Jorge Pinheiro, PhD
O Programa da Revolução Democrática foi
aprovado no II Congresso Nacional do Partido dos
Trabalhadores, realizado em Belo Horizonte, entre os dias 24 e 28 de novembro
de 1999, e apresentou propostas para transformar a sociedade brasileira a
partir de três eixos: o social, o democrático e o nacional. O II
Congresso do Partido dos Trabalhadores aconteceu em um momento especial da
história, que coincidiu com a proximidade do quinto centenário do processo
colonizador português em terras brasileiras e a entrada do novo milênio. Diante
das discussões dos problemas estruturais da sociedade, que remetem às propostas
das reformas de base do governo João Goulart, já naquela época com raízes
históricas decorrentes da ação de uma elite predatória, o PT considerou que só
sua presença enquanto partido poderia viabilizar transformações reais.
No final
do segundo milênio, a conjuntura internacional mostrava-se incerta, e a partir
da hegemonia político-militar dos Estados Unidos, que “fere a soberania de
nações e povos e tende a cristalizar uma ordem internacional desigual, injusta
e autoritária”,[1] o PT
considerava que tal situação internacional ameaçava a economia global, em
particular os países da periferia, como o Brasil. Afirmava que as experiências neoliberais e a
mundialização econômica e financeira chegavam a seus limites, que o anunciado “fim
da História” não havia chegado, e que o “pensamento único”
revelara-se enganoso. Fazia a crítica do Fundo Monetário Internacional, ao
afirmar que suas políticas e ajustes liberais contribuíram para aumentar a
miséria pelo mundo afora. Afirmava ainda que a terceira via de Tony Blair e Bill Clinton eram operações de
maquiagem do neoliberalismo na qual o governo de Fernando Henrique Cardoso “tentará
pegar carona”.
Essa postura conformista e conservadora parte da falsa premissa de que
não é mais possível impulsionar políticas de crescimento com inclusão social e
pleno emprego. Seus partidários no mundo desenvolvido, a partir do colapso da
URSS e dos regimes do leste, pretendem justificar o abandono das políticas de
bem-estar que a social-democracia adotou no pós-guerra. As esquerdas, inclusive
setores da social-democracia, hoje denunciam e rejeitam essas teses. No Brasil,
onde a exclusão social foi e é a regra, a Terceira Via aparece em sua face mais grotesca. O novo quadro
mundial cria condições para a construção de novos projetos nacionais e
internacionais. Para tanto, são necessárias transformações radicais que somente
grandes maiorias poderão realizar. Essas transformações requerem visão e
propostas de caráter estratégico.[2]
Para a
elaboração de seu Programa da Revolução Democrática, o PT partiu de sua
própria história: havia nascido em meio à crise dos paradigmas da esquerda e do
colapso do modelo nacional-desenvolvimentista no país. E, por isso, se definiu
como “um partido pós-comunista e pós-socialdemocrata”, que não buscava o
“assalto ao poder” por meio de uma revolução, nem tinha como objetivo
conquistar o governo para amenizar o capitalismo. Mas via a necessidade de uma
revolução democrática, capaz de construir um Brasil livre, igual e solidário,
que socializasse a riqueza, o poder e o conhecimento. E agregava: “a
revolução democrática é um longo processo. Ela não será resultado de teorias
pré-elaboradas, nem de vanguardas auto-proclamadas, mas da ação de amplas
maiorias conscientes de seus objetivos”.[3] E por
isso, considerou, baseando em considerações do 5o. Encontro
Nacional,[4] de
1987, que havia a necessidade de desenvolver uma política de acumulação de
forças, pois seria através desse processo que se alterariam as relações de
poder e o partido poderia construir uma nova hegemonia, criando as condições
para a transformação da sociedade brasileira.
Tal acumulação de forças se daria
através de movimentos que articulariam as lutas sociais com as transformações
institucionais. E explicitava essa política: “sabemos que é importante
combinar as ocupações de terra, as lutas no chão de fábrica, as greves e as
mobilizações da sociedade em busca de novos direitos sociais e políticos com a
ação nos parlamentos e nos governos municipais e estaduais”.[5] Dessa maneira, o PT propôs-se formular
um programa alternativo das esquerdas para o Brasil, construído a partir dos
eixos social, democrático e nacional, que deviam ser traduzidos em reformas
econômicas e políticas e apoiados por uma coalizão de forças sociais e
políticas. Essas reformas teriam um efeito “desestabilizador sobre o
capitalismo”[6] e
desencadeariam uma ofensiva reformuladora que necessitaria de uma nova
correlação de forças na sociedade, condição para que as esquerdas chegassem ao
governo e enfrentassem o problema do poder.
Anteriormente, quando elaborou o documento “O
socialismo petista”, o campo da relação do PT com a utopia estabelecia um
diálogo entre o socialismo que desejava alcançar e a experiência de transformar
o mundo. Era uma novidade no campo da esquerda brasileira, que remetia aos
primeiros tempos do Partido Socialista Brasileiro, já que fazia a defesa do
pluralismo como princípio da democracia socialista e defendia a idéia de que o
PT era uma síntese aberta de culturas libertárias, entre elas, o cristianismo.
Ou seja, a utopia não estava dada, mas poderia “ser formulada através de
ordenações capazes de indicar um princípio civilizatório alternativo ao mundo
do liberalismo”,[7]
e se constituir em princípio de orientação da prática partidária: esse seria o
caminho da utopia socialista.
E, como conseqüência, embora os trabalhadores
continuassem a ser a base referencial do partido, a construção da utopia não
estaria concebida como expressão do desenvolvimento da consciência dessa
classe. Donde, a identidade socialista não seria auto-referida. Mas aqui surgiu
um problema: se a utopia socialista não fosse vivida através do diálogo com a
experiência das classes trabalhadores e dos excluídos, sobre que bases se
haveria de construir o campo da experiência partidária? Ao não responder a essa
questão e diluir o campo da experiência partidária na construção de um
hipotético bloco hegemônico, acabou por incluir todos os setores sociais e
econômicos descontentes com o governo Fernando Henrique Cardoso nesse bloco. Assim,
a utopia foi desencantada e o PT abriu caminho para alianças com setores
adversários do socialismo.
[1] “O
programa da revolução democrática”, II Congresso Nacional, Belo Horizonte,
24-28.11.1999, in O PT faz história, São Paulo, Fundação Perseu Abramo,
2001, p. 37.
[2] “O
programa da revolução democrática”, op. cit., p. 37.
[3] “O
programa da revolução democrática”, op. cit., p. 38.
[4] “Uma
política de acúmulo de forças”, 5o. Encontro Nacional, 4-6.12.1987,
Brasília-DF, in Resoluções de Encontros e Congressos, 1979-1998, Partido dos Trabalhadores, São Paulo,
Fundação Perseu Abramo, 1999, p. 321.
[5] “O
programa da revolução democrática”, op. cit., p. 38.
[6] “O
programa da revolução democrática”, op. cit., p. 39.
[7] Juarez
Guimarães, “A sólida necessidade da utopia”, São Paulo, Periscópio, no.
42, dez 2004/jan 2005, Fundação Perseu Abramo. Site: www.fpa.org.br/periscopio/. (Acesso em 02.12.2005).