mercredi 6 avril 2011

O imagológico no cotidiano pentecostal

Breve leitura da hermenêutica
do pentecostalismo midiático

Rudolf Bultmann trabalhou para desimagologizar os textos neotestamentários. Entendeu os relatos de maravilhas e milagres como metáforas apresentadas de forma simbólica. Dessa maneira, não traduziriam um fazer fantástico, mas teriam como objetivo falar de quem é o Cristo. Para ele, o Cristo não deveria ser seguido pelo maravilhoso que pode fazer na vida das pessoas, mas porque dá sentido à vida.

A hora está chegando! Acho que querem ocultar. O inimigo é sujo. Num hospital público de Itaguaí (RJ) nesse fim de semana que passou, nasceu uma criança com as mãos coladas, como se estivesse orando. Os médicos disseram para os pais que iriam operar as mãos daquela menina, iria dar uma anestesia. A operação foi muito fácil porque parece que as mãos estavam coladas apenas por uma pele. Quando abriram a mão daquela criança... Vocês nem imaginem o que estava escrito... Jesus está voltando! Os médicos começaram a chorar e todos que estavam no hospital. O bairro de Itaguaí está num movimento só. As pessoas que estavam afastadas da igreja estão voltando e outras aceitando Jesus como único Salvador. Deus trouxe aquela criança ao mundo somente para transmitir aquela mensagem, depois de algumas horas ela morreu”. Relato transcrito no site Pavablog.

É comum ao pentecostalismo midiático preferir a leitura simbólica à coisa significada, o que leva, muitas vezes, a sacralização do imaginário. A sacralidade é, então, reforçada na proporção em que o original diminui e a cópia aumenta, e quanto maior a aparência, maior o grau de sacralidade. Para pensar este paradoxo, a relação entre a imagologia e a construção do cotidiano pentecostal, utilizaremos como leitura na contramão não somente o texto transcrito do site Pavalog, mas também alguns comentários de leitores.

Nas comunidades pentecostais, a vida se apresenta como representação de um projeto escatológico. As imagens, desligadas dos aspectos imediatos da vida, fundem-se em correntes que não podem ser restabelecidas pela vida. A realidade desdobra-se, então, em mundos imaginados, em objetos de contemplação. E a especialização midiática torna as imagens autônomas. O cotidiano do pentecostal midiatizado transforma-se, então, na inversão concreta da vida, em movimento autônomo.

Eu tinha ouvido essa história há alguns meses atrás. Tinha dado crédito, pois me foi contado por uma crente séria, digna de confiança. Mas, se a data estiver certa, e o fato ocorreu no último final de semana, só posso concluir que se trata de um ‘boato gospel. Jesus é sensacional, mas alguns cristãos, sensacionalistas. Examinai tudo, retenha o que é bom”. Comentário sobre o relato da criança que nasceu com as mãos grudadas.

O cotidiano pentecostal é parte de uma comunidade pentecostal e esta última é instrumento de unidade, concentra os olhares e constrói consciência. Mas, o fato do cotidiano por si mesmo ser midiatizado faz dele terreno propício ao olhar que sonha e aprofunda a separação entre pessoa e comunidade. O cotidiano pentecostal, porém, não é apenas um conjunto de imagens, mas relação social mediada por imagens. Não deve, por isso, ser entendido como produto externo à vida. O cotidiano pentecostal é uma cosmovisão que se tornou real e foi materializada pela mídia.

Quando apreendemos o cotidiano pentecostal em sua totalidade, ele é ao mesmo tempo projeto e resultado. Não é um subproduto do mundo real, é o coração do não-real na comunidade real. Nas suas formas, o cotidiano pentecostal é modelo da vida socialmente presente, afirmação da escolha feita. O conteúdo e a forma do cotidiano pentecostal justificam as condições e metas da escolha maior, a comunidade sonhada. O cotidiano pentecostal é a presença dessa justificação, e ocupa o centro e o tempo no consumo da cultura midiática.

Eu acredito sim nesse fato, mas, porque uns dos médicos, que operou as mãos da criança, não deixa o seu comentário concernente esse grande acontecimento? Por que a gente ouve muitos testemunhos mentirosos por aí? Que esse seja verdade, porque estamos esperando o nosso Rei voltar, Jesus Cristo”. Segundo comentário sobre o relato da criança que nasceu com as mãos grudadas.

Ora, a diversidade que encontramos nas imagens do pentecostalismo faz parte da unidade pentecostal. Assim, a diversidade em condições normais de autonomia se faz presente na vida e na teologia pentecostal, que se divide em realidades e imagens. A prática social diante do cotidiano contém a totalidade do real. Mas a diversidade presente na totalidade leva a novas leituras da materialidade e reforça o cotidiano simbólico como meta. E, assim, a linguagem do cotidiano pentecostal passa a ser construída por símbolos que se transformam na meta de consumo e manutenção da cultura pentecostal.

Mas não se pode dizer que o cotidiano pentecostal e a atividade social real sejam a mesma coisa. O cotidiano inverte o real e o verdadeiro. A realidade vivida é invadida e absorve a ordem do cotidiano. E nesse movimento, a ordem do cotidiano imagológico se faz presente na realidade vivida. Essa realidade vivida, que surge do cotidiano pentecostal, faz dele, real. E as imagens viram fundamento da comunidade, e fazem do verdadeiro um momento da imagem.

Precisamos apenas atentar para o que Jesus nos disse quando foi aos céus... Ele nos disse que voltaria e não importa quanto tempo passou, a palavra dele é a mesma. Infelizmente, há crentes que são como Tomé... Querem confirmação do que o próprio Deus já disse: Uma geração má e adúltera procura um sinal. Acorda tu que dormes! E Cristo te esclarecerá”. Terceiro comentário sobre o relato da criança que nasceu com as mãos grudadas.

O conceito de cotidiano unifica a diversidade das experiências da vida pentecostal. As diversidades tornam-se aparências nas comunidades, que autocentradas, afirmam o cotidiano como a totalidade da vida humana. Mas, o verdadeiro no cotidiano pentecostal mostra que, de fato, um mundo imagológico foi construído.

A partir do cotidiano, o que alguém viu é garantia e a garantia é que alguém viu. É o discurso da aceitação de que o verdadeiro é verdadeiro porque alguém viu e disse. Estamos, assim, diante do monopólio do símbolo, que se reconstrói a cada dia porque os meios são fins. E as comunidades pentecostais, vecchi e nuovi, só têm pela frente o cotidiano, porque imagens são tudo, e o cotidiano passou a ser o principal objeto-imagem de produção e consumo. O cotidiano pentecostal subverte e submete a comunidade porque é a objetivação da imagem.

Qual seria o propósito que Deus teria em enviar essa mensagem marcada nas mãos daquela criança de vida tão breve? Será que não há profeta que anuncie a volta do Senhor Jesus? Quarto comentário sobre o relato da criança que nasceu com as mãos grudadas.

Se o símbolo definiu que a atividade pentecostal deveria ser a superação de mundo para a obtenção do céu, com a midiatização predomina a degradação do céu para o parecer no mundo, ou seja, parecer no mundo implica prestígio imediato. A realidade das pessoas, então, graças ao cotidiano, tornou-se realidade onde aqueles que são expostos e prestigiados o são porque, de fato, não são. E aí o mundo real se transforma em imagologia, e cada imagem vira ser real. Mas, o cotidiano pentecostal, que leva o céu a ser vivido através de mediações especialmente construídas, não pode ser apreendido diretamente, porque a visão, como os demais sentidos, em grau maior ou menor, distorce. Por isso, o cotidiano não é identificável ao olhar, nem mesmo quando acompanhado pela audição e fala. Ele escapa às atividades humanas, está no lado oposto ao diálogo, e gera representações independentes.

Mas Bultmann nos diz que o sentido da imagem não é proporcionar uma concepção objetiva do universo. Ao contrário, nele se expressa como o ser humano se compreende em seu mundo. A imagem não pode ser interpretada cosmologicamente, mas antes antropologicamente, de modo existencial. A imagem fala dos poderes que o ser humano experimenta como limite de seu mundo, bem como de seu próprio agir e sofrer. (Bultmann, p. 20).

Dessa maneira, podemos dizer que, cada vez menos, o cotidiano pentecostal realiza a teologia protestante, mas acorrenta a vida concreta das pessoas num universo imaginado. Ora, a teologia protestante pensa o separado e o poder separado, por isso ela está distante da experiência imagológica pentecostal. Esse cotidiano pentecostal faz a reconstrução material do cristianismo anterior ao protestantismo e das vidas, imagens. Não projeta o céu, abriga um paraíso de construção imediata. Tal cotidiano, então, torna-se exílio da espiritualidade, que repousa na alienação, a espera do momento mágico que num piscar de olhos fará da realidade, sonho.

Bibligrafia recomendada
Bultmann, Rudolf Karl, Crer e Compreender, São Leopoldo, Editora Sinodal, 1987.
DEBORD, Guy, A Sociedade do Espetáculo. Site: Biblioteca Virtual Revolucionária. WEB:
http://www.reocities.com/autonomiabvr/i.html
Pereira Jr., Isaías Lobão, A Teologia de Rudolf Bultmann. Site: Monergismo. WEB:
http://www.monergismo.com/textos/teologia/teologia_rudolf.htm