lundi 8 octobre 2007

José Manoel da Conceição, o reformador brasileiro visto por três autores

Extraído do livro Entrevista com Ashbel Green Simonton, Editora Ultimato, págs. 43-46.

José Manoel da Conceição nasceu em São Paulo, seis meses antes da Independência do Brasil, em março de 1822. Mudou-se para Sorocaba em 1824 e foi educado pelo tio, o padre José Francisco de Mendonça. Começou a ler a Bíblia aos 18 anos. Pouco depois, travou amizade com uma família inglesa e várias famílias alemãs, todas protestantes, e ficou impressionado com a vida religiosa deles.
Naturalmente devoto, abraçou a carreira sacerdotal, tendo sido ordenado padre aos 22 anos. Exerceu o sacerdócio de 1844 a 1864, sempre na Província de São Paulo: Monte Mor, Piracicaba, Santa Bárbara, Taubaté, Sorocaba, Limeira, Ubatuba e Brotas. Os paroquianos gostavam muito dele. Por seu apego à Bíblia e por sua simpatia aos protestantes, ganhou o curioso apelido de "O Padre Protestante".
Atraído pela simplicidade do evangelho e pela Reforma Religiosa do Século XVI, Conceição deixou o sacerdócio católico em setembro de 1864, dois meses antes de o papa Pio IX publicar a encíclica Quanta Cura, que continha o famoso Silabo de Erros – uma lista de 80 erros modernos que deveriam ser repudiados pelas autoridades católicas, entre eles a total liberdade de culto e de imprensa. Tornou-se membro da igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, organizada dois anos antes pelo primeiro missionário presbiteriano a vir para o Brasil.
Antes de ser ordenado pastor evangélico em dezembro de 1865, há 130 anos, Conceição dedicou-se à evangelização de seus amigos paroquianos em Brotas, interior de São Paulo. Graças ao seu testemunho e a sua pregação, os missionários pioneiros organizaram em Brotas a terceira Igreja Presbiteriana brasileira.
A conversão de Conceição mudou por completo o quadro e o avanço da obra missionária protestante no Brasil. A dedicação dele a Jesus Cristo era muito grande, e o seu ministério itinerante era muito bem sucedido. Ele ardia de paixão pelas almas perdidas e pelos excluídos. Conceição tinha um temperamento muito especial. Não era capaz de ficar parado atrás de uma mesa, de gastar tempo com a organização eclesiástica, nem de assumir um pastorado fixo. Não se sentia atraído pelos grandes centros urbanos nem por pessoas bem vestidas. Era um incorrigível pregador de vila em vila. Hospedava-se em qualquer lugar e não se aproveitava de ninguém. Pregava, curava e desaparecia sem mais nem menos. Às vezes, deixava um bilhetinho, agradecendo a hospedagem ou dizendo que tinha ido embora. Nunca dizia para onde, porque ele mesmo não tinha um itinerário antecipadamente traçado. Viajava, a pé, distâncias enormes, às vezes de uma província para outra. Comia pouco e se contentava com qualquer comida. Sofria pressões do clero católico. Não poucas vezes era expulso de uma vila, ameaçado de morte, chamado de apóstata, anticristo e até de pastor louco.
Conceição era de uma simplicidade incrível, não obstante fosse muito preparado: sabia comunicar-se com os estrangeiros em suas próprias línguas, traduzia livros do inglês, do francês e do alemão, e tinha noções de medicina. Chegava a se vestir mal, roupa surrada demais. A herança que recebeu da família foi toda distribuída com obras de beneficência. Preocupava-se demais com os outros e muito pouco consigo mesmo. Embora desimpedido do voto do celibato por ter se desligado de Roma, o Padre José, como era chamado, nunca se casou, e sua pureza de vida sempre estava fora do alcance de qualquer maledicência. Não era servil aos missionários americanos, não obstante ser o único obreiro nacional no meio deles. Por causa de sua experiência na Igreja Católica, morria de medo de uma igreja excessivamente organizada. Realizava um ministério diferente dos missionários, e o seu trabalho era o que crescia mais. Conceição sonhava com um movimento profundo de reforma nos sentimentos e experiência religiosa do povo, aliado ao esclarecimento bíblico, que tornasse possível a criação de um cristianismo brasileiro puro e evangélico, mas enraizado nas tradições e hábitos populares.
Conceição gastou vinte anos como sacerdote católico (dos 22 aos 42 anos) e oito anos como pastor protestante (dos 43 aos 51 anos). Morreu no dia em que mais uma vez se comemorava no Império do Brasil e do mundo inteiro a encarnação do Verbo, a 25 de dezembro de 1873. Morreu dormindo, na Enfermaria Militar do Campinho, no Rio de Janeiro, depois de ser atendido por um médico e um farmacêutico e depois de pedir para ficar a sós com Deus. Mas seu corpo está sepultado ao lado do fundador da Igreja Presbiteriana no Brasil, o missionário Ashbel Green Simonton, no Cemitério dos Protestantes, anexo ao Cemitério da Consolação, nas proximidades do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Na lápide de Conceição está gravado: "Não me envergonho do Evangelho de Cristo".
Extraído de Émile-G.Léonard, O Protestantismo Brasileiro: Estudo de Eclesiologia e História Social, tradução do manuscrito original em francês por Linneu de Camargo Schützer, ASTE, São Paulo, 1963, pp.56-67.

O homem que abriria ao protestantismo o interior do Brasil — conquistando não apenas indivíduos isolados mas famílias extensas e sólidas —, assegurando, assim, seu estabelecimento, foi um padre. Esta particularidade — que nos reconduz à época da Reforma e às facilidades que ela encontrou no ministério sacerdotal de um Zwinglio e muitos outros — corresponde também àquilo que fôra o sonho de Feijó: a reforma da Igreja brasileira por um padre brasileiro.
Nascido em São Paulo em 1822, José Manuel da Costa Santos, que tomou o nome de José Manuel da Conceição, tornou-se padre em 1845, após brilhantes estudos realizados em Sorocaba, onde seu tio-avô era cura, e no seminário diocesano. As relações que teve bem cedo com estrageiros protestantes, entretanto, o gosto pela leitura da Bíblia que estes lhe inspiraram, a tradução alemã de uma História Sagrada do Antigo e Novo Testamento publicada pela editora protestante do Rio, Laemmert, mas sem a autorização episcopal, valeram-lhe, em pouco tempo, a alcunha de "padre protestante" e a suspeita da autoridade diocesana. Esta mantinha-o nas funções de vigário encomendado, enviando-o durante quinze anos a uma dezena de paróquias, Limeira, Piracicaba, Monte-Mor, Taubaté, Ubatuba, Santa Bárbara e, finalmente, Brotas, para onde foi transferido em 1860. Os bispos protegiam, assim, seus fiéis, contra uma influência que, sendo exercida durante muito tempo, pensavam, tornar-se-ia nociva; mas, como se afirmou, "sem que o percebessem, traçavam o itinerário da Reforma na sua diocese".
Esta má vontade por parte da hierarquia mostrava ao Pe. Conceição a impossibilidade de realizar esta reforma da Igreja no plano local, ao qual se consagrava, procurando, em cada uma de suas paróquias, reavivar a vida espiritual, centralizando-a na leitura da Bíblia. Conhece profundas crises vocacionais que ajuntaram ao seu cognome "padre protestante" o de "padre louco". Parece que Brotas, por algum tempo, restituiu-lhe a paz. Essa povoação recentemente fundada (datando de cerca de 1840) era povoada por pequenos fazendeiros, grande parte vinda do sul de Minas, os Gouvea, os Cerqueira Leite, os Garcia, os Lima. Pessoas ativas, decididas e progressistas, aprovaram sem dificuldade a construção de uma nova igreja e a substituição da velha imagem da padroeira do santuário Nossa Senhora das Dores. Conceição pregou-lhes a leitura da Bíblia, e conta-se que um velho, havendo descido com enorme esforço da serra, para se informar sobre o que havia, respondeu: "Então vou aprender a ler para estudá-la", e o fez. Às noivas que procuravam confessar-se antes de seu casamento, Conceição respondia: "Eu e você precisamos nos confessar a Deus e não aos homens".
Este episódio nos mostra que, nesse mês de março de 1862, ele procurava apenas melhorar as condições da vida religiosa na sua paróquia. Passava por uma profunda crise espiritual, exatamente a da questão da salvação e do valor meritório das obras. Como Lutero, condenava as indulgências que proporcionavam uma falsa paz, acusando a Igreja pelo seu "sistema de comutação" que "implica e explica a negação da graça de Jesus". Não lhe sendo possível continuar no exercício do ministério, quis abandoná-lo, tendo sido, por sua vontade, dispensado apenas de suas funções propriamente sacerdotais, após o que foi viver como simples particular, em uma pequena casa de campo nos arredores de Rio Claro. Aí foi encontrá-lo o missionário Blackford, atraído pela fama do "padre protestante". Este acabou por ceder às suas exortações, batizando-se na Igreja Presbiteriana do Rio em 23 de outubro de 1864.
Sua decisão, entretanto, também não lhe proporcionou a paz interior. Nova crise manifestou-se nele, em virtude da advertência bíblica "Não se zomba de Deus", crise que provinha de sua consciência de que não era bastante haver abandonado os erros da Igreja romana, depois de havê-los divulgado por tanto tempo. Três vezes evitou seus amigos missionários, subtraindo-se às suas visitas, até que, finalmente, estas outras palavras da Bíblia "O sangue de Jesus Cristo purifica de todo pecado" trouxeram-lhe tranqüilidade ao coração. Escreveu então uma Profissão de Fé Evangélica onde narra suas lutas espirituais, num estilo convulsivo e ardente, uma das mais belas obras da mística protestante (2). Protestante pelas experiências e afirmações dogmáticas nas quais repousa, guarda ela profundamente, entretanto, o tom da literatura espiritual e da piedade católica. Neste ponto, como veremos, é o espelho fiel de seu autor.
Brotas fôra a última paróquia onde o Pe. Conceição exercera o ministério católico. Possuía ali laços familiares desde que sua irmã mais moça, Tudica, se casara com um Cerqueira Leite. Muitos de seus paroquianos haviam conhecido suas lutas espirituais e alguns as haviam mesmo partilhado. Além disso, os missionários seus amigos haviam iniciado ali um trabalho de propaganda com grande resultado, e esse foi o ponto decisivo: dirigiu-se a Brotas em meados de outubro a fim de tomar parte na campanha de pregações que deveria realizar-se durante diversas semanas, havendo pregações de casa em casa. Eis uma descrição das duas últimas reuniões, feitas por Blackford, que nos mostra o modo como eram realizadas e como se criou o primeiro núcleo protestante verdadeiramente brasileiro:
"Na segunda-feira 13 (de novembro) reunimo-nos em casa de Antônio Francisco de Gouvêa, no sítio, com o objetivo de organizar uma igreja. O Sr. Conceição pregou a mais de 30 presentes, após o que fizeram pública profissão de fé e receberam o sacramento do batismo as seguintes pessoas: Joaquim José de Gouvêa e sua mulher Lina Maria de Gouvêa, seu filho Francisco Joaquim de Gouvêa e sua filha Sabina Maria de Gouvêa; Antônio Francisco de Gouvêa, sua mulher Sabina Maria de Gouvêa e suas três filhas Belmira Maria de Gouvêa, Maria Vitória de Gouvêa e Maximina Maria de Gouvêa; Severino José de Gouvêa e sua mulher Maria Joaquina de Gouvêa. Com eles celebramos o amor de Nosso Senhor ao morrer, comendo e bebendo os símbolos do seu corpo partido e sangue derramado. Era a primeira vez que qualquer deles participava desse sacramento, ou o via. Foram horas de júbilo para o coração dos que participaram e de profunda impressão para os que presenciaram, ao menos para alguns.
"O Sr. Conceição dirigiu a oração final; julgo ter sido a mais jubilosa explosão de agradecimento que jamais ouvi. Deu graças pela vinda do Evangelho até eles, pela misericórdia que os tinha levado a ouvir e aceitar, e pelos privilégios daquela hora, etc. De envolta com as ações de graças e ferventes pedidos exortações e solicitações aos presentes para que aceitassem o livramento oferecido em Cristo. Na mesma ocasião foram batizadas as seguintes crianças: Antônio Francisco de Gouvêa, Maria Luiza, José Francisco e Sabina Maria de Gouvêa (3) e Maria Luiza, José Venâncio, Domicília Maria, Inocência, Herculano José e Elias de Gouvêa, filhos de Severino José e Maria Joaquim de Gouvêa.
"A 14 de novembro, no culto em casa do Sr. Tenório foram batizados Joaquim, Antônio Joaquim, Lino José, Honório José e Cassiano, filhos de Joaquim José e Lina Maria de Gouvêa.
"Quarta-feira, 15 de novembro, deixamos Brotas" (4).
Onze adultos membros professos e dezessete crianças batizadas, não pessoas isoladas, e sim uma grande família: os três irmãos Gouvêa com suas esposas e filhos (sete de Severino José, cinco de Antônio Francisco e cinco de Joaquim José). A seguir vieram os parentes de Conceição que, nas semanas seguintes, aderiram à Igreja; sua cunhada, um sobrinho, sua irmã mais moça Tudica. Esta atraiu seu marido, sua sogra D. Cândida Cerqueira Leite, a mais respeitada e influente fundadora do povoado, e todos os filhos desta.
Gradualmente a comunidade de Brotas desenvolveu-se de maneira extraordinária. Em 1867 possuía 61 membros professos, em 1871, 116 (e 123 crianças); em 1874, 140 membros. "Gente da vila e gente dos sítios: Buenos, Prados, Magalhães, Borges, Oliveiras, Morais, Cardosos e Cardosas, Barros, Coutinhos e Garcias. Gente de várias procedências e diversas famílias, espalhadas num raio de dez a quinze léguas por aqueles sertões. Negros e ex-escravos: em 21 de outubro desse mesmo ano de 1866, professavam e eram batizados João Claro Arruda e sua mulher Maria Antônia de Arruda; a mulher era índia; e João Claro ex-escravo e ex-sacristão de José Manoel da Conceição (5).
A igreja de Brotas foi, durante muito tempo uma das maiores igrejas protestantes do Brasil, ao lado da do Rio. É verdade que a chegada bem tardia de um pastor residente (vindo apenas em 1868) permitiu ao clero católico a restrição de sua atividade assoladora. O movimento protestante, que durante um momento parecera prestes a ganhar toda a população, deu origem apenas a uma comunidade minoritária: desde 1866 um Cerqueira Leite debatia-se sozinho, na Câmara Municipal, contra o projeto de interdição das reuniões protestantes. Limitada no seu lugar entretanto, a influência dos protestantes de Brotas propagou-se pelas regiões onde se havia originado e naquelas para onde se transferiram esses protestantes. Vimos que os três irmãos Gouvêa eram de Borda da Mata; possuíam um irmão ainda nesse lugar, Antônio Joaquim, que se converteu a convite dos outros, junto com seu genro Belisário Corrêa Leite; esta foi a origem da Igreja Presbiteriana de Borda da Mata – distante de Brotas mais de 200kms, em linha reta, incontestavelmente sua filha – fundada em 23 de maio de 1869 com o batismo de 15 adultos (dos quais seis Gouvêa, dois Leite e três de seus escravos) e vinte crianças. Tendo-se transferido de Brotas para Dois Córregos, um dos irmãos Gouvêa estabeleceu ali, em 25 de março de 1875, uma Igreja constituída de 19 membros adultos e 15 crianças.
Conceição, Pastor Itinerante
Conceição concedera, assim, os protestantismo brasileiro, seu mais forte grupo e seu melhor centro de irradiação. Brotas, entretanto, não havia sido sua única paróquia, e logo que uma Igreja se tivesse constituído punha-se ele a caminho com fito de visitar as outras localidades nas quais a desconfiança dos bispos de São Paulo o havia obrigado a peregrinar. Onde havia sido cura, para aí regressava pastor, pois recebera a consagração pastoral num presbitério realizado em São Paulo em meados de novembro desse ano de 1865.
Estas viagens, entretanto, não constituíam a tranqüila realização de um plano deliberado com os missionários americanos. Estes penetravam também pelo interior a dentro: das grandes cidades onde se haviam instalado partiam em expedições com destino a alguma localidade onde houvesse simpatizantes, e aí pregavam, faziam visitas, voltando depois às suas casas. Mas a grande campanha de evangelização que Conceição desenvolveu em uma parte considerável da província de São Paulo, durante três anos, foi de origem e caráter bem diferentes.
Teve início com uma de suas costumeiras crises de melancolia. Blackford, junto a quem Conceição procurava apoio, não o compreendia. "Ensinaram-lhe na teologia que quando alguém se converte está salvo para todo o sempre, sem possibilidade de se perder, e ele, agora, não é capaz de compreender a luta, a dúvida, a angústia desnorteante do amigo. Aquele paroxismo final da velha modéstia da alma, contraída na sacristia, mais lhe parece "aberração moral ou mental" que uma crise da grande alma de santo que existe em Conceição, e que luta para se afirmar" (6). Blackford teve, pois, grande trabalho em persuadir seu amigo e subordinado de que lhe era necessário cuidar de si. Conceição pareceu concordar, mas, nota Blackford em seu diário particular, "desapareceu, sem deixar indicação alguma sobre seu destino, havendo escrito apenas um bilhete avisando-nos de que não o esperássemos em casa. No dia 3 de março comuniquei esses fatos ao Dr. Furtado, chefe de polícia em exercício, que prometeu escrever a todos os delegados da província pedindo notícias de Conceição".
Enquanto o protestantismo americano não conseguia compreender que sua própria mensagem tivera força bastante para lançar a angústia nessa alma que recebera, Conceição, - o "pastor louco" para os missionários, como fora outrora o "padre louco" para os católicos – empenhava-se em abrir, ao protestantismo, os caminhos dessa mesma província onde a polícia o procurava. No mesmo dia em que Blackford escrevia ao Chefe da Polícia, Conceição achava-se em Ibiuna, pregando o Evangelho e fora o sub-delegado dessa localidade que, impressionado pela sua mensagem, lhe dera abrigo, antes de haver recebido comunicações oficiais. Nessa viagem dirigiu-se em seguida a Sorocaba, onde havia passado parte de sua juventude, e foi tal o interesse despertado nesse lugar, que enviou a Blackford uma lista com os nomes de 90 pessoas que deveriam ser visitadas. O missionário atendeu ao chamado tendo verificado então o belo trabalho realizado por seu amigo. Este, entretanto havia regressado a Brotas, de onde tornou a voltar, pregando em Limeira, Campinas, Belém, Bragança e Atibaia. Chegando a São Paulo no dia 3 de junho, iniciou nova viagem no dia seguinte.
Visitou, dessa vez, o vale do Paraíba, que percorrera outrora como cura de Taubaté. Viram-no pregar e distribuir Evangelhos em São José dos Campos, Caçapava, na sua antiga paróquia de Taubaté, em Pindamonhangaba e Aparecida – onde se diz que discutiu com os padres – além de outras pequenas cidades pitorescas e ricas dessa região fronteira, Guaratinguetá, Queluz, Rezende, Barra Mansa, Piraí. Aí consentiu em embarcar para ir até o Rio, onde participou da consagração pastoral do missionário Chamberlain, mas a 13 de julho retomou em sentido inverso sua viagem pelo vale do Paraíba, chegando em São Paulo em princípios de outubro.
Após um mês de trabalho na capital inicia, no fim de outubro, a evangelização rumo ao Norte: Cotia, Ibiuna, Piedade, São Roque, Piracicaba, Porto Feliz, Itú, até sua querida igreja de Brotas, onde permaneceu algumas semanas percorrendo toda a região, para voltar, em seguida, por Itaquarí, Rio Claro, Limeira, Piracicaba, Capivarí, Campinas, Belém (Itatiba) Bragança, Atibaia, Santo Antônio da Cachoeira (Piracaia), Nazaré, Santa Isabel e São Paulo, onde vamos encontrá-lo a 16 de dezembro.
A 21 de janeiro seguinte (1867) reinicia a viagem do Vale do Paraíba: Jacareí, Taubaté, Pindamonhangaba, voltando por Caçapava, São José, Jacareí, Taubaté e São Paulo; foram dezoito dias particularmente esplêndidos, com grandes auditórios simpatizantes, nessa região especialmente católica.
Permanecendo em São Paulo uma semana apenas, dirigiu-se, a 14 de fevereiro, ao sul de Minas, onde os protestantes de Brotas haviam iniciado já o trabalho de propaganda, entre seus parentes de Borda da Mata e Santa Ana do Sapucaí. Fazendo paradas em Santa Isabel, Nazaré, Santo Antônio da Cachoeira, Bragança, Amparo, Mogi Mirim, Ouro Fino, chegou finalmente à fazenda de Antônio Joaquim Gouvêa, a uma légua de Borda da Mata e depois a Santa Ana.
Em São Paulo, onde se achava de regresso a 2 de abril, esperava-o sua sentença de excomunhão, cuja promulgação havia sido até então adiada pelo bispo de São Paulo, que vacilara durante muito tempo entre a longanimidade habitual da Igreja em tais casos, e a necessidade de deter o sucesso da pregação do padre apóstata. Escreveu então um Resposta que, na opinião de seu último biógrafo, "abre a série dos clássicos protestantes do Brasil". No mesmo dia, 3 de maio, em que acabava de escrevê-la e ensiná-la, partiu novamente em viagem pelos arredores de São Paulo; sua excomunhão não impediu que um cura lhe desse hospitalidade. A 20 de maio, em companhia de Blackford, dirigia-se ao Rio; consagrou o mês de junho à evangelização dos arredores da capital. Apresentou, em uma reunião do presbitério que se realizou então no Rio, um relatório pormenorizado, no qual seu entusiasmo se traduzia em verdadeiras estrofes de louvores:
"Nós porém, que temos visto (com os nossos próprios olhos e ouvido, com os nossos próprios ouvidos) o poder da Palavra de Deus na conversão das almas, quer em sua letra quer em seu espírito;
"nós que temos visto as crianças irem, cantando e saltando, quebrar os ídolos de seus pais, e outras, pregando com a Bíblia nas mãos, a seus pais e vigários;
"nós sabemos, e com júbilo vos anunciamos que a evangelização em nosso país é a realidade mais benéfica em todos os resultados;
"e temos confiança, e ansiosamente desejamos vê-la progredir, concorrendo com quanto houver em nossas poucas forças para que mais e mais Jesus Cristo ganhe almas para sua glória" (7).
"Nossas poucas forças". Conceição havia dito também "A continuar como nos últimos tempos, antevejo que pouco poderei prestar" (8). Acabava, realmente, de fazer cinco grandes viagens no decurso de um ano. Seus companheiros de jornada – missionários como Blackford, Chamberlain, Schneider, Simonton, e ainda jovens evangelistas brasileiros ou portugueses como Miguel Torres, Modesto Perestrelo de Barros, Antônio Pedro, José Rodrigues, Carvalhosa – revezavam-se cada vez. Ele, entretanto, estava sempre a caminho. Fora já obrigado a parar em uma de suas passagens por Brotas, incapaz de continuar sua viagem. Os membros do presbitério, que acabavam de ouvir seu relatório com interesse apaixonado, julgaram necessário fazê-lo repousar e o enviaram aos Estados Unidos, para que expusesse lá o trabalho realizado no Brasil. Embarcou no Rio no início de outubro de 1867.
Conceição separa-se dos missionários. O apostolado solitário.
Regressara em outubro de 1868, para a reunião do presbitério, que deveria ser realizada em São Paulo. Suas "férias" – constituídas de viagens de conferências, pregações nas Igrejas portuguesas de Jacksonville e Springfield, além de trabalhos literários, traduções de livros e revisão de uma versão portuguesa do Novo Testamento – não o haviam descansado absolutamente. Não abandonou, entretanto, suas viagens e, no fim de outubro, regressa do Rio a São Paulo, na companhia de Chamberlain, passando por Angra dos Reis, Paratí, Cunha e Lorena. Durante sua estadia nos Estados Unidos Blackford fundara (março de 1868) nesta última cidade, um pequeno núcleo protestante. A chegada de um antigo padre provocou aí desordens contra os adeptos da nova religião, sem que a polícia interviesse (13 de novembro). O Ministro da Justiça, José Martiniano de Alencar, avisado por Tavares Bastos, em uma carta severa dirigida ao Presidente da Província de São Paulo (26 de novembro), lembrou-lhe que os cultos protestantes eram autorizados, sob a condição... conhecemos o que se segue. Nota-se que o liberalismo dos autores de Iracema e das Cartas do Solitário tirava o maior partido possível, e de maneira quase paradoxal, do texto constitucional: a interpretação desse texto, por Silva Paranhos, dez anos antes, era, como dissemos, bem diferente, e isso nos mostra que a propaganda protestante havia, decididamente, ganho a partida junto às supremas autoridades do Império. Mas nesse momento os missionários mudaram de tática.
Conceição, ao retomar seu trabalho de evangelização, trabalho que costumava realizar sem plano ou orientação, havia perdido o apoio ente os missionários. Apercebeu-se disso no presbitério realizado em São Paulo em meados de outubro de 1869: até ali seus relatórios sempre tinham sido considerados curtos e nesse ano dizem o seguinte as Atas da Assembléia: "tendo sido muito extenso seu relatório, foi-lhe solicitado um resumo deste, que pudesse ser conservado nos arquivos".
Conceição fora útil aos missionários para abrir-lhes caminho, conseguir-lhes simpatizantes em toda província, lançar os fundamentos de Igrejas. Sendo pouco numerosos, entretanto, isolados uns dos outros, separados, muitas vezes, por dissentimentos, auxiliados por bem poucos colaboradores brasileiros (e os mais merecedores dentre eles haviam sido justamente então enviados ao Rio, a fim de fazer estudos de Teologia, encontrando-se entre eles Miguel Torres, Carvalhosa, Antônio Pedro Cerqueira Leite e Antônio Trajano) não podiam esses missionários dar conta de todo trabalho preparado por Conceição. O abandono dessas almas bem dispostas, entregues a si próprias (e às investidas do clero), acabou por tornar insensível à propaganda protestante, regiões que haviam despertado as maiores esperanças. Vimos que, mesmo em Brotas, tardara bastante a vinda de um pastor residente; no Vale do Paraíba, a impossibilidade de aproveitar o entusiasmo despertado por Conceição, suspendeu durante longo tempo, para satisfação do catolicismo, o desenvolvimento desse caminho de leste, no qual apenas a Igreja de Lorena vivendo na inatividade.
Muitas vezes os missionários pediram a Conceição que se fixasse, passando da evangelização à organização. Seu temperamento, entretanto, não o permitia; tivera, sem dúvida, nos Estados Unidos, experiências sobre organizações que facilmente se reduzem à administração, e bem cedo à burocracia. Continuou no seu ministério de apóstolo itinerante. Os missionários, que, enviando os jovens evangelistas brasileiros a estudar no Rio, haviam-no privado de seus companheiros habituais, tinham outras coisas a fazer que seguir esse nativo, tão independente quanto psicologicamente incompreensível. E assim, daí por diante, Conceição fazia suas viagens de pregação só, como havia feito no começo, quando o acreditavam louco (não se estava, aliás, voltando a essa idéia?).
Nessa divergência, entretanto, havia algo mais profundo que diferenças de temperamento ou técnica missionária. Conceição, cuja experiência religiosa muito se assemelhava à de Lutero, tinha, com relação a questões eclesiásticas, uma posição vizinha à do Reformador. Saído de uma igreja cujo principal defeito fora talvez deixar-se dominar pela organização, sentia bem pouco a necessidade de uma contra-Igreja organizada. Rompendo com Roma como Lutero, almejava, como Lutero, difundir a mensagem de salvação, sem se preocupar muito em destruir instituições para elevar outras. Seu último biógrafo (9) transcreve, a esse respeito, uma página notável que é necessário reproduzir na íntegra:
"Se queremos imprudentemente comunicar a homens sem preparatório algum, verdades que lhes são absolutamente incompreensíveis, empregadas desta sorte, falsa e prejudicialmente, não promoveremos assim a ilustração. Ilustrar é conduzir o homem pensador à meditação, para faze-lo valoroso, e capaz de poder por si mesmo descobrir a verdade, que lhe comunicamos.
"Tanto seria loucura, se os pais quisessem insinuar a seus filhos malcriados e fracos as verdades que sabem; quão fátuo querer imbuir adultos sem prévia e conveniente disposição de coisas e princípios, que lhes é impossível compreender".
"Tudo tem seu tempo".
"Há muitos homens incultos que são crianças a muitos respeitos, que devem ser doutrinados com grande circunspeção. Porque o exterminar certos prejuízos e costumes úteis, usos que muitas vezes substituem a verdade mesma, por nenhum modo é isso ilustração; porém leviandade desumana, crueldade inexcedível".
"Respeitem-se, portanto, os costumes e usos antigos do povo, que, em falta de mais profundos esclarecimentos são aptos para guiá-los e contê-los no bem".
"Ó meu Deus! Eu respeitarei a religião do ignorante – a fé daqueles que não tem tantas ocasiões de conhecer-vos, de venerar-vos de um modo mais digno. Jamais servirei à vaidade e presunção, de tal sorte que abale a fé piedosa dos outros com palavras e ações inconsideradas".
Estas palavras, como se disse, "embora dirigidas àqueles que pregam o materialismo em nome da ciência, evidentemente estabelecem um princípio geral de conduta bem definido. Princípio que se opunha ao método dos missionários estrangeiros, preocupados em destruir, como supersticiosos e idólatras, os hábitos religiosos encontrados entre o povo brasileiro – enquanto o primeiro dentre eles, Kidder, fora capaz de receber que esses hábitos denunciavam, e mesmo sustentavam, a existência de uma fé ignorante, mas profunda e sincera. Manifestava-se no Brasil, uma vez mais – depois de Feijó e Kidder – a visão de uma Reforma realmente brasileira, harmonizada com o temperamento e os hábitos do país, visão que, aliada ao seu apego à evangelização itinerante, iria fazer dele "um desconhecido" para seus companheiros e amigos missionários, "que desejavam ajudá-lo, mas não sabiam como" (10).
Não tinha havido um rompimento entre ele e seus companheiros, mas sua missão não era o ministério organizado e a propaganda confessional, à qual se dedicavam então os missionários; nem mesmo se dedicava mais à evangelização itinerante, com auditórios relativamente grandes e representantes de todas as classes. O antigo cura, de boa família, possuidor de grande cultura, dedicava-se agora ao ministério de caridade e instrução religiosa entre os mais humildes. O insigne teólogo, que estava a par da literatura espiritual de toda a Europa, comprazia-se com os mais modestos conselhos de higiene como meios de obter a paz da alma. Comovente declínio de um homem que experimentara até o paroxismo, todas as lutas do espírito. Essa mesma humildade levava-o a viver essa "vida pobre" que se aproxima de São Francisco de Assis, e da qual o protestantismo brasileiro guardou admirativa memória, mesclada de alguma surpresa.
"Chegando a um sítio, diz o major Fausto de Souza, se resolvia a ter aí alguma permanência, ele procurava alguma choça ou telheiro que lhe servisse de abrigo, às vezes mesmo edificado por suas mãos e coberto de ramos; se, porém, sua demora era passageira, ele pedia hospedagem em qualquer casa, preferindo as de modesta aparência; e, antes de sair dela, procurava dar um sinal de seu reconhecimento, servindo de enfermeiro a algum doente, consolando tristezas ou mesmo prestando vários serviços humildes, como varrer, lavar, etc., etc.
"... Sua frugalidade era tal que com qualquer coisa se satisfazia durante o dia inteiro: uns ovos, leite, um pouco de farinha de milho ou de mandioca, ervas, café e açúcar, constituíam quase sempre o seu alimento. Desses gêneros, os que lhe davam agradecia com humildade; mas se assim não acontecia, também não os pedia, mas comprava-os em pequena quantidade, à proporção que deles necessitava, porque, conformando-se com a ordem dada por Jesus Cristo aos apóstolos, ele não possuía alforge para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, nem bordão, e mesmo o dinheiro que levava para o seu parco sustento limitava-se a alguns tostões" (11).
Entretanto, de maneira alguma havia ele renunciado à vida intelectual:
"Durante suas longas peregrinações ocupava as horas de ócio em escrever a lápis sermões, traduzir artigos religiosos, tomar apontamentos e notas curiosas sobre tudo o que via, observações topográficas e meteorológicas, vocábulos e termos especiais usados nos diversos povoados, procurando sua origem e raízes, quaisquer fatos que lhe pareciam interessantes da história natural, acompanhando-os às vezes de desenhos explicativos, ligeiros, mas que denunciavam rara aptidão. Quando se demorava por algum tempo em um sítio onde podia dispor de comodidade, passava a limpo seus sermões, hinos, notas e traduções, empregando em tudo muito método, clareza e belíssima letra; e todos esses papéis ele os conduzia consigo em viagem, dentro de um envoltório de pano que cuidadosamente cozia para não se dispersarem, até poder dar-lhes destino, enviando uns aos amigos, outros à redação da Imprensa Evangélica, de que não se esquecia (12).
Esta vida de pregador solitário durou quatro anos. Quatro anos durante os quais Conceição pregava aos arrieiros e viajantes que encontrava, aos pobres em cuja casa residia e dos quais cuidava, vítima muitas vezes de sevícias por parte de populações fanáticas, outras vezes considerando traumaturgo e obrigado a subtrair-se a uma espécie de culto.
Nos seus ratos encontros com os missionários, para com os quais se mostrava sempre reconhecido e afetuoso, achava-se cada vez mais fraco. No fim de 1873, Blackford convenceu-o a repousar ao seu lado, nos arredores do Rio. Conceição tomou o trem, dessa vez, mas em uma baldeação, seu pobre vestuário e seus pés descalços atraíram a atenção da polícia que o prendeu. E quando as informações recebidas lhe abriram as portas da prisão, não possuía dinheiro para comprar uma nova passagem. Continuou à pé seu caminho, sob sol e a canícula, caindo prostrado, na noite de 24 de dezembro, sob a sacada de uma venda, em Irajá, não longe de Piraí. O chefe de uma enfermaria militar vizinha, major Fausto de Souza, deu-lhe um leito. Tendo agradecido aos que o haviam socorrido, pediu que o deixassem "só com seu Deus" e morreu, tendo adormecido, ao que parece, por volta do fim da missa da noite de Natal.
O protestantismo brasileiro teve, em Conceição – que abriu seus caminhos e nimbou seus primórdios de uma auréola mística – um santo. O bondoso homem que lhe dera um leito para morrer, e ao qual Conceição não pudera proporcionar ensinamento nenhum, Major Fausto de Souza, impressionou-se de tal modo nesse contacto de alguns instantes que estudou a vida desse estranho ente errante, publicando sua primeira biografia. Convertido ao protestantismo, tendo-se tornado uma sumidade médica e política – (principalmente como presidente da província de Santa Catarina) foi seu grande defensor.
Percebe-se, entretanto, que esse santo, não obstante sua dogmática e sua ruptura com a Igreja, era ainda, pelas nuances de sua vocação, um católico (13), um desses católicos reformados como almejaram Feijó e Kidder.
[Notas]
1. Sua biografia foi escrita pelo coronel Fausto de Souza, ligado a ele em circunstâncias memoráveis, como veremos mais adiante. Foi tratada também por Vicente Themudo Lessa, Padre José Manuel da Conceição (2ª ed., 1935). Acaba de aparecer (1950) um bom estudo feito pelo Rev. Boanerges Ribeiro, onde se encontrará uma bibliografia completa. [Nota do Web Master: O livro, que teve o título de O Padre Protestante, foi publicado pela Casa Editora Presbiteriana, São Paulo, SP, em 1950].
2. Encontramos grandes passagens desse livro na obra de Rev. Boanerges Ribeiro que acaba de ser publicada, sob o título O Padre Protestante (São Paulo, 1950). [Nota do Web Master: o autor não explica porque não citou o nome do livro na nota anterior].
3. Filhos de Antonio Francisco e Sabina Maria
4. Boanerges Ribeiro, op.cit., págs. 128-129.
5. Ibidem.
6. Ibidem, pág.146.
7. Ibidem, pág.171.
8. Ibidem, pág.170.
9. Ibidem, pág.206.
10. Ibidem, pág.206.
11. Ibidem, pág.200-201.
12. Ibidem, pág.202-203.
13. Parece que isso foi sentido pelo cônego Rossi, no seu excelente Diretório Protestante no Brasil. Depois de se referir na pág. 58 ao "sacerdote apóstata José Manuel da Conceição", o que não nos admira, escreve numa nota: "Incansável propagador do presbiterianismo manifestou, no dizer de alguns protestantes, a pobreza de São Francisco de Assis e o zelo de São Paulo Apóstolo". E isso sem protestar contra tais assimilações. É curioso ver Conceição tornar-se um argumento contra o "papado protestante" norte-americano nas Cartas ao Chefe do Protestantismo no Brasil, do espírita Luiz de Matos (Rio, 1928), citados por um protestante passado ao racionalismo, Manoel José da Fonseca.
Extraído de Carl Joseph Hahn, História do Culto Protestante no Brasil, ASTE, São Paulo, 1989, pp.187-195. Tradução do inglês por Antonio Gouvêa Mendonça.

Em 28 de junho de 1900 apareceu um artigo em "O Puritano" órgão oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil, intitulado "Rev. José Manuel da Conceição por A. B. Trajano". O artigo diz o seguinte:
"Faz agora vinte e sete anos que o Rev. José Manuel da Conceição deixou este mundo de trabalho e tentações para ser recebido nas mansões celestiais por seu pai celestial. Este longo espaço de tempo não foi capaz de apagar a preciosa memória, as saudades dele que permanecem nos corações de todos os que o conheceram e ouviram suas pregações e testemunharam seu admirável e verdadeiro ministério e labores a serviço de Deus.
Quando o ouvíamos proclamar o Evangelho e víamos como o evangelista se fazia acompanhar do exemplo, cumprindo fielmente a plenitude dos preceitos que pregava, isso produzia em nossas almas efeitos tão inspiradores, tão edificantes e duradouros que jamais podem ser esquecidos ou apagados de nossa memória.
Eu vi o Rev. José Manuel da Conceição nesta capital de São Paulo, em Lorena, em Sorocaba e na vila de Cotia. Vi com admiração sua plena humildade, sua sinceridade e sua total dedicação ao serviço de Jesus Cristo. Lembro ainda perfeitamente de tudo isto porque os trabalhos deste servo de Deus não eram normalmente os de um evangelista comum, mas um exemplo vivo de um verdadeiro apóstolo da evangelização. Por isso, a lembrança dele, lembrança acompanhada de ternas saudades, permanece até hoje em mim como estímulo de inspiração para imitar sua dedicação até o último limite de minhas forças" (1).
A. B. Trajano foi um dos primeiros quatro jovens que estudaram (2) para o ministério Presbiteriano no Brasil. Trajano era o mais velho dos quatro e também foi o último a morrer. Foi excelente aluno no curso teológico, sendo licenciado pelo Presbitério do Rio de Janeiro em 22 de agosto de 1870. Foi em seguida enviado para Borda da Mata (3), em Minas Gerais, para trabalhar como evangelista. Cinco anos após, em 10 de agosto de 1875, foi ordenado e colocado como pastor da igreja mãe, a Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, que fora organizada por Simonton em 1862. Trajano serviu a esta igreja até 1893. Ele era pastor emérito desta igreja-mãe quando escreveu o citado artigo.
O tributo pessoal que Trajano prestou a memória do ex-padre Conceição provavelmente poderia ser prestado por quaisquer dos demais pastores e evangelistas brasileiros que tiveram algum contato com Conceição. O mesmo poderia ser dito pelos missionários que aprenderam (4) a evangelizar o Brasil com ele. Ele deixou uma indelével marca em todo o protestantismo brasileiro.
Conceição não foi somente o primeiro padre no Brasil a deixar a Igreja Católica Romana mas, segundo Trajano, ele foi o primeiro brasileiro ilustre a enfrentar abertamente a tormenta de perseguições ao romper com a Igreja Romana. Conceição contou sua vida num livrinho intitulado "Profissão de Fé Evangélica pelo Padre José Manuel da Conceição", livro agora esgotado e difícil de ser encontrado, mas que foi reimpresso seguidas vezes em "O Puritano" (5).
Conceição afirma que nasceu na cidade de São Paulo, em 15 de março de 1822, filho de um canteiro português que trabalhava em construções (6). Foi criado e educado pelo padre José Francisco de Mendonça, irmão do avô de Conceição. Seu primeiro professor, diz ainda Conceição, foi "o virtuoso Heliodoro de Vasconcelos" (7), cuja influência, somada às do padre com quem vivia, levou-o a escolher o sacerdócio. No entanto, aos dezoito começou a ler a Bíblia e a narrativa da criação do homem e da mulher no Gênesis produziu nele sérias dúvidas a respeito da doutrina Romana do celibato. Pouco tempo depois, uma conversa (8) que teve com um francês, seu professor de desenho, levou-o a posteriores dúvidas sobre os ensinos da Igreja. Seu professor passou pela frente do altar da Igreja sem tirar o chapéu e o zeloso Conceição discutiu com ele quase no ponto de agredi-lo fisicamente. O francês tentou explicar-lhe que o amor ao próximo e a Deus eram mais importantes do que o zeloso cumprimento de regras exteriores. Esta conversa deixou profunda impressão na vida do jovem Conceição.
Outra experiência que conduziu seu pensamento na direção do protestantismo foi o contato que teve com ingleses e famílias protestantes européias numa vila próxima à Igreja de seu tio. Diz Conceição:
"Eu ia com freqüência a uma fundição de ferro em Ipanema (em Sorocaba, na minha região) onde visitava a família Godwin, cujo pai, Mr. Godwin, era superintendente da casa de máquinas. Eu me comovia profundamente ao observar o completo silêncio que lá reinava aos domingos. Era uma família inglesa. Mais tarde, quando eu fui admitido na comunidade, eu vi a totalidade das famílias a ler a Bíblia e livros devocionais. Mais tarde eu visitei quase todas as famílias alemãs e em todas eu encontrei o mesmo quadro de devoção e religião. Comecei a pensar: quem sabe se estes estrangeiros têm tanta religião como nós, os brasileiros? Seria a religião deles igual à nossa? Ainda, quem sabe se eles são mais religiosos que nós porque são mais civilizados do que nós?" (9)
Vê-se de novo aqui a enorme influência dos imigrantes protestantes que prepararam o caminho para as missões protestantes no Brasil.
Conceição faz também menção de sua amizade e dívida para com um médico liberal dinamarquês ou alemão (10) que praticava a medicina na mesma vila, com quem ele estudou o idioma alemão, assim como história e geografia, além de rudimentos de medicina. O Dr. Teodoro Langaard, além de ensinar alemão a Conceição, pô-lo em contato com a literatura alemã sobre artes e medicina. Os conhecimentos de medicina, assim como a capacidade para ler os mais recentes livros médicos em alemão, tornaram-se valiosos para Conceição quando, nos anos seguintes, como evangelista itinerante, tratava (11) do povo brasileiro do interior que não tinha acesso à assistência médica. Mais tarde ele escreve a respeito deste período de sua vida:
"Eu estava destinado ao sacerdócio, mas a leitura da Bíblia e os meus contatos com os protestantes tornaram-me um mau candidato e depois um pobre, muito pobre padre católico romano. Todos os outros padres, exceto o Bispo, chamavam-me de Padre Protestante" (12).
Conceição afirmou que apesar dessas suas dificuldades a tolerância do Bispo e o fato de ser por natureza solitário, possibilitaram-no continuar os estudos para o sacerdócio. Tratava-se, todavia de mais uma experiência perturbadora.
Conceição passou nos exames e foi para São Paulo para ser ordenado mas, momentos antes da cerimônia, foi avisado de que não receberia a ordenação. Ele não tinha agido politicamente a fim de encontrar um padrinho nas áreas clericais. Foi, para ele, um grande choque descobrir o jogo político existente na Igreja. Esteve, por algum tempo, decidido a abandonar a carreira, mas foi persuadido a retornar e foi ordenado diácono em 29 de setembro de 1844, começando seu trabalho sacerdotal como assistente de seu tio-avô, o Padre Mendonça, em Sorocaba. A hierarquia da Igreja Romana não depositava inteira confiança nele, de maneira que ele veio a ser um padre encomendado, isto é, sujeitos a remoções ao gosto das autoridades. Foi primeiro enviado para Limeira, onde ministrou para imigrantes europeus aos quais falava em alemão, que era o idioma deles. Não cobrava nada pelo seus serviços e lhe recomendava que lessem a Bíblia. O bispado continuou transferindo-o de lugar para lugar na Província de São Paulo, mas em todos os lugares ele aconselhava o povo a ler a Bíblia e a confessar seus pecados diretamente a Deus. Os bispos, sem saberem, estavam permitindo que a futura Reforma brasileira fizesse itinerância em suas dioceses (13). Alguns anos mais tarde, como pastor protestante, ele percorria as mesmas áreas pregando as Boas Novas que bem antes havia tentado proclamar. As autoridades católicas ficaram alarmadas e Conceição, sabendo que não mais poderia sustentar os dogmas e práticas da hierarquia romana, pediu demissão para deixar o ministério. O bispo, por seu turno, sugeriu uma outra solução: ele seria nomeado para o "vicariato de vara", isto é, seria um representante do bispo servindo segundo as necessidades e desejos sem responsabilidades sacerdotais, Conceição aceitou a sugestão e comprou uma pequena fazenda perto de São João do Rio Claro, decidido a se tornar fazendeiro.
Blackford, visitando a região de Rio Claro, ouviu falar daquele estranho padre, antigo vigário da cidade, e decidiu ir vê-lo. O padre apreciou a visita e logo foi a São Paulo a fim de conversar mais com Blackford.
Dentro de alguns meses já tinha decidido renunciar ao sacerdócio católico romano e ligar-se à Igreja Presbiteriana. Em 23 de outubro de 1864, ele fez sua profissão de fé na pequena sala que servia de igreja para o trabalho presbiteriano em São Paulo. Ele tinha então quarenta e dois anos de idade. Em 16 de dezembro do ano seguinte ele era ordenado pastor por Simonton, Blackford e Schneider que haviam, naquele dia, organizado um presbitério com o expresso propósito de ordenar Conceição.
A conversão de Conceição teve grande influência no começo do protestantismo no interior do Brasil; primeiro, por chamar as atenções sobre os protestantes e, segundo, por estabelecer um modelo de evangelização e culto. Boanerges Ribeiro, que escreveu uma excelente biografia do ex-padre, diz:
"Mas foi a conversão do padre que chamou a atenção da capital provinciana para os cultos protestantes; entre os turbulentos estudantes de direito houve logo alguns que tomaram aquilo a sério..." (14).
Ele menciona alguns dos estudantes que começaram a aparecer na casa e nos cultos do missionário presbiteriano a fim de pedir informações. Entre eles estava Pedro Perestrello da Câmara, que comprou uma Bíblia em inglês e levou alguns folhetos de evangelização. Mas, mais importante para a questão da pregação e do culto foi o modelo que Conceição estabeleceu e a influência que veio a ter sobre os missionários e os jovens que entravam para o ministério, assim como sobre as pequenas congregações em formação ao longo de sua trilha pioneira.
Escreve Boanerges Ribeiro:
"José Manuel da Conceição lhes forneceu essas cabeças de ponte, abrindo para o nascente movimento protestante a província de São Paulo toda, e mais ao Sul de Minas; supriu a falta de homens, entregando-se à constante itinêrancia que o esgotou; desfez a natural timidez daqueles estrangeiros pregadores, unindo com eles sua sorte" (15).
A ordenação de Conceição anunciou o alvorecer de um novo dia do culto evangélico no Brasil. Por meio século os imigrantes vinham calmamente realizando o culto familiar em suas casas e na "casas de oração", tendo Kalley alargado um pouco o quadro ao convidar seus vizinhos para participarem do círculo familiar. Colportores tinham vendido Bíblias de vila em vila, mas agora o programa de evangelização intensiva de casa em casa estava começando. Deus levantara um homem, um ex-padre brasileiro, alguém que entendia os anseios de seus conterrâneos e de como ir ao encontro de suas necessidades. Nessa época não havia evangelismo de massa, conquanto houvesse reuniões ao ar livre nas praças das cidades e em campos abertos, mas agora o impulso principal era ir de casa em casa ao longo das estradas, de longas e longas estradas.
Escreve Ribeiro:
"Aproximava-se a hora do destino, em que a jovem igreja nacional criaria seu próprio método de desbravamento e propagação evangélica: essa luta árdua e exaustiva das estradas, de fazenda em fazenda; o contato pessoal e direto com a pessoa evangelizada; a oração de joelhos na salinha de chão batido e, sobretudo, o poder de um homem possuído do Espirito Santo e disposto a matar-se pregando a cada família em particular, de casa em casa, de indivíduo a indivíduo, de alma a alma. Não haveria nesse desbravamento os grandes lances oratórios que tanto encantam nossa mentalidade mestiça, nem o brilho dos pregadores selecionados e bem pagos: haveria a propagação de um fogo interior, que iluminava uma vida e iluminaria quatro estradas do Brasil" (16).
Em três anos este homem "transformou radicalmente o mapa da reforma no Brasil". Com a Bíblia na mão e a paz de Deus no coração ele ia de casa em casa ao longo das estradas do Brasil explicando a palavra de Deus, orando com o povo e comunicando-lhe a convicção que o que estava dizendo era a verdade.
Em um dos primeiros lugares onde ele pregou, iniciando sua vida itinerante de São Francisco do Brasil, duzentas pessoas se reuniram para ouvi-lo, segundo seu relato. Ele enviou a Blackford uma lista de noventa nomes de pessoas convertidas, em sua maioria família por família. Regressou a São Paulo para apanhar um suprimento de Bíblias para pessoas que desejavam estudá-la por si mesmas. O relatório de Conceição comoveu o coração de um dos jovens estudantes de direito que havia comprado uma Bíblia do missionário presbiteriano e começado a freqüentar alguns cultos. Este jovem, Perestrello Barros de Carvalhosa, acompanhou Conceição a Sorocaba. Esta foi uma viagem histórica. Carvalhosa ficou tão encantado e convencido do evangelho que apressou-se a tornar a São Paulo onde fez sua profissão de fé, foi batizado, e começou sua longa carreira de colportor, estudante, pastor e o primeiro escritor de liturgia (17) da Igreja Presbiteriana. Nessa viagem Conceição parou na casa de Sr. José Carlos de Campos, às margens do Rio Sorocaba. "Ó de casa!" gritou à distância. Entrando na casa com a Bíblia na mão, abriu em João 3.16 e pediu licença para ler a respeito do grande amor de Deus por toda a humanidade e sua graciosa oferta de perdão pela fé somente. Depois, estendendo no chão de terra batida um lenço colorido, derramou seu coração em comovente oração pela família que tinha sido parte de sua paróquia quando ele era padre naquela cidade.
O Sr José Carlos de Campos que, em anos passados, tinha se confessado a Conceição, ficou muito impressionado e ligou seu destino à nova fé doando terreno para construir uma igreja e, juntamente com sua numerosa família, tornou-se o núcleo de uma igreja (18) na comunidade de Votorantim, a algumas milhas de Sorocaba.
O modelo estava estabelecido. Conceição, com ou sem a companhia de algum jovem da igreja, ia pelas ruas das cidades e pelas estradas, de casa em casa, perguntando às pessoas se elas sabiam que eram pecadoras e dizendo-lhes que Deus as amava, pedindo permissão para ler a palavra de Deus, ajoelhando-se sobre o seu lenço colorido e orando pela sua fé e conversão. Quando possível enviava ao missionário Blackford, em São Paulo, lista de pessoas que se tinham decidido por Cristo. O mais cedo possível, Blackford, ou um de seus auxiliares, estava na mesma estrada visitando as famílias indicadas. Boanerges Ribeiro, cuidadoso e diligente biógrafo, acompanhou esse itinerário de vila em vila, de cidade em cidade, pelo espaço de alguns anos, traçando, ao mesmo tempo, o mapa das primeiras igrejas presbiterianas no interior do Brasil.
Nos anos imediatamente anteriores à sua conversão, Conceição pregou realmente a mensagem protestante da fé em Jesus Cristo, recusou pagamento por casamentos e funerais, tendo sua conduta preocupado tanto o bispo que este o manteve em constante mudança – nunca mais do que uns poucos anos em cada lugar. Estes mesmos lugares Conceição voltava agora a visitar, lugares estes que vieram a ser os futuros centros de novas igrejas presbiterianas: Sorocaba, Taubaté, Ubatuba, Brotas, São João do Rio Claro, Limeira, Campinas, Bragança, Atibaia etc. Três jovens (19) que vieram a se tornar notáveis pastores da Igreja Presbiteriana acompanhavam fielmente agora a Conceição nestas viagens. O mais fiel companheiro era Carvalhosa, mas Miguel Torres e Antonio Pedro foram também com freqüência seus companheiros. Estes jovens estavam sendo preparados pelos missionários para serem pastores, mas o mais importante ensino lhes foi dado por Conceição na medida que compartilhavam com ele da poeira das estradas, da palavra de Deus, de sua fé, de suas lágrimas, vendo brotar a fé nos corações dos homens e das mulheres. Sofreram também com ele algumas esporádicas perseguições: cachorros, pedras, insultos, aprendendo a suportar tudo com regozijo.
Um mapa (20) mostrando as viagens deste moderno São Francisco revela a quase inacreditável história de suas jornadas. Nos quatro meses anteriores à reunião do presbitério, em julho de 1866, ele percorreu, a maior parte pé, uma distância comparável à de Inverness a Londres (21), pregando, ensinando e curando. Nos tempos de estudante ele fizera valiosa amizade com um médico alemão em Sorocaba que lhe ensinou alemão e o pôs em contato em contato com os melhores livros de medicina nessa língua. Com este conhecimento Conceição tornou-se eficiente no tratamento das doenças comuns no Brasil. Assim, quando era convidado a pernoitar nalguma casa, ele freqüentemente retribuía a hospitalidade cuidando de algum eventual doente da família. Isto fez com que ele se tornasse uma pessoa muito estimada por onde passava e firmasse um padrão de serviço e assistência que os missionários acompanharam. Numa terra de extensas áreas sem nenhuma espécie de assistência médica, os simples conhecimentos possuídos pela média dos missionários e pastores eram freqüentemente valiosos.
O primeiro biógrafo de Conceição, o Coronel Fausto de Souza, que lhe deu abrigo e cuidados na noite de sua morte, descreveu o método, a humildade e a dedicação dele durante os últimos anos de seu ministério itinerante:
"Chegando a um sítio, se ele resolvia a ter aí alguma permanência, procurava alguma choça ou telheiro que lhe servisse de abrigo, às vezes mesmo edificado por suas mãos e coberto de ramos; se, porém, sua demora era passageira, ele pedia hospedagem em qualquer casa, preferindo as de modesta aparência; e antes de sair dela procurava dar um sinal do seu reconhecimento, servindo de enfermeiro a algum doente, consolando tristezas, ou mesmo prestando vários serviços humildes, como varrer, lavar, etc...
Sua frugalidade era tal, que com qualquer coisa se satisfazia durante o dia inteiro: uns ovos, leite, um pouco de farinha de milho ou de mandioca, ervas, café e açúcar, constituíam quase sempre o seu alimento. Desses gêneros, os que lhe davam, agradecia com humildade; mas quando assim não acontecia, também não os pedia, mas comprava-os em pequena quantidade, à proporção que deles necessitava, porque conformando-se com a ordem dada por Jesus Cristo aos apóstolos, ele não possuía alforge para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, nem bordão (Mt 10.10) e o mesmo dinheiro que levava para o seu parco sustento, limitava-se a alguns parcos tostões." (22)
Com tudo isto era Conceição um homem profundamente culto, lendo fluentemente português, alemão, francês e inglês, traduzindo constantemente alguma coisa em simples pedaços de papel. Ele observava e descrevia qualquer planta ou animal incomum que por acaso encontrasse em suas viagens e tomava notas a respeito da geografia e da geologia das regiões por onde viajava. Escreveu sermões, hinos e comentários enquanto ia e vinha. Enviava, de vez em quando, artigos para seus amigos e para a Imprensa Evangélica para serem publicados.
Conceição voltava dessas longas andanças completamente exausto, mas após alguns dias de descanso estava de novo na estrada. Na semana do Natal de 1873 Conceição viajava de volta ao Rio para um merecido descanso. Todavia, não chegou ao seu destino. Forçado a uma baldeação ele teve que se abrigar por uma noite na estação. Suas roupas andrajosas e seus pés nus convenceram um policial de que se tratava de um vagabundo sendo, por isso, levado à prisão onde permaneceu três dias e três noites até que chegasse do Rio de Janeiro a confirmação de sua identidade. Quando posto em liberdade ele não tinha dinheiro suficiente para continuar a viagem de trem e partiu a pé. Na pequena vila de Irajá, cambaleante, caiu junto a um pequeno armazém. Um soldado da milícia estadual levou-o a uma enfermaria militar próxima onde o diretor, Major (mais tarde Coronel) Fausto de Souza, supervisionou o tratamento do andarilho desconhecido.
Era véspera de Natal e o espírito da data provavelmente entrou em cena porque os militares mudaram as roupas de Conceição, deram-lhe um banho e um prato de sopa, assim como os necessários cuidados médicos. Conceição agradeceu-lhes e pediu para ser deixado a sós com Deus. Os sinos da vizinhança anunciavam a missa da meia-noite quando o espírito de Conceição deixava seu corpo para a morada final. O Major Fausto, naqueles poucos momentos de contato com Conceição, foi levado a ligar seu destino ao povo protestante. Ele escreveu uma biografia de Conceição, tornou-se franco defensor da fé evangélica e traduziu do francês um dos clássicos da literatura evangélica no Brasil. "Cristo é Tudo". A fé evangélica encontrara os modelos realmente brasileiros. A próxima seção analisará a vida e ministério de um dos jovens mais chegados a Conceição que, através de uma longa existência no ministério protestante, procurou consolidar a obra, além de evangelizar, e veio a ser um notável líder da liturgia na Igreja Presbiteriana do Brasil: Modesto P. B. de Carvalhosa.
REFERÊNCIAS
1. O Puritano, Ano II, Núm.56, 28 de junho de 1900, pág.1.
2. O primeiro a ser ordenado foi o ex-padre Conceição, mas ele não acompanhou nenhum curso teológico com os missionários. Os outros três estudantes eram Antonio Pedro Cerqueira Leite, Miguel Gonçalves Torres e Modesto Perestrello Barros de Carvalhosa.
3. Essa pequena congregação das montanhas era filha da Igreja de Brotas. Alguns membros desta igreja mudaram-se para Borda da Mata e tornaram-se o núcleo de uma nova Igreja Presbiteriana naquela região.
4. Ver o registro de Blackford no seu Journal... Record a respeito desta experiência com Conceição nos meses da Missão que antecederam a organização da Igreja de Brotas, assim como durante sua organização.
5. O Autor não teve acesso ao livro original, mas colheu notas de publicação em "O Puritano". Há uma biografia em português, do Rev. Boanerges Ribeiro, intitulada "O Padre Protestante", que é a principal fonte deste capítulo.
6. O Puritano, 14 de junho de 1900, pág. 1.
7. Loc. cit.
8. Loc. cit..
9. Ibid., pág.1 ss.
10. O Puritano, 14 de junho de 1900, Ano II, n.º 54.
11. Como os evangelistas itinerante, Conceição servia amiúde de enfermeiro e médico para doentes nas casas onde se hospedava. Ele fazia isso em pagamento pela hospedagem, vez que habitualmente viajava sem dinheiro. Semelhante a esta é a história de Willis Robert Banks, no vale do Rio Juquiá.
12. O Puritano, 21 de junho de 1900, Ano II, nº 55. Continuação da reimpressão do livrinho de Conceição, "Profissão de Fé Protestante", pág. 2.
13. Júlio Ferreira, História ... op. cit.. vol. 1. Pág. 31
14. Boanerges Ribeiro, O Padre Protestante, Casa Editora Presbiteriana, São Paulo, 1950, pág. 135.
15. Ibid., págs. 135-136.
16. Ibid., págs. 144-145.
17. Infra. Ver a seção seguinte a respeito de Carvalhosa.
18. Ainda hoje é umas das boas igrejas do Brasil, tendo o Autor pregado nela várias vezes. A família do Sr. José Carlos de Campos tornou-se proeminente na Igreja Presbiteriana, sendo uma de suas filhas a esposa de William Kerr e a mãe de uma nora do Autor. Membros desta família têm freqüentemente evocado para o Autor memórias da primeira visita de Conceição.
19. Boanerges Ribeiro, op. cit., págs. 191, 164, 147, 151, 156, 187 etc
20. Vide Apêndice. O mapa foi preparado por Boanerges Ribeiro, um dos biógrafos de Conceição.
21. O Autor apresentou esta obra em Edimburgo, Escócia. Daí o seu referencial à geografia conhecida pelos seus primeiros leitores (Nota do Tradutor).
22. Major Fausto de Souza, "Ex-Padre José Manuel da Conceição", publicado na Imprensa Evangélica, Fevereiro de 1884.

jeudi 4 octobre 2007

Bibliografia Teologia Contemporânea

Teologia Contemporânea
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lundi 1 octobre 2007

O ESPÍRITO SANTO E VOCÊ

Elementos para uma Pneumatologia batista
Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Introdução

Por que uma Pneumatologia batista? Exatamente porque existem muitas leituras e compreensões sobre que/quem é o Espírito, sua ação no universo e sobre a vida das pessoas. De uma forma geral, podemos começar dizendo que para a teologia batista o Espírito é a presença ativa de Deus no universo e na experiência humana. É o Deus tri/uno que se revela ao ser humano. O Espírito é assim a voz da presença, poder e autoridade divinas. É o Espírito de Deus, o Espírito de Cristo, o Espírito Santo.
A teoria da revelação na teologia batista apresenta a edição das Escrituras como produto de pessoas que intelectualmente receberam o sopro do Espírito, que falaram sob a ação consciente do Espírito, por isso, as verdades da Bíblia expressam a vontade do Espírito e podem ser compreendidas quando iluminadas pelo mesmo Espírito. Então, é o Espírito que/quem convence as sociedades e pessoas de seus alvos errados, da incondicionalidade da justiça e do juízo que paira sobre a existência. Nesse sentido, as sociedades e cada ser humano são chamados à liberdade pela obra redentora de Cristo. Nas sociedades e pessoas essencializadas pela fé, o Espírito no centro do querer humano produz um novo fazer, que chamamos santificação. Então, o Espírito se torna também intercessor, advogando em lugar do humano, a partir da justiça foi imputada pelo Cristo, o justo. O Espírito é intérprete, é a atração que vem da incondicionalidade e nos faz cair para cima, mantendo-nos fiéis e produzindo na vida humana o amor que arrebata.
O Espírito dissemina a vontade do Deus tri/uno entre os seres humanos. Ele dá aos fiéis poder e autoridade para o serviço no reino de Deus, separa para a ação proclamatória do Verbo e nos coloca sob missão livre e dinâmica, em obediência criativa ao Verbo de Deus.

1. Que/quem é o Espírito?
O Espírito é Pessoa da tri/unidade de Deus. É Pessoa que dá vida nova (Is 63.11-14) e consola os que sofrem (Jo 14.16; 16.7). O Espírito adota (Rm 8.16) e enche de amor (2Tm 1.7). Transmite conhecimento, sabedoria e justiça (Is 11.2-5). Derrama arrependimento e graça (Zc 12.10; 13.1), dá poder e torna as pessoas prudentes (2Tm 1.7). Ele vive em nós (Jo 14.17; 16.13; 1Jo 4.6): pertencemos a Ele (Ef 1.13).
“Mas foi a nós que Deus, por meio do Espírito, revelou o seu segredo. O Espírito Santo examina tudo, até mesmo os planos mais profundos e escondidos de Deus. Quanto ao ser humano, somente o espírito que está nele é que conhece tudo a respeito dele. E, quanto a Deus, somente o seu próprio Espírito conhece tudo a respeito dele. Não foi o espírito deste universo que nós recebemos, mas o Espírito mandado por Deus, para que possamos entender tudo o que Deus nos tem dado. Portanto, quando falamos, nós usamos palavras ensinadas pelo Espírito de Deus e não palavras ensinadas pela sabedoria humana. Assim explicamos as verdades espirituais aos que são espirituais. Mas quem não tem o Espírito de Deus não pode receber os dons que vêm do Espírito e, de fato, nem mesmo pode entendê-los. Essas verdades são loucuras para essa pessoa porque o sentido delas só pode ser entendido de modo espiritual”. 1Coríntios 2.10-14.

2. O Espírito é Ação e Voz
A ação e voz do Espírito são evidentes na vida dos profetas. Tornavam-se porta-vozes de Deus, quando o Espírito descia sobre eles. O Isaías profetizou sobre a vinda de Jesus Cristo e disse que o Espírito do Senhor estaria sobre ele (Is 61.1). Ezequiel revelou que o Espírito o levou a lugares, numa visão dada pelo próprio Espírito de Deus lhe dera (Ez 11).
Embora algumas pessoas não tivessem o título de profeta, mesmo assim proferiram mensagens por meio do Espírito Santo. O rei Davi pronunciou seu último testemunho poético antes de morrer, quando disse: "O Espírito do Senhor fala por meio de mim, e a sua mensagem está nos meus lábios" (2Sm 23.2). Quando José interpretou os sonhos de Faraó, este exclamou que o Espírito de Deus estava sobre o filho de Jacó (Gn 41.38,39).
Depois que Samuel ungiu a Saul rei de Israel, o Espírito do Senhor desceu poderosamente sobre ele e profetizou. Deus o transformou numa pessoa diferente, de maneira que os israelitas perguntaram: “Será que Saul também virou profeta?”. (1Sm 10.5-13). Essa pergunta foi repetida quando o Espírito do Senhor desceu novamente sobre Saul enquanto perseguia Davi sem trégua. O rei tirou sua túnica e profetizou (1Sm 19.23,24).
No acampamento de Israel, durante o Êxodo, Deus retirou parte do Espírito que estava sobre Moisés e a colocou sobre 70 anciãos: eles então profetizaram, bem como Eldade e Medade. Quando ouviu sobre isso, Moisés disse que seu desejo era que o Senhor colocasse o seu Espírito sobre todo o povo, para que todos profetizassem (Nm 11.25-29).
O profeta Miquéias opôs-se aos falsos profetas em seus dias. Disse que estava repleto do Espírito do Senhor, de sua justiça e força, para convencer Israel de seus pecados (Mq 3.8). Moisés é o protótipo do Messias, pois foi considerado um profeta e revelou o Espírito do Senhor. Ele predisse o advento de Cristo, quando falou ao povo que Deus levantaria um profeta como ele próprio, do meio deles (Dt 18.15,18). Além disso, ele repetidamente introduziu a revelação do Senhor com as palavras "disse o Senhor a Moisés" (Nm 8.1,5, 23).

3. O Espírito é Santo
“Não me expulses da tua presença, nem tires de mim o teu Santo Espírito”. Sl 51.11
"Mas eles se revoltaram contra Deus e ofenderam o seu santo Espírito. Por isso, Deus se tornou inimigo deles e começou a lutar contra eles". Is. 63.10.

Nas línguas utilizadas no Antigo e no Novo Testamento (hebraico e grego), os termos usados para o Espírito Santo enfatizam sua santidade, embora no AT, o adjetivo santo antes do substantivo espírito aparece poucas vezes (Sl 51.11; Is 63.10,11).
No Novo Testamento a palavra santo antes do substantivo Espírito está presente na maioria dos livros, especialmente no livro de Atos. Isso não significa que a ênfase ao Espírito seja menor no Antigo do que no Novo Testamento. As expressões mais freqüentes no Antigo Testamento são “o Espírito de Deus” ou “o Espírito do Senhor”.

4. O Espírito é Criador
"Por meio da sua palavra, o SENHOR fez os céus; pela sua ordem, ele criou o sol, a lua e as estrelas". (Salmo 33.6).
"Tu lhes deste o teu bom Espírito para lhes ensinar o que deviam fazer" (Neemias 9.20).

A primeira vez que a palavra espírito aparece na Bíblia é no relato da criação, em Gênesis. Lá, o Espírito de Deus pairava sobre as águas como poder criador que traz ordem ao caos (Gn 1.2). O salmista faz eco a esse conceito, quando diz: "Por meio da sua palavra, o SENHOR fez os céus; pela sua ordem, ele criou o sol, a lua e as estrelas". (Sl 33.6).
Por meio do sopro de Deus, Adão tornou-se uma alma vivente (Gn 2.7). Jó afirma que o Espírito do Senhor o criou e que recebeu vida por meio do sopro do Todo-poderoso (Jó 27.3; 32.8; 33.4; 34.14,15). Quando Deus retira seu sopro dos seres humanos e dos animais, eles morrem e retornam ao pó (Sl 104.29; Ec 3.19,20; 12.7). No vale dos ossos secos, o sopro de Deus entrou nos esqueletos e eles retornaram à vida (Ez 37.1-14).

5. O Espírito é Pessoa
A ênfase sobre o monoteísmo, dada pelos escritores do Antigo Testamento, prevalece na doutrina da Trindade. No entanto, os escritores bíblicos fazem uma distinção entre Deus e o Espírito do Senhor, sem jamais considerar o Espírito como uma mera emanação de Deus. Tome-se, por exemplo, as referências em Gênesis 1.1-2. Deus criou o céu e a terra, mas o Espírito do Senhor pairava sobre as águas. Deus disse que seu Espírito não contenderia para sempre com o ser humano (Gn 6.3).
Isso significa que os escritores bíblicos viam duas pessoas divinas distintas. Entendiam que o Espírito era Deus, o qual exercia funções que os escritores bíblicos expressaram em termos humanos. Isso fica claro em algumas passagens. Os levitas oraram: "Tu lhes deste o teu bom Espírito para lhes ensinar o que deviam fazer" (Ne 9.20). Davi perguntou: "Aonde posso ir a fim de escapar do teu Espírito?" (Sl 139.7) e Isaías escreveu que o povo entristeceu o seu Espírito Santo e Deus (o Pai) tornou-se inimigo deles (Is 63.10-12; veja também 48.16).

6. O Espírito é Vida
Espiritualidade quer dizer uma vida no Espírito de Deus, um intenso convívio com o Espírito de Deus: esse é o sentido cristão da palavra. Dessa maneira, a idéia de uma vida forte, a idéia da vitalidade de uma vida criativa a partir de Deus nos leva à espiritualidade, ou seja, a uma vida espiritualizada por Deus.
Por isso, podemos dizer: as pessoas procuram a Deus porque Deus as atrai para si. Estas são as primeiras experiências do Espírito de Deus no ser humano. E Deus as atrai como um imã atrai as migalhas de ferro. O íntimo e suave atrativo de Deus é experimentado pela pessoa em sua fome de viver e em sua busca de felicidade, que nada no universo pode satisfazer ou saciar.
A espiritualidade da vida se opõe à mística da morte. Quanto mais sensíveis as pessoas se tornam para a felicidade da vida, mais sentem a dor pelos fracassos da vida. Vida no Espírito é vida contra a morte. Não é vida contra o corpo, mas a favor de sua libertação e sua glorificação. Dizer sim à vida significa dizer não à guerra e suas devastações. Dizer sim à vida significa dizer não à miséria e suas humilhações. Não existe uma afirmação verdadeira da vida sem luta contra tudo que nega a vida.
A recepção universal do Espírito Santo foi anunciada séculos antes do derramamento do Espírito no dia de Pentecostes (At 2.17-21). Deus falou por meio do profeta Joel: "E depois derramarei o meu Espírito sobre toda a carne, e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos velhos terão sonhos, os vossos jovens terão visões. Até sobre os servos e sobre as servas naqueles dias derramarei o meu Espírito" (Jl 2.28,29). Joel não estava sozinho na predição do futuro derramamento do Espírito.
Isaías também fez uma ilustração do Senhor derramando correntes de água sobre terras secas e seu Espírito sobre os descendentes de Jacó (Is 44.3). Por meio de Ezequiel, Deus disse aos judeus do exílio que o Senhor os tomaria de todas as nações e os reconduziria à sua própria terra. Colocaria seu Espírito sobre eles e os motivaria a obedecer à sua Lei (Ez 36.24-28; 39.29). Deus revelou que o Messias, quando viesse, seria cheio do Espírito (Is 11.2), que também seria derramado sobre o povo da aliança (Is 32.15; 59.21; Ez 37.14). E esse Espírito permaneceria com os filhos de Deus (Ag 2.5).
O Espírito é a fonte de vida (Jo 6.63) e ela é comparada às fontes de águas correntes que, espiritualmente falando, fluem do interior da pessoa (Jo 7.38,39). O discurso de despedida de Jesus, proferido no cenáculo, enfatizou a chegada do Espírito Santo. Ensinou que Ele seria dado pelo Pai e permaneceria para sempre com os fiéis.
Seria outro Consolador, uma Pessoa que personificaria a verdade (Jo 14.16,17). O Consolador sairia do Pai, seria enviado pelo Filho e testificaria sobre Jesus (Jo 15.26). O Consolador também convenceria o universo do pecado, da justiça e do juízo (Jo 16.7-11). O Espírito guiaria as pessoas em toda a verdade, proporcionaria a revelação futura e glorificaria a Jesus Cristo (Jo 16.13-15).
Por último, em antecipação ao Pentecostes, Jesus soprou o Espírito Santo sobre os discípulos, para auxiliá-los na tarefa que receberam de pregar o Evangelho (Jo 20.22). As referências ao Espírito Santo na primeira carta de João não diferem muito de seu evangelho. O Espírito dado às pessoas cria uma consciência de que o Pai vive em nós através do Filho (1Jo 3.24; 4.13). E como somos capazes de reconhecer o Espírito de Deus? Nós O conhecemos pelo reconhecimento de que Jesus Cristo veio de Deus em forma humana: ouvimos a Deus (1Jo 4.2, 6).

7. O Espírito participou do ministério de Jesus
"O céu se abriu, e Jesus viu o Espírito de Deus descer como uma pomba e pousar sobre ele". (Mateus 3.16).
"Que a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a presença do Espírito Santo estejam com todos vocês!" (2Co 13.13).

O Novo Testamento enfatiza o derramamento do Espírito, seus dons, sua obra, inspiração, comunhão e habitação nos corações dos cristãos. A doutrina da Trindade fica evidente no relato do batismo de Jesus: O Pai revela o Filho, de quem se agrada, e o Espírito Santo desce sobre ele na forma de uma pomba (Mt 3.16,17; Mc 1.10; Lc 3.22).
A fórmula batismal trinitária, mostrada na conclusão do evangelho de Mateus, enfatiza essa mesma doutrina (Mt 28.19). Nas cartas, os apóstolos ensinaram freqüentemente o princípio trinitariano, tanto no início como na conclusão de suas cartas (2Co 13.13; Ef 1.2-11; 1Pe 1.1-3).
Além dos relatos do nascimento, batismo e tentação de Jesus, há poucas alusões ao Espírito nos evangelhos de Mateus e Marcos. Comparativamente, o de Lucas está repleto de passagens que falam sobre o Espírito. Mateus e Lucas relatam a concepção de Jesus como obra do Espírito Santo (Mt 1.18, 20; Lc 1.35). João Batista disse ao povo que ele batizaria com água, mas Jesus os batizaria com o Espírito Santo (Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16). Antes de Cristo iniciar seu ministério, o Espírito o levou ao deserto para ser tentado pelo diabo (Mt 4.1; Mc 1.12; Lc 4.1).

8. O Espírito é Defensor

O Espírito Santo é aquele que/quem convence os errados de suas culpas, que/quem defende aqueles que/quem são acusados e que julga com misericórdia. A vida humana pode ser negada e, por isso, para ser realmente vivida tem de ser afirmada. Vida negada e recusada é morte. Vida aceita e afirmada é felicidade. É o Espírito da verdade quem convence o universo de seu pecado, que corrige o universo injusto e que transforma as pessoas, de escravos e vítimas do erro em servos alforriados pela graça de Deus.
Com efeito, se olharmos a prodigiosa atividade do Espírito em Atos dos Apóstolos, será fácil entender o Espírito Defensor dos servos de Deus e da igreja neotestamentária, que se por um lado produzia unidade, por outro trabalhava a diferença e diversidade das pessoas.
Nesse sentido, a autoridade defensora do Espírito interveio nos momentos difíceis quando a vida de pessoas estava sob risco, quando a perseguição crescia ou quando se fazia necessário proclamar o Verbo da vida. Foi esse Espírito defensor que revelou às igrejas apostólicas o mistério da encarnação do Filho de Deus, em conformidade com o ensino dos profetas e do evangelho.
Mas, quando se faz necessário morrer pela proclamação do Verbo da vida, o Espírito Defensor é Consolador preenchendo a fraqueza humana de coragem e fidelidade.
É este Espírito Defensor que possibilita o encontro das diferentes experiências de vida, assim como a comunhão da diversidade que Ele próprio cria e administra em cada um de nós. E é Ele, que/quem nos encoraja à esperança. O Espírito, o Espírito de unidade e da diversidade, não cessa de atuar entre os cristãos, mesmo quando distantes e aparentemente separados.

9. O Espírito é Possuidor
“Certamente vocês sabem que são o templo de Deus e que o Espírito Santo vive em vocês”. 1Coríntios 3.16.
Falar sobre o Espírito Santo é falar sobre nós, pois só Ele pode mostrar quem de fato somos. Assim, o que nós somos é mais bem compreendido quando o Espírito atua em nossas vidas. Quem é o Espírito Santo? Para que foi Ele enviado por Cristo?
A Criação, a Providência e a Salvação são as obras de Deus. Mas, existe também a obra subjetiva de Deus, que é a aplicação de sua salvação na vida das pessoas. E é aqui que entra a Pessoa do Espírito Santo, pois esta obra é feita de dentro para fora no ser humano, já que Cristo fez a obra externa.
“Mas foi a nós que Deus, por meio do Espírito, revelou o seu segredo. O Espírito Santo examina tudo, até mesmo os planos mais profundos e escondidos de Deus. Quanto ao ser humano, somente o espírito que está nele é que conhece tudo a respeito dele. E, quanto a Deus, somente o seu Espírito conhece tudo a respeito dele”. 1Co 2.10-11.
Assim, podemos dizer que o Pai, para nós, aparece nas obras da Criação e da Providência, o Filho aparece na obra de redenção da humanidade e o Espírito Santo aplica essa obra redentora às pessoas, tornando real a salvação.
Na realidade, o Espírito Santo é a Pessoa da Trindade que se torna pessoal para aquele que crê. O Espírito é a pessoa específica da Trindade por meio de quem a Trindade atua em nós.
Embora a compreensão do Espírito Santo seja importante, ela é em geral um pouco difícil. E isto assim porque temos na Bíblia menos revelações explícitas acerca do Espírito do que encontramos sobre o Pai e o Filho. Mas Ele é Deus como o Pai e como o Filho.

10. O Espírito é Paradoxal
“O Senhor Deus diz a seu povo: Depois disso, eu derramarei o meu Espírito sobre todas as pessoas: os filhos e as filhas de vocês anunciarão a minha mensagem, os velhos sonharão e os moços terão visões. Até sobre os escravos e as escravas eu derramarei o meu Espírito naqueles dias”. Joel 2.28-29.
O derramamento do Espírito no dia de Pentecostes é início e fim. É o fim da antiga aliança e o surgimento de uma nova. É o fim de uma velha era e o início de uma nova. O que era escrito em pedras agora é escrito no coração. O povo de Deus agora é uma raça, é roça: é a colheita do Espírito que semeia a palavra no coração das pessoas.
No Pentecostes, ao citar o profeta Joel, Pedro deixa claro: os últimos dias começaram. A compreensão de que o Pentecostes marca o tempo do fim e o fim dos tempos, traz para nós duas lições:
A primeira, é que somos chamados à vigilância, pois o fim se abrevia: o tempo da partida está cada dia mais próximo. A segunda é que devemos fazer a crítica daqueles que pensam poder apresentar os tempos e as épocas que Deus reservou para si.
“Pois o Espírito que Deus nos deu não nos torna medrosos, pelo contrário, o Espírito nos enche de poder e de amor e nos torna prudentes”. 2Timóteo 1.7.
Deixemos de lado cálculos, estimativas, projeções e repousemos sobre a certeza de que o Dia do Senhor se aproxima, e que a igreja o aguarda desde o dia de Pentecostes. Aquele derramar do Espírito foi o esperado que aconteceu inesperadamente.
É interessante observar que Lucas (Atos 1.4) diz que os discípulos deveriam esperar o tempo da promessa em Jerusalém. Depois (Atos 2.2), fala que de repente o Espírito Santo se fez presente. Eles esperavam, mas não sabiam quando. Eles tinham certeza, mas não sabiam a hora.
O Espírito não é companheiro de horas marcadas, anunciadas em anúncios e cartazes. Ele vem quando não esperamos. E não vem da forma que esperamos. Quem quiser andar com o Espírito tem que estar preparado para surpresas, para o inesperado. Ele não falha com as suas promessas, mas não fará o que esperamos nem quando esperamos.
Quando o Espírito vem ninguém se controla. Mas ele controla a todos. Naquela hora ninguém escolheu nem determinou os seus atos. Mas ninguém estava sem controle. O Espírito controlava a todos. Era conforme o Espírito concedia. Ser cheio do Espírito não é ser como um avião sem piloto. Ser cheio do Espírito é ser conduzido por ele que na sua soberania faz o que quer quando quer e como quer. Eis o paradoxo de Deus, aquilo que contraria a crença compartilhada pela maioria.
“Mas quem não tem o Espírito de Deus não pode receber os dons que vêm do Espírito e, de fato, nem mesmo pode entendê-los. Essas verdades são loucura para essa pessoa porque o sentido delas só pode ser entendido de modo espiritual”. 1Coríntios 2.14.

11. O Espírito é Missionári
o
“Essas notícias chegaram à igreja de Jerusalém, que resolveu mandar Barnabé para Antioquia. (...) Barnabé era um homem bom, cheio do Espírito Santo e de fé. E muitos se converteram ao Senhor”. Atos 11.22 e 24.
Atos dos Apóstolos é um livro sobre a prática de missões sob o comando do Espírito Santo. O Espírito é missionário. Por isso, o livro de Atos é único em seu estilo no Novo Testamento, porque revela o Espírito como um Espírito Santo missionário. E se o Espírito Santo é missionário, o que lemos em Atos é a conseqüência natural da história de uma igreja que é formada como igreja missionária. A relação Espírito-igreja é a chave do sucesso em Atos.
Mas, Lucas deixa claro que o Espírito Santo é quem comanda a igreja em sua missão. O Espírito Santo é Deus e Deus soberano. Ele conduziu em triunfo a jovem igreja cristã em sua missão de evangelizar e discipular. E o mesmo Espírito quer hoje conduzir nossa igreja em sua tarefa missionária. Afinal, é o Espírito quem vocaciona, capacita e dirige os obreiros e a igreja na missão.
“Naquele tempo alguns profetas foram de Jerusalém para Antioquia. Um deles, chamado Ágabo, levantou-se e, pelo poder do Espírito Santo, anunciou: Haverá uma grande falta de alimentos no universo inteiro. Isso aconteceu quando Cláudio era o Imperador romano”. Atos 11.27-28.

Além disso, é Ele quem vai adiante: abre as portas e prepara o caminho para o sucesso da obra missionária. E o mesmo Espírito, além de preparar o campo, é quem transforma este mesmo campo em base missionária. A visão missionária é uma dádiva do Espírito para a igreja do Senhor Jesus. Praticar esta visão, como o fez a jovem igreja de Atos, é entender o propósito para o qual a igreja de Jesus existe.

12. O Espírito é Semeador

“Eu pedirei ao Pai, e ele lhes dará outro Auxiliador, o Espírito da verdade, para ficar com vocês para sempre. O universo não pode receber esse Espírito porque não o pode ver, nem conhecer. Mas vocês o conhecem porque ele está com vocês e viverá em vocês”. João 14.16-17.
Para a igreja, ou seja, para a comunidade de fé, a unidade só é válida na variedade: nunca na uniformidade. A aceitação das pessoas com suas diferenças e particularidades é uma condição indispensável para a saúde da comunidade cristã. Por isso, há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito (1Co 12.4). Assim, o amor unifica as diferentes expressões do frutificar no Espírito e a liberdade no Espírito possibilita a expressão dos diferentes dons.
Os dons do Espírito Santo são evidências na igreja porque a Palavra do Senhor é a mesma ontem e hoje, pois "passarão os céus e a terra, mas, as minhas palavras não haverão de passar" Mateus 24.35.
Sabemos que "o Espírito Santo opera todas essa coisas, repartindo particularmente a cada um como quer" (1Co 12.11) e que a "manifestação do Espírito é dada a cada um para o que for útil" (1Co. 12.7).
Os dons do Espírito Santo são os meios através dos quais os membros do corpo de Cristo, a Igreja, somos capacitados, habilitados e equipados para podermos realizar com autoridade e poder, a obra de Deus.
Em 1Co 12.1, o apóstolo Paulo diz: "a respeito dos dons espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignorantes". E assim somos exortados a estudar os dons do Espírito Santo, sem os quais a Igreja, ao invés de ser um organismo vivo, cheio de graça e de unção, passaria a ser uma organização social ou apenas religiosa.
Sim, todos os dons permanecem em sua integridade ou, como diz Paulo em Co 12.4 "ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo". Isto é, aquele Espírito que deu e que repartiu, é o mesmo que dá e que reparte hoje, a cada um, como quer, para a edificação do corpo de Cristo que é a Igreja do Senhor.
Às vezes, porém, se confundem os nove dons do Espírito, com fruto do Espírito, que se expressa através de nove características indispensáveis à vida cristã. O cristão tem que frutificar e manifestar as nove características do fruto do Espírito: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão e temperança. Gl 5.22.
O fruto do Espírito molda o caráter do cristão no modelo do caráter de Cristo, enquanto os dons são as capacitações especiais que o Espírito concede aos cristãos, para com poder, graça e unção, realizar a obra do Senhor.
A Palavra de Deus ensina: "segui o amor e buscai com zelo os dons espirituais" (1Co. 14.1), mas, também, a reavivar o dom de Deus que em nós (2Tm 1.6). E por que isso? Porque os dons são palavras de conhecimento, de sabedoria e discernimento, unção para curar, para realizar milagres, e fé. É, ainda, capacitação para falar em línguas, para interpretá-las e para profetizar.

13. O Espírito é Sabedoria
“Porém, quando o Espírito da verdade vier, ele ensinará toda a verdade a vocês. O Espírito não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que ouviu e anunciará a vocês as coisas que estão para acontecer. Ele vai ficar sabendo o que tenho para dizer, e dirá a vocês, e assim ele trará glória para mim”. João 16.13-14.
Esses dons espirituais são necessários à vida e ao ministério dos que exercem a liderança na igreja. São a sabedoria, o conhecimento e o discernimento. Falar com sabedoria, ter conhecimento e discernir a origem de idéias, propostas e ações possibilitam ao cristão proclamar a palavra, liderar com humildade e harmonia, e saber escolher o que é melhor para a comunidade de fé.
Em Atos 4.13 lemos que os líderes judeus ficaram admirados com a coragem de Pedro e de João, pois sabiam que eram homens simples e sem instrução. Admiraram-se de que? Com as palavras sábias apresentadas através da inspiração do Espírito Santo.
Ninguém é detentor de todos os dons do Espírito, mas cada um recebe o dom, da forma como o Espírito quer. O Espírito é quem reparte. A exortação da Palavra é que busquemos os dons e o façamos com equilíbrio, zelo, sem impedir que o Espírito possa fluir. Em 1Co 12.7 lemos: "a cada um, porém, é dada a manifestação do Espírito para o proveito comum", isto é, para o proveito da igreja.

14. O Espírito é Inspirador
“Quem fala em línguas estranhas fala a Deus e não às pessoas, pois ninguém o entende. Pelo poder do Espírito Santo ele diz verdades secretas. Porém quem anuncia a mensagem de Deus fala para as pessoas, ajudando-as e dando-lhes coragem e consolo. Quem fala em línguas estranhas ajuda somente a si mesmo, mas quem anuncia a mensagem de Deus ajuda a igreja toda”. 1Coríntios 14.2-4.

Quem fala com Deus sem usar as palavras em português, ou no seu idioma pátrio, edifica-se a si mesmo (1Co 14.2-4,14). Mas, essas línguas podem ser humanas (At 2.4-6) ou uma língua desconhecida na terra (1Co 13.1). Os cristãos de Corinto exageraram na importância do dom de línguas em detrimento dos outros dons. Para corrigi-los, Paulo deu a seguinte orientação:
a) a profecia, por que é proclamação do Evangelho, é mais importante para a igreja porque exorta, edifica e consola: dela todos se beneficiam. Os irmãos não devem pensar apenas na sua edificação.
b) para que os benefícios se estendam ao maior número de pessoas na igreja, aquele que fala em línguas, ore para receber o dom de interpretação (1Co 14.13), se é que deseja os dons espirituais. Em nenhum momento Paulo despreza o dom de variedade de línguas. Ao contrário, ele agradeceu a Deus porque falava em línguas e disse que gostaria que todos falassem em línguas, mas que houvesse mais proclamação do Evangelho.
Podemos dizer ainda que o falar em línguas é o processo da misericórdia de Deus para pobres e excluídos, que não têm voz na sociedade, cujas línguas estão mudas. Então, é um desprender-se sob o Espírito que possibilita expressarem o que sentem e experimentam. É uma nova expressão para a experiência da fé, e é uma expressão pessoal.
Mas, para benefício da Igreja convém que o dom de línguas tenha intérprete. Caso não haja intérprete, melhor que fiquem em silêncio, falando consigo e com Deus. E, por fim, uma recomendação do apóstolo: procurem, com zelo, profetizar e não proíbam falar línguas, mas façam-se todas as coisas decentemente e com ordem (1Co 14.39-40).
“Por isso, já que vocês estão com tanta vontade de ter os dons do Espírito, procurem acima de tudo ter os dons que fazem com que a igreja cresça espiritualmente”. 1Coríntios 14.12.

15. O Espírito é Amplidão
“A terra era um vazio, sem nenhum ser vivente, e estava coberta por um mar profundo. A escuridão cobria o mar, e o Espírito de Deus se movia por cima da água”. Gênesis 1.2.
O Espírito Santo é o acontecer da presença atuante de Deus, que penetra até o mais íntimo da existência humana. Leia o Salmo 139.7-23. Ele atua como força de vida no ser humano e transforma aqueles que se encontram sob o senhorio de Cristo.
Cria espaço, põe em movimento, leva da estreiteza para a amplidão. Cria o horizonte e nas nossas vidas amplia o horizonte. Na experiência com o Espírito Santo, Deus não é experimentado somente como Pessoa da Trindade, mas também como aquele espaço e tempo de liberdade onde o ser humano pode se desenvolver.
“Aí eu me ajoelhei aos pés do anjo para adorá-lo, mas ele me disse: Não faça isso! Pois eu sou servo de Deus, assim como são você e os seus irmãos que continuam fiéis à verdade revelada por Jesus. Adore a Deus! Pois a verdade revelada por Jesus é a mensagem que o Espírito entrega aos profetas”. Apocalipse 19.10.

Esta é a experiência do Espírito. Um dos nomes de Deus, segundo a religião judaica, é Macom: amplidão. Quando o Espírito é experimentado como essa amplidão aberta à vida, quando os seres humanos vivem no Espírito, Deus é experimentado como um novo tempo de vida.

16. O Espírito é Liberdade
“Aqui a palavra Senhor quer dizer o Espírito. E onde o Espírito do Senhor está presente, aí existe liberdade”. 2Co 3.17.
Onde está o Espírito do Senhor há liberdade. Com essa experiência do Espírito, o apóstolo Paulo fala sobre a liberdade cristã. Mas para falar da liberdade no Espírito é necessário começar pela fé.
A fé é geralmente entendida como uma concordância formal com a doutrina da igreja ou como uma participação na fé da igreja. Mas a fé que liberta é mais do que isso, é uma fé que nos envolve pessoalmente. A fé que me faz livre é a fé com a qual eu concordo, porque eu a compreendo, não porque seja forçado por hábito ou tradição. A fé pessoal é o início de uma liberdade que renova inteiramente a vida e vence o universo (Jo 16.33).
Essa fé é uma experiência que não abandona aqueles que a experimentaram realmente: a liberdade do medo para confiança, o reviver para uma esperança viva, o amor incondicional à vida.
Para a fé cristã, a liberdade não consiste nem na compreensão de uma necessidade histórica, nem na autonomia sobre si próprio e sobre a propriedade, mas sim no ser tocado pela energia de vida do Espírito.
Fé significa ser criativo com Deus e no seu Espírito. Crer leva a uma vida criativa e vivificante pelo amor. Crer, por isso, significa ultrapassar os limites da realidade determinada pelo passado e buscar as possibilidades da vida que não se realizaram. E é essa fé que livra da força do mal, da lei das obras e do poder da morte e leva a uma comunhão direta e eterna com Deus. Essa é a base e o fundamento da liberdade no Espírito.
“O Espírito e a Noiva dizem: Venha! Aquele que ouve isso diga também: Venha! Aquele que tem sede venha. E quem quiser receba de graça da água da vida”. Apocalipse 22.17.


Conclusão

As palavras hebraica e grega para espírito revelam um significado duplo: espírito e vento. Por exemplo, "o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas" (Gn 1.2), e "Deus fez passar um vento sobre a terra, e as águas abaixaram" (Gn 8.1). Jesus disse a Nicodemos: "O que é nascido do Espírito, é espírito... o vento sopra onde quer” (Jo 3.6-8).
Outro significado do termo espírito nas duas línguas é sopro, respiração, tanto divina como humana (Jó 4.9; 12.10; 2Ts 2.8; Ap 11.11). Nas Bíblias em português, a expressão espírito é escrita com letra maiúscula para referir-se ao Espírito de Deus ou com letra minúscula para indicar o espírito humano. Como os manuscritos antigos não usavam letras maiúsculas, os tradutores e editores, às vezes, têm dificuldade para determinar se o escritor bíblico tinha em mente o espírito de Deus ou o humano. Como exemplo veja as variações de tradução em Atos 19.21.
A imagem da água, que denota limpeza e purificação (Ez 36.25-26; Ef 5.26-27; Hb 10.22), as imagens do óleo e do azeite, que denotam unção (Mt 25.1-13; Ap 3.18) e a imagem do fogo, que denota luz e o consumir da justiça divina (Mt 3.11; At 2.3; Sl 78,14) são também símbolos do Espírito.
“De repente, veio do céu um barulho que parecia o de um vento soprando muito forte e esse barulho encheu toda a casa onde estavam sentados. Então todos viram umas coisas parecidas com chamas, e cada pessoa foi tocada por uma dessas línguas. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, de acordo com o poder que o Espírito dava a cada pessoa”. Atos 2.2-4.
As cartas apostólicas ensinam o princípio tri/unitário, tanto no início como na conclusão dos textos (2Co 13.13; Ef 1.2-11; 1Pe 1.1-3). O evangelho de Lucas tem passagens que apresentam a concepção de Jesus como obra do Espírito, assim como Mateus (Lc 1.35, Mt 1.18, 20). João Batista disse ao povo que ele os batizava com água, mas Jesus os batizaria com o Espírito Santo e com fogo (Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16).
Na história humana, a idéia de poder sempre esteve ligada à violência, às guerras e ao prazer. Ter poder é possuir riquezas, são os músculos, ou os votos que um político pode conquistar. Mas, nas Escrituras, o Espírito é comparado à água, que refrigera, limpa e purifica, por isso simboliza o poder de um novo nascimento.
O Espírito também é comparado ao óleo ou azeite. Nessa simbologia, o Espírito é um poder que conforta, já que o azeite era utilizado como medicina. Os reis eram ungidos com o azeite perfumado. O azeite da unção usado em Israel tinha uma fórmula, na qual entravam a mirra, a canela, as madeiras aromáticas, a cássia e o azeite de oliva, razão porque era usado como perfume.
Já o fogo sempre esteve ligado à imagem de Deus e sua justiça. No Pentecostes, centelhas de fogo pousaram sobre a cabeça de cada um dos apóstolos e no Apocalipse um lago de fogo está reservado para a morte, para o universo dos mortos e para aqueles que não tiverem seus nomes escritos no Livro da Vida (Apocalipse 20.14-15). A água, o óleo e o fogo são sinais da presença e da justiça de Deus e nos ajudam a compreender o papel do Espírito em nossas vidas, nas sociedades e no universo.
“Ele os batizará com o Espírito Santo e com fogo”. Lucas 3.16.