vendredi 23 mars 2012

O rei Davi e os anos de chumbo


Davi 

Justiça e graça não se opõem. Antes, são atitudes do Eterno inseridas em seu propósito de redenção da espécie humana. Respostas à realidade criada pela aceitação ou não-aceitação da libertação oferecida pelo Criador.

O segundo livro de Samuel, dos capítulos 11 ao 20, fala da profunda depressão vivida por Davi em conseqüência do seu ato de possessão da mulher de Urias, e como tal situação desencadeou a desestruturação de seua clã e do reino.
Depois do ciclo menstrual, o banho

Tudo começou quando Davi, que possuía oito mulheres, resolveu possuir também a mulher de Urias, que terminado seu ciclo menstrual se lavava na laje de sua casa. Urias, era um general mercenário, heteu de nacionalidade, a serviço do exército de Davi. O rei viu a mulher, mandou trazê-la e teve relações com ela no terraço da casa real. É interessante notar, que tempos depois, quando Bate-Seba manda lhe informar que está grávida, o rei só pensa em esconder o acontecido. E assim faz o caminho da dissolução, tentando fazer com que Urias volte para casa, quebre as regras militares do aquartelamento, que impedem os guerreiros de manterem relações sexuais em época de batalha, e tenha relações sexuais com Bateseba para que o futuro filho possa ser apresentado como do casal. Mas como tal tática não dá certo, Davi opta pelo assassinato do heteu mercenário, já ninguém se importaria com a morte de um estrangeiro. Posição racista que traduz hipocrisia, ingratidão e que culmina com o homicídio.
O medalhão da morte de Urias

Nem bem o cadáver de Urias esfriara, já que o luto de sete dias foi puramente formal, Bate-Seba recolhe-se à casa real e torna-se mulher de Davi. Passado nove meses, o profeta Natã apresenta a Davi a parábola do homem rico que se apropria da ovelha do homem pobre.

"Tu és este homem", vocifera Natã. Denunciado publicamente, Davi chora o seu erro diante de Deus. Arrepende-se e é perdoado. Mas os frutos das três faltas cometidas, adultério, dissimulação e assassinato, ele haveria de colhê-los na sua própria família.

Não somente o reino sofreu as conseqüências da quebra da Lei, já que a confiança que o povo depositava no rei foi imediatamente quebrada. Da mesma maneira, sua família olhava com desconfiança esse pai que se mostrava fraco e evasivo diante de suas obrigações familiares.

Temos, então, a morte do primeiro filho de Davi e Bate-Seba, o incesto de Amnom e Tamar, e o ódio crescente de Absalão pelo seu meio-irmão Amnom. É impressionante notar que passados dois anos, a única postura de Davi em relação ao filho incestuoso foi apenas de muita ira. Não há da parte do pai nenhuma atitude objetiva. Não há diálogo, crítica, punição... Nada. Apenas ira acumulada. Podemos imaginar como isso tocou o coração de Absalão, irmão de sangue de Tamar, ao ver dois anos passarem-se sem que o pai tomasse qualquer atitude.  E Absalão fez justiça com as próprias mãos, assassinando o irmão.

Tal situação fracionou mais ainda as relações familiares. Davi amava a Absalão, e este ansiava pelo perdão do pai. Mas nunca mais foram reatadas as relações de amor entre pai e filho. É verdade que depois de três anos de separação, Absalão consegue ver o pai, que o beija. Até que ponto este beijo foi o pedido de perdão de um pai omisso a seu filho rebelado, não sabemos. O beijo como cumprimento era um costume oriental. O certo é que o ressentimento de Absalão não foi curado.

Temos, então, mais uma seqüência de tragédias. Absalão lidera uma conspiração contra o próprio pai, toma o trono e obriga Davi a fugir com toda a sua família e soldados de confiança. O rei é apedrejado e amaldiçoado. Em fuga, "o rei Davi e todo o povo que ia com ele chegaram exaustos ao Jordão, e ali descansaram".

Sem dúvida, esses últimos cinco anos tinham sido terríveis. Esse Davi, deprimido à beira do Jordão, estava longe de lembrar o pastor alegre e confiante que derrotara Golias. A auto-suficiência do rei, sua insensibilidade e racionalização levaram-no à transgressão. Agora estava ali, às margens do rio, tendo dentro de si uma confusão de sentimentos acumulados: culpa, medo, ira, rejeição.

Quando se arrependera, depois da exortação de Natã, Davi escreveu o salmo 51 e posteriormente o salmo 32. Dois textos belíssimos. O primeiro, sobre a confissão do pecado e o arrependimento. O segundo, sobre a felicidade daquele que recebe o perdão. Agora, no fundo do poço, com a família destroçada, suas concubinas sendo possuídas publicamente pelo próprio filho, destronado e amaldiçoado, só lhe restava descansar em Deus.

O reinado de Absalão será curtíssimo. Ele é assassinado e o rei Davi vive um momento de profunda angústia. Recupera-se da dor da morte do filho rebelde, mas tão amado, e começa a reconquistar cada uma das tribos, em parte graças à participação diplomática e militar de seu amigo e braço direito durante todos esses anos: Joabe.

A tempestade estava passando. Os anos de chumbo terminavam. E Davi recomposto emocional e espiritualmente poderá dizer no final de sua vida:

"Disse o Deus de Israel, a Rocha de Israel me falou: aquele que domina com justiça sobre os homens, que domina no temor de Deus, é como a luz da manhã, quando sai o sol, como manhã sem nuvens, cujo esplendor, depois da chuva, faz brotar da terra a erva. Não está assim com Deus a minha casa? Pois estabeleceu comigo uma aliança eterna, em tudo definida e segura. Não fará ele prosperar toda a minha salvação e toda a minha esperança?”.
                                                                                   
O Senhor Deus restaurara a vida de Davi.

Mas fica uma pergunta: será que o rei durante esses anos trágicos tinha consciência do processo que estava vivendo? Temos uma pista bastante interessante: os já citados salmos 51 e 32. Vejamos o que eles dizem.

No salmo 51, salmo de confissão e arrependimento, logo no versículo três, Davi afirma: "(...) eu conheço as minhas transgressões e o meu pecado está sempre diante de mim".

Davi, na verdade tinha consciência do erro cometido. Quando escreve o salmo, ele já parou de racionalizar o seu erro. Ele não se justifica mais. É interessante ver como essa compreensão que tem de si próprio é real. Davi, neste salmo, usa palavras como purificar, lavar, renovar, restituir, sustentar, livrar e abrir, para dizer o que Deus precisa fazer por ele. Aqui ele vê suas limitações, vê sua humanidade decaída e pede a Deus que seja Deus pleno em sua vida.

Duas coisas ficam claras nessa oração do rei Davi. Por um lado, reconhece que está vivendo o momento mais terrível de sua vida: distante do Eterno, esse Deus que transformou um menino desprezado pelo pai, pastor de ovelhas, sem perfil para nada mais heróico, em rei ungido de Israel. Mas, se tem esta autocompreensão de seu estado de pecador pusilânime e irremediavelmente perdido, por outro, tem consciência de que não é isso que o Eterno quer para ele. "Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova em mim um espírito reto".

E no salmo 32, o rei canta a alegria do perdão recebido. Ele se diz feliz, bem-aventurado, e explica que esses sentimentos existem porque "não ocultei os meus pecados".

Depois de reconhecer suas limitações, de ter seus erros perdoados e de viver a alegria do perdão, Deus diz a Davi: "Instruir-te-ei e te ensinarei o caminho que deves seguir; e sob as minhas vistas, te darei conselho".

Davi superara seus erros, mas o Eterno continuaria presente. Cresceria no conhecimento do Eterno, de si próprio, e do próximo. Graças a esse crescimento, gerações foram abençoadas com os momentos de chumbo da vida do rei Davi, com seu arrependimento e com o conhecimento posterior que o Eterno lhe deu.