vendredi 6 avril 2012

O banquete da Páscoa


A ressurreição, de Rafaello Sanzio

Ela virou e respondeu em hebraico: Meu mestre!

[De Montpellier, França, 2005] -- Na sala, o notebook toca música brasileira. Eu, Naira e Paloma convidamos quatro jovens para o almoço de Páscoa: Andreas, alemão, que estuda engenharia; Georgine, de Barcelona, que estuda economia; Térèse, alemã, que estuda Teologia; e Serge, de Barcelona, que veio passar uma semana em Montpellier. Jovens cujas famílias estão longe, cristãos na diáspora acadêmica.

Enquanto eles conversam, Djavan canta que amar é um deserto e seus temores, e a vida vai na cela dessas dores. Lá fora, junto ao pinheiro, companheiro da janela da sala, a primavera chega a passos largos. Eu preparo coelho a caçadora e Naira manchon de canard. Essas serão as carnes do almoço. O almoço é a francesa, com toda a liturgia que isso implica. E os paralamas do sucesso dizem que o calibre do perigo é não saber de onde vem o tiro.

Como vocês notaram estamos em pleno domingo de Páscoa. E quando se fala de Páscoa, se fala de morte, já que não haveria ressurreição se não houvesse morte. Donde, procedem os temores de Djavan e dos paralamas. E isso me leva à teologia, através de um velho amigo dos últimos anos, Paul Tillich.

Ele conta em sua autobiogafia, “Minha busca pelo Absoluto”, que a primeira Guerra Mundial colocou um ponto final em sua formação, pois sua geração foi chacoalhada de tal maneira pela guerra, que deixou para trás sua existência individualista e predominantemente teórica.

Tillich serviu como capelão do exército alemão de setembro de 1914 a setembro de 1918. Ele conta que “antes que as primeiras semanas tivessem passado, meu entusiasmo original desapareceu, e depois de alguns meses me convenci de que a guerra duraria indefinidamente e arruinaria toda a Europa. Acima de tudo, vi que a unidade das primeiras semanas era uma ilusão, que a nação estava fendida em classes, e que as massas industriais consideravam a Igreja como um aliado incontestado dos grupos governantes. Esta situação se tornava mais clara conforme se aproximava o fim da guerra. Produziu a revolução que fez desmoronar a Alemanha imperial. O modo como tal situação deu origem ao movimento socialista religioso na Alemanha já foi descrito. Porém, eu quero acrescentar algumas reflexões”.

Revela que apoiou o movimento socialista que fez a revolução de 1918 na Alemanha, revolução que foi morta pela fraqueza dos proprios socialistas, por seus erros politicos, como a utilização do Exército na repressão aos comunistas; por razões econômicas, como a inflação galopante; e pela volta das forças reacionárias que cresceram nos anos vinte. “Minha empatia com os problemas sociais da revolução alemã teve raízes em minha infância (...). Talvez fosse uma gota do sangue que induziu minha avó a construir barricadas na revolução de 1848, talvez a impressão deixada pelas palavras dos profetas hebreus contra injustiça e pelas palavras de Jesus contra os ricos, estas palavras eu aprendi de cor quando menino”.

E Tillich constata que essa empatia aumentou com o passar dos anos e se transformou em militância socialista religiosa que, depois da segunda Guerra Mundial definhou em resignação e amargura por ver o mundo dividido em dois grupos todo-poderosos, que esmagaram as sobras de um socialismo democrático e religioso. Mas, confiante no futuro,  afirma: “se a mensagem profética é verdadeira não há nada além do socialismo religioso”.

Quando Tillich fala de socialismo, fala da necessidade incondicional de justiça, presente no coração humano, e que deve fundamentar toda ação política. E isso só é possível se o amor ágape fecundar a política e produzir frutos de justiça. Por isso, socialismo verdadeiro é aquele socialismo que está pleno de sentido último [ultimate concern] e transcendência. Se isso não se der, o socialismo se transformará em quase-religião, idolatria que violenta e oprime o ser humano.

Ao falar de Páscoa, ao nos lembrarmos da ressurreição, nos vem à mente os dois dias e meio de silêncio e tristeza, que marcaram a pós-morte de Jesus. Por que esses quase três dias? Na verdade, eles fazem parte de uma pedagogia que transcende. Através desses quase três dias de silêncio e tristeza, Deus possibilitou aos discípulos a aprendizagem da unidade do corpo. Em meio ao silêncio daqueles que fogem e se escondem, em meio ao silêncio da dor da separaçao daquele que é querido, e da tristeza diante daquele que está morto, mas devia estar vivo, os discípulos se uniram, abandonaram velhas brigas e juntos oraram pela misericórdia daquele que é amor.

A unidade foi selada por condições tão adversas. E Jesus levantou-se para dizer que o que separava não separa mais. Agora, ao invés de silêncio temos louvores; ao invés de tristeza, alegria; ao invés de morte, vida.

E assim, como a primavera que cobre de flores o jardim em frente de minha casa, que faz algumas semanas estava seco, a Páscoa possibilita o encontro. Estamos reunidos ao redor de uma mesa, brasileiros, espanhois, alemães. Oramos em francês, mas falamos também em português, espanhol, alemão.     

Quero dizer a Djavan que de fato há o momento do deserto, do temor e da dor, mas já não pode durar para sempre. Quero dizer aos paralamas que já sabemos de onde vem o tiro, por isso o perigo pode ser enfrentado. A mensagem é verdadeira e por isso o mundo será coberto pela justiça. O Cristo ressurreto nos une, e o mundo conhecerá sua glória e o amor que tem por nós.

O banquete da Páscoa estava delicioso, porque foi multiplicado, porque foi ágape de paz, amor e justiça.

Jesus disse: Não me segure, pois ainda não subi para o meu Pai. Vá se encontrar com os meus irmãos e diga a eles que eu vou subir para aquele que é meu Pai e o Pai deles, o meu Deus e o Deus deles. [João 20.16-17]. 

Fonte: Jorge Pinheiro, Teologia Bíblica e Sistemática, o ultimato da práxis protestante, São Paulo, Fonte Editorial, 2012.
Rafaello Sanzio (1483-1520), autoretrato