vendredi 6 février 2009

Do Logos de Heráclito ao Logos joanino

Leitura para meus/minhas alun@s de Filosofia II. Favor ler também o artigo anterior postado no blog: A amizade como pretexto.

Logos, no grego 'palavra', foi entendido pelo filósofo grego Heráclito de Éfeso, como o princípio supremo de unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o Universo. ["Bem dizia Heráclito: homens são deuses e deuses são homens, porque o Logos é um só" (Hipólito, Refutações, IX, 10,6)]. Assim, Heráclito diante da mobilidade de todas as coisas denominou fogo ao elemento primitivo, e viu este comandado por uma lei natural inteligente ou racional, o Logos. Considerou o Logos dotado de dois princípios internos contrários a operar, ditos por ele, antropomorficamente, guerra e paz (ou discórdia e concórdia). Estas duas forças contrárias transformavam o elemento primitivo, ora na direção da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo. Portanto, o Logos, concebido por Heráclito como uma lei natural ordenadora, a tudo comanda em forma dialética. E segundo Platão é o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o inteligível. Assim, para a filosofia grega, Logos era o princípio da inteligibilidade, a razão.

Mas, exatamente por ser razão e palavra, Logos mantém uma relação de complementação com sabedoria, e por isso é pensada por Heráclito como harmonia, o próprio nexo original entre Logos e physis. Todavia, para que, diante da ameaça do relativismo trazido pelas argumentações sofísticas, encontre-se melhor determinado o que se compreende por verdade, o pensamento de Sócrates e Platão vai formular explicitamente a questão: o que é? Esta questão busca definir isso que subjaz sempre idêntico a si mesmo, a substância ou essência, fundamento de +toda instabilidade acidental da existência aparente. O que em Heráclito se delimitava como o encontro da harmonia passa a ser, a partir do pensamento de Sócrates e Platão, uma procura: nasce, assim, a filosofia como um desejo de conhecimento. Aristóteles caracteriza expressamente esta transformação quando afirma em sua obra que "O que desde sempre, agora e para sempre, é constantemente procurado, porque sempre de novo a questão fracassa, é o problema: o que é o ser?". A filosofia constitui-se, a partir das concepções socrática, platônica, aristotélica, como o pensamento que investiga a questão do ser.

O conceito razão relaciona-se a três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser. Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte de existência: origem do ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento, impossível de penetrar. Pari passo à essência, o Logos correlaciona mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o Logos. Assim, o Logos é a origem da razão e também do ser. Mas, origem do ser aqui não significa conhecimento a priori, é estar colocado à parte do reino da finitude e por isso a origem do ser só é conhecida por um ato de revelação.

A importância do logos

Dentre as inúmeras transformações que surgem com a pólis, a mais importante é a extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder.

A palavra deixa de ser o termo ritual e passa a ser a fonte para o debate, discussão e reflexão, sendo ela, ou melhor, o seu uso de forma mais persuasiva, que irá definir o orador vencedor dos embates dialéticos (dialética é compreendida como a arte real da discussão: as normas para uma discussão correta). Todas as questões de interesse geral passam a ser submetidas à arte da oratória e as decisões são as conclusões dos debates. A política se torna a arte do domínio da linguagem. Com a popularidade dos debates e das discussões, a polis se fundamenta na publicidade das manifestações sociais; se distinguem os interesses comuns dos privados, consolidam-se as práticas abertas e o domínio público, a base social da estrutura.

Porém, esse desenvolvimento traz uma profunda transformação, já que ao tornar comuns os elementos de uma cultura, levamos os mesmos à crítica e à controvérsia. Todos os elementos estão expostos a interpretações diversas e a debates apaixonados. Já não era possível se impor só por prestígio pessoal ou religioso... Devia haver o convencimento pela dialética.

A palavra constituiu-se no instrumento da vida política. Sua vertente escrita trouxe em si a possibilidade de uma completa divulgação do conhecimento. Neste momento, a escrita tornara-se pública, não mais estando presente apenas no palácio – como no período micênico. Neste contexto, o saber pode tornar-se igualmente público, deixando de estar restrito aos magistrados ou sacerdotes. Depois de divulgadas, as idéias deverão ser submetidas ao debate político e à aceitação popular.

A sabedoria e o logos

Com a consolidação da importância da palavra, o saber passa a ser um bem público. E a sabedoria, tão exaltada por filósofos como Platão, para o qual a sabedoria pertencia ao passado, ofereceu aos seus contemporâneos o amor à sabedoria, à filosofia. Assim, a sabedoria percorreu as veredas da linguagem, da palavra, do discurso, do logos, da dialética: este caminho tornou-se característico da cultura grega. Pode-se, em última instância, argumentar que a filosofia nasceu no momento em que se tentou recuperar algo perdido, a sabedoria, mesclada à dialética.

Não foi sem resistência que esse percurso foi seguido. A popularização do saber, antes inacessível, foi questionada. Havia uma articulação para que os mitos que chegassem à praça publica e fossem objeto de exame, mas não deixassem de ser um mistério. A sua reformulação produziu um salto no desenvolvimento humano, mantendo seus reflexos até hoje.

Na contemporaneidade latino-americana, partindo da dialética, Enrique Dussel propõe a dialética analógica da alteridade, a abertura da totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos. O logos permanece no mundo e não pode avançar mais além. O logos que transcende é análogos, mais além do logos, analogia que se articula na dialética da voz ouvida que leva a ouvir: ou seja, a ouvir a voz. Assim, o logos chega ao seu limite, e confia no que ouve do outro pela fé, pois sem a confiança no outro, não se pode escutar sua voz. Fé aqui significa ir mais além do horizonte da physis, ir mais além do horizonte da ontologia do mesmo, afirmando a ontologia da negatividade, isto é, já que o outro não se origina no idêntico, é diferente. Brota como ouvido, é âmbito ao qual a totalidade pode abrir-se, e ao abrir-se muda de estatuto, tornando-se ontologia negativa.

Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. E como em grego aná significa mais além, e logos significa palavra, análogos toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. 1 Mas se o outro é distinto, não há diferença, nem retorno, embora haja história e crise. Por isso, para Dussel, se este logos irrompe enquanto interpelante indo mais além da compreensão, ele é análogo.

Essa interpretação de Dussel repousa na compreensão do Logos joanino, que repousa em Jesus, o Cristo, acima da tradição filosófica, quer de Heráclito, quer de Platão ou do neoplatonismo, e ainda da filosofia judaica expressa em Filón de Alexandria. Nesse sentido, se antes estávamos diante da personificação do Logos, ainda assim não há na tradição da filosofia grega ou judaica a idéia de encarnação do Logos. Esse Logos joanino, por isso, vai além de toda a tradição filosófica, embora João a utilize como ponte para falar à cultura de sua época.

Há ainda uma ponte com o pensamento judaico, principalmente no que se refere aos textos de Gênesis um e de Provérbios 8.22-31. O primeiro ao utilizar a expressão “en arqué” e o segundo ao personalizar a sabedoria. Nesse sentido, o Logos de João se apresenta como análogo. Análogo a Deus, porque é pessoa divina, e análogo aos seres humanos, porque é pessoa humana.

Análogo significa que o Logos vem de mais-além, isto é, que há um primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo, que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem nova. Embora, este Logos eterno se reflita através de nossos pensamentos e por isso não possa existir um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e 1Coríntios 2.16].

Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas mesmo assim, podemos e devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos então o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu.

Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver e dominar os valores universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo o ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Nosso destino, que aqui pode ser entendido como missão, é servir ao Logos num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

Nota

1. Enrique Dussel, “El Método de Pensar Latinoamericano: la Analéctica como Ruptura Teórica”, conferência proferida em novembro de 1972, in Introduccion a Una Filosofia de la Liberación latinoamericana, México D.F., Ed. Extemporâneos, 1977, pp. 117 a 138.

A amizade como pretexto

Leitura para meus/ minhas alun@s de Filosofia II
O QUE É FILOSOFIA?
Dizem-me: esse gênero de amor não é viável. Mas como avaliar a viabilidade? Por que o que é viável é um Bem? Por que durar é melhor que inflamar?1

Mais curioso que a pergunta -- o que é a filosofia? -- é a relação que os filósofos fazem da juventude com a ingenuidade. Afirmam que na juventude filosofavam sem saber o que faziam, que não possuíam a fúria da velhice que tenta nominar os conceitos. Agora velhos, quando se perguntam o que é a filosofia, apenas colocam de forma clara, simbólica, o que sempre fizeram. E, assim, a resposta é: filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos.

A origem grega da palavra filosofia pode ser traduzida como amigo da sabedoria. Mas seria mesmo uma amizade?

O filósofo espanhol Francisco Ortega é um dos pensadores contemporâneos que ressalta a importância da amizade como objeto de reflexão filosófica.2 Incluindo-se nas correntes de pensamento que reivindicam para a filosofia a descentralização do sujeito e a tarefa de criar uma nova política da imaginação. Ortega projeta a amizade no contexto de uma nova ordem subjetiva, além da metáfora familiar aonde estes temas são reconhecidos e despolitizados. Politizar a amizade, para Ortega, é uma tarefa a ser assumida pela filosofia, no sentido proposto por Foucault, com "o deslocamento e a transformação das molduras do pensamento, a modificação dos valores estabelecidos e todo o trabalho que se faz para pensar de uma maneira diferente, para fazer outra coisa, para tornar-se outro do que se é".

Analisando o conceito de amigo, percebemos que a amizade possibilita uma relação íntima do ser humano com os conceitos, e que a condição para o exercício do pensamento é que tanto humano quanto conceito sejam vitais um para o outro.

Quando uma relação se torna condição para a existência de duas pessoas chamamos estas não de amigas mas de amantes. Eis a questão: amigos ou amantes?

Ora, o amor é esta tendência de um se unir com o outro, possuí-lo de modo contínuo, ou formar um todo com ele ("amor a Deus"). Em Platão é aspiração ao belo e ao bom, ao absoluto. Platão, em O Banquete, afirma que o amor é a principal motivação da filosofia, descobrindo assim o lugar central deste conceito. Mas convém distinguir o amor egoísta, possessivo, que persegue o outro como um objeto a ser devorado ("o amante ama o amado como o lobo ama o cordeiro", escreve Platão) e o amor que liberta do sofrimento e do desejo e conduz a alma ao banquete divino. O amor verdadeiro só pode ser satisfeito pela contemplação, para além do belo, do verdadeiro e do bem.

Uma amizade pode ser o final de um grande amor, mas nunca o início. As amizades transformadas em amor, sempre foram amor. E partindo dessa premissa poderíamos dizer o que é a filosofia.

Da reunião dessas duas idéias, amigo e amante, podemos inferir uma multiplicidade de conceitos. Podemos dizer que o filósofo é ele próprio conceito em potência e, a partir daí, que a filosofia deixa de ser apenas arte de fabricar conceitos, passando a ser a disciplina que consiste em criar conceitos. Mas quando falamos em criar conceitos estamos falando em definir idéias. Assim, definir um conceito é manifestar a sua compreensão. Deste modo, definir é delimitar as fronteiras. Geralmente a definição faz-se pelo gênero próximo e pela diferença específica.

Os conceitos não nos esperam feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: “os filósofos não devem mais se contentar em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los”.

Agora, já podemos tentar abordar, partindo do outro extremo, o que a filosofia não é. Não é contemplação, “pois as contemplações são as coisas elas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos”. Não é reflexão, “posto que ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja, isto é, artistas, por exemplo podem pensar sua arte sem que sejam filósofos, já que a reflexão pertence à própria criação individual, respectiva”. Não trabalha opiniões, pois nunca visa o “consenso”, mas sim o “conceito”. O primeiro princípio da filosofia deve ser que os universais não explicam nada, eles próprios devem ser explicados.

Conhecer-se a si mesmo, fazer como se nada fosse evidente, espantar-se: estas determinações e outras compõem a filosofia.

Mas não há garantias na manutenção dos conceitos criados, que podem ser revistos, fazendo com que a “exclusividade da criação de conceitos assegure à filosofia uma função, mas não lhe dê nenhuma proeminência, nenhum privilégio, pois há outras maneiras de pensar e criar, outros modos de ideação”.

Utilizando estes argumentos e retomando às denominações propostas do amigo, amante, pretendente e rival, a filosofia segue seu caminho de provação. Nesta via caminha despojando-se dos limites impostos pela obrigação dos benefícios sociais, que não são sua finalidade, mas um de seus usos finais.

A filosofia, encarnada na pele do filósofo, faz com que ele se delineie como um pretendente ao conhecimento, que no jogo da sedução se fantasie de amigo para obter sua conquista e assim tornar-se amante. Em sua fase apaixonada, intensa, criativa, o filósofo acaba por tornar-se um rival de seus próprios conceitos através da insaciabilidade por recriá-los. Por fim, vem a maturidade e as criações da velhice, frutos de uma profunda amizade.3

Notas
1. Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981, p. 17.
2. Francisco Ortega, Para uma política da amizade, Arendt, Derrida, Foucault, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2000.
3. Gilles Deleuze, F. Guattari, O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992. pp.9-21.