jeudi 23 avril 2015

2.613 minutos antes

2.613 minutos antes
Yoffe ShemTov

Nada como conversar com gente inteligente, querido descendente. Por isso, deixe-me aprofundar os argumentos. A existência está unida ao momento e participa da vida, inclusive para realizar as suas operações. Mas, também é independente nas suas funções. Deste modo, a existência pensa e deseja. Assim, a existência não está imersa no tempo presente, é independente sob diversos aspectos. Lembro-me de que Aristóteles, o mestre grego, dizia que um ser se conhece por suas operações. Ora, de onde vêm as ideias? Ser inteligente, pensar, são atividades da pessoa ou da existência? É a existência que trabalha a inteligência. A matéria está presa às leis da matéria, mas a existência por ser extensiva tem maior liberdade diante dos impulsos da sensibilidade. A existência goza de livre arbítrio. A simplicidade que caracteriza os fenômenos da inteligência impede que afirmemos que o cérebro seja a causa do pensamento. Mas, é verdade, a inteligência precisa de um cérebro saudável para se expressar. 

Estou vendo, querido descendente, você desenhar rabiscos no ar. Diga o que você acha. E o descendente constrói um diálogo, que já não é virtual, mas tomou forma e lugar.

Yoffe, ancestral amado, há uma parte do seu argumento que eu gosto, aquela em que você fala da liberdade humana. Só que para falar de livre arbítrio não é necessário falar de existência. Você disse que a existência é extensa, una e indivisível, então como ela pensa, como se relaciona com os cérebros? Além disso, você não explicou o que torna uma existência a mesma ao longo do amanhã e do depois de amanhã? 

Deixemos Brianda falar também. De maneira nenhuma aceitaria ficar fora da conversa. E Brianda diz: Bem, caríssimos, creio que aqui os argumentos se esgotam e explicam os diferentes caminhos que buscamos para encontrar a justiça. Aqui está a divergência: o cérebro é ou não é o instrumento de que se vale a existência para expressar os pensamentos extensos? E se tomarmos como ponto de partida o sábio Aristóteles, quando disse que pensamos sem órgãos, que o entendimento não está ligado a nenhum órgão, e que pode trabalhar e existir separado do corpo... 

Mas nosso descendente não se deu por vencido. Até esse momento não tinha se sentado. Caminhava devagar pela sala, fitou Brianda, a avó, com carinho e teceu sua argumentação: 

Bem, já que a avó Brianda citou Aristóteles, quero trazer para esta conversa uma hipótese. Na verdade, uma parábola: um príncipe interrogou-se sobre como seria viver como um sapateiro. E um sapateiro sonhou em ter uma vida de príncipe. Um dia eles tiveram a oportunidade de trocar todas as características mentais de ambos. O sapateiro passou a ter a memória, conhecimento e atributos pessoais do príncipe, cujas características mentais migraram para o sapateiro. Depois da troca, a pessoa que agora é sapateiro lembrou-se ter sido um príncipe que desejava experimentar a vida de sapateiro. Ele disse: “Puxa, satisfiz minha curiosidade!” Reconheceu-se como príncipe e não como sapateiro. E vice-versa. Será isso mesmo? 

Mas a estória se complica, isto porque o príncipe havia cometido um crime horrível, e para escapar da condenação resolveu recorrer à troca de cérebros. Após a troca, o crime foi descoberto, e os guardas vieram buscar o culpado. Sem saberem o que aconteceu, prenderam a pessoa que agora é o príncipe, que começou a gritar se dizendo inocente. A pessoa que agora é o sapateiro, que se reconheceu como o príncipe criminoso, saltou de alegria por ter escapado da condenação. Ora, se foi assim, era uma enorme injustiça, pois quem deveria ser condenado era a pessoa que agora é o sapateiro e não a pessoa que agora é o príncipe. Veja, avô Yoffe, a nossa identidade obedece à continuidade do cérebro. Uma pessoa no passado permanece idêntica a ela mesma no futuro se forem mantidas a memória e as características individuais dela. O príncipe que agora é o sapateiro é de fato o príncipe e, por isso, aquele que agora é o sapateiro é culpado pelos crimes do príncipe, uma vez que lhe é psicologicamente contínuo. E este deveria ser o veredicto correto: o sapateiro com o cérebro do príncipe é quem deveria ser condenado.

Opa, percebi o ponto fraco do argumento do descendente e resolvi, então, complicar a estória: Mas eu desejo acrescentar uma pergunta a sua estória, meu querido descendente: e se pudéssemos duplicar um cérebro e colocá-lo em corpos diferentes. Esses dois corpos seriam pessoas iguais ou diferentes? E se fossem diferentes, onde estaria a base da identidade da pessoa, o que faria dela uma pessoa diferentes da outra? Logicamente, não o cérebro, mas a existência que cada uma passaria a viver a partir dos cérebros colocados nos corpos. Com isso, quero dizer que a identidade de uma pessoa não reside no cérebro apenas, mas na existência que se vive. Ou seja, é a existência que constrói o nosso cérebro. Por isso, descendente creio que talvez haja um ponto de contato entre nós. Talvez essa existência seja aquele sopro inicial lançado em nossas narinas pela eternidade, que será construção no caminhar de nossas experiências, emoções, sentimentos. E se for assim até mesmo a identidade é uma construção, algo que nos pertence enquanto potência.

O descendente caminhou devagar em direção a uma almofada grande. Procurou uma posição confortável e ouviu com atenção os argumentos do avô. Com deleite se lembrou de uma estória que falava do humano pobre e do humano rico. Essa estória traz imagens ilustrativas de julgamento e recompensa. Era uma estória construída para sábios e religiosos. Os sábios não pensavam existir vida eterna no sentido de recompensa e julgamento, apoiando-se na visão de que o repouso eterno é o lugar de todos os que morreram, sem diferenciação. Mas a estória estava dirigida também aos religiosos, que esperavam a instalação do reino eterno. As palavras tiveram uma audiência específica. A ênfase das palavras era referente ao julgamento e não à recompensa. Porque a penalidade do juízo não é o contraponto da recompensa, mas do reino do eterno. Nestes termos, as palavras também visavam os sábios.