vendredi 21 avril 2023

Brasil, terra prometida, Arnaldo Bloch

Brasil, terra prometida
Arnaldo Bloch

As comemorações dos 500 anos  que tiveram como ápice a monumental »Mostra do redescobrimento » - evidenciaram, como era de se esperar, o papel de portugueses, índios e negros na formação da nação brasileira. Porém, nunca é tarde para inscrever no rol das glórias (e desventuras) árabes, japoneses, italianos, alemães, judeus, enfim, outros povos que, em menor escala, adicionaram sabor à grande geléia
geral. Até porque neste fim de ano a trajetória de um desses grupos é
retratada em duas oportunidades: o recém-lançado livro « Entre Moisés e
Macunaíma/Os judeus que descobriram o Brasil » (Garamond), de Moacyr Scliar e
Márcio Souza, e o gigantesco conjunto documental da exposição « A comunidade
judaica no Rio de Janeiro do Século XX/Coleção Samuel Malamud », que
ocupará o Arquivo Geral da Cidade em dezembro. 

No relato do gaúcho Moacyr Scliar, a saga de seus pais, imigrantes da
Bessarábia assombrados pelos pogroms (massacres) czaristas no final do
século XIX, dá as chaves para o escritor equilibrar-se entre
nacionalidade brasileira e identidade cultural judaica, que, por mais
afastado que esteja o judeu das suas origens, permanece em seus traços ou
comportamento: « A marca judaica pode tornar-se tênue, mas não se desfaz »,
escreve Scliar, citando o exemplo de Clarice Lispector, que pouco falava de
judaísmo mas em cuja literatura o humor melancólico e o universo
torturado dos personagens são reveladores. 

Percurso inverso é o do « judeu novo » (daprès Hildegard Angel) Márcio
Souza: os ancestrais do atual presidente da Funarte, marroquinos que
no início do século estabeleceram-se na Amazônia, acabaram assimilando-se
completamente, por isolamento. Só homem maduro Márcio descobriu suas
origens, iniciando um trabalho de resgate mais documental que emocional
do seu atavismo. Já o arquivo do ativista judeu Samuel Malamud,
falecido em julho, traz o testemunho das reviravoltas do século XX,
partindo da efervescência da velha Praça Onze - o berço dos judeus na
cidade nos anos 20 e 30 - e chegando aos dias atuais. 

No entanto, muito além dos relatos e testemunhos, a contemplação desses
trabalhos revela uma « judeidade » brasileira moldada pelos sobressaltos
da Diáspora (dispersão), até que uma integração estável pudesse ser
almejada - e alcançada - evocando a figura cíclica do povo errante em
busca de uma terra prometida. 

A esse propósito, é oportuno recordar que, quase concomitantemente à
expulsão dos judeus da Península Ibérica, judeus e cristãos-novos eram
homens de destaque na Escola de Sagres e na própria expedição que trouxe
Cabral ao Brasil. O que não impediria que, décadas depois, a visita do
Tribunal do Santo Ofício da Inquisição à colônia anestesiasse o pouco que
havia de judaísmo no território; fato que não está desligado da adesão dos
cristãos-novos aos holandeses - adeptos da liberdade religiosa - no
período de ocupação em Pernambuco. Lá foi construída a primeira sinagoga
brasileira e de lá saíram os 23 judeus que, após a expulsão dos invasores,
foram parar em Nova Amsterdã, fundando uma das primeiras comunidades judaicas
da futura Nova York. 

Pela lente de Malamud, percorremos os fluxos migratórios pós-Primeira Guerra
nas décadas de 20 e 30 - que trouxeram quase cem mil judeus vindos da Europa
Oriental e do arrasado império Otomano (hoje a população é próxima de 200
mil) - e a linha dura do Estado Novo, que proibiu a concessão de vistos a
 »pessoas de origem semita », controlando a imigração judaica, sob a
sombria perspectiva da deportação em massa. Por conta disso, vistos foram
negados a figuras como Thomas Mann, num momento em que, na Europa, os
judeus não tinham para onde ir. 

A chegada dos refugiados do Holocausto, a criação do Estado de
Israel, o movimento sionista (inclusive o de feição socialista), a
integração econômica e cultural e o engajamento de judeus na luta armada
durante a ditadura militar (além das guerras no Oriente Médio que se
sucederam à criação do estado judeu) marcariam as décadas seguintes de uma
comunidade que, à medida que se integrava e se assimilava, mostrava-se
diversificada como a própria sociedade brasileira, sem perda de identidade e
background. 

Paralelamente a este percurso tumultuado, o livro de Scliar e Souza
e o acervo de Malamud dão espaço generoso ao anedótico, ao exótico e ao
lendário. Afinal, travamos contato com a tese de que a misteriosa cidade
bíblica de Ofir - para onde o Rei Salomão enviava naus fenícias - seria
na verdade o Norte ou o Nordeste do Brasil, e os índios, a tribo perdida
de Israel! Não faltaram pesquisadores dispostos a encontrar paralelos entre
os idiomas e os mitos das nações indígena e judaica. Saboreamos
histórias que misturam chimarrão e samovar, que mostram prospectos
coloridos vendendo o Brasil na Diáspora como paraíso onde porcos
comem o excedente de bananas e laranjas, ao passo que nos shtetl
(aldeiazinhas) russos, laranjas são importadas a peso de ouro; imaginamos
mães judias correndo atrás dos filhos nas ruas do Bom Fim com pratos de
comida, ou um « menino de cor » que circula na Praça Onze falando um
iídiche (idioma da Diáspora ashkenazi) castiço; conhecemos São Moisesinho, um
missionário judeu que vira santo no Norte; e observamos as ácidas
controvérsias entre sefaradis e ashkenazis, as duas principais
correntes do judaísmo. Menos engraçada, num período em que a
comunidade judaica carioca começava a se afirmar cultural e economicamente,
é a vida das polacas, as judias prostitutas « importadas » da Europa
Oriental, que os mais bem-estabelecidos procuravam ocultar,
mas que eram judias fervorosas, tinham sinagoga e um cemitério próprio, onde,
ainda hoje, os descendentes choram por suas almas no Rio.
Fonte: www.pletz.com/artigos/brasil
Artigos para Debater

Bibliografia sobre as lendas
referentes ao Mundo Antigo e o Brasil

Youri Sanada, BRAASI, Rio de Janeiro, Ediouro, 2001.
Paul Gallez: « La Cola del Dragón - América del Sur en los mapas antiguos, medievales y renacentistas », Bahía Blanca (Argentina), Instituto Patagónico, 1990.
Avezac-Macaya,  Marie Armand Pasacal d: « Memoire sur le pays dOphir oú les flotes de Salomon áillent chercher lor ». LAcademie des Inscripcions et Belles Lettres 30 (1864), Paris.
Richard Hennig: « Terra Incognitae », Vo. 4, Leiden, Brill, 1950.
Lienhardt Delekat: « Phönizier in Amerika », Bonn, 1960.
Dick Edgar Ibarra Grasso: « La representación de América en mapas romanos de los tiempos de Cristo »,