mardi 23 juin 2009

A identidade batista

Nestes 400 anos de aniversário da origem do movimento batista na Inglaterra, muita gente nos pergunta o que é um batista, qual é sua origem e o que caracteriza seu pensamento teológico. Então, resolvi falar sobre nossa identidade, origem e teologia. (JP).

A identidade batista

1. Tem por base a reivindicação de uma história de séculos, de cristãos que serviram a Cristo com autonomia diante dos poderes dos reinos do mundo romano, oriental e europeu e das expressões religiosas cristianizadas que se atrelaram aos Estados e governos de cada época.
2. Tem por base a compreensão de que durante toda a sua história, homens e mulheres de fé deram suas vidas para viver segundo aquilo que a Bíblia apresenta como regra de fé e conduta.
3. Tem por base a compreensão de que, historicamente, os batistas se organizaram pela primeira vez, como igreja pública e instituída, em 1609. E que esses primeiros batistas denominados, entre os quais John Smyth e Thomas Helwys na Inglaterra e Holanda, sem serem os fundadores de nossa fé, nos mostraram o padrão batista: a autonomia em relação aos poderes do mundo e a Bíblia como regra de fé e conduta, ainda que isso signifique prisão ou morte por Cristo e pela doutrina dos apóstolos.
4. Tem por base a liberdade de pensamento e de expressão religiosa que os batistas ingleses e norte-americanos defenderam para as suas sociedades, ajudando a construir nações que foram impactadas pela fé cristã.
5. Tem por base a unidade eclesiológica e a unidade ao redor da doutrina dos apóstolos, sem impor uniformidade litúrgica ou cúltica. Tem por base a diversidade que nasce da pluralidade cultural.
6. Tem por base a origem missionária da fé batista no Brasil, através do trabalho de missionários norte-americanos que deram suas vidas pela evangelização desse país.
7. Tem por base o desafio que temos para, a partir de nossa história, reconhecendo nossa tradição, apresentar uma igreja batista que sem deixar de ser conservadora e histórica, apresentar o Cristo vivo e salvador aos brasileiros do século 21.

O que é ser batista?
1. É ter a Bíblia como única regra de fé e conduta. E entender que foi escrita por homens movidos pelo Espírito Santo, e que sua autoridade está acima da tradição, dos concílios e do magistério de qualquer igreja.
2. É professar Jesus Cristo como Salvador pessoal e dar testemunho dessa fé através do batismo bíblico em nome da Trindade de Deus.
3. É fazer parte de uma igreja local, autônoma em relação aos poderes desse mundo, religiosos e do Estado. É entender que a igreja local é assembléia que se reúne para adoração, proclamação, edificação, comunhão e serviço.

Os batistas ingleses
As comunidades cristãs traduzem formas específicas e históricas da igreja cristã no mundo. Por isso, no cristianismo, as denominações podem ser vistas como comunidades que integram conjuntos de tradições. E os batistas se apresentam no mundo através de suas diferentes igrejas locais. Mas, apesar das diferenças culturais e de tradições, há, como vimos acima, elementos nucleadores que formam a identidade batista.
As bases do pensamento teológico batista na modernidade devem ser compreendidas à luz do Iluminismo e das revoluções político-sociais do século XVII. A maneira de pensar formadora do movimento batista moderno teve por base um sistema de pensamento que priorizou a liberdade de expressão e o exercício dessa liberdade ao nível prático, tanto da pessoa como da sociedade.
Esse pensamento moderno bifurcou-se em diferentes caminhos, mas em especial no liberalismo político e econômico, e no liberalismo teológico, submetido à crítica da razão e da experiência.
Essa cosmovisão deu centralidade à razão e considerou-a capaz de compreender e desvendar todos os mistérios do cosmo. Portanto, os batistas ingleses organizaram-se como comunidade cristã diferenciada e plantada nos princípios democráticos e liberais do século XVII. O resultado dessa reflexão se traduziu num slogan: igrejas livres em sociedades livres.

A busca pela liberdade religiosa
A partir de 1603, a Inglaterra viveu momentos de transformação social e política, que levaram à troca de dinastias (Tudors por Stuarts), por mudanças de pensamento geradas pelo Renascimento, pela leitura das Escrituras Sagradas, pelo crescimento comercial e pela ação puritana contra a igreja oficial. Tais transformações levaram ao repúdio da submissão do clero à autoridade monárquica e à oposição ao totalitarismo oligárquico da igreja oficial.
Assim a igreja anglicana se dividiu. Em 1604, o rei James I começou a perseguir as igrejas protestantes e exigiu a uniformidade religiosa em nome da ordem social. E afirmou que ele era a autoridade máxima na igreja e no Estado.
Em 1625 deu-se a sucessão imperial e com Charles I uma nova esperança surgiu para os puritanos e dissidentes. Mas, em 1633, William Laud assumiu como arcebispo da Cantuária e se tornou a maior autoridade eclesiástica inglesa. Laud foi nomeado primeiro-ministro e apoiou a supremacia do rei sobre a igreja. Teve início, então, perseguições contra os puritanos. Em 1640, cresceram as tensões entre o Parlamento e o rei
A discórdia entre o rei e o Parlamento resultou numa revolução armada (1642). O rei teve o apoio do Exército Modelo, que se colocou contra o partido puritano. Mas, o partido puritano, com o apoio das comunidades separatistas, conquistou a vitória. Pouco tempo depois, porém, as igrejas separatistas decepcionaram-se, já que os princípios de liberdade religiosa não foram adotados. Em 1648, como a formação do protetorado de Oliver Cromwell, as igrejas batistas deram início às ações e manifestações a favor da liberdade religiosa.

Os princípios da igreja batista inglesa
A luta pela liberdade como bem humano teve início com as perseguições e injustiças cometidas pelo rei inglês contra as igrejas dissidentes. Isso porque o poder do Estado centralizado no rei e apoiado pela igreja oficial procuravam uniformizar a religião, com o objetivo de fortalecer a supremacia da autoridade.
As chamadas igrejas dissidentes opunham-se a esse intento, buscando o contrário: a liberdade religiosa. Por motivos político-econômicos -- detenção e monopolização dos meios de produção e organismos sociais -- tanto o rei quanto a igreja oficial não desejavam a alteração da ordem vigente.
Por essa época (1609-1612), John Smyth, primeiro pastor batista na Inglaterra, levantou a bandeira da liberdade de consciência absoluta. Era o início da trajetória batista de ação política engajada na busca pela liberdade religiosa. Assim, o princípio da liberdade religiosa foi parte integrante da vida e fé dos primeiros batistas ingleses.

O pensamento batista moderno
John Smyth, Thomas Helwys e Guilherme Dell lançaram na Inglaterra as bases históricas da reflexão teológica batista. Mas as dissidências no correr da Idade Média contra a igreja católica centralizada em Roma deixaram marcas que por fazer parte da tradição neotestamentária, como as bandeiras da autonomia da igreja diante dos poderes e da Bíblia como única base de regra de fé e conduta, foram reivindicadas como batistas. Depois da Reforma, compreensões teológicas expostas por Lutero, Calvino e Zwinglio, mas também pelos movimentos anabatistas, puritanos e metodistas foram tomados pelos batistas como corretos.
Tendo por base os princípios políticos da liberdade de pensamento e de expressão, que vão se refletir numa eclesiologia predominantemente congregacional, de autonomia da igreja local, e os princípios teológicos da salvação pela graça redentora de Cristo através da obediência na fé, e da Bíblia como normativa em questões de regra e fé, o pensamento batista se consolidou, apesar das diferenças culturais e históricas.
Assim, os batistas ingleses herdaram ênfases teológicas, que depois foram levadas às colônias norte-americanas. Entre elas podemos citar:
1. Dos anabatistas, a Palavra de Deus como fonte experimentada pela iluminação do Espírito Santo; a regeneração necessária para a vida nova; a igreja como associação voluntária de santos; e a completa separação entre a igreja e o estado.
2. De Lutero, a teologia cristológica; a predestinação dos eleitos; a igreja como comunidade dos santos em Cristo.
3. De Calvino, a Bíblia como suprema autoridade e a doutrina da predestinação dupla e incondicional -- embora os batistas gerais não a aceitem.
4. De Zwinglio, a interpretação normativa da Bíblia; o pecado como doença moral perdoável a qualquer tempo; e a salvação pela razão.

Origem histórica dos batistas ingleses
Na Inglaterra, a origem histórica dos batistas foram as tradições anabatistas/ menonitas holandesas e a ação opositora dos congregacionais à igreja anglicana oficial. Com a perseguição na Inglaterra, em 1609, um grupo separatista fugiu para a Holanda. Mais tarde, esses batistas voltaram para a Inglaterra acompanhados pelo pastor Thomas Helwys e assumiram uma abordagem teológica calvinista.
Se Thomas Helwys foi o primeiro teólogo e escritor batista inglês, que publicou A Short Declaration of the Mystery of Iniquity, Guilherme Dell foi o primeiro intelectual batista.
Dell, conhecido por suas fortes convicções teológicas a respeito da livre expressão do ser humano e defensor dos princípios batistas, apesar de não ter ligação com nenhuma congregação, em 1646, destacou-se por sua luta a favor da liberdade religiosa na Inglaterra.
Escreveu o livro intitulado Uniformidade Examinada onde defendia a tese de que a unidade deve existir sem uniformidade, uma vez que a última é má e intolerável, já que exclui a liberdade concedida por Deus. Essa era uma argumentação favorável a liberdade religiosa.
Outra questão estava no fato de que a uniformidade contraria a mensagem de Cristo e força a igreja, que é o corpo de Cristo, a portar-se de maneira externa aos seus princípios. Ou seja, adapta-se a um poder humano e, sem o aval de Deus, acaba por configurar-se num movimento anticristão, considerado por Dell, pior que o paganismo.

mardi 9 juin 2009

A revolução evangélica

Em 1997, a revista VEJA fez uma reportagem sobre os evangélicos. De lá para cá correu muita água debaixo dessa ponte. Em junho último, Evangélicos pela Justiça divulgou artigo sobre o fenômeno evangélico. Logo após o artigo, na íntegra, está a reportagem de VEJA. Leia e diga o que você acha.(Jorge Pinheiro).

Desde a década de 80 cientistas políticos, antropólogos e sociólogos, sem contar padres e freiras, tentam entender um mistério digno das melhores elucubrações de teólogos católicos, de Santo Agostinho a Hans Kung: a conversão pacífica de 8 milhões de brasileiros às mais de 100 denominações evangélicas que existem no país. É um crescimento da ordem de 100%. No mesmo período, a população brasileira aumentou 31%, o que significa que os evangélicos se multiplicaram a uma taxa três vezes maior que a do país. Eles formam hoje um rebanho de 16 milhões de fiéis. Um rebanho ordeiro, trabalhador, que vem galgando a pirâmide social com velocidade assombrosa. O maior país católico agora é também o terceiro maior do mundo em número de protestantes. É um fenômeno que se assemelha aos épicos bíblico-hollywoodianos: milhões de figurantes, novos apóstolos, canastrões, parábolas de sofrimentos abissais antes da conversão; glórias e prazeres indizíveis depois. Esse processo de conquista de almas já foi interpretado como puro fanatismo, exploração de gente humilde por espertalhões, desqualificado por boçal e vítima dos preconceitos mais pitorescos. Na versão mais sofisticada, a crítica atribuiu aos novos fiéis a pecha de fundamentalistas. Nada mais errado. Tantas almas foram ganhas para o "Deus vivo" porque de alguma maneira a religião acabou sendo útil aos convertidos.

O que aconteceu depois

No intervalo de apenas três anos entre a publicação da reportagem de VEJA e a realização de um novo censo demográfico no Brasil, o número de protestantes registrou um impressionante aumento de 10 milhões de pessoas - de 16 milhões de fiéis para 26 milhões em 2000, ou mais de 15% dos brasileiros. O percentual era cinco vezes maior que em 1940 e o dobro do de 1980. Em Estados como Rio de Janeiro e Goiás, o índice superava 20% dos habitantes. No Espírito Santo e em Rondônia, os evangélicos passaram de um quarto da população. Esse ritmo indicava que metade dos brasileiros poderiam estar convertidos em cinco décadas - um tempo mínimo quando se fala em avanço religioso.

As conseqüências desse crescimento foram muitas. Apenas como sinais das alterações a que esse fenômeno pode levar no perfil das famílias brasileiras, vale citar que os evangélicos, mesmo entre os menos escolarizados, têm menor número de filhos que seus vizinhos de outras religiões. A maioria das mulheres evangélicas casadas usam contraceptivos. A quase totalidade dos adeptos de igrejas evangélicas acreditam que a moral sexual do homem e da mulher deve ser igual, e muitos deles preferem casar-se
com algum irmão de fé. Além disso, ao contrário do que acontece com os católicos brasileiros, cuja maior parte nasce dentro da religião mas na maioria dos casos não a segue completamente, os evangélicos levam a prática da fé a sério: de acordo com dados de 2002, 80% dos evangélicos diziam participar das cerimônias e das obras sociais com regularidade, quatro vezes mais que no rebanho católico. Ao proliferarem em todas as camadas sociais, os evangélicos produziram mudanças facilmente detectáveis. A mais visível delas aconteceu em público. Os maiores eventos religiosos do país passaram a ser realizados por evangélicos. Um presbiteriano, Anthony Garotinho, foi o terceiro candidato mais votado na eleição presidencial de 2002. Sua mulher, Rosinha Matheus, foi eleita no primeiro turno para o governo do Rio. Nos campos de futebol, a imagem de jogadores mostrando camisetas com mensagens cristãs é a parte espetaculosa de uma mudança profunda nos treinos e nas concentrações. Muitos já não participam de brincadeiras machistas envolvendo colegas, não se acabam em noitadas na véspera dos jogos e até evitam xingar os juízes.

A novidade observada a partir do ano 2000 foi que o modelo de conversão dos evangélicos não se aplicava mais somente aos pobres, mas também cada vez mais a quem tem ou persegue a riqueza. Várias igrejas evangélicas formaram departamentos para atrair gente rica ou famosa. A quantidade de colunáveis convertidos mostra que a estratégia é um sucesso. A ex-modelo Monique Evans, que foi capa de várias revistas masculinas, integrava o quadro da igreja chique Sara Nossa Terra. A igreja Vida Nova, de São Paulo, passou a ser freqüentada por Íris Abravanel, mulher do homem do SBT, Silvio Santos, e por suas quatro filhas. Na área da mídia eletrônica, já havia um verdadeiro império evangélico país afora -- mais de 300 emissoras de rádio, centenas de sites e pastores dando plantão na internet e uma grande máquina televisiva. Não por acaso, a Universal, dona de uma das três maiores redes de TV do Brasil, a Record, é a igreja que mais recolhe doações acima dos 10% do dízimo convencional.

Na política, os evangélicos são um trator. A bancada evangélica da Câmara Federal, cada vez maior, é unida e atua muito além das barreiras partidárias nas questões relacionadas a costumes ou a interesses da fraternidade crente. Chegou inclusive a ter 23 congressistas envolvidos na origem do escândalo da máfia dos sanguessugas, que recebia propina para licitar a compra de ambulâncias superfaturadas. Há também grande investimento em educação. A média de leitura dos evangélicos brasileiros girava em torno de seis livros por ano em 2002 - o dobro da média nacional. As denominações evangélicas administram mais de 1.000 escolas no Brasil, com uma clientela que ultrapassa os 750.000 alunos.

Paradoxalmente, o que mais mudou no Brasil com o crescimento da legião evangélica foi a Igreja Católica. De um lado, surgiu a Renovação Carismática, para revigorar os aspectos místicos e milagrosos da fé. De outro, os padres-cantores saíram atrás de fiéis e compradores de CDs. Na mídia, a Igreja fincou uma bandeira em tempo recorde, criando a Rede Vida de rádio e TV, que cobre todo o território nacional. Os resultados, porém, estão longe do esperado. Uma pesquisa de 2004, feita pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris), revelou que a Igreja Católica brasileira perdeu nada menos do que 15 milhões de almas em duas décadas — boa parte foi preencher os bancos das evangélicas.

Os católicos falam em crise de vocações. Em 2006, o número de pastores evangélicos por fiel era dezoito vezes maior que a proporção de padres por católico. Enquanto a Igreja Católica não conseguia ordenar mais do que 900 padres por ano, só um único instituto evangélico de São Paulo formava, no mesmo período, 200 pastores. São pastores de uma nova geração, mais centrados na auto-ajuda e menos no sobrenatural do que seus predecessores — nada da ira e dos exorcismos de Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, ou de R.R. Soares, o onipresente telepastor da Internacional da Graça de Deus.

Fonte
Revista VEJA http://veja.abril.com.br/020797/p_086.html

Abaixo, na íntegra, o artigo da VEJA.

"Onde tem Coca-Cola e Correios tem Assembléia de Deus": cultos em todo canto

Desde a década de 80 cientistas políticos, antropólogos e sociólogos, sem contar padres e freiras, tentam entender um mistério digno das melhores elucubrações de teólogos católicos, de Santo Agostinho a Hans Kung: a conversão pacífica de 8 milhões de brasileiros às mais de 100 denominações evangélicas que existem no país. É um crescimento da ordem de 100%. No mesmo período, a população brasileira aumentou 31%, o que significa que os evangélicos se multiplicaram a uma taxa três vezes maior que a do país. Eles formam hoje um rebanho de 16 milhões de fiéis. Um rebanho ordeiro, trabalhador, que vem galgando a pirâmide social com velocidade assombrosa. O maior país católico agora é também o terceiro maior do mundo em número de protestantes. É um fenômeno que se assemelha aos épicos bíblico-hollywoodianos: milhões de figurantes, novos apóstolos, canastrões, parábolas de sofrimentos abissais antes da conversão; glórias e prazeres indizíveis depois.

Esse processo de conquista de almas já foi interpretado como puro fanatismo, exploração de gente humilde por espertalhões, desqualificado por boçal e vítima dos preconceitos mais pitorescos. Na versão mais sofisticada, a crítica atribuiu aos novos fiéis a pecha de fundamentalistas. Nada mais errado. Tantas almas foram ganhas para o "Deus vivo" -- professado sempre aos gritos pelos evangélicos neopentecostais em cultos mais estridentes que uma apresentação de Carla Perez -- porque de alguma maneira a religião acabou sendo útil aos convertidos. Vencendo o preconceito e o desconhecimento, uma nova fornada de estudos acadêmicos sobre o tema é capaz de relacionar alguns desses benefícios:

As igrejas evangélicas realizam um monumental trabalho de alfabetização de adultos e estimulam o hábito da leitura. Embora recrutados entre a população mais pobre e portanto mais suscetível ao analfabetismo -- 54% do rebanho ganha até cinco salários mínimos --, os evangélicos são mais letrados. O analfabetismo entre eles atinge apenas 9,5%, contra 20% da população brasileira em geral.

A disciplina religiosa e a importância dada à educação como fator de ascensão social fazem com que os fiéis das igrejas evangélicas sejam mais exigentes com o desempenho escolar dos filhos. Mesmo quando pobres, 80% dos evangélicos não admitem a hipótese de seus filhos adolescentes entre 12 e 17 anos deixarem de estudar para trabalhar. É o quesito relativo ao comportamento da prole em que são mais exigentes. Na população em geral, o imperativo do estudo atinge apenas 60%.

Sem dogmas que impeçam o planejamento familiar, as novas igrejas distribuem anticoncepcionais a seu rebanho. Segundo o estudo "Novo Nascimento", produzido pelo Instituto de Estudos da Religião, entre as famílias evangélicas pobres, o número de filhos é, em média, 25% menor que entre a população brasileira.

Os evangélicos realizam trabalhos de recuperação de dependentes de drogas e álcool em 270 clínicas espalhadas pelo Brasil. Elas atendem 12.000 pessoas, com índices de eficiência semelhantes aos obtidos por instituições reputadas, como os Alcoólicos Anônimos: 60% de recuperação.

Uma sólida rede de solidariedade entre os fiéis garante que um ajude o outro na hora do desemprego ou da dificuldade financeira. Evangélico empresário prefere empregar irmãos de fé ou candidatos à conversão. Essa rede de empregos se amplia ainda mais porque a atividade religiosa, para os evangélicos, implica a criação de empresas. Editoras bíblicas, canais de televisão, escolas, templos e até bancos evangélicos são responsáveis pelo surgimento de 600.000 empregos, cinco vezes mais que os postos gerados diretamente pela indústria automobilística.

Leitura obrigatória -- Num país onde a educação é uma desgraça, embora seja fator decisivo no destino de qualquer pessoa, o costume protestante de promover a leitura cotidiana da Bíblia, e, mais do que isso, de obrigar o fiel a ler os textos sagrados antes de convertê-lo, transformou-se numa verdadeira revolução educativa. "Os protestantes têm de ser alfabetizados para cumprir seus deveres e fazer seus filhos cumprirem essa norma", lembra o reverendo Jaime Wright, da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil. É uma diferença e tanto num país de tradição católica, pela qual só aos padres compete a leitura das Sagradas Escrituras. A professora de sociologia Cecília Mariz, da Uerj, acompanhou durante cinco anos comunidades evangélicas no Rio de Janeiro e no Recife. Mais tarde, numa tese de doutorado que fez na Universidade de Boston, com o título de "Convivendo com a pobreza -- Pentecostais e comunidades de base no Brasil", Cecília notou que a escola bíblica, dominical, é uma fonte de instrução vital. Além disso, perpetua o hábito da leitura. "A grande frustração dos programas oficiais de alfabetização tentados no Brasil é que, uma vez dominadas as primeiras letras, o aluno nunca mais punha os olhos num jornal ou numa revista", diz ela. "Com os evangélicos, não acontece isso: eles lêem sempre a Bíblia, de onde passam para jornais ou livros religiosos." Exatamente essa parcela de brasileiros muito pobres, entre os quais se inscrevem os 19 milhões de analfabetos, é alvo privilegiado da pregação pentecostal.

Pastor-presidente da 1ª Igreja Batista de Niterói há 33 anos, Nilson Fanini explica que a educação é uma exigência para o 1,8 milhão de batistas das 6.000 igrejas que mantém. Setenta escolas de 1º e .2º grau e 300.000 alunos mantidos pela Convenção Batista Brasileira mostram o esforço educacional desses protestantes. A Igreja Universal, do bispo Edir Macedo, gere o projeto Ler e Escrever, que visa alfabetizar por meio da Bíblia. Segundo o bispo Honorilton Gonçalves, 1,2 milhão de pessoas já passaram pelos bancos do Ler e Escrever.

E haja o que ler. As editoras evangélicas são um estouro empresarial que só tem concorrente entre as casas que produzem livros didáticos -- com a diferença de que elas não possuem a clientela garantida pelo governo. De suas gráficas saíram no ano passado 21 milhões de exemplares de livros, revistas, bíblias e jornais. A maior fatia é de revistas e jornais, com 15 milhões, seguida pelas bíblias, 3,5 milhões de cópias. Em 1995, a produção total foi de 9 milhões, o que resulta num crescimento de 130% em apenas um ano. Só no ano passado foram lançadas noventa novas revistas e jornais, 396 livros inéditos, 61 modelos de bíblia. Para quem acha que essas leituras servem apenas ao fanatismo, lembre-se que hoje nem os setores que empregam a mão-de-obra mais desqualificada, como a admitida na construção civil ou para os serviços domésticos, aceitam trabalhadores analfabetos.

Reformas -- O líder da Assembléia de Deus brasileira, a maior igreja evangélica do país, o cearense José Wellington Bezerra da Costa, bacharel em direito, é testemunha e co-autor desses êxitos. Pai de seis filhos -- três são pastores, uma é sua secretária, outra trabalha com crianças e um, médico, dá assistência ao pessoal da igreja --, Wellington dirige a maior das igrejas evangélicas. São 2,9 milhões de fiéis, conduzidos por 10.000 pastores. É tanta gente que a convenção geral que elege o presidente da Assembléia, a cada dois anos, reúne cerca de 5.000 pastores. A última delas, em janeiro, foi no Estádio do Mineirinho, em Belo Horizonte. São 130.000 casas de oração, incluindo as igrejas, desde uma pequena tapera alugada até templos que acolhem 10.000 pessoas, como uma antiga fábrica de tapetes comprada há seis meses num bairro operário de São Paulo. Na mesma região, já funciona outro templo com capacidade para 3.500 pessoas. No último domingo de cada mês há batismos -- entre 1.000 e 1.500 pessoas são batizadas de uma só vez.

Três dos quatro últimos presidentes receberam o pastor Wellington em audiência -- José Sarney, Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso. No encontro com FHC, em outubro passado, Wellington deu seu recado: "Eu disse que nós somos 100% contrários à união civil entre homossexuais, 100% contrários à liberação do aborto, 100% contrários às drogas e 100% contrários ao Movimento dos Sem-Terra, porque ele fere o direito de propriedade, e disse que a Assembléia de Deus ora e dá apoio às reformas".

A força da organização está nos passos de formiga de cada um de seus membros. A Assembléia de Deus é menos centralizada que a Igreja Católica, muito mais permeável, portanto, à pressão dos fiéis. Apesar dos 100% empenhados contra o MST pelo pastor Wellington, nos acampamentos de sem-terra e nos cultos ecumênicos realizados em favor da reforma agrária sempre está um pastor assembleiano, ladeado por um padre da teologia da libertação, exortando a "companheirada" a prosseguir na luta. Também se encontram evangélicos entre a liderança da PM de Minas Gerais que encerrou quinze dias de greve na semana passada, nos clubes de futebol e até no ministério, onde possuem um representante, Iris Rezende, da Justiça, evangélico de hábitos regulares.

Em todo lugar -- Donos de uma tecnologia de invasão de corações, eles sabem como crescer na periferia e nos ermos rurais. "Quando há um loteamento novo, não esperamos: chegamos na frente, compramos o terreno mais barato e assim que o pessoal chega já tem a igreja para freqüentar", explica o pastor Wellington, exibindo uma visão de religião como tão indispensável quanto água encanada e luz elétrica. Diferentemente da Igreja Católica, com templos cravados nos lugares centrais de cada cidade, os evangélicos se enfiam nos bairros em formação, em bocadas miseráveis, em favelas encarapitadas em morros. Essa logística de ocupação das grandes cidades produz o milagre da multiplicação dos templos, que dá a impressão de que eles estão em todo lugar. Estão mesmo. "Onde tem Coca-Cola, Correios e Bradesco, tem Assembléia de Deus", ironiza Wellington.

É o padre Agnaldo Luiz de Castro, pároco da Igreja Nossa Senhora das Graças de Éden, subúrbio do Rio de Janeiro, quem dá uma das chaves para entender a multiplicação evangélica. Ele sabe o que é isso: sua igreja está cercada por templos protestantes de nomes tão complicados quanto Assembléia de Deus no Trabalho de Cura Divina, Prodígio e Libertação, Assembléia de Deus de Missões, Igreja Pentecostal Shalom e Igreja Evangélica Congregacional, sem contar um templo metodista. "É fácil criar uma igreja cristã não católica porque ninguém vai lá cobrar legitimidade, enquanto na Igreja Católica o padre não pode casar, tem de terminar o 2º grau e fazer sete anos de seminário, estudando três anos de filosofia e quatro de teologia. Isso ainda nos amarra." O que para o padre é defeito, para os evangélicos é princípio religioso. Desde que Martinho Lutero afixou as suas 95 teses na porta da igreja do castelo de Wittemberg, em 1517, e com isso deu origem ao mais espetacular cisma religioso da época moderna, a Reforma Protestante, os crentes acreditam no sacerdócio universal e na autoridade exclusiva da Bíblia. Todos podem falar com Deus, diretamente, sem a intermediação de vigários, e ter acesso direto à palavra divina. Com isso, o indivíduo tem mais responsabilidade, mais consciência, não depende tanto de hierarquias acima dele. Fundamentos básicos da nova fé, esses princípios valem para todas as igrejas ditas evangélicas.

"A perua de Deus" -- Os princípios permanecem, mas mudaram os invólucros. Em busca de um rebanho jovem, as seitas se modernizaram. "Em vez do ascetismo, agora pregam o hedonismo. Em vez de opor-se ao mundo -- antes considerado ninho de pecados --, agora querem integrar-se radicalmente a ele. Adaptaram-se e geraram o maior vetor de acomodação social da atualidade", avalia Ricardo Mariano, sociólogo da USP. Hoje, podem-se encontrar igrejas como a Renascer em Cristo, do "apóstolo" Estevam Hernandes, ex-gerente de marketing da Itautec e da Xerox e cuja esposa, a bispa Sônia Hernandes, é conhecida como "a perua de Deus", tal o seu exibicionismo em qualquer culto. A fala do jovem fiel de classe média da Renascer em Cristo Flávio Lima, 25 anos, dono de uma empresa que organiza eventos esportivos, torna evidente como os ideais de consumo penetraram no mundo antes asceta do protestantismo. "Chegou uma hora em que eu não queria mais ir à missa. Não dava para comparar a missa-Fusca em que eu andava com os cultos-BMW que freqüento agora." Quase uma caricatura. A Renascer é ainda uma igreja pequena, e deve permanecer assim, pela seleção social que acaba fazendo dos fiéis, mauricinhos em boa medida.

É entre os pobres, porque se apresentam como capazes de operar o milagre da prosperidade, que as novas igrejas pentecostais mais crescem. Também é entre eles que mostram sua força como elemento da acomodação social de que falou o sociólogo Ricardo Mariano. Num estudo com jovens evangélicos da periferia do Rio de Janeiro, a antropóloga Regina Novaes, do Instituto de Estudos da Religião, descobriu, por exemplo, que as igrejas evangélicas se afirmaram como uma opção ao tráfico de drogas. "Vi muitos meninos que trabalhavam para os chefes locais converter-se. Foi a forma de escapar à criminalidade." Mas essa adesão de adolescentes só foi possível porque as novas igrejas também se renovaram. Música funk, rap, dança, biquíni e sunga, que deixariam um crente de antigamente roxo de vergonha, são permitidos pelos novos pastores.

A concorrência dos soldados renovados de Deus obrigou a antes ultratradicionalista Assembléia a mudar. O pastor Wellington diz que sua igreja ainda não tolera mulher vestida com calças compridas -- "Não se ache na mulher a roupa do homem", diz a Bíblia. Em compensação, ele não vê nada de mais em seus fiéis usarem métodos contraceptivos artificiais. "Seria hipocrisia ir contra isso, embora eu ache melhor o método natural", diz. Até 1989, os seguidores dessa igreja não podiam sequer olhar para a televisão. Hoje, a Assembléia tem duas geradoras de programação e 47 repetidoras.

"Dinheiro, saúde e felicidade", prega sem peias o bispo Edir Macedo, "são a prova da bênção divina." E o fiel testa o merecimento dessa bênção ao fazer "apostas" com Deus, na forma das "ofertas em dinheiro", Se Deus acreditar na sinceridade do ofertante, dizem os pastroes, concederá a graça desejada. Causa repugnância a adeptos de outras igrejas. Isso sem falar no dízimo. Pode ser repugnante esse mercado de Deus. Mas o fato de pregar que o paraíso é aqui e agora -- depende de acreditar, pagar e trabalhar -- tem conseguido movimentar uma legião de miseráveis, que não mais se acabrunham diante das vicissitudes da vida, à espera do paraíso de além-túmulo. Seiscentos mil católicos deixam a cada ano a guarda do Vaticano para ingressar nessa aventura.

O queridinho dos intelectuais

No seu rol de amizades estão personalidades díspares como o comediante Chico Anysio, o sociólogo Betinho e os ex-candidatos à Presidência da República Luís Inácio Lula da Silva e Leonel Brizola. Ele já travou longas conversas telefônicas com o petista e recebeu Brizola para comer um tambaqui amazônico em sua casa. Na semana passada, apareceu sorridente, ao lado de uma bela morena, numa foto de coluna social. Já vendeu 3,2 milhões de livros no Brasil. Seu nome é Caio Fábio D'Araújo Filho, pastor da Igreja Presbiteriana Bethânia, que, aos 42 anos, se firmou como símbolo de algo que os amigos chamam de "evangélicos éticos" e os inimigos, entre os quais se encontra um leque também amplo, como o bispo Edir Macedo e o governador do Rio de Janeiro, Marcello Alencar, classificam de "evangélicos chiques".

Lançado há duas semanas, o 93º livro de Caio Fábio, Confissões do Pastor, já vendeu quase toda a tiragem inicial, de 20 000 exemplares. No livro, autobiográfico, pontuado pelas confissões de Santo Agostinho -- uma heresia do ponto de vista dos evangélicos ortodoxos --, o pastor revela que foi um jovem rebelde, promíscuo e desorientado, consumidor voraz de bebida e drogas, sempre às voltas com mulheres e brigas. Amazonense, morando no Rio desde os 15 anos, ele lembra que, suicida, chegou a andar de motocicleta na contramão de uma avenida em Manaus e cogitou dar um tiro na cabeça. Como era de esperar numa obra desse tipo, lá pelas tantas o pastor explica que só não fez isso porque, antes, teve uma visão e se converteu.

Caio Fábio quebrou o preconceito contra os crentes e ganhou ares de pastor cult ao tomar a frente de movimentos sociais. É dele o projeto da Fábrica de Esperança, onde são atendidas mensalmente 15 000 pessoas, em cursos profissionalizantes e assistência médica, odontológica e psicossocial. Casado há 23 anos, pai de quatro filhos, o amazonense leva uma vida confortável num condomínio fechado em Itaipu, Niterói. Tem um Omega 95, celular e ganha por mês de 8 000 a 10 000 reais, entre o salário de pastor e os direitos autorais de seus livros.

A bênção e o dinheiro -- Ele não exerce atividades cotidianas de pároco há treze anos. Dedica-se aos projetos da organização cristã não-governamental Visão Nacional de Evangelização, Vinde, um complexo de comunicação, com uma editora, uma revista mensal que vende 60 000 exemplares, uma rádio AM no Rio e um canal de televisão, com transmissão para Rio, Goiânia, Anápolis e, em breve, Curitiba e Brasília. Ele também tem um programa semanal na TV Manchete. Já foi duas vezes presidente da Associação Evangélica Brasileira -- hoje é presidente de honra. Seu santo só não cruza com o do bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus. "Não acho que a bênção de Deus se alcança com dinheiro como ele prega", diz o pastor.

Com reportagem de Franco Iacomini, de Curitiba, Manoel Fernandes,
de Salvador, e Virginie Leite, do Rio de Janeiro.