lundi 29 octobre 2012

O caminho da História

Por Jorge Pinheiro, de São Paulo


Ora, não haveria Hegel sem Kant. Foram o cartesianismo e as teorias kantianas, entre as quais seu conceito de transcendência e sua moral, que possibilitaram mais tarde a revolução hegeliana. Hegel, como já vimos, apresentou a história enquanto fenomenologia do Espírito, o que gerou hermenêuticas e novas compreensões da razão de ser do cristianismo.

Dentro desse processo, podemos citar dois pensadores, que por destacarem o papel da história na construção do cristianismo marcaram a modernidade da filosofia cristã. São eles Albrecht Ritschl (1822-1889) e Ernst Troeltsch (1865-1923). E a partir deles, já no século vinte, Jürgen Moltmann e Wolfhart Pannenberg. Em caminho distinto, mas fundamental para a pesquisa, estão Friedrich Schleiermacher (1768-1834) e Sören Kierkegaard (1813-1855), por destacarem a questão afetiva e existencial na construção da fé. No campo da moderna filosofia batista, dois nomes, por suas expressões práticas na compreensão das questões histórico/sociais e afetivo/existenciais, devem ser citados, Walter Rauschenbush (1861-1918) e Martin Luther King Jr. (1929-1968).


Fernando Hadad, eleito prefeito de São Paulo pelo PT, beija a esposa, Ana Estela

Fath nos fala da influência do pensamento de Rauschenbush nas comunidades de fé batistas francesas. Segundo ele, estas comunidades, o segundo maior grupo do protestantismo depois da Igreja Reformada, tiveram uma ampla influência sobre o pensamento social cristão francês. E cita exemplos como o do semanário ―Solidariedade Social, dirigido nos anos 1920 e 1930 por Philemon Vincent e Robert Farelly, assim como as iniciativas de Paul Passy, da Universidade de Paris.

―Toda esta atividade permitiu aos batistas franceses imprimir uma marca discreta na vida nacional. Muitos batistas, especialmente na Federação Protestante francesa, estiveram envolvidos nas dificuldades sociais do país e prejudicados pela Primeira Guerra Mundial e pela crise econômica de 1930. Alguns deles, Robert Farelly, Henri Vincent, foram influenciados diretamente por Walter Rauschenbusch, pai do Evangelho social, durante seus estudos no seminário de Rochester, antes da Primeira Guerra Mundial. Como Rauschenbusch e alguns protestantes franceses, Charles Gide, Elie Gounelle, Tommy Fallot, lutaram pelo socialismo cristão. Sua aproximação ao socialismo foi definida por Ernst Troeltsch em seu Soziallehren como uma rejeição da atitude pietista de retirada do mundo.

E Troeltsch, também citado por Fath, afirma que o movimento dos batistas sociais foi um esforço protestante de volta às características familiares da tendência cristã primitiva. Estas características foram marcadas pela opinião de que as comunidades de fé deveriam promover o reinar de Deus na terra.

Outro teólogo, alemão, Paul Tillich, também fez parte dessa leitura na contramão das dogmáticas oficiais, sem descartar as suas riquezas teológicas. Foi socialista na sua fase alemã. Mas aqui vamos destacar os dois primeiros citados, Ritschl e Troeltsch, por apresentarem as bases para a discussão da questão histórica em relação às teologias da revelação e do reinar de Deus.

Ritschl foi um estudioso do Novo Testamento, da história do cristianismo e da dogmática, em especial de Lutero. Seu argumento de fundo contra os teólogos ortodoxos era de que confundiram a teologia cristã com a metafísica. Rejeitou tanto a base platônica de Agostinho, como as pressuposições aristotélicas de Tomás de Aquino. Por considerar que a ortodoxia protestante tinha abandonado os fundamentos da Reforma e restaurado a metafísica, construiu uma filosofia cristã sem a metafísica. Levantou-se também contra misticismo cristão que, segundo ele, naquele momento se expressava como pietismo.

Para Ritschl, a religião é fruto da necessidade social que o ser humano tem de Deus. E foi a partir de seu interesse científico pela história que construiu seu pensamento filosófico. Entre 1870 e 1874, publicou sua principal obra, em três volumes: A doutrina cristã da justificação e reconciliação.

―Em toda a religião o que se busca, com a ajuda do poder espiritual sobre-humano ao qual o homem rende culto, é uma solução da condição na qual o homem se encontra por ser por um lado parte da natureza e por outro uma personalidade espiritual que pretende dominar a natureza.

Assim, a partir de Ritschl há uma concentração da filosofia cristã na pesquisa histórica, o que será importante para o próprio desenvolvimento do conhecimento dos textos escriturísticos. Ou como afirma Mackintosh:

―Devemos concluir, portanto, que Ritschl apenas começara a lutar com o problema sumamente difícil – e especificamente cristão – da revelação e da história em suas relações mútuas. É o problema que mais preocupa a teologia contemporânea.

Tais pesquisas levaram a constatação de que havia uma religião construída sobre um Jesus ideológico e uma religião de Jesus, que teria como base seu ideal ético, que remetia à questão do reinar de Deus. Este seria o cerne da mensagem cristã, mensagem ética e de vivência do amor. Mas, a dificuldade de Ritschl em ver as reivindicações da justiça como universais, cobrou um preço à política e à teologia em termos da própria integridade da igreja. Talvez este tenha sido seu erro maior, ao contrapor poder sem amor e amor sem poder. Fazendo assim, contrastou o Deus de poder do Antigo Testamento ao Deus de amor do Novo Testamento e no processo descartou o conceito do julgamento de Deus e retribuição. De todas as maneiras, seu aporte à construção de uma filosofia do reinar de Deus foi relevante. Ernst Peter Wilhelm Troeltsch seguiu seu mestre, Ritschl, mas podemos dizer que foi mais longe. Trabalhou com um grupo de pesquisa que ficou conhecido como Escola da História das Religiões. Estudou os textos escriturísticos a partir do contexto histórico da época em que foram escritos e não apenas de uma perspectiva dogmática. O cristianismo passava assim, para Troeltsch, a ser uma religiosidade e para compreendê- la era necessário empregar o método histórico.


Numa disputa municipal feita nacional pelo confronto ideológico dos dois candidatos, Fernando Hadad, do PT, ganha em São Paulo, cidade-nação em solo brasileiro

Em 1897, em Freiburg, fez amizade com Max Weber (1864-1920) e entrou para o seu círculo de amigos e pesquisadores. E as famílias de Troeltsch e Weber tornaram-se tão íntimas, que dividiram a mesma casa. Em 1906, Troeltsch escreveu seu primeiro ensaio histórico, que foi transformado em livro: ―O significado do protestantismo para a formação do mundo moderno‖. Nele trabalhou os conceitos de seita e igreja. Disse que as seitas eram grupos informais na organização, igualitários na estrutura e heterodoxos nas crenças. Disse ainda que as seitas tinham tendência a se converterem em igrejas, com suas próprias ortodoxias que, por sua vez, seriam substituídas por novas seitas. Já as igrejas eram organizações conservadoras, adaptadas à estrutura do poder secular. Essas classificações continuaram a ser trabalhadas por Max Weber e Reinhold Niebuhr (1892/1971).

Assim, através de uma leitura evangélico-social, com fundamentação na análise histórica, Troeltsch pensou os problemas sociais de sua época. E como resultado escreveu As doutrinas sociais das igrejas e grupos cristãos (1912), uma pesquisa de mais de mil páginas em que construiu sua teoria das relações entre o pensamento religioso e o meio político-social. Neste trabalho dialogou criticamente com o marxismo, mas admitiu que Marx colocara uma questão fundamental: será que a formação e dinâmica histórica do cristianismo não fora sociologicamente determinada? Em 1992, escreveu O historismo e seus problemas, onde propôs uma concepção histórica das coisas humanas.

Para a pesquisa e a construção de uma filosofia hermenêutica que possibilite a compreensão do reinar de Deus e suas correlações com as brasilidades, os filósofos que estamos vendo têm marcada importância. Em especial Troeltsch que trabalhou a relação entre cristianismo e cultura, revelação e história, liberdade e condicionamentos sociais. Para ele, toda produção humana estava submetida ao condicionamento histórico. Nada é atemporal. Tais leituras, aplicadas à filosofia cristã levam a questionamentos de valores. Um deles é que o cristianismo não poderia manter a reivindicação de única universalidade, pois as culturas são a origem das religiões. O cristianismo seria, então, nos dois últimos milênios de paixão, o rosto do Eterno na cultura ocidental.

―Esta experiência é sem dúvida alguma a medida de sua validez, porém, não se esqueça, apenas de sua validez para nós. É o rosto de Deus tal como se revela a nós; é o modo como, sendo como somos, recebemos e reagimos à revelação de Deus. É válida para nós e nos redime. É final e incondicional para nós, visto que não temos outra coisa... Todavia, isso não exclui a possibilidade de que outros grupos raciais, que vivam sob condições culturais totalmente diferentes, possam experimentar seu contato com a vida divina de um modo distinto.

Por isso, é necessário, para Troeltsch, refazer a pergunta sobre o significado do cristianismo. A filosofia cristã deveria examinar as instâncias levantadas sobre a pretensão do cristianismo à verdade no campo das ciências e da história natural. E buscar uma compreensão do problema referente à essência do cristianismo, à sua posição na história das religiões e o seu lugar na própria existência humana.

Comentando Troeltsch, meu amigo Mendonça, já falecido, afirmava que o protestantismo de hoje não é mais o de Lutero e Calvino, pois a cultura eclesiástica medieval deu lugar à moderna cultura européia/ americana, conforme conceito utilizado por Troeltsch. O novo protestantismo perdera de vista a idéia de uma total cultura eclesiástica e ―reconheceu como se fossem princípios genuinamente protestantes o fenômeno da crítica histórico-filosófica, a formação de comunidades eclesiásticas livres do estado e a doutrina da revelação baseada na iluminação e convicção pessoal íntima. O velho protestantismo condenava tudo isto como naturalismo, fanatismo ou entusiasmo sectarista.


O ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e correligionários comemoram as vitórias do PT nas eleições de segundo turno, neste outubro de 2012

As rupturas com a metafísica da ortodoxia protestante, aliadas ao processo de secularização do mundo ocidental, consolidaram a leitura social do cristianismo, que confrontava a fé com o seu ambiente social, econômico e político. Esse cristianismo procurou compreender os desafios da contemporaneidade, e propôs o combate pela realização do reinado de Deus, a reflexão filosófica cristã voltada às questões sociais e a luta contra as injustiças. Assim, quando se fala de reinado de Deus fala-se de leituras filosóficas que procuram analisar a influência do meio social sobre o universo religioso e a formação espiritual do ser humano. E que consideram a espiritualidade afetivo/ existencial e a espiritualidade histórico/ social faces de um mesmo reinar de Deus. As filosofias do reinado de Deus inscrevem-se, dessa maneira, numa perspectiva de correlação e possibilitam uma reflexão que fornece instrumentos teóricos para alimentar as lutas contra a injustiça, para criar novas formas de relações existenciais e sociais e para dar dignidade às pessoas ali onde são excluídas e segregadas.


Fonte
Jorge Pinheiro, Teologia bíblica e sistemática, o ultimato da praxis protestante, São Paulo, Fonte Editorial, 2012, pp. 63-72.

samedi 27 octobre 2012

Salvemos os índios Guarani-Kaiowá

Os índios da etnia Guarani-Kaiowá estão correndo sério risco de genocídio. Leia a carta-manifesto deles:

"Nós (50 homens, 50 mulheres, 70 crianças) comunidades Guarani-Kaiowá originárias de tekoha Pyelito kue/Mbrakay, vimos através desta carta apresentar a nossa situação histórica e decisão definitiva diante de despacho/ordem de nossa expulsão/despejo expressado pela Justiça Federal de Navirai-MS, conforme o processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006, em 29/09/2012.

Recebemos esta informação de que nós comunidades, logo seremos atacada, violentada e expulsa da margem do rio pela própria Justiça Federal de Navirai-MS. Assim, fica evidente para nós, que a própria ação da Justiça Federal gera e aumenta as violências contra as nossas vidas, ignorando os nossos direitos de sobreviver na margem de um rio e próximo de nosso território tradicional Pyelito Kue/Mbarakay.

Assim, entendemos claramente que esta decisão da Justiça Federal de Navirai-MS é parte da ação de genocídio/extermínio histórico de povo indígena/nativo/autóctone do MS/Brasil, isto é, a própria ação da Justiça Federal está violentando e exterminado e as nossas vidas. Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça Brasileira.

A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas?? Para qual Justiça do Brasil?? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados 50 metros de rio Hovy onde já ocorreram 4 mortos, sendo 2 morreram por meio de suicídio, 2 morte em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas. Moramos na margem deste rio Hovy há mais de um (01) ano, estamos sem assistência nenhuma, isolada, cercado de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Tudo isso passamos dia-a-dia para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay.

De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários os nossos avôs e avós, bisavôs e bisavós, ali estão o cemitérios de todos nossos antepassados. Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser morto e enterrado junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação/extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais.

Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal, Assim, é para decretar a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e para enterrar-nos todos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem morto e sabemos que não temos mais chance em sobreviver dignamente aqui em nosso território antigo, já sofremos muito e estamos todos massacrados e morrendo de modo acelerado. Sabemos que seremos expulsas daqui da margem do rio pela justiça, porém não vamos sair da margem do rio. Como um povo nativo/indígena histórico, decidimos meramente em ser morto coletivamente aqui. Não temos outra opção, esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS.''

Leia mais: http://www.revistareciclarja.com/news/salvemos-os-indios-guarani-kaiowa-do-genocido-urgente-/

Para seu conhecimento. Junte-se a nós!

Acompanhe, conheça, participe da Croix Huguenote. As igrejas batistas de Montpellier e Lunel desejam que sua igreja brasileira se transforme numa ativa comunidade-irmã. Entre em contato com André Filipe Farias Sass e Pablo Sacilotto -- use o Skype para conversar com eles. A Deus toda a honra e glória!

A vertigem do Supremo

Os ministros do STF deliraram: não houve o desvio de 73,8 milhões de reais do Banco do Brasil, viga mestra da tese do mensalão. Acompanhe a nossa demonstração.

Por Raimundo Rodrigues Pereira, da revista Retrato do Brasil

A tese do mensalão como um dos maiores crimes de corrupção da história do País foi consagrada no STF. Veja-se o que diz, por exemplo, o presidente do tribunal, ministro Ayres Britto, ao condenar José Dirceu como o chefe da “quadrilha dos mensaleiros”. O mensalão foi “um projeto de poder”, “que vai muito além de um quadriênio quadruplicado”. Foi “continuísmo governamental”, “golpe, portanto”. Em outro voto, que postou no site do tribunal dias antes, Britto disse que o mensalão envolveu “crimes em quantidades enlouquecidas”, “volumosas somas de recursos financeiros e interesses conversíveis em pecúnia”, pessoas jurídicas tais como “a União Federal pela sua Câmara dos Deputados, Banco do Brasil-Visanet, Banco Central da República”.

Britto, data vênia, é um poeta. Na sua caracterização do mensalão como um crime gigante, um golpe na República, o que ele chama de Banco do Brasil-Visanet, por exemplo? É uma nova entidade financeira? Banco do Brasil a gente sabe o que é: é aquele banco estatal que os liberais queriam transformar em Banco Brasil, assim como quiseram transformar a Petrobras em Petrobrax, porque achavam ser necessário, pelo menos por palavras, nos integrarmos ao mundo financeiro globalizado.

De fato, Visanet é o nome fantasia da Companhia Brasileira de Meios de Pagamento, responsável, no Brasil, pelos cartões emitidos com a chamada bandeira Visa (hoje o nome fantasia mudou, é Cielo). Banco do Brasil-Visanet não existia, nem existe; é uma entidade criada pelo ministro Britto. E por que, como disse no voto citado, ele a colocou junto com os mais altos poderes do País – a União Federal, a Câmara dos Deputados e o Banco Central da República? Com certeza porque, como a maioria do STF, num surto anti-corrupção tão ruim quanto os piores presenciados na história política do País, viu, num suposto escândalo Banco do Brasil-Visanet, uma espécie de revelação divina. Ele seria a chave para transformar num delito de proporções inéditas o esquema de distribuição, a políticos associados e colaboradores do PT, de cerca de 50 milhões de reais tomados de empréstimo, de dois bancos mineiros, pelo partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

No dia 13 de julho de 2005, menos de um mês depois de o escândalo do mensalão ter surgido, com as denúncias do deputado Roberto Jefferson, a Polícia Federal descobriu, no arquivo central do Banco Rural, em Belo Horizonte, todos os recibos da dinheirama distribuída. Delúbio Soares, tesoureiro do PT, e Marcos Valério, um empresário de publicidade mineiro, principais operadores da distribuição, contaram sua história logo depois. E não só eles como mais algumas dezenas de pessoas, também envolvidas no escândalo de alguma forma, foram chamadas a depor em dezenas de inquéritos policiais e nas três comissões parlamentares de inquérito que o Congresso organizou para deslindar a trama.

Todos disseram que se tratava do famoso caixa-dois, dinheiro para o pagamento de campanhas eleitorais, passadas e futuras. Como dizemos, desde 2005, tratava-se de uma tese razoável. Por que razoável, apenas? Porque as teses, mesmo as melhores, nunca conseguem juntar todos os fatos, sempre deixam alguns de lado. A do caixa-dois é razoável. O próprio STF absolveu o publicitário Duda Mendonça, sua sócia Zilmar Fernandes e vários petistas, que receberam a maior parte do dinheiro do chamado valerioduto, porque, a despeito de proclamar que esse escândalo é o maior de todos, a corte reconheceu tratar-se, no caso das pessoas citadas, de dinheiro para campanhas eleitorais. E a tese do caixa-dois é apenas razoável, como dissemos também, porque fatos ficam de fora.

É sabido, por exemplo, que, dos 4 milhões recebidos pelo denunciante Roberto Jefferson – que jura ser o dinheiro dele caixa dois e o dos outros, mensalão – uma parte, modesta é verdade, foi para uma jovem amiga de um velho dirigente político ligado ao próprio Jefferson e falecido pouco antes. Qualquer criança relativamente esperta suporia também que os banqueiros não emprestaram dinheiro ao PT porque são altruístas e teria de se perguntar porque o partido repassou dinheiro ao PTB, PL e PP, aliados novos, e não ao PSB, PCdoB, aliados mais fiéis e antigos. Um arguto repórter da Folha de S. Paulo, num debate recente sobre o escândalo, com a participação de Retrato do Brasil, disse que dinheiro de caixa-dois é assim mesmo. E que viu deputado acusado de ter recebido o dinheiro do valerioduto vestido de modo mais sofisticado depois desses deploráveis acontecimentos.

O problema não é com a tese do caixa-dois, no entanto. Essa é a tese dos réus. No direito penal brasileiro, o réu pode até ficar completamente mudo, não precisa provar nada. É ao ministério público, encarregado da tese do mensalão, que cabe o ônus da prova. E essa tese é um horror. No fundo, é uma história para criminalizar o Partido dos Trabalhadores, para bem além dos crimes eleitorais que ele de fato cometeu no episódio. O escândalo Banco do Brasil-Visanet, que é o pilar de sustentação da tese, não tem o menor apoio nos fatos.
Essencialmente, a tese do mensalão é a de que o petista Henrique Pizzolato teria desviado de um “Fundo de Incentivo Visanet” 73,8 milhões de reais que pertenceriam ao Banco do Brasil. Seria esse o verdadeiro dinheiro do esquema armado por Delúbio e Valério sob a direção de José Dirceu. Os empréstimos dos bancos mineiros não existiriam. Seriam falsos. Teriam sido inventados pelos banqueiros, também articulados com Valério e José Dirceu, para acobertar o desvio do dinheiro público.

Essa história já existia desde a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios. Foi encampada pelos dois procuradores-gerais da República, Antônio Fernando de Souza e Roberto Gurgel, que fizeram os trabalhos da acusação. E foi transformada num sucesso de público graças aos talentos do ministro Joaquim Barbosa na armação de uma historinha ao gosto de setores de uma opinião pública sedenta de punir políticos, que em geral considerada corruptos, e ao surto anticorrupção espalhado por nossa grande mídia, que infectou e levou ao delírio a maioria do STF.

Por que a tese do mensalão é falsa? Porque o desvio dos 73,8 milhões de reais não existe. A acusação disse e o STF acreditou que uma empresa de publicidade de Valério, a DNA, recebeu esse dinheiro do Banco do Brasil (BB) para realizar trabalhos de promoção da venda de cartões de bandeira Visa do banco, ao longo dos anos 2003 e 2004. E haveria provas cabais de que esses trabalhos não foram realizados.

A acusação diz isso, há mais de seis anos, porque ela precisa de que esse desvio exista. Porque seria ele a prova de serem os 50 milhões de reais do caixa dois confessado por Delúbio e Valério inexistentes e de os empréstimos dos bancos mineiros ao esquema Valério-Delúbio serem falsos e decorrentes de uma articulação política inconfessável de Dirceu com os banqueiros. Ocorre, no entanto, que a verdade é oposto do que a acusação diz e o STF engoliu. Os autos da Ação Penal 470 contêm um mar de evidências de que a DNA de Valério realizou os trabalhos pelos quais recebeu os 73,8 milhões de reais.

No nosso site na internet, RB está apresentando, a todos os interessados em formar uma opinião mais esclarecida sobre o julgamento que está sendo concluído no STF, um endereço onde pode ser localizada a mais completa auditoria sobre o suposto escândalo BB-Visanet. Nesse local o leitor vai encontrar os 108 apensos da AP 470 com os trabalhos dessa auditoria. São documentos em formato pdf equivalentes a mais de 20.000 páginas e foram coletados por uma equipe de 20 auditores do BB num trabalho de quatro meses, de 25 de julho a 7 de dezembro de 2005 e depois estendido com interrogatórios de pessoas envolvidas e de documentos coletados ao longo de 2006.

A auditoria foi buscar provas de que o escândalo existia. Mas, ao analisar o caso, não o fez da forma interesseira e escandalosa da procuradoria geral da República e do relator da AP 470 Joaquim Barbosa, empenhados em criminalizar a ação do PT. Fez um levantamento amplo do que foram as ações do Fundo de Incentivo Visanet (FIV) desde sua criação em 2001.

Um resumo da auditoria, de 32 páginas, está nas primeiras páginas do terceiro apenso (Vol. 320). Resumindo-a mais ainda se pode dizer que:

* As regras para uso do fundo pelo BB têm duas fases: uma, de sua criação em 2001 até meados de 2004, quando o banco adotou como referencial básico para uso dos recursos o Regulamento de Constituição e Uso do FIV da Companhia Brasileira de Meios de Pagamento (CBMP); e outra, do segundo semestre de 2004 até dezembro de 2005, quando o BB criou uma norma própria para o controle do fundo.

*Entre 2001 e 2004, a CBMP pagou, por ações do FIV programadas pelo BB, aproximadamente 150 milhões de reais – 60 milhões nos anos 2001-2002, no governo Fernando Henrique Cardoso, portanto; e 90 milhões nos anos 2003-2004, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. E, nos dois períodos, sempre 80% dos recursos foram antecipados pela CBMP, a pedido do BB, para as agências de publicidade contratadas pelo banco.
*O BB decidiu, em 2001, por motivos fiscais, que os recursos do FIV não deveriam passar pelo banco. A CBMP pagaria diretamente os serviços através de agências contratadas pelo BB. A DNA e a Lowe Lintas foram as agências, no período 2001-2002. No final de 2002 o BB decidiu especializar suas agências e só a DNA ficou encarregada das promoções do FIV. Os originais dos documentos comprobatórios das ações ficavam na CBMP, não no BB, em todos os dois períodos.

*O fato de o BB encomendar as ações mas não ser o controlador oficial das mesmas fez com que, nos dois períodos, 2001-2002 e 2003-2004, fossem identificadas, diz a auditoria, “fragilidades no processo e falhas na condução de ações e eventos”, que motivaram mudanças nos controles de uso do fundo. Essas mudanças foram implementadas no segundo semestre de 2004, a partir de 1 de setembro.

*O relatório destaca algumas dessas “fragilidades” e “falhas”. Aqui destacaremos a do controle dos serviços, para saber se as ações de promoção tinham sido feitas de fato. Os auditores procuraram saber se existiam os comprovantes de que as ações de incentivo autorizadas pelo BB no período tinham sido de fato realizadas. **Procuraram os documentos existentes no próprio banco – notas fiscais, faturas, recibos emitidos pelas agências para pagar os serviços e despesas de fornecedores para produzir as ações. Descobriram que, para os dois períodos 2001-2002 e 2003-2004 igualmente, somando-se as ações com falta absoluta de documentos às com falta parcial, tinha-se quase metade dos recursos despendidos.

**Os auditores procuraram então os mesmos documentos na CBMP, que é, por estatuto, a dona dos recursos e a controladora de sua aplicação e dos documentos originais de comprovação da realização dos serviços. A falta de documentação comprobatória foi, então, muito pequena – em proporção aos valores dos gastos autorizados, de 0,2% em 2001, 0,1% em 2002, 0,4% em 2003 e 1% em 2004.

*Dizem ainda os auditores: com as novas normas, em função das mudanças feitas nas formas de controlar o uso do dinheiro do FIV pelo BB, entre janeiro e agosto de 2005 foram executadas sete ações de incentivo, no valor de 10,9 milhões de reais e se pode constatar que, embora ainda precisassem de aprimoramento, as novas regras fixadas pelo banco estavam sendo cumpridas e os “mecanismos de controle” tinham sido aprimorados.
Ou seja: o uso dos recursos do FIV pelo BB foi feito, sob a gestão do petista Henrique Pizzolato, exatamente como tinha sido feito no governo FHC, nos dois anos anteriores à chegada de Pizzolato ao banco. E mais: foi sob a gestão de Pizzolato, em meados de 2004, que as regras para uso e controle dos recursos foram aprimoradas.

Mais reveladora ainda é análise dos apensos em busca das evidências de que os trabalhos de promoção dos cartões Visa vendidos pelo BB foram feitos. E essas evidências são torrenciais. Uma amostra dessas promoções que devem ser do conhecimento de milhares e milhares de brasileiros estão no quadro abaixo.

Em toda a documentação da auditoria existem questionamentos, são apresentados problemas. Mas de detalhes. Não é disso que se tratou no julgamento da AP 470 no entanto. A acusação que se fez e que se pretende impor através do surto do STF é outra coisa. Quer apresentar os 73,8 milhões gastos através da DNA de Valério como uma farsa montada pelo PT com o objetivo de ficar no poder, como diz o ministro Britto, “muito além de um quadriênio quadruplicado”. Essa conclusão é um delírio. As campanhas de promoção não só existiram como deram resultados espetaculares para o BB tendo em vista os objetivos pretendidos. O banco tornou-se o líder nos gastos com cartões Visa no Brasil.

Em 2003, o banco emitiu 5,3 milhões desses cartões, teve um crescimento de cerca de 35% no seu movimento de dinheiro através deles, tornou-se o número um nesse quesito entre os associados da CBMP. No final do ano, 18 de dezembro, às 14h30 horas, em São Paulo, no Itaim Bibi, rua Brigadeiro Faria Lima 3729, segundo andar, sala Platinum, de acordo com ata do encontro, os representantes dos sócios no Conselho de Administração da CBMP se reuniram e aprovaram o plano para o ano seguinte. Faturamento esperado nas transações com os cartões Visa para 2004, 156 bilhões de reais. Dinheiro do FIV, ou seja: recursos para as promoções dos cartões pelos vários bancos associados, 0,10%, ou seja 1 milésimo, desse total: 156 milhões. Parte a ser usada pelo BB, que era, dos 25 sócios da CBMP, o mais empenhado nas promoções: 35 milhões de reais.

Pode-se criticar esse esquema Visanet-BB. O governo está querendo que as taxas cobradas dos estabelecimentos comerciais pelos uso dos cartões sejam reduzidas. Na conta feita no parágrafo anterior, dos 156 bilhões de reais a serem movimentados pelos cartões em 2004, o dinheiro que iria para o esquema Visanet-BB seria de 4% a 6% desse total, ou seja, ficaria entre 6 a 10 bilhões de reais (ou seja, a verba programada para o fundo de incentivos na promoção dos cartões foi pelo menos 40 vezes menor). A procuradoria da República e o ministro Barbosa sabem de tudo isso. Se não o sabem é porque não quiseram saber: da documentação tiraram apenas detalhes, para criar o escândalo no qual estavam interessados.

Fonte
Raimundo Rodrigues Pereira, A vertigem do Supremo, revista Retrato do Brasil. Site: Sul21. WEB: http://sul21.com.br/jornal/2012/10/a-vertigem-do-supremo/

mercredi 17 octobre 2012

Eu sou o meu desafio

Lá atrás, em era antiga, onde a memória se perde nas brumas, o Eterno disse a um sujeito de maus bofes:
"— Por que você está com raiva? Por que anda carrancudo? Se tivesse feito o que é certo, você estaria sorrindo. Mas você agiu mal e, por isso, lehatati está na porta, à sua espera. Ele quer dominá-lo, mas você precisa vencê-lo". (Gênesis 4:6, 7).
As funções e disfunções existenciais do humano, ou seja, a alienação, fazem com que as ações humanas, a partir dos desejos – emoções e sentimentos – levem o ser humano à possibilidade de errar o alvo, lehatati em hebraico, hamartia em grego, e peccatu em latim. Dentro da tradição das escrituras hebraico-judaicas, lehatati é a violação da lei. Mas lehatati é sempre uma ação do coração e não um estado do ser. Já a alienação, esta sim, é um estado da existência e toda a humanidade se encontra nesse estado de disfunção, ou inclinação para fazer o mal, conforme vemos em Gênesis 8.21:

"Eu sei que desde a juventude as pessoas só pensam em coisas más". (Gênesis 8:21).

Assim, lehatati traduz não somente falta moral, mas todas as violações da lei, quer conscientes ou não. E, segundo a tradição judaica, todo ser humano nasce sem lehatati, e a culpa de Hadam recaiu sobre ele e sua família, mas não se estendeu à espécie humana. Apesar disso, todo ser humano é responsável pelo lehatati porque todos temos vontade livre, mas natureza alienada e, por isso, tendemos também para o mal. Por isso, o texto acima citado de Gênesis diz que o coração humano é mau desde a sua juventude. Mas o Eterno, através de sua misericórdia, possibilita ao ser humano a metanóia e o perdão.

O tempo rolou, as estórias antigas foram cantadas, escritas e interpretadas. E um outro sujeito, meio pro rabino, meio pro pensador grego, que pelejava com seu erro trágico, resmungou:

"Eu sei que aquilo que é bom não vive em mim, isto é, na minha natureza humana. Porque, mesmo tendo dentro de mim a vontade de fazer o bem, eu não consigo fazê-lo. Pois não faço o bem que quero, mas justamente o mal que não quero fazer é que eu faço. Mas, se faço o que não quero, já não sou eu quem faz isso, mas a hamartia que vive em mim é que faz. Assim eu sei que o que acontece comigo é isto: quando quero fazer o que é bom, só consigo fazer o que é mau.  Mas vejo uma lei diferente agindo naquilo que faço, uma lei que luta contra aquela que a minha mente aprova. Ela me torna prisioneiro da lei da hamartia que age no meu corpo. Como sou infeliz! Quem me livrará deste corpo que me leva para a morte? Que Deus seja louvado, pois ele fará isso por meio do nosso Senhor Jesus Cristo! Portanto, esta é a minha situação: no meu pensamento eu sirvo à lei de Deus, mas na prática sirvo à lei da hamartia". (Romanos 7:18-21, 23-25).

Hamartía, άμαρτία, é o erro cometido pelo personagem de uma tragédia, que resulta em peripécia, peripéteia. O termo aparece na Poética de Aristóteles e é conhecido como falha aristotélica ou erro trágico. Para Aristóteles, uma tragédia com peripécia, ou tragédia complexa, peplegméne, produz comoção, páthos, e leva o público à catarse, katársis. Na tragédia complexa a peripécia decorre da hamartía, e leva o herói a reconhecer seu erro, anagnórisis. Para Aristóteles, esse erro não decorre da maldade, kakia, nem da perversidade, mokhtería: é erro trágico, o desabar da fortuna na bosta, na desgraça, no infortúnio. Donde, só o herói trágico comete hamartia.
E à maneira grega, o nosso rabino filósofo concluiu:

"Não se amoldem a este século, mas sejam transformados pela renovação da mente, para provarem qual é a boa, perfeita e agradável vontade de Deus". (Romanos 12:2).


Fontes

Filomena Yoshie Hirata, A hamartia aristotélica e a tragédia grega, Universidade de São Paulo. Site: Anais de Filosofia Clássica. WEB: http://www.ifcs.ufrj.br/~afc/2008/FILOMENA.pdf

Jorge Pinheiro, Manual de Teologia Bíblica e Sistemática, São Paulo, Fonte Editorial, 2012, p. 215.

mardi 16 octobre 2012

Resposta a uma amiga

Carta Capital, 16 de outubro de 2012

Resposta a uma amiga, por Cláudio Gonçalves Couto

Recebi de uma amiga querida um questionamento sobre minhas posições políticas recentes. Ao responder-lhe, notei que talvez tenha tido a oportunidade de explicitar alguns pontos que gostaria de tornar públicos. Assim, reproduzo aqui, sem lhe nominar, o que escrevi a essa querida amiga.

Minha cara,

Eu não me considero petista, mas de esquerda.

Acho que o PT cometeu erros sérios e os que erraram devem pagar com isto. Contudo, não aceito essa generalização que tem sido feita, como se todo petista fosse um criminoso, somente por ser petista. Como se bastasse o partido ganhar um governo para a corrupção se alastrar. E, não bastasse isto, como se os que lhe detratam fossem os baluartes da pureza e da honestidade. Pior ainda, quando sabemos que esses outros cometeram exatamente os mesmos erros que o PT cometeu. O que não aceito é essa tentativa maniqueísta de tornar o PT algo equivalente a um câncer da política nacional e da república, o mal a ser evitado, sendo que a alternativa a esse mal seria o PSDB, repositório do que existiria de valores republicanos no país

A coisa fica pior quando quem vocaliza essa posição é um político como José Serra. Um político que nada mais fez nos últimos doze anos de sua vida que não manobrar politicamente para se tornar presidente da República. Até aí, nada de mais. O problema é que, para fazer isto, colocou as instituições em que atuou a seu serviço.

Fez isto com seu partido, que servilmente se curvou a ele; fez isto na Prefeitura, voltou a fazer no Estado e voltou a fazer com seu partido.

Não bastasse, abriu a caixa de pandora da religião na política, disseminando todo tipo de preconceito e hipocrisia. Apresenta-se como um homem que defende valores, mas mente descaradamente. Apresenta-se como o defensor da democracia, mas telefona nas redações dos órgãos de imprensa pedindo a cabeça de jornalistas que lhe tenham feito perguntas incômodas, ou escrito algo que lhe desagradou.

Nesse cenário maniqueísta que se montou, para piorar, Serra e, neste caso, o PSDB, têm implantado políticas antipobre. O higienismo na cidade de São Paulo e no governo do Estado têm esse condão: o tratamento dispensado à cracolândia, a truculência do Pinheirinho, a política de segurança homicida (“quem não reagiu sobreviveu”), a omissão nos incêndios em favelas, as obras malufistas das marginais etc..

Diante disto, prefiro mesmo os governos do PT. Considero um imenso avanço as políticas sociais do governo federal nos últimos anos, a política de educação que o Haddad implementou quando ministro da Educação, o Bolsa Família, a redução da desigualdade de renda e a ascensão econômica de uma imensa parcela da população – que, a meu ver, é erradamente chamada de “classe média”.

Ou seja, como o PT e seus governos são muito mais do que apenas mensalão, eu, mesmo sem me considerar petista, prefiro essa alternativa na eleição. É só isto.

E, como consequência, vejo-me na obrigação de apontar o dedo e combater uma tentativa hipócrita e autoritária de transformar esse partido e seus membros numa cambada de bandidos. Não só porque há muita gente correta no PT (assim como em outros partidos, e no PSDB em particular), mas porque ao se fazer isto, joga-se por terra a necessidade de diferenciarem-se as políticas e suas consequências para o país, em particular para os mais pobres.

Noto que essa tentativa de desqualificação hipócrita (ingenuidade não se aplica aqui) é mais frequente entre as camadas médias escolarizadas e de rendas mais altas. Eu me incluo nesse segmento, convivo com ele e noto como procede. Na realidade, noto que simplesmente usa o pretexto do mensalão para fazer o que realmente quer fazer, sem ter de admiti-lo: derivar à direita e optar por políticas antipobre.

Contra as cotas, defende-se o “mérito”, como se o “mérito” emergisse no vácuo, sem que importassem as diferenças sociais de oportunidade. Contra o Bolsa Família, defende-se o “trabalho”, como se pobres não trabalhassem e, ainda assim, sem obter o mínimo para uma vida decente.

Eu não me coloco entre aqueles que veem no julgamento do mensalão uma conspiração das elites. Considero que o STF cumpre seu papel, a despeito do que possam ser certos excessos retóricos deste ou daquele juiz. Não vejo isto como um grande problema, pois creio que faz parte do processo de amadurecimento institucional, que de resto vem acontecendo. Como outros, considero que o julgamento é um potencial avanço institucional, mas apenas terei certeza disto se o mesmo critério por parte do STF for seguido no julgamento do mensalão tucano, aquele de Minas Gerais. Afinal, parece-me que as leis devem valer igualmente para todos. Da mesma forma, espero que a vigilância dos órgãos de imprensa seja a mesma no próximo julgamento. Quanto às nossas classes médias escolarizadas de altas rendas, eu não tenho a ilusão de que elas se comportarão diante do julgamento do mensalão tucano da mesma forma como vêm se comportando em relação ao mensalão petista. E isto, porque o que realmente sensibiliza a muitos é aproveitar a oportunidade de, justamente, condenar quem cometeu crimes para, injustamente, utilizar as condenações como forma de desqualificar posições políticas, políticas públicas e pessoas.

Estas são as razões que me levam a tomar partido da forma como tenho tomado nos últimos tempos. A razão, parece-me, é que é necessário desta vez defender a democracia. Não da forma como o fizeram os neoudenistas hipócritas à época da eleição de 2010, bradando contra o falacioso risco de “mexicanização”, ou contra o populismo inexistente. O risco à democracia agora é o de pintar um mundo em branco e preto, em que tudo de mal se imputa a um partido, do qual nada de bom se pode tirar.

Para finalizar, é isto que leva certos intelectuais a posições de lastimável empáfia, como a de se sentirem no direito de conclamar a um líder político que se aposente da vida pública. Como se fosse lícito conclamar qualquer cidadão a abdicar de sua legítima condição de partícipe de seu tempo. Mais ainda, de um cidadão que, mesmo tendo cometido erros, construiu instituições, melhorou a vida dos mais pobres e jamais ligou em redações para pedir a cabeça de jornalistas.

Cláudio Gonçalves Couto é Cientista Político e professor do Curso de Administração Pública da FGV-SP. Este texto foi publicado originalmente no seu Facebook e foi reproduzido no site da Revista Fórum com a sua autorização.

jeudi 11 octobre 2012

Vaicrá

Vaicrá
20 DE MARÇO DE 2012 BY CONGREGAÇÃO ISRAELITA PAULISTA
Rabino Ruben Sternschein


Existe algo resgatável e relevante da prática dos sacrifícios para o homem do século 21? Antigamente, ao invés de rezar, a forma de se comunicar com Deus era através de oferendas que incluíam vegetais, animais e em alguns povos até pessoas, como mulheres bonitas ou filhos primogênitos.

A Torá mostra a proibição clara e contundente dos sacrifícios humanos, mas ao mesmo tempo a regulamentação que permite, sim, os outros sacrifícios. Sabemos que essa prática continuou por séculos até a destruição do Segundo Templo no ano 70 e.c. A partir desse momento as rezas substituíram totalmente os rituais praticados outrora no Templo.

Todavia, cabe a nós nos perguntarmos se existe naquela prática algo relevante para nós. A pergunta é importante e necessária especialmente no nosso meio liberal, que não se conforma em aceitar simplesmente o fato de algo estar escrito ou ter sido praticado. Por outro lado, tampouco nos conformamos com uma atitude de crítica arrogante que atribua aos antepassados simplesmente a barbárie. Por sermos respeitosos da tradição religiosa, não podemos apenas dizer: “Eles eram primitivos e não tinham alcançado nosso grau de humanidade e espiritualidade”. A pergunta da relevância dos sacrifícios surge especialmente esta semana, na qual começamos de novo a ler o livro Vaicrá, na parashá de mesmo nome, que detalha em longos capítulos o ritual das oferendas animais e vegetais.

Iremos sugerir algumas respostas baseadas na língua, supondo que a linguagem revela sempre valores e idéias.

A palavra ‘corbán’, sacrifício ou oferenda ritual, inclui a raiz da palavra ‘aproximar’, da palavra ‘entranha’ e também da palavra ‘parente’. A oferenda também é dita em hebraico através da palavra usada para esforço ou sacrifício.

Sabemos que a prática antiga exigia escolher cautelosamente o que ia se sacrificar. Em alguns casos, deveria ser estritamente da propriedade de quem o oferecia, não poderia ser algo encontrado ou recebido de presente ou uma sobra desnecessária.

Por outro lado, o aspecto principal do ritual consistia em DAR. A forma de se comunicar com a Divindade e com a própria religiosidade era dando algo de si.

Talvez a prática antiga junto com a expressão idiomática queiram nos dizer que quando empenhamos nosso sincero esforço para dar o máximo de nós a ponto de expor algo de nossa mais profunda intimidade, conseguimos aproximar e nos aproximar do mais elevado.

Shabat shalom,
Rabino Ruben Sternschein

mardi 9 octobre 2012

Homo non naturalis

Por Jorge Pinheiro, de Chapada dos Guimarães, Mato Grosso

Caverna do Jari

Uma viagem ao coração da América Latina onde, no atrás de muitos atrás, o fogo jorrou de seu interior para, depois, ser moldada pelo água e pelo vento. Meia-noite. O tempo está agradável e aproveito para comer uma bagunça dupla aqui na esquina das avenidas Marechal Deodoro com Getúlio Vargas. A fome e a ousadia turística me trouxeram até aqui, nesse início da madrugada cuiabana. Algumas horas se passaram e estou a caminho da Chapada. Vou de rubi, sete da manhã, a partir da rodoviária.


Como a vida, o que parece nem sempre aparece, não é, pois. Rubi não, mas viação rápido chapadense pode ser. Até aqui a família chegou, por isso também é terra do Emanuel Pinheiro. Os pinheiros são pinophyta, mas a família é pinaceae. São perenes e resinosos. Tudo casca grossa, escamoso. Mas as novas gerações são bonitas, produzidos em inflorescências regulares, em espiral, anel de brotos, apertado. Desses pinheiros quero falar não. Mas daqueles que enfrentaram o tribunal da Inquisição, em 1536, junto aos demais infectos de sangue, árabes, negros, mestiços e ciganos, que o Ofício resolveu expurgar, e aos de conduta reprovável, feiticeiros e sexuais transviados. Coitados dos pinheiros, perenes, resinosos, casca grossa, escamosos, mas, sobretudo, matadores de aluguel do homem de Nazaré. E durma-se... E porque cristão-novo não fica velho, ó Manuel, sou possuído pelo desvario. Mas quem entende de pinheiro é o Murillo, patriarca dos cubas cariocas.

É, até aqui a família chegou – do paraíso ao paraíso. Qual é mais paraíso? O paulistano ou o dos Guimarães? Sem dublê, em curvas e imagens, piso no freio porque a pista não tem acostamento. Há homens, máquinas e a Mitsubishi Motors a falar de touro. A placa anuncia o Coxipó do ouro, comedourinho do gado lá das bandeiras, cheio de colonialidades e rusticidades, ao lado das ruínas do arsenal de pólvora.

Verde que te quiero verde. / Verde viento. Verdes ramas. / El barco sobre la mar / y el caballo en la montaña. / Con la sombra en la cintura / ella sueña en su baranda, / verde carne, pelo verde, / con ojos de fría plata. / Verde que te quiero verde. / Bajo la luna gitana, / las cosas le están mirando / y ella no puede mirarlas. (Federico Garcia Lorca, Romance sonâmbulo). 


Um lugar – pomposamente apelidado de centro geodésico da América Latina – foi marcado pelo pessoal do general Rondon, em 1909, no campo do Ourique, onde se enforcava os contrários e se matava touros por esporte. É a atual Praça Moreira Cabral, para os cuiabanos do tempo presente, ali onde fica a Assembléia Legislativa de Mato Grosso. Mas o mirante fica mesmo na Chapada. Lá embaixo, a planície pantaneira, e ao longe o sol que vai se espreguiçando até cair de sono. Natureza para paulistano nenhum botar defeito.

Mas a caverna Aroe Jari e a Lagoa Azul ninguém imagina. Fazem parte das formações do Alto Garças e Vila Maria, na bacia do Paraná, na borda noroeste. A caverna é uma gruta de arenito de 1.550 metros de extensão, onde o homo naturalis marcou as paredes. É um cosmo pequeno do cerrado e pisca para uma percorrência inteira desse sistema do Centro-Oeste. Ver, caminhar, mas não grafitar, por favor, são momentos hippies, cheios de significações que só a Lucy no céu com diamantes explica.

Sou paulistano e isso é profissão de fé, porque considero o apóstolo e a cidade gentes finas. Com todo desrespeito à uniformidade imposta, grito que é na cidade diversa que realizo a polissemia da graça multiforme. Como a carne dos antigos tropeiros, estou na salgadeira, não sou ecologenco, embora respeite a fé. Sou desnaturado, não abraço árvore, nem chamo urubu de meu louro. Sou filho da máquina, respiro nitrogênio e vou viver 300 anos. Ciborgue. Homo non naturalis, constructo sapiens.

Compadre, quiero cambiar / mi caballo por su casa, / mi montura por su espejo, / mi cuchillo por su manta. / Compadre, vengo sangrando, / desde los montes de Cabra. / Si yo pudiera, mocito, / ese trato se cerraba. / Pero yo ya no soy yo, / ni mi casa es ya mi casa. / Compadre, quiero morir / decentemente en mi cama. / De acero, si puede ser, / con las sábanas de holanda. 


Meu guia, o Zé, amacia o quilômetro longo. Homem de muitas andanças é engenhoso no falar pousado. Foi ele quem me contou que aqui as festas começaram longe, lá com os franciscanos de Assis, e vieram chegando. Invadiram os corações dos índios e dos negros. Cantigas e toadas viraram folclore, atravessaram os séculos até chegar ao colégio Buriti, usina de açúcar, a deixar para trás o morro de são Jerônimo. A matéria-prima foi a pedra canga, presente nas construções e nos caminhos que levam ao portal do Céu. Mas se há do céu, do inferno deve haver. Por isso, disse o meu guia, vamos trilhar em direção ao primeiro portal, lugar de descanso no meio do andar longo na viagem para Cuiabá. Mas quem caminha sabe ser a morte companheira de viagem, assim somos meio nobres, meio escravos, todos aventureiros, sem honra para levar as armas e os brasões assinalados. E quando levantamos a arma, para desferir o golpe mortal, o outro portal faz-se presente. E no gesto certo, o de devolvê-la à bainha, faz-se presente o portal do céu. Este é o descanso no meio do caminho, a paz necessária à viagem. Mas ambos sempre estão diante de nós, dentro de nós.

No atrás de muitos atrás, a terra jorrou o seu de dentro, metamórficas, sedimentares, vulcanizadas. História geológica do pré-cambriano e do cenozóico, mas a invasão marinha foi mais forte. Houve uma, houve duas, inundou, infiltrou a esponja do maciço. Hoje, embaixo do pé que anda há caminhos eternos de água, que navegam fora dos olhos pelas terras guaranis.

¿No ves la herida que tengo / desde el pecho a la garganta? / Trescientas rosas morenas / lleva tu pechera blanca. / Tu sangre rezuma y huele / alrededor de tu faja. / Pero yo ya no soy yo, / ni mi casa es ya mi casa. / Dejadme subir al menos / hasta las altas barandas, / dejadme subir, dejadme, / hasta las verdes barandas. / Barandales de la luna / por donde retumba el agua. 


Ficam para trás as cachoeiras, cavernas, lagoas, trilhas, sítios arqueológicos, paleontológicos e os artigiani da Praça Dom Wunibaldo. Volto para o habitat, paraíso sem avatares de Vixnu, eu ciberantropo que de leme na mão faço da máquina irmão pós-natural, consciente de que constructo sapiens também é gente.

 7/2/2010
Fonte: ViaPolítica/O autor
E-mail: jorge.sanctus@gmail.com

lundi 8 octobre 2012

Gramsci e Tillich: aproximações e assimetrias

Jorge Pinheiro

Publicado originalmente na CORRELATIO, revista eletrônica da Sociedade Paul Tillich do Brasil e UMESP

Resumo

Antonio Gramsci e Paul Tillich têm coisas em comum. Ambos foram militantes políticos e fundamentaram parte de suas concepções em Karl Marx. Por isso, consideramos importante ver que aproximações e assimetrias existem em suas elaborações teóricas. Cristianismo, intelectualidade, socialismo e democracia são temas que atravessam seus estudos, e que aqui vamos confrontar. Desejamos, dessa maneira, acrescentar elementos novos numa discussão cada vez mais acirrada em nossa América Latina: ainda é possível o socialismo?

Palavras-chave: Paul Tillich, Antonio Gramsci, socialismo, democracia, América latina.

Gramsci and Tillich: Approximations and Asymmetries

Abstract

Antonio Gramsci and Paul Tillich have similar thoughts. Both of them were political activists and based part of their conceptions in Karl Marx. Therefore, we consider it is important to see that there are approximations and asymmetries in their theoretical elaborations. Subjects such as Christianity, intellectuals, socialism and democracy are presents throughout their studies, and that is what this paper discusses. In that way, we are adding new elements at the increasingly fierce debate in Latin America, namely: is the socialism still possible?

Key-words: Paul Tillich, Antonio Gramsci, socialism, democracy, Latin America.

“A democracia não acredita na harmonia natural, mas crê possível submeter a natureza à razão. Ela crê numa harmonia metafísica, que se instaura necessariamente do processo histórico”. Paul Tillich, “Écrits contre les nazis” [1]

Introdução

Nos últimos anos, como fruto da crise da esquerda mundial, mas também como fruto da instalação de governos nacionalistas no continente, renasceu a busca pela reflexão de pensadores marxianos. Assim, em várias universidades brasileiras, Antonio Gramsci, por exemplo, passou a ser estudado como nunca fora antes.

Ora, a busca pelo pensamento de Gramsci situa-se nesse contexto de garimpagem do marxismo marginal, dito também não ortodoxo. Aqui, nos interessa pensar Gramsci em correlação com outro socialista, nada ortodoxo, Paul Tillich. Aliás, o pensamento socialista de Tillich é praticamente desconhecido no Brasil, apesar de ter trabalhado quase duas décadas sobre questões políticas analisadas a partir do que ele chamou de socialismo religioso.
Paul Tillich
Gostaríamos de começar essa discussão com uma idéia exposta por Tillich, de que o socialismo é movimento profético de um mundo autônomo e racional, que a substância profética se exprime de maneira racional tanto no conhecimento como na ação, e que, por isso, a relação entre profecia e racionalidade é essencial no socialismo. [2]

Como a linguagem tillichiana é teológica, ao lê-lo nos vemos na obrigação de traduzi-lo. Assim, o que significariam as expressões profético e profecia? Tillich parte de uma compreensão peculiar do profetismo vétero-testamentário. Vê nele, tanto um clamor, como uma ação, um movimento em prol da justiça, que daria conteúdo, seria a essência da própria religião de Israel e, por extensão, do cristianismo e da Reforma protestante. Por isso, movimento profético é movimento de crítica social, que na modernidade levou à racionalidade da autonomia. Mas, para Tillich, socialismo implica em correlação permanente e necessária, ou seja, crítica social e racionalidade na autonomia. Assim colocada a questão, vemos que Tillich se afasta das correntes socialistas que repousam exclusivamente no racionalismo, em especial do bolchevismo, como das correntes que vêem a possibilidade de uma expansão crescente da autonomia, via democracia, ou seja, em especial da compreensão gramsciana. É essa preocupação de Tillich em correlacionar razão e autonomia que possibilita esse diálogo crítico com Gramsci.
Antonio Gramsci
De Gramsci podemos dizer que recriou a linguagem da tradição marxiana e codificou teoricamente seus conceitos, ao falar estado regulado, filosofia da práxis, grupo social, hegemonia, sociedade civil, estado ampliado, intelectual orgânico e moderno Príncipe. Mas, neste texto, nos interessa analisar suas idéias sobre o cristianismo, o intelectual e a democracia.

O desafio cristão

Marx partiu do fato de que o pensamento judaico/cristão torna o ser humano estranho a si mesmo e desdobra o mundo em um mundo imaginário. Por isso, considerava que o trabalho do teórico consiste em dissolver o imaginário judaico/cristão em sua base terrena. Vai dizer, então, que Feuerbach não percebe que, findo o trabalho da crítica da herança judaico/cristã, o principal ainda está por fazer. O fato de que a base terrena se separe de si mesma e se estabeleça nas nuvens, como reino independente, só pode ser explicado pela dissociação interna e pela contradição dessa base terrena consigo mesma.

O que deve, portanto, ser feito antes de qualquer coisa é compreendê-la em sua contradição e depois remover essa contradição. Assim, por exemplo, após descobrir que a família terrena é o segredo da Sagrada Família, é a família terrena que deve ser criticada teoricamente e revolucionada. Marx explica a fé cristã por meio das contradições da sociedade humana e de suas dissociações, que induzem o ser humano a projetar fora do mundo, em um paraíso, a realidade na qual desejaria viver. Mas como afirma Radice, [3] na quarta tese sobre Feuerbach, Marx afirma de modo explícito que a forma judaico/cristã reflete um conteúdo histórico. Por estar impotente, o ser humano imagina uma potência divina, por estar abandonado cria uma providência.

Gramsci verá o pensamento de Marx como herdeiro de dois movimentos culturais, a Reforma protestante e a Revolução francesa:

"A filosofia da práxis pressupõe todo este passado cultural, o Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a revolução francesa, o liberalismo laico e o historicismo; em suma, o que está na base de toda concepção moderna da vida. A filosofia da práxis é o coroamento de todo movimento de reforma intelectual e moral, dialetizado no contraste entre cultura popular e alta cultura. Ela corresponde ao nexo Reforma protestante mais Revolução francesa: trata-se de uma filosofia que é também uma política e uma política que é também uma filosofia". [4]

E por isso dirá que "a religião cristã (...) foi e continua a ser uma necessidade, uma forma necessária de racionalidade do mundo e da vida". [5]

Marx pode, então, ser entendido como desenvolvimento que se dá a partir de três correntes da Reforma protestante: a luterana que legou Hegel, a calvinista que legou Ricardo e a economia clássica, e a huguenote que criou o jacobinismo.

"A estas três fontes originais, Gramsci tenta ligar a tradição cultural italiana, principalmente Maquiavel, como precursor do jacobinismo, e Croce como desenvolvimento historicista da filosofia alemã. O marxismo torna-se assim um ponto de convergência destas três correntes sob a forma de crítica radical". [6]

Dessa forma, para Gramsci, a Reforma foi não somente uma reforma no nível da economia, filosofia e política, mas também uma revolução cultural, no sentido de que procurou forjar uma nova humanidade. Para Gramsci a consciência religiosa cristã, que se traduziu em revolução cultural no século XVI, teve um caráter de suma importância na construção do pensamento contemporâneo. Ou, nas suas palavras: "da primitiva rusticidade intelectual do homem da Reforma (leia-se Lutero) decorreu a filosofia clássica alemã e o vasto movimento cultural de onde nasceu o mundo moderno". [7]

Podemos dizer que Gramsci, no que se refere ao cristianismo, faz uma ponte entre Émile Durkheim e Max Weber. [8] Durkheim considera a religião a partir da idéia de vínculo social. A religião constituiria uma comunidade moral na qual os adeptos comungam num mesmo ideal. A palavra chave aí é solidariedade. E a solidariedade leva a uma memória coletiva, que organiza lembranças, ritualiza a crença. Os estudos de Durkheim sobre as sociedades têm o intuito de dar rumo à sua análise na qual a divisão do trabalho foi anteriormente a preocupação central. Mais tarde, o diálogo com a antropologia será privilegiado e o universo da religião será pensado como consciência coletiva, abordagem que ele estende ao entendimento da nação, enquanto todo no qual os indivíduos partilham a mesma memória coletiva.

Weber trabalha em sentido diferente. O cristianismo é instituição, é igreja, que atua como empresa de salvação das almas. É necessário, então, conhecer os meandros de sua doutrina, a organização de seu clero e a disputa entre visões e interesses distintos no quadro das crenças religiosas. Daí a atenção que dá ao pensamento divergente, as rupturas no interior de uma mesma ordem ideológica, e sua relação com o poder de Estado.

Assim, Durkheim busca o que une e Weber realça o que separa. Mas Gramsci está interessado nas duas dimensões, no que une e no que divide. O cristianismo, para ele, é uma concepção de mundo que elabora versões sobre a realidade, o que possibilita aos fiéis atuar segundo determinada ética, mas também os une no interior da mesma comunidade. Essa idéia atravessa as páginas dos Cadernos do cárcere, sintetizada na afirmação de que o catolicismo é o "intelectual orgânico" da Idade Média.

A intelectualidade orgânica

Partindo de uma leitura do contexto europeu medieval, Gramsci estuda o papel dos intelectuais católicos: seu cosmopolitismo, incentivado pelo poder de Roma, em relação à fragmentação do poder feudal e sua intolerância diante do pensamento divergente que ameaça a unidade da Igreja. Mas, na qualidade de orgânico, o catolicismo funcionaria como cimento cultural entre diferentes setores de uma sociedade hierárquica. Assim, o catolicismo integra o que se encontra separado por lutas de interesses e discordâncias doutrinárias. O catolicismo, no entanto, é parte de uma superestrutura mais ampla, a ideologia. É uma cosmovisão, tem valor cognitivo, interpreta o mundo ético, orienta a ação, e constrói uma moral que baliza a solidariedade dos fiéis. As ideologias possuem potencialidades diferentes destas, por isso Gramsci faz distinção entre filosofia e cristianismo católico, e entre cristianismo católico e senso comum, mas, ainda assim, todas as ideologias podem ser pensadas a partir dessa mesma matriz teórica.

Dessa maneira, as análises de Gramsci rompem com a tradição marxiana, já que a ideologia, mas do que falsa consciência é entendida como elemento cognitivo, concepção de mundo que brota da vida social. Para ele, como concepção de mundo, o cristianismo não seria alienante, mas deve ser entendido como ideologia presente na história. Exemplo disso foi o catolicismo medieval, que possuía valor positivo, era orgânico, e construiu vínculo social entre as classes e os grupos sociais. Mas, no correr da Idade Média perdeu essa positividade, ao perder sua função de solidariedade, e passou a atuar como força reativa diante das mudanças.

E se Gramsci se mantém marxiano no que se refere à crítica da transcendência e, por extensão, da natureza humana, a conclusão que se impõe é que não há sociedade sem ideologia. Gramsci prepara, assim, o caminho para outros teóricos do pensamento marxiano, como Althusser e seu "animal ideológico", e Lévy-Strauss e seu "animal simbólico".

Mas Tillich teve uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê o movimento de massas em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Há uma divergência entre os dois pensadores: a crítica intelectual não se limita ao intelectual orgânico, é um processo maior que gera a massa orgânica, com dupla ação: de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite.

Na perspectiva tillichiana, a passagem da heteronomia à autonomia se deu através de ciclos que atravessaram épocas. Assim, os movimentos dinâmicos das massas estão presentes nos movimentos religiosos do jovem cristianismo, no movimento político da migração dos povos, no movimento religioso da Reforma, no movimento anabatista e no movimento socialista. Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, estão presentes em diferentes esferas da cultura, mas sempre como movimentos de libertação: as massas dinâmicas são parteiras de escravos, de povos, de trabalhadores.

Por isso, segundo Tillich, não podemos ver o pensamento de Marx como algo que já se esgotou, se nos propomos a fazer a crítica profética, pois o socialismo não é justificativa ideológica das democracias, nem idealismo progressivo ou sistema de harmonia autônoma. O socialismo dentro do espírito da crítica profética e com os métodos do marxismo transcende o mundo. [9] Mas até que ponto a metodologia marxiana e uma conquista do poder político poderiam dar sentido à vida? Só se o socialismo compreender que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano. [10] O socialismo, para Tillich, deve entender que as forças demoníacas da injustiça e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica. O socialismo precisa compreender que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano. 

Como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada do homem na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (Entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do Espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista. [11] Por isso, considera que a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida. De todas as maneiras, para Tillich e para Gramsci há uma busca comum de respostas entre aquele que encarna o espírito crítico e a ação consciente do intelectual orgânico. Ou como diz Gramsci: 

Se a relação entre intelectuais e povo/nação, entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e governados, é dada por uma adesão orgânica, na qual o sentimento paixão torna-se compreensão e, portanto, saber, não mecanicamente, mas de forma viva, é somente então que a relação é de representação e que se produz o intercâmbio de elementos individuais entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes, isto é: que se realiza a vida conjunta que, só ela, é a vida social, cria-se um bloco histórico. [12]

Para Gramsci, o intelectual quando representa determinada comunidade têm função superestrutural, ou seja, cultural, mas, apesar de sua organicidade, precisa exercer autonomia em relação às pressões sociais que sofre. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder.

A partir de Tillich e Gramsci podemos dizer que o princípio da crítica intelectual é expressão humana e verbal do incondicionado, e resgata a tradição do profetismo bíblico, que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética. O profetismo era ao mesmo tempo revolucionário, mesmo quando voltado para o passado, e conservador, mesmo quando impulsionado pela paixão do porvir. Nada fazia sem invocar a tradição, no entanto, sua mensagem eram os novos tempos. Os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos pareciam ter algo em comum: uma atitude realista. A pregação do futuro não constituía o essencial de seus clamores; era antes, o fruto e o resultado final de um conhecimento aprofundado no mundo adjacente, da atualidade e do passado. Ora, essa função profética está presente na compreensão crítica de Gramsci e de Tillich do intelectual orgânico.

Mas, não podemos esquecer que para Tillich há limites para a ação do intelectual, pois a razão não é global. Ao contrário, cada criação do espírito é necessariamente afetada pelos limites da situação que a viu nascer. O espírito está sempre ligado a uma classe. No espírito está implícita uma situação particular de luta, de dominação ou de opressão, que conforma a própria consciência. Entendido assim, o espírito não é universalmente o mesmo em cada pessoa, exprime um ser social particular. A passagem à cultura não se faz simplesmente pela transmissão de bens culturais universais, mas pela formação inculcada por uma sociedade e uma situação de lutas determinadas, em meio a obras que exprimem ou exprimiram no passado esta possibilidade humana particular. [13]

Numa leitura cristã protestante, Tillich considerou o socialismo produto da evolução espiritual e econômica, que preparou e se impõe com a Renascença, a Reforma e o surgimento do capitalismo. Visão compartida por Gramsci. Assim, o socialismo surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média, sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos, e só pode ser compreendido a partir desta evolução: sua permanência está ligada a esse desenvolvimento. Mas não devemos esquecer, porém, que foi do interior do cristianismo que brotaram as idéias socialistas. Para a construção de seu pensamento, Gramsci foge das construções ontológicas, e analisa a sociedade como conjunto de forças, imersas na história e marcada por interesses diversos. Podemos ver isso quando em carta à sua cunhada Tatiana Schucht. de dezembro de 1931, expõe seu conceito de Estado ampliado: 

Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção e a economia a um dado momento); e não como equilíbrio entre a sociedade política e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercida através de organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.). [14]

Democracia e socialismo

Ora, em geopolítica, hegemonia significa a supremacia de uma nação sobre outras, seja por sua presença militar, de coerção, seja pela presença política e cultural. Mas na política, o conceito formulado por Gramsci descreve a dominação ideológica de uma classe sobre outra, no caso da burguesia sobre os trabalhadores ou proletários.

Em Gramsci não é possível o domínio bruto de uma classe sobre as demais, a não ser nas ditaduras, ou seja, no Estado-coerção. Mas uma classe dominante para ser dirigente deve articular um bloco de alianças e obter o consenso passivo das classes e camadas dirigidas. Nessa busca de alianças, necessárias, a classe dominante sacrifica parte dos seus interesses materiais imediatos, vai além do horizonte corporativo, com a finalidade de construir uma hegemonia ética e política.

Ao estudar os mecanismos de construção desta hegemonia, Gramsci chega a um conceito fundamental na sua teoria política, a saber, o conceito de Estado ampliado. O Estado moderno na Europa analisada por Gramsci não seria, para ele, apenas instrumento de força a serviço da classe dominante, mas força revestida de consenso, ou seja, combinaria coerção e hegemonia. O Estado ampliado pode, então, ser entendido como sociedade política mais sociedade civil. E, nas sociedades de tipo ocidental, a hegemonia, que se decide nas inúmeras instâncias e mediações da sociedade civil, não pode ser ignorada pelos grupos sociais subalternos que aspiram a modificar sua condição e a dirigir o conjunto da sociedade.

O sentido de progresso civilizatório que a teoria gramsciana implica, reside no fato de que todo o movimento deve acontecer no sentido de uma absorção do Estado político pela sociedade civil, com o predomínio crescente de elementos de autogoverno e autoconsciência. A partir dessa teorização, Gramsci formula nos Cadernos do cárcere uma crítica ao stalinismo, a partir dos traços de hipertrofia do Estado soviético, que chama de estatolatria, considerando que tal estado de ditadura sem hegemonia não subsistiria por muito tempo.

Assim o Estado se compõe de dois segmentos distintos, porém atuando com o mesmo objetivo, que é o de manter e reproduzir a dominação da classe hegemônica: a sociedade política, estado-coerção, a qual é formada pelos mecanismos que garantam o monopólio da força pela classe dominante, burocracia executiva e policial-militar, e a sociedade civil, formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias, composta pelo sistema escolar, Igreja, sindicatos, partidos políticos, organizações profissionais, organizações culturais: meios de comunicação e de massa.

E aqui merecem destaque os meios de comunicação, pois para sua época estavam ainda em sua fase embrionária, e a televisão nem sequer fazia parte dos projetos futuros. Isto só seria possível no início da década de 1950. É exatamente através dos meios de comunicação modernos, que se dá a canalização da direção intelectual e moral, difundindo as ideologias da classe hegemônica vigente.

Assim, o Estado é a sociedade política gramsciana. E esta sociedade civil representa a nova determinação apresentada por Gramsci. Esta sociedade civil assume crescente dimensão no começo do século vinte, com os partidos de massa, sindicatos de trabalhadores e outras formas de organizações sociais. É após sua evolução histórica que a sociedade civil pôde ser capturada teoricamente. Antes disso, o estado-coerção era muito superior em sua base material para se permitir tal percepção.

O que chama a atenção no modelo do Estado ampliado, desde o Leviatã de Hobbes até Marx, é o sentido unitário do Estado. Ou seja, até Marx, o Estado era entendido como algo diferente da sociedade civil, que seria extinto quando se extinguisse a divisão de classes dentro da sociedade, uma vez que era esta divisão que produzia a necessidade do Estado.

Em Gramsci, porém, quando agrega a sociedade civil ao Estado-coerção, nada fica de fora do Estado. Este todo, entretanto, não é homogêneo, é rico em contradições e é mantido pelo tecido hegemônico que a cada momento histórico é recriado em processo permanente de renovação.

Assim, a luta pela construção de uma sociedade socialista, torna-se mais complexa e difícil do que imaginava Marx. Não basta ser classe dominante, tem que ser também classe hegemônica, dirigente. Desta forma, o campo da luta entre as classes se amplia. E a democracia necessária ao socialismo será construída pelo bloco histórico hegemônico. Neste momento, a sociedade civil terá atingido uma base material superior a base material do Estado-coerção, atingindo o que Gramsci chama de sociedade regulada.

Com a gradativa absorção da sociedade política pela sociedade civil, que atua através dos seus aparelhos de hegemonia, o estado-coerção será substituído pelo estado-ético. E esta figura remanescente do estado-coerção, torna mais factível o modelo socialista e menos utópico em relação ao que planejara Marx.

Nesta concepção de Estado, as democracias ocidentais estão próximas do socialismo. Mas fica uma questão: se a supremacia da sociedade civil se dará pelo consenso contra a coerção, onde fica o conceito de luta de classes, momento celular do pensamento marxiano?

Na verdade, para Gramsci a extinção da coerção do estado se dará pela absorção deste pelo estado-ético, ou seja, pela sociedade civil. Esta sociedade civil está inserida no estado ampliado, e, por isso, não se pode falar de extinção do estado, mas de uma reorganização do estado onde um de seus componentes fica atrofiado por disfunção ou necessidade, já que os conflitos passaram a ser administrados pela base material do consenso.

Há, porém, dois níveis superestruturais nas sociedades democráticas: o estado ampliado, que é a sociedade civil, ou o conjunto dos aparelhos privados de hegemonia; e a sociedade política, ou o estado no sentido restrito do termo, composto pelos organismos de coerção do aparelho burocrático-militar de dominação política.

Nesse espaço a sociedade civil como o espaço do domínio da ideologia, portador material da hegemonia, encontra a possibilidade de legitimidade, de consenso, através dos aparelhos privados de hegemonia que propagam valores ideológicos.

Assim, o conceito de estado ampliado procura apreender a configuração de forças sociais e políticas resultantes dos estados ocidentais do século vinte, idéia que confronta a proposta de Trotsky de revolução permanente a partir da concepção de hegemonia civil. Tal proposta-conceito parte da idéia de guerra de posição, que exige uma frente de combate no campo cultural, unida às frentes econômicas e políticas para a conquista da hegemonia pelas classes subalternas. A fórmula “hegemonia civil” propõe a participação das maiorias sociais nos aparelhos privados de hegemonia (sindicatos, partidos, escolas, igrejas, imprensa), que constituem as trincheiras de luta para obter posições de direção no governo da sociedade.

A proposta de extinção do estado, no entanto, nunca é plena, pois sempre restará o governo para cuidar da sociedade civil. É claro que se entendermos assim podemos dizer que na distinção de função entre as pessoas que governam e as que vivem a vida da sociedade de consenso está presente ainda a dominação entre as classes e, portanto, os restos da coerção do Estado se farão presentes.

Em Gramsci está presente uma utopia que atravessou todo pensamento socialista: sonhar com o bom selvagem de Rousseau, em oposição ao homem é o lobo do homem de Hobbes. Esse Estado ético é uma idealização do ser humano, que poderia viabilizar a construção de uma sociedade ética, igualitária e justa.

Mas, mesmo questionando Gramsci, podemos utilizar seus conceitos de estado ampliado e de hegemonia civil como estruturas de pensamento válidas para a análise social, não como proposta da utopia socialista, mas como ferramenta para delimitar e compreender o desenvolvimento das sociedades ocidentais contemporâneas, principalmente aquelas que se propõem democráticas.

Conclusão

Entendemos, então, porque Tillich diz que embora o socialismo e o proletariado estejam intimamente ligados pode existir tensões entre o momento universal e o momento particular. O momento universal pode formular exigências que ameaçam absorver o momento particular. O socialismo se tornará, então, uma idéia geral, desprovida de raízes sociais e perderá sua força histórica. Este é o perigo de um socialismo de intelectuais, que o proletariado sempre combateu com razão. Esse perigo provém da situação burguesa e de seu pensamento político particular, que procura elaborar uma ordem social futura fundada sobre a justiça, deixando de lado a situação proletária real.[15] Sejam quais forem o sentido e o valor que se atribua a esta tentativa, ela não será socialista. A luta contra o socialismo utópico se apóia sobre a ligação indissolúvel que Marx viu entre socialismo e proletariado, que não pode ser quebrada por essa harmonia metafísica proposta pela globalidade burguesa.

Para Paul Tillich existe na esfera política uma relação entre razão e autonomia. Toda estrutura política pressupõe poder e um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da razão política. [16] Assim, cristianismo e política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Cristianismo e política, no mundo ocidental, estão imbricados, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia. [17] Tal compreensão da realidade ocidental no pós-guerra levou Tillich a se debruçar sobre projetos que tiveram início ainda na sua fase alemã, como a sua reflexão sobre a cultura. Mas a maioria de seus companheiros, que esperavam a realização do socialismo, diante do visível abandono dos direitos civis e humanos, assim como a descoberta da existência de gulags nos países comunistas, se desiludiu. 

O movimento marxista não foi capaz de se criticar por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que chamamos agora de stalinismo. Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. Em nosso século vinte temos tido a ocasião de melhor perceber a trágica realidade da alienação humana no campo social. [18]

Tal política comunista fez com que Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que o amanhecer de uma nova era criativa se distanciava da humanidade. [19]Assim, alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista, de o socialismo transformar-se em totalitarismo, já que não aceitava a pluralidade de partidos políticos e as liberdades civis, que ele e os socialistas religiosos defendiam. Mas é interessante ver que descartava qualquer possibilidade de hegemonia permanente, quer por parte do bloco soviético, quer por parte do bloco ocidental: Novos centros de poder podem aparecer, primeiro secretamente, e depois, então, abertamente, levando para a separação de ou para a transformação radical do todo. (...) O poder inicia a luta novamente e o período determinado do império mundial será tão limitado quanto o foi o período augustiniano de paz. [20]

E afirmou que um mundo sem as dinâmicas do poder, sem a tragédia da vida e da história não é o reino de Deus, nem a finalidade do ser humano, pois o fim está limitado à eternidade e nenhuma imaginação pode atingir o eterno. Mas as antecipações fragmentárias são possíveis. [21]Assim, falar de socialismo significa entender que ele traduz a defesa do sentido último do significado profundo das raízes do ser humano e, no mundo contemporâneo, que ele, diante do trovejar dos canhões e da ameaça à vida, levanta-se como voz profética de um mundo novo.

Notas
[1] Paul Tillich, “La décision socialiste” in Écrits contre les nazis, 1932-1935, Paris, Genève, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994, pp. 72-73. Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, Gesammelte Werke II, 1962.. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier. 

[2] Paul Tillich, “La décision socialiste”, idem, op. cit., p. 115. 

[3] Lucio Lombardo Radice, "Um marxista diante dos fatos novos no pensamento e na consciência religiosa", Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Ano III, Número 16, novembro/dezembro de 1967, pp. 6-7. 

[4] Hugues Portelli, Gramsci e a questão religiosa, São Paulo, Edições Paulinas, 1984, p. 32. 

[5] Portelli, Gramsci e a questão religiosa, op. cit., pp. 188. 

[6] Portelli, Gramsci e a questão religiosa, op. cit., p. 188-189. 

[7] Portelli, Gramsci e a questão religiosa, op. cit., p. 189. 

[8] Renato Ortiz, Notas sobre Gramsci e as ciências sociais, São Paulo, Revista Brasileira de Ciências Sociais, Out. 2006, vol.21, no. 62. 

[9] Paul Tillich, A Era Protestante, São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, 1992, p. 274. Texto original: The Protestant Era, Chicago, Illinois, University of Chicago, 1948. Trad. pt. de Jaci Maraschin. “Die protestantische Ara”, Der Protestantismus als Kritik und Gestaltung, Gesammelte Werke VII, Evangelische Verlag Stuttgart, 1962, pp. 105-123. Trad. al. W. De Gruyter. 

[10] Paul Tillich, La lutte des classes et le socialisme religieux [artigo publicado no Religiöse Verwirklichung de 1930. Gesammelte Werke, II, pp. 175-192] in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, tradução de Nicole Grondin e Lucien Pelletier, 1992, pp. 382-385. 

[11] Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX, São Paulo, ASTE, 1999, p. 193. Texto original: Perspectives on 19th and 20th century protestant theology, New York, Harper and Row Publishers, Inc., 1967. Tradução de Jaci Maraschin. 

[12] Antonio Gramsci, Il Materialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce, Turim, Einaudi, 1966, p. 115. 

[13] Paul, Tillich, “Écrits contre les nazis”, op. cit., p. 102. 

[14] João Rego, Reflexões sobre A Teoria Ampliada do Estado em Gramsci, Recife, Caderno Cultural do Jornal do Commercio, 5/04/1991. 

[15] Paul Tillich, “Écrits contre les nazis”, pp. 84-85. 

[16] Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, Entre la heteronomia y la autonomia, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 239-240. Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954. 

[17] Paul Tillich, Le Socialisme, Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p. 346. 

[18] Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX, op. cit., p. 200. 

[19] Paul Tillich, Além do Socialismo Religioso, artigo publicado no Christian Century em 15.06.1949. 

[20] Paul Tillich, Amor, poder e justiça, São Paulo, Novo Século, 2004, p. 94-95. Amour, pouvoir et justice, Analyses ontologiques et applications éthiques, Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses, Paris, Presses Universitaires de France, 1963 et 1964, números 4 e 5. Love, Power and Justice, Ontological Analyses and Ethical Applications, Nova York, Londres, Oxford University Press, 1954. 

[21] Paul Tillich, Amor, poder e justiça, idem, op. cit., p. 108. 

I. BIBLIOGRAFIA ANTONIO GRAMSCI

1. Escritos 1910-1926

A questão meridional. Introdução e seleção de Franco de Felice e Valentino Parlato. Apresentação de Carlos Nelson Coutinho. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 165p. [Contém 10 textos do período 1916-1926].

Conselhos de fábrica. Introdução de A. Leonetti. Prefácios de Carlos Nelson Coutinho e Maurício Tragtenberg. Trad. Marina B. Svevo. São Paulo: Brasiliense, 1981. 121p. [Contém 6 artigos de Gramsci da época de L'ordine nuovo, escritos entre 1916-1920, bem como outros 6 artigos polêmicos de Amadeo Bordiga].

2. Dos "Cadernos do cárcere" (1929-1935).

Concepção dialética da história. Apresentação de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Orelha de Luiz Mário Gazzaneo. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966 (6a. ed., 1986), 341p.

Literatura e vida nacional. Seleção, tradução e orelha de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 (3a. ed., 1986). 273p.

Maquiavel, a política e o Estado moderno. Tradução e orelha de Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 (8a. ed., 1987), 444p.

Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução e orelha de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 (5a. ed., 1987), 244p.

3. Dos "Cadernos do cárcere" (1929-1935). (Edição em seis volumes)

Volume 1: "Introdução ao Estudo da Filosofia. A Filosofia de Benedetto Croce". Edição de Carlos Nelson Coutinho, em colaboração com Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Orelha de Joseph A. Buttigieg. Quarta capa de Eric Hobsbawm. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. 494p.

Volume 2: "Os Intelectuais. O Princípio Educativo. Jornalismo". Trad. Carlos Nelson Coutinho. Orelha de Leandro Konder. Quarta capa de Norberto Bobbio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 334p.

Volume 3: "Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política". Trad. Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Orelha de Francisco de Oliveira. Quarta capa de Pietro Ingrao. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, 428p.

Volume 4: "Temas de cultura. Ação Católica. Americanismo e fordismo". Trad. Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Orelha de Luiz Werneck Vianna. Quarta capa de Michael Löwy. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 394p.

Volume 5: "O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália". Trad. Luiz Sérgio Henriques. Orelha de Octavio Ianni. Quarta capa de Valentino Gerratana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 461p.

Volume 6: "Literatura. Folclore. Gramática. Apêndices: variantes e índices". Trad. Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Orelha de Alfredo Bosi. Quarta capa de Giorgio Baratta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 495p.

II. BIBLIOGRAFIA PAUL TILLICH

A Era Protestante, São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, 1992, p. 274. The Protestant Era, Chicago, Illinois, University of Chicago, 1948. Trad. pt. de Jaci Maraschin. “Die protestantische Ara”, Der Protestantismus als Kritik und Gestaltung, Gesammelte Werke VII, Evangelische Verlag Stuttgart, 1962, pp. 105-123. Trad. al. W. De Gruyter.

Écrits contre les nazis, 1932-1935, Paris, Genève, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994. Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, Gesammelte Werke II, 1962. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.

La lutte des classes et le socialisme religieux [artigo publicado no Religiöse Verwirklichung de 1930. Gesammelte Werke, II, pp. 175-192] in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, tradução de Nicole Grondin e Lucien Pelletier, 1992.

Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX, São Paulo, ASTE, 1999. Texto original: Perspectives on 19th and 20th century protestant theology, New York, Harper and Row Publishers, Inc., 1967. Tradução de Jaci Maraschin.

BIBLIOGRAFIA OUTROS

ORTIZ, R. Notas sobre Gramsci e as ciências sociais, São Paulo, Revista Brasileira de Ciências Sociais, Out. 2006, vol.21, no. 62.

PORTELLI, H. Gramsci e a questão religiosa, São Paulo, Edições Paulinas, 1984.

RADICE, L.L. "Um marxista diante dos fatos novos no pensamento e na consciência religiosa", Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Ano III, Número 16, novembro/dezembro de 1967.

REGO, J. Reflexões sobre A Teoria Ampliada do Estado em Gramsci, Recife, Caderno Cultural do Jornal do Commercio, 5/04/1991.