... a navegar oceanos profundos
Yoffe Shemtov [1]
Leitor de Jorge
Pinheiro, a partir da tradição sefardita, vejo um homem que constrói barcos de
madeira para navegar oceanos profundos. Lembra pescadores da Polinésia. E
solitariamente, sentado na proa, com uma lanterna acessa no outro lado, parte
sem rumo, ou melhor, num rumo que só ele crê conhecer. E dias depois, quando já
em terra, as gentes ousam perguntar-lhe o que busca, Pinheiro responde: meu destino.
É por isso que quando volta ao barco, todos nós, seus leitores, gritamos: Continue
navegando!
Pinheiro, a
navegar com pensadores como Paul Tillich, Slavoj Zizek e Giacomo Marramao, em
momentos de conversa liberta de razões, à maneira mineira, diz que para garimpeiros da ontologia e navegantes do
destino, duas coisas devemos saber acerca do Eterno criador: Ele é o ser real, a
substância absoluta; é a forma mais-que-perfeita.
É desta
leitura que Pinheiro parte. E isso se deve ao seu judaísmo-tardio, aquele
judaísmo que dialoga com a sofia grega, que traduz a universalidade judaica, que
vê o Eterno como substância absoluta. Mas também parte do ser protestante-novo,
que rechaça o contra-semitismo de católicos e protestantes, tão forte a partir
de Agostinho de Hipona... E ele olha o Eterno como a forma mais-que-perfeita.
Para Pinheiro, o berit é comunicação
da substância divina; mas ser protestante-novo é caminhar na graça com a pessoalidade
divina. Nessa leitura, Pinheiro vive a aliança do movimento das massas hebréias
e uma mística suprapessoal, que faz parte da história e tradições dos povos
hebreus. Mas como protestante-novo considera que foi beneficiado com a
emergência de pessoalidades e comunidades em seus caminhares com a messianidade.
Assim, para Pinheiro, a história traduz um
elemento fundamental: a aspiração que vai além da racionalidade presente nas
formas, que vibra nos corações judeus sob o efeito da radiação do que não pode
ser capturado através da ética e nem mesmo da lógica. Esta substância universal
do Eterno criador é uma dimensão intrínseca à fé judaica, mas chega ao
protestantismo-novo de Pinheiro, e pode ser traduzida no movimento dinâmico e
permanente da espiritualidade: querer caminhar na presença do Santo; desejar
viver em comunidades de amor, que reúnem pessoas antes separadas; e compreender
que a autoridade do Eterno criador, essencial à vida, se manifesta através da história,
da tradição e dos símbolos.
Pinheiro é protestante-novo, e sua
militância criou raízes a partir do protesto crítico contra a absolutização da
substância nas instituições, que gera, segundo crê, alienação, idolatria,
morte. Daí a presença de Marramao e Zizek em suas leituras.
Para Pinheiro,
seu princípio do protesto está correlacionado com a centralidade da substância
judaica, enquanto relação entre a manifestação da essência na existência e a
afirmação do significado messiânico. Afirma que a substância judaica
apresenta-se sob dimensões históricas e trans-históricas como identidade
subjacente. Ou seja, quando se refere à história e à tradição é a substância
que fornece os símbolos da unidade universal do reino do Adonai Elohim. Dentro
desta unidade universal encontra-se o princípio do protesto enquanto fundação
do evento messiânico, que tem uma relação de centralidade com a substância judaica.
É este princípio do protesto que retira da figura humana do Mashiah tudo que
nela poderia ser materializado como idolatria, por sua facticidade histórica. É
por meio do símbolo que desaparecem as particularidades e o finito, dando lugar
ao significado presente do Mashiah.
O paradoxo do
aparecimento do Mashiah na existência, sem a deformação da existência, é uma
interpretação radical do símbolo, liberta do significado da idolatria de se
permanecer na adoração de um objeto histórico e, por isso, limitado, finito,
enclausurado num espaço e tempo passados. Para Pinheiro, o princípio do protesto,
lido sob tal perspectiva, apresenta o Mashiah como presente que remete ao
kairós.
É, por isso, que
o protestantismo-novo de Pinheiro evita cair na armadilha de abandonar a
unidade universal da substância, que mantém e possibilita o resgate do sentido
do Eterno nas profundezas do humano. E, assim, ao romper com o deísmo dos
textos antigos das tradições judaicas, da palavra que se resume à ética do
texto, as profundezas da interioridade humana são resgatadas. E ao resgatar Tillich,
mas compreendendo a dialeticidade do Mashiah proposta por Zizek, mostra a relevância
do kerigma messiânico, em aliança com o reconhecimento do Santo, que se
faz presente na cultura e nas dobraduras da secularidade.
É a partir daí
que Pinheiro defende a idéia tillichiana de comunidade espiritual como processo
de essencialização, já que o significado da vida, existencial e pessoal,
consiste na recuperação do ser essencial presente no Eterno criador. Ou como
disse Tillich, “a comunidade espiritual é latente antes do encontro com a
revelação central, e é manifesta depois desse encontro”.[2] E nesse
processo de essencialização, o Mashiah é elemento que possibilita o kairós,
pelo qual a história humana sempre esperou. A partir daí há um processo de
essencialização das pessoas e das comunidades, que vivem processos de
essencialização sob o poder messiânico.
E mais, Pinheiro,
nas pegadas de Tillich, mas numa compreensão de seu judaismo-tardio e seu
protestantismo-novo, considera que as comunidades protestantes estão
ontologicamente imbricadas às comunidades judaicas e, por isso, fazem novas
leituras do Mashiah, cujo amor e fé estabelecem a essencialização, enquanto
mudança de sentido de uma participação latente para uma participação manifesta
na comunidade espiritual. Dessa maneira, é o amor e a fé messiânicas que levam
à autocrítica radical capaz de estabelecer distinção entre o essencial e as
formas através das quais o essencial se manifesta. A afirmação de que o
judaísmo-tardio se complementa na comunidade protestante-nova justifica a leitura
messiânica da fé.
Ou como afirmou Tillich
e Pinheiro cita: “a comunidade espiritual está relacionada tanto com a
cultura e a moralidade quanto com a religião, e a presença espititual torna
necessária uma mudança radical na atitude para com o que é incondicional”.[3]
Convém lembrar,
porém, que Pinheiro, a partir de Marramao, combate toda expressão de arrogância,
de absolutização do poder, na relação entre comunidade manifesta e judaísmo
latente, ao reconhecer a presença da espiritualidade na cultura e nas religiões.
Por isso, sugere que a proclamação do Mashiah combine ofensiva e mediação.
Ofensiva no sentido kerigmático e mediação no sentido de correlacionar o
kerigma com a questão cultural.
Assim, o
conceito de substância judaica é valioso para a compreensão do kerigma,
principalmente no protestantismo-novo. O kerigma messiânico, a partir desta
leitura, segundo Pinheiro, admite que a realidade manifesta no kairos do Mashiah
está em ação na cultura. Dessa maneira, a tarefa kerigmática consistiria em
procurar identificar as maneiras por meio das quais o essencial, manifesto no
evento messiânico, se faz presente na cultura. Tal procura possibilita a
apropriação kerigmática da experiência com o Mashiah, ao considerá-la enquanto
manifestações do essencial, além de sinalizar caminhos nos quais a
auto-compreensão messiânica pode ampliar contatos com culturas e povos.
Logicamente,
por fazer uma confissão do novo protesto da presença do Mashiah em sua vida, as
reflexões de Pinheiro sobre o universalismo judaico influenciam em muito sua
ação kerigmática. Assim, no correr de suas navegações, construiu uma visão kerigmática
da qual participam comunidades, e sua ação se vê calcada num entendimento libertário
de práxis social.
Ou seja, a partir do universalismo judaico, Pinheiro considera que o amor do Eterno criador pelos seres
humanos não está suspenso, esperando que o kerigma messiânico seja entregue. Considera
que aqueles que O buscam, nos limites da fé colocada em seus corações, serão essencializados,
mesmo que nada saibam sobre a presença do Mashiah em suas vidas.
Para Pinheiro o protesto-novo, não enquanto
instituição, mas em sua ação kerigmática têm uma prática que repousa em muito sobre
a substância judaica. Esta leitura de Pinheiro, a partir de Marramao, Tillich e
Zizek, apresenta as bases para uma esperança maior no modo específico através
do qual o desejo do Eterno criador de essencializar os seres humanos é realizado.
O ponto de vista defendido é que o Eterno ama os seres humanos e deseja que
sejam essencializados. E são essencializados em razão do evento messiânico,
quer sejam conscientes ou não desse evento, que projeta o kairós. Dessa
maneira, o universalismo judaico apresenta a comunidade protestante-nova como
comunidade que caminha em direção à essencialização. Ou em linguagem judaica, o
Eterno aceita os que exercem fé, sem levar em consideração até que ponto vai o
conhecimento dessas pessoas.
É importante entender, então, que o conceito de
substância judaica está em processo de correlação permanente com o princípio
protestante, e é por isso mesmo que nas diferentes comunidades protestantes
encontramos defensores da substância judaica como fundamental para a vida dessas
comunidades. Tais considerações, nos permitem dizer que, como defende Pinheiro,
o conceito substância judaica represente a abordagem mais próxima de um
consenso entre os pensadores do protesto-novo na atualidade.
Nestas
navegações de Pinheiro, onde correlaciona pensadores aparentemente diversos
como Giacomo Marramao, Paul Tillich e Slavoj Zizek, antropologia e ontologia se
correlacionam. Esta antropologia baseia-se na compreensão de que a humanidade é
imago Dei e se encontra em choque com a alienação do espaço e tempo
presentes. Mas a memória humana persiste como impulso na direção da recuperação
desse mau encontro, exposto por La Boétie. Esta dialética explicita e traduz a
presença da espiritualidade do espírito humano.
Quando Pinheiro
diz, a partir de seus garimpeiros preferidos, que a humanidade é universalmente
espiritual, partindo da dialética universal/particular, localiza o particular
no contexto do universal. Em vez de considerar a realização plena do universal
na revelação messiânica, relativiza a particularidade no contexto dessa
humanidade universalmente espiritual. Tal ênfase exige que o navegador aprecie
as manifestações do essencial nas culturas. Mas nem por isso o compromisso com
a messianidade é diminuída. Ao contrário, a fé é aprofundada por meio do
reconhecimento das variações daquilo que os protestantes-novos percebem no
evento messiânico, tanto nas religiosidades como nas dobraduras da
secularidade.
Assim, a radicalidade do princípio do protesto
pode ser aplicada às materializações da substância judaica na direção da
essencialização do humano, denunciando as expressões idolátricas que ameaçam a
comunidade humana.
Aqui em “Imago Dei, a teologia do ser
humano”, o leitor vai encontrar esse caminhar na dialeticidade do universalismo
judaico e da particularidade protestante. E exatamente por isso os textos
antigos da tradição judaica são lidos na contra-corrente do que se espera, quer
para judeus, quer para protestantes. Mas para aqueles que procuram leituras
para novos espaços e tempos, a novidade pode ser criativa e criadora. Donde, o
convite é: vamos navegar oceanos profundos em barcos de madeira!
[1] Yoffe Shemtov é o sefardita que mora no fundo de meu coração. E sabe
das coisas.
[2] Paul
Tillich, « La Masse et la Religion », in Christianisme et socialisme,
Écrits socialistes allemands, 1919-1931, Paris, Genebra e Quebec ; Cerf,
Labor et Fides, Presses de l´Université Laval, 1992, p. 605.
[3] Paul Tillich, idem, op. cit, p. 665-666.