samedi 11 février 2012

O jovem Hegel

A dialética do amor
Por Jorge Pinheiro 

São Paulo – Alguns companheiros, não-marxistas e marxistas, sempre me perguntam: Jorge explica esse seu movimento em direção ao cristianismo. Será que isso tem alguma lógica? Então, porque continuo militante, resolvi falar de alguns amigos que influenciaram esse meu encontro com a cultura ocidental cristã. E sou obrigado a começar por George Wilhelm Friedrich Hegel, hoje um velho companheiro que me foi apresentado por outro amigo, Karl Marx.

Bem, comecemos a leitura de Hegel com um texto do apóstolo Paulo: “Estou plenamente certo de que aquele que começou a boa obra em vós há de completá-la até ao dia de Cristo Jesus. E também faço esta oração: que o vosso amor aumente mais e mais em pleno conhecimento e toda a percepção”. (Filipenses 1.6,9). Aparentemente, o Espírito começou a boa obra. O Espírito estaria, então, presente no mundo para convencer o ser humano da justiça. E deve, também, terminar a obra. Há no texto uma promessa de que tal obra não ficará incompleta. E, por isso, a oração de Paulo pelos filipenses é para que cresçam mais no amor, no conhecimento e na percepção.

Há aqui uma imagem da trindade. Deus é a fonte do amor, o Logos é o conhecimento, e este conhecimento vem através da palavra. Ao falar de crescimento no amor e no conhecimento da palavra, Paulo fala de percepção, ou seja, de compreensão, de discernimento. O Espírito é quem dá a percepção e o discernimento, aquilo que está além do que o olho pode ver. Tudo isso vem através da vida. A pessoa cresce vivendo, não somente através de um processo intelectual, mas na comunhão com Deus e com a comunidade.

Hegel, quando jovem, escreveu sobre teologia e religião. Mas sua grande contribuição para a teoria do conhecimento, que até aquele momento partia de Aristóteles, foi a reconstrução da dialética. A lógica de Aristóteles que influenciou o mundo até Hegel era a lógica formal. A lógica é sempre uma relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Aristóteles começou a trabalhar com a lógica a partir de formas. Dizia que ser é aquele que é, e não ser é aquele que não é. Ou seja, uma cadeira é uma cadeira e não mesa. Isso foi muito importante e o mundo aprendeu a pensar logicamente com Aristóteles. A metafísica de Tomás de Aquino utilizou a fundo a lógica aristotélica. Mas Hegel, antes de elaborar seus estudos sobre a lógica, tinha um problema: não conseguia pela lógica formal explicar os fenômenos que escapavam à matemática. Não conseguia explicar, por exemplo, a revolução francesa, nem determinados conceitos teológicos. Então, partindo da trindade,[1] criou outra lógica que recebeu o nome de dialética, porque trabalha com opostos.

Acontece que a dialética já existia entre os gregos, mas não da maneira que Hegel vai desenvolver. Hegel vê um Deus que é exclusivamente Espírito. Por ser puro Espírito não pode se revelar plenamente ao ser humano. Há, então, outra pessoa de Deus que se torna Deus/humano e se realiza como Deus e como ser humano. Cristo continua sendo Deus, mas é ser humano. Mas, isso ainda não resolve o problema. Cristo é Deus e é ser humano, mas não é Deus em toda a humanidade. Assim, se na dialética hegeliana, Deus é a tese e Jesus Cristo é antítese, o relacionamento dos dois deve gerar uma síntese: o Espírito, que vindo de parte do Pai e do Filho, se faz presente na humanidade. O que Hegel quer dizer na dialética não é o mesmo que Aristóteles. O filósofo grego disse que ser é aquele que é. Hegel vai dizer que ser é aquele que é e aquele que não é. E é exatamente isso que faz com que nada seja estático. Ele trabalha dois conceitos a partir dessa dialética: o conceito de estrutura e o conceito de gênese ou movimento. Ele conseguiu uma lógica que explica os processos sociais, assim como os processos de desenvolvimento dos organismos vivos. Uma semente de roseira é aquilo que ela é: semente, mas também é aquilo que não é: roseira e rosa. É esta a compreensão: uma estrutura num momento é apenas semente, mas passa a ter um movimento que a leva a ser alguma coisa que não é. E esse processo é permanente. Não se tem processo dialético estático, imóvel. Hegel faz a teoria do conhecimento dar um salto, pois a partir dele se pode definir para onde vai a realidade. Ele apresenta um modo de explicar o que vai acontecer desde que se conheçam as tendências do momento presente. Conhecendo-se isso, sabe-se para onde vai.

O amor e o caminho da dialética

A porta de entrada para o pensamento hegeliano é o amor,[2] já que é a partir daí que descobre o caráter dialético da realidade.

“A religião é um com o amor. O amado não é oposto a nós, é um com o nosso ser. Às vezes, vemos somente a nós mesmos, nele, e logo, de repente, é algo diferente de nós: um milagre que não podemos compreender”. [3]

O ponto de partida é a auto-alienação na realização do amor: o amor esquecendo-se de si próprio sai da existência amorosa e vive no outro. No amor há ainda o separado, não como separado, mas como unidade. Hegel estava olhando para a trindade. Como filósofo da religião considera que a antítese de Deus é Cristo e Cristo é o amor auto-alienado de Deus.

“No momento da universalidade, na esfera do pensamento puro, ou no elemento abstrato da essência, é, pois, o espírito absoluto que é inicialmente o que é pressuposto. Todavia, não permanece incluso em si, mas como poder (potência) substancial é, na determinação reflexiva da causalidade, o Criador do céu e da terra que, nessa esfera eterna engendra-se ele mesmo como seu próprio filho, e permanece numa identidade originária com essa diferença, enquanto essa determinação, de ser distinto da Essência universal”. [4]

Na dialética do amor realiza-se a vida. O amor é o movimento da vida. A vida em sua essência também é dialética. É una em sua essência, mas divide-se na multiplicidade dos seres para, finalmente, reencontrar-se na unidade. A comunidade de fé é o corpo de Cristo e quem a dirige é o Espírito. É uma volta à unidade, mas em um nível diferente em relação ao ponto de partida. Assim, Hegel viu a dialética: há estrutura e gênese, trabalha com opostos e cria um movimento permanente. Para Hegel, o divino é pura vida e por isso Deus também tem sua dialeticidade. Deus é uma totalidade e tudo o que existe está ligado a ele. Não se pode dizer que tudo está na totalidade divina, a não ser no panteísmo, mas sim na realidade. Nesse sentido, nada está fora de Deus. Ou, conforme argumentou Paulo com os atenienses, “nele vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17.28). Tudo está sob a unidade que é Deus. O Filho é humano, que se desenvolve em estado de separação no seu eu finito, no meio do mundo das determinações.

“Mas no momento da particularidade, do julgamento, a essência concreta eterna é pressuposto e seu movimento é a criação do fenômeno, a desagregação do momento eterno da mediação, do filho único, na oposição independente, de um lado, do céu e da terra, da natureza elementar e concreta, de outro, do espírito enquanto relação com eles, logo do espírito finito, o qual, extremo na negatividade em si”. [5]

E o Espírito traduz a condição do humano que superou o estado de alienação e fez o retorno consciente à realidade da redenção.

“E essa consciência imediatamente idêntica à essência, a esse filho do domínio eterno transferido na temporalidade, e no qual o mal é afastado em si, mas em seguida, apresenta-se essa exigência imediata e, portanto, sensível do concreto absoluto pondo-se na divisão (julgamento) e agozinando na dor da negatividade, na qual, subjetividade infinita, idêntica a si mesma, tornou-se, dela emergindo, retorno absoluto e unidade universal (individual) para si mesmo. É a idéia do espírito eterno, mas vivo e presente no mundo”. [6]

Daí surgem os três momentos de sua dialética: a concepção da realidade uma, as realidades separadas e a realidade outra vez unificada. Toda a realidade é somente uma, o mundo é somente um, a humanidade também. A realidade é uma, mas está separada: o que é e o que não é estão juntos, a realidade unificada. Para o jovem Hegel, a espiritualidade reconcilia a reflexão e o amor, unindo-os no pensamento. A vida espiritual, que é a vida do amor, realiza a exigência da filosofia cristã de reconciliar as oposições do finito e infinito. Ou seja, Hegel substitui espiritualidade por cristianismo. O cristianismo reconcilia a reflexão e o amor unindo-os no pensamento, ou na percepção, usando a linguagem de Paulo. O objetivo racional de Hegel é sempre a reconciliação dos contrários: o cristianismo privatizado e o cristianismo social, liberdade e necessidade, finito e infinito. Já maduro Hegel definiria a tarefa do conhecimento como a construção do absoluto pela consciência, que superando oposições produz o processo dialético.

O finito não pode ser pensado sem pensar o infinito, pois não é um conceito isolado e sem conteúdo próprio. O finito consiste em ser um momento do infinito. O finito é atingido pela negação, mas não é simples negação, uma vez que é limitado por outro que não é ele mesmo. O finito, portanto, é uma negação do infinito, no sentido que é uma particularidade, um momento, uma determinação. Sempre que se determina, se nega. Por exemplo, se numa sala de aula, um professor chama um aluno pelo nome, naquele momento ele está negando todos os demais alunos e determinando um único apenas. Por isso, devemos negar a negação e afirmar que o finito é mais que o finito, ou seja, que é o momento da vida do infinito.

O processo que resolve a oposição é o processo dialético: finito e infinito não são dois mundos separados. Sempre que se tem o final do processo se tem a identidade, porque contém todas as diferenças. O conhecimento para Hegel é um processo que nunca se dá no início, mas no final, por isso o conhecimento é sempre histórico. Como se conhece a roseira? Vendo-a crescer. Para Hegel, o conhecimento está a dar-se na vida.

Assim, podemos dizer que o tema da filosofia de Hegel é o infinito e suas relações com o finito, relação de unificação de ambos os termos no princípio absoluto. A identidade, contendo dentro de si as diferenças e a harmonia, acontece no fim do processo dialético. O absoluto é o pensamento que se pensa a si mesmo, o que equivale dizer que o absoluto é espírito, sujeito autoconsciente.

O amor e a trindade

Hegel considera que o próprio Deus ao se finitizar entra na história. No final do século vinte alguns filósofos disseram que a história tinha acabado, mas para Hegel a história não acaba, é permanente. Mesmo na plenitude do Reino, já que existirá a vida, existirá também a história e, por extensão, o conhecimento. Deus construiu o humano para relacionamentos em processos conscientes e livres. Homem e mulher têm liberdade de escolha e consciência para relacionar-se com Deus. Um dia toda a humanidade irá relacionar-se de forma plena com Deus e a partir de tal momento haverá um relacionamento novo, que Deus não tinha antes com os seres humanos. Isso é revelação, um dia Deus será compreensível, mas não totalmente, porque tal processo é permanente. E se a há conhecimento, há processo histórico. Hegel está tentando entender o processo dentro da trindade. Para ele, se esse processo é dialético, há um conhecimento dentro da Trindade, não necessariamente de forma, mas um conhecimento intrínseco.

Aqui a filosofia cristã se vê obrigada a levantar questões: quando Jesus pregado na cruz declarou “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”, aquele foi um momento de ruptura? Mas pode haver ruptura entre o Pai e o Filho? E como se dá a superação dessa relação dialética? Depois da ruptura, o amor é maior ou igual? Outra questão: tendo em vista que o Espírito é a pessoa da trindade presente na comunidade de fé, quando a história presente terminar, na plenitude do Reino, haverá na trindade um conhecimento maior sobre a experiência vivida pelo Espírito? A partir de Hegel, poderíamos dizer que a trindade se relaciona, mas não tem uma comunicação redundante: conversa de louco, onde se sabe de antemão o que será dito ou de coisas que não se entende. A base do conhecimento intratrinitário seria o amor e o amor cresceria à medida que as Pessoas se amam e vivem o amor. Esse seria o sentido do conhecimento na trindade. E esse amor, segundo Hegel, apontaria para o Reino de Deus.

No Reino de Deus o que é comum a todos é a vida em Deus. Este não é um caráter comum expresso em conceito, mas é amor, um viver que une os crentes, um sentimento no qual todas as oposições, quer inimizades, quer direitos, ou ainda aquelas unidades que subsistem como oposições, são anuladas. [7]

Hegel examina também o aspecto fenomênico do cristianismo: sentimento, intuição, representação. A primeira forma de espiritualidade seria sempre imediatização da relação Deus/ humano, própria do sentimento. O sentimento é individual, acidental e mutável. A intuição que se tem na arte é o momento mais elevado dessa imediatização. Há uma dualidade de contrários entre o sujeito intuinte e o objeto intuído, entre a unidade da consciência cristã e seu objeto. A contradição resolve-se à medida que o cristianismo se transforma em verdadeiro saber. E a este saber o ser humano só chega pela fé. Hegel considerava que o momento mais alto do conhecimento espiritual é o cristianismo e que a espiritualidade de Israel era uma imediatização da relação Deus/humano.

A espiritualidade, enquanto fé, sentimento e intuição ingênua, consiste no saber e consciência imediatos. Imediato, para Hegel é sempre o que não se conhece. Ao vermos uma pessoa temos uma percepção imediata, que é falsa. Quando a pessoa passa da primeira percepção e vive o cristianismo há um desenvolvimento da fé e o abandono do imediato. Ou seja, a primeira percepção é emocional, mas a última deve ser a fé, ou a percepção concreta da espiritualidade.

Que é a fé? É o momento em que não se precisa mais de elementos imediatos para a relação com Deus. Não se precisa de templo, sacerdócio, etc. Por isso, o cristianismo situa-se no nível pensante e não só do sentimento. Reduzir o conteúdo divino, a revelação de Deus, a relação ser humano com Deus, a existência de Deus para o ser humano a mero sentimento significaria limitar-se ao ponto de vista da subjetividade particular, ao arbítrio.

Hegel fez a crítica do cristianismo oficial e hegemônico, que em sua época, no mundo germânico, se expressava como catolicismo e luteranismo. Isto porque para ele a doutrina sobre Deus só poderia ser compreendida como doutrina sobre a espiritualidade cristã. Por espiritualidade entendia a relação do sujeito, da consciência subjetiva, com Deus. Assim, o cristianismo seria ação da consciência humana que brota da ação originária de Deus.

Donde, ação divina e ação humana encontram-se na redenção da espécie humana. Ou seja, o ser humano está condenado a produzir a sua essência no tempo, e é o único animal histórico porque é o único que, além de ser natureza, é consciência, a negação da natureza.[8] Antes de Hegel, movimentos cristãos radicais chegaram a conclusões semelhantes no que tange a relação entre soberania divina e liberdade humana, enquanto síntese do projeto divino de redenção dos seres humanos.

17/11/2009
Fonte: ViaPolítica/O autor

Notas:

[1] George Wilhelm Friedrich Hegel, “The Religious Teaching of Jesus”, in Early Theological Writings, G. W. F. Hegel, trad. T. M. Knox, com “Introdução e Fragmentos” de Richard Kroner, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1981, p. 273.
[2] George Wilhelm Friedrich Hegel, “Love”, in Early Theological Writings, idem, op. cit., pp. 302-308.
[3] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, “Esbozos sobre Religión y Amor”, in Hegel, Escritos de Juventud, México, Fondo de Cultura Econômica, 1998, p. 243.
[4] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome, Lisboa, Edições 70, 1988, vol. I, parágrafo 567.
[5] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome, idem, op. cit., parágrafo 568.
[6] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome, ibidem, op. cit., parágrafo 569.
[7] George Wilhelm Friedrich Hegel, “The Religious Teaching of Jesus”, in Early Theological Writings, idem, op. cit., p. 278.
[8] Roland Corbisier, Hegel, Textos Escolhidos, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1991, pp. 16-17.