhecimento. 

Um pouco de teoria 

Em termos teóricos, dizemos que modo de produção é a forma de organização socioeconômica associada a uma determinada etapa de desenvolvimento das forças de produção e das relações de produção. Reúne as características do trabalho, seja ele artesanal, manufaturado ou industrial. São constituídos pelo objeto sobre o qual se trabalha e por todos os meios de trabalho necessários à produção – ferramentas, instrumentos, máquinas, oficinas, fábricas.

No correr da história existiram modos de produção, o antigo ou comunismo primitivo, o asiático, o escravista, o feudal, o capitalista, e o comunista, ainda um projeto a ser construído. Assim, um sistema econômico é definido pelo modo de produção no qual se baseia. O modo de produção atual, capitalista, é aquele sobre o qual se baseia a economia da maioria dos países do mundo. 

Algumas pessoas enfatizam a propriedade privada do capital como sendo a essência do capitalismo, outros enfatizam a importância de um mercado livre como mecanismo para o movimento e acumulação de capital. 

Karl Marx, em O capital, é crítico do capitalismo, e o olha através da dinâmica das lutas de classes, incluindo aí a estrutura de estratificação de diferentes segmentos sociais, dando ênfase às relações entre proletariado (classe trabalhadora) e burguesia (classe dominante). Para ele, a diferença de poder econômico entre as classes é um pressuposto do sistema, ou seja, a classe dominante acumulará riquezas por meio da exploração do trabalho das classes operárias. 

Os defensores do capitalismo afirmam, no entanto, que num mercado livre existe competição e concorrência constante entre todos os integrantes do sistema, e se uma pessoa recebe em troca do seu trabalho menos do que ele produz, ele poderá mudar para o concorrente, pois este lucrará com o seu trabalho. 

Devido à amplitude da expressão, surgiram controvérsias quanto ao capitalismo. Uma delas é se de fato o capitalismo é um sistema real, isto é, se ele já foi implementado em economias nacionais ou se ainda não se completou. Nesse caso, a pergunta é: que grau de capitalismo existe numa dada economia nacional. Outra questão é se o capitalismo é específico a uma época ou região geográfica particular ou se é um sistema universal, que pode existir através do tempo e do espaço. 

Alguns interpretam o capitalismo como um sistema puramente econômico. Marx, no entanto, considerava que é um complexo de instituições político- econômicas que determinam as relações culturais, éticas e sociais. 

No final do século XIX e início do século XX, época da Revolução Industrial, a economia capitalista vivia a fase do capitalismo competitivo, onde cada ramo de atividade era ocupado por um grande número de empresas, normalmente pequenas, que concorriam intensamente entre si. O Estado quase não interferia na economia, limitando-se apenas à manutenção e funcionamento do sistema. 

A partir da Primeira Guerra Mundial, o capitalismo passou por mudanças, primeiro nos Estados Unidos, com o enriquecimento alcançado com a venda de armas aos países combatentes, ocupando, então, lugar de destaque no mercado mundial. Em alguns ramos de atividade, o capitalismo deixou de ser competitivo para se tornar monopolista. Essa transformação deu-se através de dois processos: 

1. Empresas foram à falência, as maiores compraram as menores e outras se unificaram -- surgiu a sociedade anônima. As grandes empresas passaram a controlar um ramo de atividade. 

2. Com as crises econômicas de 1929/1933, a Grande Depressão, o Estado passou a interferir na economia, exercendo influência em algumas atividades econômicas. Em vários países, o Estado passou a controlar os créditos, os preços, as exportações e importações, mas levando em conta os interesses das corporações e dos países que ocupavam o centro do sistema. 

O capitalismo do século XX passou a enfrentar crises que se repetem a intervalos cada vez mais curtos. O desemprego, as crises nos balanços de pagamentos, a inflação, a instabilidade do sistema monetário internacional e o aumento da concorrência entre os grandes competidores levaram a essas crises cíclicas do sistema capitalista. 

No final do século XX, os Estados Unidos e a Inglaterra passaram a difundir a teoria neoliberal. Segundo esta teoria, para evitar futuras crises a receita seria privatizar empresas estatais que pudessem ser substituídas com vantagens pela iniciativa privada, aperto fiscal no sentido de zerar o déficit fiscal, controle da inflação, câmbio flutuante e superávits em comércio exterior. Essa política passou por dois grandes testes: a crise dos países asiáticos e a crise da Rússia, que foram controladas com o auxílio do FMI, não sem antes destruir quase a metade de seus PIB's. 

Apesar dos avanços macroeconômicos, a pobreza e a desigualdade continuam altas na América Latina, onde cerca de uma em cada três pessoas (165 milhões no total) vivem com menos de dois dólares por dia. Aproximadamente um terço da população não tem acesso à eletricidade e ao saneamento básico, e estima-se que 10 milhões de crianças sofram de desnutrição. Esses problemas não são novos. A América Latina já era a região com maior desigualdade econômica do mundo na década de 1950. 

No consenso de Washington, os Estados participantes, em uma assembleia presidida pelos Estados Unidos, escolheram o capitalismo como sistema econômico legítimo, por representar os interesses liberais das empresas. Este fato está conectado ao avanço da globalização, que é a expressão dos interesses da classe empresarial dominante representada pelas multinacionais. 

Assim, no final do século XX e início do século XXI, com o advento da globalização, algumas empresas que exerciam monopólio ao nível regional, começaram a enfrentar concorrência global e pressões maiores para se tornar atores do mercado globalizado. Em razão dessa concorrência surgiram fusões, onde empresas de atuação regional se fundiram para enfrentar a concorrência global. E em reação às fusões regionais, empresas globais adquiriram empresas regionais, como forma de entrar rapidamente em mercados locais.

Frutos aparentemente positivos desse processo de globalização é que empresas passaram a oferecer benefícios a seus empregados, antecipando a ação de sindicatos e governos. Benefícios como redução da jornada de trabalho, participação nos lucros, ganhos por produtividade, salários acima da média do mercado, promoção à inovação, jornada de trabalho flexível, flexibilização de jornada para mulheres com filhos, participação societária para produtos inovadores desenvolvidos com sucesso, entre outros. 

Ao contrário do princípio do capitalismo, quando se acreditava que a redução de custos com recursos humanos e sua consequente exploração, traria o maior lucro possível, passou a vigorar a tese de que é desejável atrair os melhores profissionais do mercado e mantê-los motivados já que isso tornaria a empresa mais lucrativa. No entanto, o número de funcionários que se enquadram nesse modelo é insignificante diante da massa dos trabalhadores do mundo, que operam em condições precárias e recebem baixos salários. 

O tratado de Veneza (1987) que abordou o investimento do Estado enquanto empresa, foi bem recebido por países do hemisfério sul e favoreceu o surgimento de alianças econômicas entre países. Além de identificar a necessidade de desenvolvimento econômico da América Latina, defendeu o término do monopólio de algumas cadeias, como a indústria automobilística, alimentícia, de tecnologia da informação e, inclusive, da produção cafeeira. A conclusão foi expandir a relação entre Estados que pouco se conectavam, como o Brasil e seus vizinhos, e criar vínculos de comércio direto e livre. Os projetos de comércio e integração do cone sul latino-americano tem no tratado de Veneza uma de suas bases. 

Mas, muitos consideram que há ainda um capitalismo verde, cuja proposta é de preservar o ambiente, ser socialmente responsável e interagir na comunidade em que a empresa está inserida, o que diferenciaria a empresa em relação a concorrência e ampliaria os lucros. Há uma tendência para adoção deste modelo em empresas ocidentais, desde que tais medidas não prejudiquem a economia global, independentemente do mal que a degradação ambiental possa causar ao planeta. 

É importante ver que hoje, o país capitalista em maior expansão, mantendo aí todas as críticas que se faz ao capitalismo, é a República Popular da China. Mas, ao contrário das outras economias capitalistas, principalmente as ocidentais, que utilizam o livre mercado com pouca intervenção do Estado na economia, a China desenvolve uma política de intervenção na economia, restrições ao capital estrangeiro, e tem uma economia parcialmente planificada. O que nos leva a falar da China como um capitalismo de Estado. 

Depois de 500 anos, é o caso de perguntar: é isso o que o capitalismo tem a nos oferecer. Por isso, voltamos ao princípio dessas reflexões. Diante dos resultados práticos do capitalismo, pense: se houvesse a possibilidade de redistribuir o enriquecimento adicional produzido entre 1988 e 2002 dos 10% mais ricos do planeta, mesmo sem tocar nas suas fortunas, teríamos duplicada a renda de 70% da população mundial. 

Citações

i Na elaboração desse texto utilizei análise de: 

André Comte-sponville, O capitalismo é moral?;
Atílio Borón, do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO); 
Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo;
Jeffry A. Frieden, Capitalismo global, história econômica e política do século XX;
e material próprio utilizado em sala de aula. 

ii Jorge Pinheiro é cientista da religião para as áreas de Política e Religião. 

www.epj.org.br contato@epj.org.br

dimanche 15 novembre 2015

A violência da globalização

Quando o fascismo e a intolerância ressurge na Europa, como resposta à crise cultural, econômica e social, este texto do filósofo francês Jean Baudrillard apresenta algumas questões que devem ser analisadas. Eis um bom desafio para essas dias de chuva. Jorge Pinheiro, véspera do 1º. de maio de 2012.

A violência da globalização
Por Jean Baudrillard

Seria a globalização uma fatalidade? De alguma forma, todas as outras culturas que não a nossa escapavam à fatalidade da troca indiferente. Onde se situará o limiar crítico da passagem ao universal e, depois, ao mundial? Que vertigem será esta que impulsiona o mundo para a abstração da Idéia, e esta outra vertigem que incita à realização incondicional da Idéia?

Porque o universal era uma Idéia. Quando se realiza no mundial, ela se suicida enquanto Idéia, enquanto fim ideal. Como o humano se tornou a única instância de referência e a humanidade imanente a si mesma passou a ocupar o vazio deixado por Deus morto, o humano agora reina sozinho, mas já não tem motivação final. Não tendo mais inimigo, engendra-o do interior e secreta todos os tipos de metástases inumanas.

Conquistas da modernidade e do progresso

Donde a violência do mundial - violência de um sistema que persegue qualquer forma de negatividade, de singularidade, inclusive a forma última de singularidade que é a própria morte - violência de uma sociedade em que estamos virtualmente proibidos de conflito, proibidos de morte - violência que, de certa maneira, põe fim à própria violência  e que trabalha para instalar um mundo livre de qualquer ordem natural, seja a do corpo, a do sexo, a do nascimento ou a da morte.

Mais do que de violência, seria necessário falar de virulência. Trata-se de uma violência que é viral - que atua por contágio, por reação em cadeia, e destrói, pouco a pouco, todas as nossas imunidades e nossa capacidade de resistência.

Entretanto, nada está decidido, e a globalização não ganhou por antecipação. Diante desse poder homogeneizante e dissolvente, se vê, em toda parte, levantarem-se forças heterogêneas - não só diferentes, mas também antagônicas. Por trás das resistências cada vez mais intensas à globalização, sociais e políticas, é preciso ver mais do que uma rejeição arcaica: uma espécie de revisionismo dilacerante quanto às conquistas da modernidade e do “progresso”, de recusa não apenas da tecno-estrutura mundial, como também da estrutura mental de equivalência de todas as culturas.

Este ressurgimento assume aspectos violentos, anômalos, irracionais em relação a nosso pensamento esclarecido - formas coletivas étnicas, religiosas, lingüísticas - mas, igualmente, formas individuais de perturbação do caráter ou neuróticas. Seria um erro condenar esses sobressaltos como populistas, arcaicos ou mesmo terroristas. Tudo o que faz um acontecimento hoje o faz contra essa universalidade abstrata - inclusive o antagonismo do islamismo com os valores ocidentais (pelo fato de ser a mais veemente contestação desses valores, é que, hoje, o Islã é seu inimigo número um).

Vingança de culturas singulares

Quem poderia impedir o sucesso do sistema mundial? Certamente não o movimento antiglobalização, que só tem por objetivo frear a desregulamentação. Seu impacto político pode ser considerável, mas o impacto simbólico é nulo. Essa violência é também uma espécie de peripécia interna que o sistema pode superar sem perder o controle da situação.

O que pode impedir o êxito do sistema não são alternativas positivas, são singularidades. Ora, estas não são positivas nem negativas. Não são uma alternativa; são de outra ordem. Não obedecem mais a um juízo de valor nem a um princípio de realidade política. Podem, pois, ser o melhor ou o pior.

Não é possível, portanto, confederá-las numa ação histórica conjunta. Impedem o sucesso de todo pensamento único e dominante, mas não são um contra-pensamento único - elas inventam seu jogo e suas próprias regras do jogo.

As singularidades não são necessariamente violentas, e algumas são sutis, como as da língua, da arte, do corpo ou da cultura. Mas há algumas violentas - como a do terrorismo. É a que vinga todas as culturas singulares que pagaram com seu desaparecimento a instauração desse único poder mundial.

Despeito feroz entre culturas

Não se trata, portanto, de um “choque de civilizações”, mas de um confronto - quase antropológico - entre uma cultura universal indiferenciada e tudo o que, em qualquer área, conserva algo de uma alteridade irredutível.

Para o poder mundial, tão radical quanto a ortodoxia religiosa, todas as formas diferentes e singulares constituem heresias. Por esta razão, estão condenadas a entrar, querendo ou não, na ordem mundial ou a desaparecer. A missão do Ocidente (ou melhor, do ex-Ocidente, visto que há muito deixou de ter valores próprios) é submeter, por todos os meios, as múltiplas culturas à lei da equivalência.

Uma cultura que perdeu seus valores só pode se vingar nos valores das outras. Inclusive as guerras - como a do Afeganistão - visam primeiro, para além das estratégias políticas ou econômicas, a normalizar a barbárie, a obrigar todos os territórios a se alinharem. O objetivo é dominar toda e qualquer região refratária, colonizar e domesticar todos os espaços selvagens, tanto no espaço geográfico quanto no universo mental.

A instalação do sistema mundial resulta de um despeito feroz: o de uma cultura indiferente e de baixa definição em relação a culturas de alta definição; o dos sistemas desencantados, que perderam a intensidade, em relação a culturas de alta intensidade; o das sociedades dessacralizadas em relação a culturas ou formas sacrificiais.

Humilhação contra humilhação

Para tal sistema, qualquer forma refratária é virtualmente terrorista. É o caso ainda do Afeganistão. Que, num território, todas as permissões e liberdades “democráticas” - a música, a televisão, inclusive o rosto das mulheres - possam ser proibidas, e que um país possa tomar o contrapé total do que chamamos de civilização - qualquer que seja o princípio religioso invocado -, tudo isso é insuportável para o resto do mundo “livre”.

Não se considera que a modernidade possa ser renegada em sua pretensão universal. Que ela não seja vista como a evidência do bem e o ideal natural da espécie, que se conteste a universalidade de nossos costumes e de nossos valores - ainda que por algumas mentes imediatamente caracterizadas como fanáticas -, tudo isso é um crime em relação à visão do pensamento único e do horizonte consensual do Ocidente.

Esse confronto só pode ser compreendido à luz da obrigação simbólica. Para compreender o ódio do resto do mundo em relação ao Ocidente, é preciso inverter todas as perspectivas. Não se trata do ódio daqueles de quem se tirou tudo e aos quais nada se retribuiu mas, sim, do ódio daqueles a quem tudo se deu sem que eles pudessem retribuir. Não é, portanto, o ódio da espoliação e da exploração, é o ódio da humilhação.

E é a este que responde o terrorismo do 11 de setembro: humilhação contra humilhação. O pior para a potência mundial não é ser agredida ou destruída, é ser humilhada. E a potência foi humilhada pelo 11 de setembro, porque os terroristas lhe infligiram, então, alguma coisa que ela não pode retribuir. Todas as represálias são apenas um aparelho de coação física, ao passo que ela foi desfeita simbolicamente.

A guerra responde à agressão, mas não ao desafio. O desafio só pode ser aceito humilhando o outro em resposta (mas, de modo algum, esmagando-o sob bombas, nem trancando-o como cães em Guantânamo).

Saturação da existência

A base de qualquer dominação é a ausência de contrapartida - sempre segundo a regra fundamental. O dom unilateral é um ato de poder. E o “império do bem”, a violência do bem, consiste exatamente em dar - sem contrapartida possível. Consiste em ocupar a posição de Deus. Ou do Senhor, que deixa a vida ao escravo em troca de seu trabalho (mas o trabalho não é uma contrapartida simbólica; portanto, as únicas respostas, afinal, são a revolta e a morte). Deus, pelo menos, dava espaço para o sacrifício.

Na ordem tradicional, sempre existe a possibilidade de retribuir - a Deus, à natureza ou a qualquer outra instância, sob a forma do sacrifício. É o que garante o equilíbrio simbólico dos seres e das coisas. Não temos, hoje, mais ninguém a quem retribuir, a quem restituir a dívida simbólica - e é essa a maldição de nossa cultura.

Não que nela seja impossível o dom e, sim, que nela o contra-dom é impossível, visto que todas as vias sacrificiais foram neutralizadas e desmontadas (resta apenas uma paródia de sacrifício, visível em todas as formas atuais da condição de vítima).

Estamos, desse modo, na situação implacável de receber, receber sempre, não mais de Deus ou da natureza, mas através de um dispositivo técnico de troca generalizada e de gratificação geral. Tudo nos é virtualmente dado e, queiramos ou não, temos direito a tudo. Estamos na situação de escravos aos quais se deixou a vida e que estão ligados por uma dívida insolúvel.

Tudo isso pode funcionar durante muito tempo graças à inserção na troca e na ordem econômica mas, num dado momento, a regra fundamental a vence, e a essa transferência positiva corresponde, inevitavelmente, uma contratransferência negativa, uma ab-reação violenta a essa vida cativa, a essa existência protegida, a essa saturação da existência. Tal reversão assume a forma de uma violência aberta (o terrorismo faz parte dela), ou da negação impotente, característica de nossa modernidade, do ódio de si e do remorso - todas paixões negativas que são a forma degradada do contra-dom impossível.

Veredicto e condenação da sociedade

Aquilo que detestamos em nós, o obscuro objeto de nosso ressentimento, é esse excesso de realidade, esse excesso de poder e de conforto, essa disponibilidade universal, essa realização definitiva - o destino que, no fundo, o “grande inquisidor” reserva às massas domesticadas em Dostoievski. Ora, é exatamente isso que os terroristas criticam em nossa cultura - donde a repercussão que o terrorismo encontra e o fascínio que exerce.

Tanto quanto no desespero dos humilhados e dos ofendidos, o terrorismo se baseia, por exemplo, no desespero invisível dos privilegiados da globalização, em nossa própria submissão a uma tecnologia integral, a uma realidade virtual esmagadora, a um domínio das redes e dos programas que traça, talvez, o perfil involutivo da espécie inteira, da espécie humana tornada “mundial” (a supremacia da espécie humana sobre o resto do planeta não seria à imagem da supremacia do Ocidente sobre o resto do mundo?). E esse desespero invisível - o nosso - é irremediável, pois decorre da realização de todos os desejos.

Se o terrorismo decorre, pois, desse excesso de realidade e de seu prazo impossível, dessa profusão sem contrapartida e dessa resolução forçada dos conflitos, então a ilusão de extirpá-lo como um mal objetivo é total, dado que, sendo como é, em seu absurdo e em seu contra-senso, ele é o veredicto e a condenação que esta sociedade emite em relação a si mesma.


Tradução: Iraci D. Poleti

Jean Baudrillard é filósofo, autor, dentre outros livros, de “La Guerre du Golfe n’a pas eu Lieu” (1991), “Le Crime Parfait” (1994) e “L’Esprit du Terrorisme” (2002), todos editados pela Galilée. Este texto foi extraído de seu novo ensaio, “Power Inferno” (ed. Galilée, Paris, 94 páginas).