vendredi 6 février 2009

Do Logos de Heráclito ao Logos joanino

Leitura para meus/minhas alun@s de Filosofia II. Favor ler também o artigo anterior postado no blog: A amizade como pretexto.

Logos, no grego 'palavra', foi entendido pelo filósofo grego Heráclito de Éfeso, como o princípio supremo de unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o Universo. ["Bem dizia Heráclito: homens são deuses e deuses são homens, porque o Logos é um só" (Hipólito, Refutações, IX, 10,6)]. Assim, Heráclito diante da mobilidade de todas as coisas denominou fogo ao elemento primitivo, e viu este comandado por uma lei natural inteligente ou racional, o Logos. Considerou o Logos dotado de dois princípios internos contrários a operar, ditos por ele, antropomorficamente, guerra e paz (ou discórdia e concórdia). Estas duas forças contrárias transformavam o elemento primitivo, ora na direção da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo. Portanto, o Logos, concebido por Heráclito como uma lei natural ordenadora, a tudo comanda em forma dialética. E segundo Platão é o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o inteligível. Assim, para a filosofia grega, Logos era o princípio da inteligibilidade, a razão.

Mas, exatamente por ser razão e palavra, Logos mantém uma relação de complementação com sabedoria, e por isso é pensada por Heráclito como harmonia, o próprio nexo original entre Logos e physis. Todavia, para que, diante da ameaça do relativismo trazido pelas argumentações sofísticas, encontre-se melhor determinado o que se compreende por verdade, o pensamento de Sócrates e Platão vai formular explicitamente a questão: o que é? Esta questão busca definir isso que subjaz sempre idêntico a si mesmo, a substância ou essência, fundamento de +toda instabilidade acidental da existência aparente. O que em Heráclito se delimitava como o encontro da harmonia passa a ser, a partir do pensamento de Sócrates e Platão, uma procura: nasce, assim, a filosofia como um desejo de conhecimento. Aristóteles caracteriza expressamente esta transformação quando afirma em sua obra que "O que desde sempre, agora e para sempre, é constantemente procurado, porque sempre de novo a questão fracassa, é o problema: o que é o ser?". A filosofia constitui-se, a partir das concepções socrática, platônica, aristotélica, como o pensamento que investiga a questão do ser.

O conceito razão relaciona-se a três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser. Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte de existência: origem do ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento, impossível de penetrar. Pari passo à essência, o Logos correlaciona mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o Logos. Assim, o Logos é a origem da razão e também do ser. Mas, origem do ser aqui não significa conhecimento a priori, é estar colocado à parte do reino da finitude e por isso a origem do ser só é conhecida por um ato de revelação.

A importância do logos

Dentre as inúmeras transformações que surgem com a pólis, a mais importante é a extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder.

A palavra deixa de ser o termo ritual e passa a ser a fonte para o debate, discussão e reflexão, sendo ela, ou melhor, o seu uso de forma mais persuasiva, que irá definir o orador vencedor dos embates dialéticos (dialética é compreendida como a arte real da discussão: as normas para uma discussão correta). Todas as questões de interesse geral passam a ser submetidas à arte da oratória e as decisões são as conclusões dos debates. A política se torna a arte do domínio da linguagem. Com a popularidade dos debates e das discussões, a polis se fundamenta na publicidade das manifestações sociais; se distinguem os interesses comuns dos privados, consolidam-se as práticas abertas e o domínio público, a base social da estrutura.

Porém, esse desenvolvimento traz uma profunda transformação, já que ao tornar comuns os elementos de uma cultura, levamos os mesmos à crítica e à controvérsia. Todos os elementos estão expostos a interpretações diversas e a debates apaixonados. Já não era possível se impor só por prestígio pessoal ou religioso... Devia haver o convencimento pela dialética.

A palavra constituiu-se no instrumento da vida política. Sua vertente escrita trouxe em si a possibilidade de uma completa divulgação do conhecimento. Neste momento, a escrita tornara-se pública, não mais estando presente apenas no palácio – como no período micênico. Neste contexto, o saber pode tornar-se igualmente público, deixando de estar restrito aos magistrados ou sacerdotes. Depois de divulgadas, as idéias deverão ser submetidas ao debate político e à aceitação popular.

A sabedoria e o logos

Com a consolidação da importância da palavra, o saber passa a ser um bem público. E a sabedoria, tão exaltada por filósofos como Platão, para o qual a sabedoria pertencia ao passado, ofereceu aos seus contemporâneos o amor à sabedoria, à filosofia. Assim, a sabedoria percorreu as veredas da linguagem, da palavra, do discurso, do logos, da dialética: este caminho tornou-se característico da cultura grega. Pode-se, em última instância, argumentar que a filosofia nasceu no momento em que se tentou recuperar algo perdido, a sabedoria, mesclada à dialética.

Não foi sem resistência que esse percurso foi seguido. A popularização do saber, antes inacessível, foi questionada. Havia uma articulação para que os mitos que chegassem à praça publica e fossem objeto de exame, mas não deixassem de ser um mistério. A sua reformulação produziu um salto no desenvolvimento humano, mantendo seus reflexos até hoje.

Na contemporaneidade latino-americana, partindo da dialética, Enrique Dussel propõe a dialética analógica da alteridade, a abertura da totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos. O logos permanece no mundo e não pode avançar mais além. O logos que transcende é análogos, mais além do logos, analogia que se articula na dialética da voz ouvida que leva a ouvir: ou seja, a ouvir a voz. Assim, o logos chega ao seu limite, e confia no que ouve do outro pela fé, pois sem a confiança no outro, não se pode escutar sua voz. Fé aqui significa ir mais além do horizonte da physis, ir mais além do horizonte da ontologia do mesmo, afirmando a ontologia da negatividade, isto é, já que o outro não se origina no idêntico, é diferente. Brota como ouvido, é âmbito ao qual a totalidade pode abrir-se, e ao abrir-se muda de estatuto, tornando-se ontologia negativa.

Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. E como em grego aná significa mais além, e logos significa palavra, análogos toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. 1 Mas se o outro é distinto, não há diferença, nem retorno, embora haja história e crise. Por isso, para Dussel, se este logos irrompe enquanto interpelante indo mais além da compreensão, ele é análogo.

Essa interpretação de Dussel repousa na compreensão do Logos joanino, que repousa em Jesus, o Cristo, acima da tradição filosófica, quer de Heráclito, quer de Platão ou do neoplatonismo, e ainda da filosofia judaica expressa em Filón de Alexandria. Nesse sentido, se antes estávamos diante da personificação do Logos, ainda assim não há na tradição da filosofia grega ou judaica a idéia de encarnação do Logos. Esse Logos joanino, por isso, vai além de toda a tradição filosófica, embora João a utilize como ponte para falar à cultura de sua época.

Há ainda uma ponte com o pensamento judaico, principalmente no que se refere aos textos de Gênesis um e de Provérbios 8.22-31. O primeiro ao utilizar a expressão “en arqué” e o segundo ao personalizar a sabedoria. Nesse sentido, o Logos de João se apresenta como análogo. Análogo a Deus, porque é pessoa divina, e análogo aos seres humanos, porque é pessoa humana.

Análogo significa que o Logos vem de mais-além, isto é, que há um primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo, que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem nova. Embora, este Logos eterno se reflita através de nossos pensamentos e por isso não possa existir um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e 1Coríntios 2.16].

Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas mesmo assim, podemos e devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos então o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu.

Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver e dominar os valores universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo o ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Nosso destino, que aqui pode ser entendido como missão, é servir ao Logos num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

Nota

1. Enrique Dussel, “El Método de Pensar Latinoamericano: la Analéctica como Ruptura Teórica”, conferência proferida em novembro de 1972, in Introduccion a Una Filosofia de la Liberación latinoamericana, México D.F., Ed. Extemporâneos, 1977, pp. 117 a 138.

A amizade como pretexto

Leitura para meus/ minhas alun@s de Filosofia II
O QUE É FILOSOFIA?
Dizem-me: esse gênero de amor não é viável. Mas como avaliar a viabilidade? Por que o que é viável é um Bem? Por que durar é melhor que inflamar?1

Mais curioso que a pergunta -- o que é a filosofia? -- é a relação que os filósofos fazem da juventude com a ingenuidade. Afirmam que na juventude filosofavam sem saber o que faziam, que não possuíam a fúria da velhice que tenta nominar os conceitos. Agora velhos, quando se perguntam o que é a filosofia, apenas colocam de forma clara, simbólica, o que sempre fizeram. E, assim, a resposta é: filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos.

A origem grega da palavra filosofia pode ser traduzida como amigo da sabedoria. Mas seria mesmo uma amizade?

O filósofo espanhol Francisco Ortega é um dos pensadores contemporâneos que ressalta a importância da amizade como objeto de reflexão filosófica.2 Incluindo-se nas correntes de pensamento que reivindicam para a filosofia a descentralização do sujeito e a tarefa de criar uma nova política da imaginação. Ortega projeta a amizade no contexto de uma nova ordem subjetiva, além da metáfora familiar aonde estes temas são reconhecidos e despolitizados. Politizar a amizade, para Ortega, é uma tarefa a ser assumida pela filosofia, no sentido proposto por Foucault, com "o deslocamento e a transformação das molduras do pensamento, a modificação dos valores estabelecidos e todo o trabalho que se faz para pensar de uma maneira diferente, para fazer outra coisa, para tornar-se outro do que se é".

Analisando o conceito de amigo, percebemos que a amizade possibilita uma relação íntima do ser humano com os conceitos, e que a condição para o exercício do pensamento é que tanto humano quanto conceito sejam vitais um para o outro.

Quando uma relação se torna condição para a existência de duas pessoas chamamos estas não de amigas mas de amantes. Eis a questão: amigos ou amantes?

Ora, o amor é esta tendência de um se unir com o outro, possuí-lo de modo contínuo, ou formar um todo com ele ("amor a Deus"). Em Platão é aspiração ao belo e ao bom, ao absoluto. Platão, em O Banquete, afirma que o amor é a principal motivação da filosofia, descobrindo assim o lugar central deste conceito. Mas convém distinguir o amor egoísta, possessivo, que persegue o outro como um objeto a ser devorado ("o amante ama o amado como o lobo ama o cordeiro", escreve Platão) e o amor que liberta do sofrimento e do desejo e conduz a alma ao banquete divino. O amor verdadeiro só pode ser satisfeito pela contemplação, para além do belo, do verdadeiro e do bem.

Uma amizade pode ser o final de um grande amor, mas nunca o início. As amizades transformadas em amor, sempre foram amor. E partindo dessa premissa poderíamos dizer o que é a filosofia.

Da reunião dessas duas idéias, amigo e amante, podemos inferir uma multiplicidade de conceitos. Podemos dizer que o filósofo é ele próprio conceito em potência e, a partir daí, que a filosofia deixa de ser apenas arte de fabricar conceitos, passando a ser a disciplina que consiste em criar conceitos. Mas quando falamos em criar conceitos estamos falando em definir idéias. Assim, definir um conceito é manifestar a sua compreensão. Deste modo, definir é delimitar as fronteiras. Geralmente a definição faz-se pelo gênero próximo e pela diferença específica.

Os conceitos não nos esperam feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: “os filósofos não devem mais se contentar em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los”.

Agora, já podemos tentar abordar, partindo do outro extremo, o que a filosofia não é. Não é contemplação, “pois as contemplações são as coisas elas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos”. Não é reflexão, “posto que ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja, isto é, artistas, por exemplo podem pensar sua arte sem que sejam filósofos, já que a reflexão pertence à própria criação individual, respectiva”. Não trabalha opiniões, pois nunca visa o “consenso”, mas sim o “conceito”. O primeiro princípio da filosofia deve ser que os universais não explicam nada, eles próprios devem ser explicados.

Conhecer-se a si mesmo, fazer como se nada fosse evidente, espantar-se: estas determinações e outras compõem a filosofia.

Mas não há garantias na manutenção dos conceitos criados, que podem ser revistos, fazendo com que a “exclusividade da criação de conceitos assegure à filosofia uma função, mas não lhe dê nenhuma proeminência, nenhum privilégio, pois há outras maneiras de pensar e criar, outros modos de ideação”.

Utilizando estes argumentos e retomando às denominações propostas do amigo, amante, pretendente e rival, a filosofia segue seu caminho de provação. Nesta via caminha despojando-se dos limites impostos pela obrigação dos benefícios sociais, que não são sua finalidade, mas um de seus usos finais.

A filosofia, encarnada na pele do filósofo, faz com que ele se delineie como um pretendente ao conhecimento, que no jogo da sedução se fantasie de amigo para obter sua conquista e assim tornar-se amante. Em sua fase apaixonada, intensa, criativa, o filósofo acaba por tornar-se um rival de seus próprios conceitos através da insaciabilidade por recriá-los. Por fim, vem a maturidade e as criações da velhice, frutos de uma profunda amizade.3

Notas
1. Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981, p. 17.
2. Francisco Ortega, Para uma política da amizade, Arendt, Derrida, Foucault, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2000.
3. Gilles Deleuze, F. Guattari, O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992. pp.9-21.

mardi 3 février 2009

Uma introdução ao estudo dos anjos

Teologia Sistemática II
Caros alunos e alunas, eis o texto que prometi a vocês, que servirá como uma introdução à antropologia bíblico-teológica. O texto está dividido em três partes: uma apologética, sobre a doutrina cristã dos anjos;  a segunda apresenta uma breve história da angelologia, entendida como mitologia surgida no Oriente Médio, onde utilizamos um texto de Gilberto Schoereder; e a terceira parte, dentro da tradição judaico-cristã, fazemos uma leitura ampla sobre anjos bons e demônios. Um abraço, Jorge Pinheiro.

Primeira leitura
Um serviço secreto especial
A partir dos anos 1990, o Brasil viveu uma moda mística, a febre dos anjos. Apesar de seu aspecto bombástico, essa moda teve um lado positivo, colocar em pauta a discussão sobre a existência ou não dos anjos. E é sobre isso que desejamos falar.

Muitas pessoas, em nome da racionalidade, lançam fora a água e a criança. Negam não somente o misticismo eclético, mas também a realidade do mundo espiritual. Criticam um erro, a superstição, e despencam em outro, o agnosticismo racionalista.

O maior e mais antigo tratado sobre anjos são as Escrituras judaicas e neotestamentárias,  apócrifas e canônicas. No Antigo Testamento canônico, cujos escritos vão do segundo milênio antes de Cristo até a era dos macabeus, temos 109 referências a anjos. No português transliteramos do grego a palavra ἄγγελος (angelós), que era utilizada num sentido amplo, indo de embaixador de um rei ou nação até mensageiro de deuses e, no caso neotestamentário, de Deus. O correlato de ἄγγελος (angelós) na tradição veterotestamentária é לאך (malaque). No Novo Testamento, cujos escritos vão dos anos 49 a 100 depois de Cristo, temos 186 referências a anjos.

É interessante que nas Escrituras os anjos não tem nada a ver com a angelologia proposta pela misticismo  eclético. Não são entidades etéreas, que não tem memória e nunca julgam. Não são parecidos com bebês com asas, com um sorriso de criança.

Embora o assunto seja extenso, vejamos três aspectos da doutrina cristã sobre anjos, que responde à pergunta central sobre estes seres. Por que existem os anjos?

1.        Os anjos são seres espirituais.
2.        Têm atividades definidas pelo próprio Deus.
3.        Protegem os filhos de Deus.

Em relação ao primeiro item, é interessante ver que as Escrituras nos apresentam os anjos como seres espirituais, geralmente invisíveis. “Então, o que são os anjos? Todos são espíritos que servem a Deus e são mandados para ajudar os que vão receber a salvação”. Hebreus 1.14.

Os anjos têm personalidade e inteligência. “Ele fez isso para resolver este caso. O senhor é sábio como um anjo de Deus e sabe tudo o que acontece”. 2 Samuel 14.20.

Têm também direito de escolha e sentimentos, e isso fica claro quando se refere a Satanás, um anjo rebelado. “Você ficou ocupado, comprando e vendendo, e isso o levou à violência e ao pecado. Por isso, anjo protetor, eu o humilhei e expulsei do monte de Deus, do meio das pedras brilhantes. Você ficou orgulhoso por causa da sua beleza, e a sua fama o fez perder o juízo”. Ezequiel 28.16-17.

E o próprio Jesus fala da alegria dos anjos. “Pois digo que assim também os anjos de Deus se alegrarão por causa de uma pessoa de má fama que se arrepende”. Lucas 15.10.

A primeira conclusão é de que são seres espirituais, a serviço de Deus, para ajudar aqueles que serão salvos. Geralmente aparecem como adultos, têm capacidades especiais, memória, uma inteligência aguçada e sentimentos. De certa forma, não são muito diferentes de nós.

Esses seres ministradores tem atividades específicas. Adoram e servem a Deus. “Louvem ao Deus eterno todos os anjos do céu, que o adoram e fazem a sua vontade”. Salmo 103.21.

Participarão do juízo divino, conforme explica o apóstolo Paulo: “Porque Deus fará o que é justo. Ele trará sofrimento sobre aqueles que fazem vocês sofrerem e dará descanso a vocês e também a nós que sofremos. Ele fará isso quando o Senhor Jesus vier do céu e aparecer junto com seus anjos poderosos”. 2Tessalonicenses 1.6-8.

Eles trazem importantes notícias, instruem e guiam os filhos de Deus. Segundo o escritor da carta aos Hebreus, os mandamentos foram entregues a Moisés por anjos. “Por isso devemos prestar mais atenção nas verdades que temos ouvido, para não nos desviarmos delas. Ficou provado que a mensagem que foi dada pelos anjos é verdadeira, e aqueles que não a seguiram nem lhe obedeceram receberam o castigo que mereceram”. Hebreus 2.2.

Ao contrário do que a vulgarização sobre angelologia prega, eles não estão debaixo da nossa vontade. Mas agem de acordo com a justiça de Deus nos julgamentos divinos. Participaram dos juízos de Sodoma e Gomorra, do Egito opressor, da destruição do exército de faraó na travessia do Mar Vermelho e em muitos outros eventos. E estarão com Cristo por ocasião do grande julgamento final.

E por fim, protegem e cuidam dos filhos de Deus. “O anjo do Deus Eterno fica em volta daqueles que O temem e os livra do perigo”. Salmo 34.7.

Dessa maneira, uma de suas principais tarefas é acompanhar os filhos de Deus, em todos os momentos de suas vidas, mas especialmente naqueles de dificuldades. Não damos ordens aos anjos, já que eles são ministros de Deus, agentes secretos do Criador para proteção de seus filhos.

A angelologia mística propõe um relacionamento com os anjos através de práticas esotéricas, via astrologia, numerologia e ancoragem (magia branca). São utilizadas dezenas de invocações, velas, incensos e talismãs. Estamos, de fato, diante de uma cosmovisão gnóstica. Conforme, explica Scott Horrell, esta é “uma angelologia sem Deus definido, sem estrutura moral e sem explicação sobre o porque da própria existência dos anjos".

Aqueles que se aproximam de Deus devem se lembrar do que diz Paulo, o apóstolo: “pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo Jesus, que se deu em resgate por todos”. 1Timóteo 2.5.

Segunda leitura
As tradições do Médio Oriente
Anjos fazem parte de nossa tradição cristã. Afinal, não podemos esquecer que, conforme nos diz Lucas, havia, naquela mesma comarca, pastores que estavam no campo e guardavam durante as vigílias da noite o seu rebanho. E eis que um anjo do Senhor veio sobre eles, e a glória do Senhor os cercou de esplendor, e tiveram grande temor.  E o anjo lhes disse: Não temais, porque eis aqui vos trago novas de grande alegria, que será para todo o povo, pois, na cidade de Davi, vos nasceu hoje o Salvador, que é Cristo, o Senhor. E isto vos será por sinal: achareis o menino envolto em panos e deitado numa manjedoura.  E, no mesmo instante, apareceu com o anjo uma multidão dos exércitos celestiais, louvando a Deus e dizendo:  Glória a Deus nas alturas, paz na terra, boa vontade para com os homens!

Assim, anjos anunciaram o seu nascimento e a presença deles foi permanente no ministério de Jesus. E, segundo a promessa, na parusia, os anjos estarão com ele. Mas, agora, queremos ver o que a história das religiões fala sobre eles.

Ferreira apresenta na Antologia Sistemática duas visões dos seres angelicais que considero importantes, a listagem de Strong, que podemos chamar conservadora, e a de Brunner, para quem "a autoridade última não é o que a Escritura diz, mas a sua relação com o centro da fé da fé cristã, como um todo, isto é, a vontade de Deus que foi-nos revelada em Jesus Cristo". Ou seja, uma visão que muitos chamariam de  liberal. Essas duas visões merecem um artigo futuro. 

Já Schoereder, ao analisar a história da angelologia, entendida como mitologia, diz: "acredita-se que a angelologia tenha surgido no Oriente Médio, provavelmente na Suméria. É dessa cultura  imagens mostrando seres alados. Os sumérios possuíam uma religião politeísta, repleta de deuses e espíritos, alguns dos quais foram chamados de mensageiros dos deuses, e que se deslocavam entre os deuses e os humanos. Diz-se que os sumérios acreditavam que cada pessoa tinha uma espécie de sombra, possíveis anjos de guarda".

"Quando os povos semíticos conquistaram a Suméria, cerca de dois mil anos  antes de Cristo, absorveram conceitos a respeito dos anjos. Mais tarde, a angelologia suméria chegou aos egípcios".

"Antecedentes dos anjos também estavam presentes no Egito, na representação dos deuses. Hórus, por exemplo, era representado como um falcão; Tot às vezes era representado como um homem com cabeça de íbis. Ísis e Maat também eram representados com asas. Os arqueólogos dizem que nos textos egípcios mais antigos é possível identificar cerca de 1.200 deidades, muitas delas próximas da idéia que se faz dos anjos. Além disso, conseguiram identificar um culto dedicado a evocar a ajuda de Hunmanit, grupos de entidades ligadas ao sol e representadas como raios de sol, muito semelhante à representação cristã do coro angelical dos serafins. Eles teriam a responsabilidade de cuidar tanto do sol quanto da humanidade, e alguns estudiosos entendem que é possível ver essas entidades como versões antigas dos anjos da guarda.

com o zoroastrismo que se apresenta mais claramente a natureza dualista da religião, com o Bem e o Mal definidos nas figuras de Ormuzd e Ahriman. A religião foi desenvolvida por Zoroastro. A idéia básica é que os dois deuses estariam em constante combate, comandando seus exércitos. Alguns historiadores acreditam que o zoroastrismo possa ter influenciado a cultura dos hebreus, já que Abraão viveu em Ur, na Mesopotâmia, entre dois mil e mil e oitocentos anos antes de Cristo. No entanto, muitos entendem que Zaratustra surgiu depois, por volta de 650 a.C., e que sua influência teria outra origem. Ocorrera quando Ciro (560-530 a.C.) construiu o império que se tornaria um dos maiores da história. Quando conquistou a Babilônia, deu liberdade aos judeus que estavam no cativeiro, que na diáspora teriam acolhido conceitos persas, entre eles o da existência dos anjos".

Dessa forma, para Schoereder, o judaísmo "teria unido conceitos do zoroastrismo com alguns próprios dos primórdios da religião, especialmente no que diz respeito à existência de inúmeros espíritos, como os do vento e do fogo, que pesquisadores acreditam ter sido a base para o surgimento dos querubins e serafins. Posteriormente, os anjos se tornaram cada vez mais os mensageiros de Deus".

 A expressão beni Elohim, em Gênesis 6.2, segundo Bietenhard, está presente num documento de Cunram (1QH frag. 2.3), e exegetas judeus e alguns cristãos  traduzem a expressão como filhos de Deus / anjos, que acasalaram-se com humanas.

Particularmente discordo dessa compreensão e como Schoereder afirma, "a interpretação menos mitológica, é que os homens de grande valentia ou de grande maldade – que em na maioria das traduções modernas aparecem como gigantes -- surgiram do acasalamento dos filhos de Deus, isto é, dos descendentes de Sete, que adoravam o Eterno, com as filhas dos homens, isto é, com as descendentes de Caim, que eram idólatras. As descendentes de Caim deviam ser bonitas para os padrões da época, assim, os filhos de Deus deixaram de lado seus compromissos com Deus. Desses casamentos nasceram os heróis da antiguidade. A partir daí, Deus viu que o caminho humano tinha se degenerado, e respondeu, então, com o extermínio da espécie".

Outra questão presente no estudo dos anjos é se eles têm liberdade de escolha, se são seres moralmente livres. O Novo Testamento fala que serão condenados ao lago de fogo e enxofre, e documentos de Cunram (1QH 10.34-35; IQM 14.15), conforme Bietenhard, afirmam que Deus julgou os anjos.  A questão, então é, podem ser julgados se não são seres morais?

Entende-se que o fato de existirem anjos caídos (2Pe 2.4; Jd 6) seria prova de que existe o livre-arbítrio entre eles. E a história desses estaria ligada à tentativa dos anjos, como Lúcifer, em trazerem para a humanidade um conhecimento que nos fora negado a princípio.

Uma terceira leitura
Os bons e os demônios
A época da criação dos anjos não é indicada com precisão em parte alguma, mas é provável que tenha se dado juntamente com a criação dos céus (Gn 1.1 ). Pode ser que tenham sido criados por Deus imediatamente após a criação dos céus e antes da criação da terra, pois de acordo com Jó 38.4-7, rejubilavam todos os filhos de Deus quando Ele lançava os fundamentos da terra. Que os anjos não existem desde a eternidade é mostrado pelos versículos que falam de sua criação (Ne 9.6, Sl 148.2,5; Cl 1.16). Embora não seja citado número definido nas Escrituras, acredita-se que a quantidade de anjos é grande (Dn 7.10; Mt 26.53; Hb 12.22).

Os anjos são diferentes dos humanos, eles não estão limitados às condições naturais e físicas. Aparecem e desaparecem e movimentam-se com uma rapidez imperceptível sem usar meios naturais. Apesar de serem espíritos, têm o poder de assumir a forma de corpos humanos a fim de tornar visível sua presença aos sentidos do homem (Gn 19.13).

São incorpóreos conforme Ef 6.12, onde Paulo diz que "a nossa luta não é contra a carne nem sangue, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes". Outras referências. Sl 104.4; Hb 1.7,14; At 19.12; Lc 7.21; 8.2; 11.26; Mt 8.16; 12.45. Não têm carne nem ossos e são invisíveis (Cl 1.16 ).

Várias passagens das Escrituras indicam que há um número grande de anjos (Dn 7.10; Mt 26.53; Sl 68.17; Lc 2.13; Hb 12.22), e são mencionados como exércitos do céus ou de Deus. No Getsêmani, Jesus disse a um discípulo que queria defendê-lo dos que vieram prendê-lo: "Acaso pensas que não posso rogar ao meu pai, e ele me mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos"? (Mt 26.53).

Aos anjos são atribuídas características pessoais. São inteligentes, dotados de vontade e atividade. O fato de que são seres inteligentes parece inferir-se do fato de que são espíritos (2Sm 14.20; Mt 24.36, Ef 3.10; 1 Pe 1.12; 2 Pe 2.11). São superiores aos humanos em conhecimento (Mt 24.36) e por ter natureza estão sob obrigação moral; são recompensados pela obediência e punidos pela desobediência.

As Escrituras falam dos anjos que permanecerem leais como "santos anjos" (Mt 25.31; Mc 8.38; Lc 9.26; At 10.22; Ap 14.10) e retrata os que caíram como mentirosos e pecadores (Jo 8.44; 1 Jo 3.8-10).

A imortalidade dos anjos está ligada ao sentido de que os anjos bons não estão sujeitos à morte (Lc 20.35-36), além de serem dotados de poder formando o exército de Deus, uma hoste de heróis poderosos, sempre prontos para fazer o que o Senhor mandar (Sl 103.20; Cl 1.16; Ef. 1.21; 3.10; Hb 1.14), enquanto que os anjos maus formam o exército de Satanás empenhado em destruir a obra do Senhor (Lc 11.21; 2Ts 2.9; 1 Pe 5.8).

Ilustrações do poder de um anjo são encontradas na libertação dos apóstolos da prisão (At 5.19; 12.7) e no rolar da pedra de mais de quatro toneladas que fechou o túmulo de Cristo (Mt 28.2).

Pressupõe-se que todos os anjos tiveram uma boa condição original (Jo 8.44; 2Pe 2.4; Jd 6). e receberam graça suficiente para habilitá-los a manter sua posição de perseverança, pela qual foram confirmados em sua condição e agora são incapazes de pecar. São chamados também de "santos anjos ou anjos de luz" (2Co 11.14). Sempre contemplam a face Deus (Lc 9.26) e tem vida imortal (Lc 20.36 ). Sua atividade mais elevada é a adoração a Deus (Ne 9.6; Fp 2.9-11; Hb 1.6; Jó 38.7; Is 6.3; Sl 103.20; 148.2 Ap 5.11).

São exércitos de seres alados (Dn 9.21; Ap 14.6) para nos favorecer. Desde a entrada do pecado no mundo, eles são enviados para dar assistência aos herdeiros da salvação (Hb 1.14). Eles se regozijam com a conversão de um pecador (Lc 15.10), exercem vigilância protetora sobre os crentes (Sl 34.7; 91.11 ), protegem os pequeninos (Mt 18.10), estão presentes na igreja (1Tm 5.21), recebem aprendizagem das multiformes riquezas da graça de Deus (Ef 3.10; 1 Pe 1.12) e encaminham os crentes ao seio de Abraão (Lc 16.22,23).

Ao lado do nome geral anjo, as Escrituras empregam nomes específicos para indicar  classes de anjos. Temos assim os querubins, que são responsáveis pela guarda da entrada do paraíso (Gn 3.24), observam o propiciatório (Ex 25.18,20; Sl 80.1; 99.1; Is 37.16; Hb 9.5) e constituem a carruagem de que Deus se serve para descer à terra (2Sm 22.11; Sl 18.10). Como demonstração do seu poder de majestade (Ez 1, Ap 4) são representados simbolicamente como seres vivos em várias formas. Mais do que outras criaturas, eles foram destinados a revelar o poder, a majestade e a glória de Deus, e a defender a santidade de Deus no jardim do Éden, no tabernáculo, no templo e na descida de Deus à terra.

E os serafins, mencionados somente em Is 6.2,6, constituem uma classe de anjos muito próxima dos querubins. São representados simbolicamente em forma humana com seis asas cobrindo o rosto, os pés e duas prontas para execução das ordens do Senhor. Permanecem servidores em torno do trono do Deus poderoso, cantam louvores a Ele e são considerados os nobres entre os anjos.

E por fim os arcanjos, termo que só ocorre duas vezes nas Escrituras (1Ts 4.16; Jd 9), mas há outras referências para ao menos um arcanjo, Miguel. Ele é o único a ser chamado de arcanjo e aparece comandando seus próprios anjos (Ap 12.7) e como príncipe do povo de Israel (Dn 10.13,21; 12.1). A maneira pela qual Gabriel é mencionado também indica que ele é de uma classe muito elevada. Ele está diante da presença de Deus (Lc 1.19) e a ele são confiadas as mensagens de mais elevada importância com relações ao reino de Deus (Dn 8.16; 9.21).

Principados, potestades, tronos e domínios não são classes de anjos, mas posições de autoridades no mundo angélico (Ef 3.10; Cl 2.10) -- tronos (Cl 1.16), domínios (Ef 1.21; Cl 1.16) e poderes (Ef 1.21, 1Pe 3.22). Estes nomes não indicam espécies de anjos, mas diferenças de dignidade entre eles. Embora em Ef 1.21 a referência pareça incluir tanto anjos bons quanto os maus, nas outras passagens essa terminologia se refere aos anjos maus (Rm 8.38; Ef 6.12; Cl 2.15). 

Lúcifer (em hebraico, heilel ben-shachar, הילל בן שחר; em grego na Septuaginta, heosphoros, significa a estrela da manhã (a estrela matutina), a estrela d'Alva, o planeta Vênus, mas também foi o nome dado ao anjo da ordem dos querubins, que estavam ligados a adoração de Deus. Nos dias de hoje, numa nova interpretação da palavra, o chamam de Diabo (caluniador, acusador), ou Satã, cuja origem é o termo hebraico Shai'tan, que significa simplesmente adversário. Atualmente, discute-se a probabilidade de Lúcifer ter sido um rei assírio da Babilônia.

O nome Lúcifer ocorre uma vez nas Escrituras e apenas em algumas traduções da Bíblia em língua portuguesa. Por exemplo, a tradução de Figueiredo verte Isaías 14.12. "Como caiste do céu, ó Lúcifer, tu que ao ponto do dia parecias tão brilhante?".

Lúcifer significa o que leva a luz, representando a estrela da manhã, o planeta Vênus, que é visível antes do alvorecer. A designação descritiva de Isaías 14.4 e12, provém duma raiz que significa "brilhar" (Jó 29.3 ) e aplicava-se a uma metáfora referente a um rei da Babilônia, não a uma entidade em si. Assim, Isaías não estava falando do Diabo, mas através de imagens retiradas de um antigo mito cananeu referia-se aos excessos de um ambicioso rei babilônico.

A expressão hebraica (heilel ben-shachar) é traduzida como "o que brilha", em outras versões. A tradução Lúcifer (portador de luz) deriva da Vulgata latina de Jerônimo e isso explica a ocorrência desse termo em diversas versões da Bíblia.

Muitos exegetas afirmam que não existe fundamento bíblica para identificar Lúcifer como o Satã tentador. Esta confusão com Satã foi ocasionada por uma má interpretação de Isaías 14.12-15. "Como caiste desde o céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como foste cortado por terra, tu que debilitavas as nações! E tu dizias no teu coração. Eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono, e no monte da congregação me assentarei, aos lados do norte. Subirei sobre as alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. E, contudo, levado serás ao Sheol (inferno), ao mais profundo do abismo".

Esta interpretação é geralmente atribuída a Jerônimo, que ao traduzir a Vulgata considerou Lúcifer o anjo caído, a serpente tentadora das religiões antigas, embora antes dele esta interpretação não existisse. As igrejas cristãs, em conjunto, não atribuem a Lúcifer o papel de Diabo, mas apenas o estado de "caído".

Assim, o termo brilhante ou Lúcifer é visto como expressão proverbial contra o rei da Babilônia, de modo que faz parte duma expressão dirigida à dinastia babilônica. Que o termo brilhante é usado para descrever um homem e não uma criatura espiritual é notado na declaração. "No Sheol serás precipitado". Sheol é a sepultura comum da humanidade, não um lugar ocupado por Satanás, o Diabo. Além disso, os que vêem Lúcifer levado a essa condição perguntam. "É este o homem que agitava a terra?" É evidente que Lúcifer se refere a um humano, não a uma criatura espiritual. (Isaías 14.4, 15, 16).

Mas por que se dá tal ilustre descrição à dinastia babilônica? Temos de dar-nos conta de que o rei de Babilônia seria chamado de brilhante apenas depois da sua queda e de forma escarnecedora. (Isaías 14.3). O orgulho induziu os reis da Babilônia a se elevarem acima dos reis em sua volta. A arrogância da dinastia era tão grande, que ela é retratada fazendo a seguinte declaração jactanciosa. "Subirei aos céus. Enaltecerei o meu trono acima das estrelas de Deus e assentar-me-ei no monte de reunião, nas partes mais remotas do norte... Assemelhar-me-ei ao Altíssimo". (Isaías 14.13, 14).

As estrelas de Deus são os reis da linhagem real de Davi. (Números 24.17) A partir de Davi, essas "estrelas" governavam desde o Monte Sião, e com o tempo, o nome Sião passou a ser aplicado a toda a cidade. Por decidir subjugar os reis judeus e depois removê-los daquele monte, Jerusalém, Nabucodonosor declara sua intenção de se colocar acima dessas "estrelas". Em vez de atribuir a Deus o mérito dessa vitória sobre eles, coloca-se no lugar Dele. Portanto, é depois da sua queda que a dinastia babilônica é chamada de "brilhante". Com certeza a arrogância dos governantes babilônicos refletia a atitude de Satanás, o Diabo, também chamado de o "deus deste sistema de coisas" ou o "deus deste mundo". (2Coríntios 4.4).

Mas alguns estudiosos consideram que Ezequiel 28.15 se refere mesmo a Satanás. Se for assim, ele é mostrado como tendo sido criado perfeito. Mas diversas passagens mostram alguns dos anjos como maus (Sl 78.49; Mt 25.41; Ap 9.11; Ap 12.7-9). Isto se deve ao fato de terem deixado seu próprio principado e habitação (Jd 6) e ao pecado (2 Pe 2.4). 

A queda dos anjos se deu devido a sua revolta contra Deus. Grande esplendor e poder parecem ser apontadas como possíveis causas. Em Ezequiel 28.11-19, o rei de Tiro parece simbolizar Satanás e diz-se que ele caiu devido a essas coisas. Ambição e desejo de ser mais que Deus parecem ser a outra causa. O rei da Babilônia é acusado de ter essa ambição, ele também parece simbolizar Satanás (Is 14.13-14).

Os anjos caídos perderam a sua santidade e se tornaram corruptos em natureza e conduta (Mt 10.1; Ef 6. 11-12; Ap 12.9). Alguns estão acorrentados até o dia do julgamento (2Pe 2.4). Outros permanecem em liberdade e trabalham em definida oposição à obra dos anjos bons (Ap 12.7-9; Dn 10.12,13,20,21; Jd 9). Pode também ter havido um efeito sobre a criação original. A terra foi amaldiçoada pelo pecado de Adão (Gn 3.17-19) e a criação está gemendo por causa da queda (Rm 8.19-22). Não é improvável, portanto, que o pecado dos anjos tenha tido algo a ver com a ruína da criação original no capítulo primeiro de Gênesis. Eles serão, no futuro, atirados para a terra (Ap 12.8-9), e após seu julgamento (1 Co 6.3), no lago de fogo e enxofre (Mt 25.41; 2 Pe 2.4; Jd 6).

Os anjos maus passam o tempo nos ares que nos rodeiam (Jo 12.31; 14.30; 2 Co 4.4; Ap 12.4,7-9). Exercem poder sobre a humanidade (2Co 4.3,4; Ef 2.2; 6.11,12) e este poder está aniquilado para aqueles que são fieis a Cristo, pela redenção que ele consumou (Ap 5.9; 7.13,14). Os anjos não são contemplados no plano da redenção (1Pe 1.12), mas no inferno foi preparado o eterno castigo dos anjos maus (Mt 25.41).

As Escrituras não descrevem a origem dos demônios. Essa questão parece ser parte do mistério que rodeia a origem do mal. Porém, as Escrituras dão testemunho da sua existência e de sua posição (Mt 12.26-28). Nos Evangelhos aparecem os espíritos maus desprovidos de corpos, que entram nas pessoas, das quais se diz que têm demônios. Os efeitos desta possessão se evidenciam por loucura, epilepsia e outras enfermidades, associadas principalmente com o sistema mental e nervoso (Mt 9.33; 12.22; Mc 5.4,5). O indivíduo sob a influência de um demônio não é senhor de si mesmo; o espírito fala através de seus lábios ou emudece à sua vontade; leva-o aonde quer e o usa como instrumento, revestindo-o, às vezes, de uma força sobrenatural.

Ainda que alguns falem em diabos, como se houvesse muitos de sua espécie, tal expressão é incorreta. Há muitos demônios, mas existe um único diabo. Diabo é a transliteração do vocábulo grego diabolos, nome que significa acusador e é aplicado nas Escrituras exclusivamente a Satanás. A palavra demônio é uma transliteração do grego.

Os demônios são seres inteligentes (Mt 8.29,31; 1Tm 4.1-3; 1Jo 4.1 e Tg 2.19), possuem características de ações pessoais o que demonstra que possuem personalidade (Mc 1.24; Mc 5.6,7; Mc 8.16; Lc 8.18-31). São seres espirituais (Lc 9.38,39,42; Hb 1.13,14; Hb 2.16; Mt 8.16; Lc 10.17,20). São reputados idênticos aos espíritos imundos, no Novo Testamento. São seres numerosos (Mc 5.9) de tal modo que tornam Satanás praticamente ubíquo por meio desses seus representantes. São seres vis e perversos, baixos em conduta (Lc 9.39; Mc 1.27; 1Tm 4.1; Mt 4.3). São servis e obsequiosos (Mt 12.24-27). São seres de baixa ordem moral, degenerados em sua condição, ignóbeis em suas ações, e sujeitos a Satanás. Apossam-se dos corpos dos seres humanos e dos irracionais (Mc 5.8, 11-13). Afligem os humanos mental e fisicamente (Mt 12.22; Mc 5.4,5). Produzem impureza moral (Mc 5.2; Ef 2.2);

Satanás, a partir dessa segunda leitura, era originalmente Lúcifer, o mais glorioso dos anjos. Mas aspirou a ser "como o Altíssimo" e caiu em condenação (Ez 28.12,19; Is 14. 12-15). O nome "Satanás" revela-o como "o adversário", não do homem em primeiro lugar, mas de Deus. Ele investe contra Adão como a coroa da produção de Deus, forja a destruição, razão pela qual é chamado destruidor, Ap 9.11, e ataca Jesus, quando Este empreende a obra de restauração. Depois da entrada do pecado no mundo ele se tornou acusador, acusando continuamente o povo de Deus, Ap 12.10. Ele é apresentado nas Escrituras como o originador do pecado (Gn 3.1,4; Jo 8.44; 2 Co 11.3; 1 Jo 3.8; Ap 12.9; 20.2,10) e aparece como reconhecido chefe dos que caíram (Mt 25.41; 9.34; Ef 2.2). Ele continua sendo o líder das hostes angélicas que arrastou consigo em sua queda, e as emprega numa desesperada resistência a Cristo e ao seu reino. É também chamado "príncipe deste mundo" (Jo 12.31; 14.30; 16.11) e até mesmo "deus deste século" (2 Co 4.4). Não significa que ele detém o controle do mundo, pois Deus é quem o detém, e Ele deu toda autoridade a Cristo, mas o sentido é que Satanás tem sob controle este mundo mau, o mundo naquilo em que está separado de Deus (Ef 2.2).

Ele é mais que humano, mas não é divino. Tem poder, mas não é onipotente. Exerce influência em escala, mas restrita (Mt 12.29; Ap 20.2) e está destinado a ser lançado no abismo (Ap 20.10). É presunçoso (Mt 4.4,5), orgulhoso (1Tm 3.6; Ez 28.17), poderoso (Ef 2.2), maligno (Jó 2.4), astuto (Gn 3.1; 2 Co 11.3), enganador (Ef 6.11), feroz e cruel (1 Pe 5.8).

Sua obra consiste em perturbar a obra de Deus (1Ts 2.18). Opor-se ao Evangelho (Mt 13.19; 2Co 4.4). Dominar, cegar, enganar e laçar os ímpios (Lc 22.3; 2Co 4.4; Ap 20.7,8; 1Tm 3.7). Afligir e tentar os santos de Deus (1Ts 3.5).

Satanás é forte, mas para aqueles que crêem em Cristo, ele é um inimigo derrotado (Jo 12.31). É forte diante daqueles que cedem à tentação. Apesar de rugir é covarde (Tg 4.7). Não pode tentar (Mt 4.1), afligir (1 Ts 3.5), matar (Jó 2.6), nem tocar no crente sem a permissão de Deus.

Mas Satanás não limita sua operações aos ímpios e depravados. Muitas vezes age nos círculos mais elevados como "um anjo de luz" (2Co 11.14). Assiste às reuniões celestes, o que é indicado pela sua presença no ajuntamento dos anjos (Jó 1.6). Tenta enganar os santos com "doutrina de demônios" (1Tm 4.1) e procura criar "sinagoga de Satanás" (Ap 2.9). Muitas vezes, seus agentes se fazem passar por "ministros de justiça" (2Co 11.15).

Deus decretou sua derrota (Gn 3.14,15). Será lançado da esfera celeste à terra (Ap 12.7-9) e aprisionado no abismo (Ap 20.1-3). Ao final, será lançado no lago de fogo (Ap 20.10). Dessa maneira, a Palavra de Deus assegura a derrota final do mal.

Referências bibliográficas
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