lundi 18 juillet 2016

O programa da revolução democrática

Segundo Azevedo, na primeira fase de sua história, o PT afirmou que a democracia tinha valor substantivo, que ela não era um objetivo provisório, instrumental, embora muitas vezes em seu discurso, abandonava a legalidade democrática para preservar o socialismo proclamado. Assim, se num primeiro momento, o PT favorece o discurso socialista, sua tendência será movimentar-se em sentido contrário. Vai favorecer o discurso democrático e o socialismo será visto como qualidade das reformas a serem feitas. Dessa maneira, desde 1986 o PT balançou entre duas estratégias, utilizar os slogans socialistas de 1982 ou o tom moderado de 1985. Caminhou para a segunda opção e elegeu dezesseis deputados federais e quarenta estaduais.


No ano seguinte, o 5º Encontro Nacional definiu a estratégia de um “governo democrático-popular” e propôs uma política de alianças com outros partidos. E na Constituinte defendeu um programa de democracia radical, a favor da estatização dos bancos, reforma agrária, nacionalização das reservas minerais, benefícios às empresas de capital nacional e formas de democracia direta. Como suas propostas ficaram à margem, em 1988, os deputados do partido não assinaram a nova Constituição. Mas, em novembro, o PT elegeu os prefeitos de São Paulo, Porto Alegre, Vitória e de 35 outras cidades. 


Então optou pelo caminho das reformas democráticas, deixando o socialismo como bandeira para os dias de festas. Assim, em 1989, o 6º Encontro Nacional lançou Lula à Presidência, mas a partir desse encontro o PT não se definiu mais como partido sem patrões, embora declarasse como adversários banqueiros, latifundiários, multinacionais e monopólios privados. Também deixou de propor a estatização de setores da economia, preferindo permanecer na defesa da manutenção das estatais existentes. No primeiro turno das eleições presidenciais, em novembro, Lula ficou em segundo lugar, com 17,1% dos votos válidos. No segundo turno, Fernando Collor venceu Lula, que obteve 47% dos votos válidos. 

O documento “O Socialismo petista”, aprovado em 1990, quando o Partido dos Trabalhadores procurou definir os caminhos do seu socialismo, sintetizou um momento especial da utopia socialista no PT. Naquela época, o socialismo dentro do PT começava a se descolar das concepções stalinistas e trotskistas, e os petistas começavam a ver a utopia com um novo sentido. Se antes ela era expressão de um movimento operário imaturo, passava agora a designar a necessidade de alargar a imaginação dos movimentos sociais para além dos limites do imediatamente possível. Na resolução reafirmava-se o juízo sobre o sistema capitalista, mas, ao mesmo tempo, se identificava as dificuldades de construção do socialismo. É importante notar que o PT fazia esta sistematização de sua utopia, começando pela afirmação da necessidade da democracia:


“A democracia tem, para o PT, um valor estratégico. Para nós, ela é, a um só tempo, meio e fim, instrumento de transformação e meta a ser alcançada. Aprendemos na própria carne que a burguesia não tem verdadeiro compromisso histórico com a democracia. (...) Será decisiva, no futuro, a instituição de uma democracia qualitativamente superior, para assegurar que as maiorias sociais de fato governem a sociedade socialista pela qual lutamos”.

A partir desse conceito de democracia enquanto necessidade, definiu, por extensão, o conceito de necessidade da democracia interna ao partido, já que o PT era visto como a continuação da história dos partidos que construíram sua utopia da experiência de transformar o mundo. Embora muitas dessas experiências tivessem ganho dimensões sectárias, o PT deveria caminhar além da dimensão dogmática e buscar razões instrumentais em relação às necessidades práticas. Ou seja, superar a concepção de um programa formado à margem da experiência de transformar o mundo, e por isso obstáculo aos princípios normativos da democracia. Mas, essa defesa da democracia, em si mesma correta, levou o PT a repetir um processo conhecido na história de muitos partidos de esquerda: o do abandono da utpoia socialista. E essa utopia desencantada que expressa a tificação social-democrata, se traduziu na elaboração do Programa da Revolução Democrática, construído ao redor das tarefas imediatas de complementação da revolução democrático-burguesa, mas desconectado das transformações pós-revolucionárias. Não havia nessa leitura programática uma teoria da transição, que combinasse as reformas do agora com a revolução do amanhã. Como consequência, as exigências práticas e as pressões da ordem tenderam a ganhar espaço sobre a identidade socialista, levando-o por percursos diversos, a desencantar-se com suas utopias anticapitalistas.

O Programa da Revolução Democrática foi aprovado no II Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores, realizado em Belo Horizonte, entre os dias 24 e 28 de novembro de 1999, e apresentou propostas para transformar a sociedade brasileira a partir de três eixos: o social, o democrático e o nacional.

O II Congresso do Partido dos Trabalhadores aconteceu em um momento especial da história, que coincidiu com a proximidade do quinto centenário da invasão portuguesa em terras brasileiras e a entrada do novo milênio. Diante das discussões dos problemas estruturais da sociedade, alguns com profundas raízes históricas decorrentes da ação de uma elite predatória, o PT considerou que só a presença dele enquanto partido representativo das massas populares poderia viabilizar  que transformações reais.

Naquele momento, a conjuntura internacional mostrava-se incerta, e a partir da hegemonia político-militar dos Estados Unidos, que “fere a soberania de nações e povos e tende a cristalizar uma ordem internacional desigual, injusta e autoritária”, o PT considerava que tal situação internacional ameaçava a economia global, em particular países da periferia, como o Brasil. Afirmava que as experiências neoliberais e a globalização econômica e financeira chegavam a seus limites, que o anunciado “fim da História” não havia chegado, e que o “pensamento único” revelara-se enganoso. Fazia a crítica do Fundo Monetário Internacional, ao afirmar que suas políticas e ajustes liberais contribuíram para aumentar a miséria pelo mundo afora.

Afirmava que a terceira via de Tony Blair e Bill Clinton eram operações de maquiagem de neoliberalismo na qual o governo de Fernando Henrique Cardoso  tentara pegar carona. 

Essa postura conformista e conservadora parte da falsa premissa de que não é mais possível impulsionar políticas de crescimento com inclusão social e pleno emprego. Seus partidários no mundo desenvolvido, a partir do colapso da URSS e dos regimes do leste, pretendem justificar o abandono das políticas de bem-estar que a social-democracia adotou no pós-guerra. As esquerdas, inclusive setores da social-democracia, hoje denunciam e rejeitam essas teses. No Brasil, onde a exclusão social foi e é a regra, a Terceira Via aparece em sua face mais grotesca. O novo quadro mundial cria condições para a construção de novos projetos nacionais e internacionais. Para tanto, são necessárias transformações radicais que somente grandes maiorias poderão realizar. Essas transformações requerem visão e propostas de caráter estratégico.

Para a elaboração de seu programa de revolução democrática, o PT partir de sua própria história: havia nascido em meio à crise dos paradigmas da esquerda e do colapso do modelo nacional-desenvolvimentista em nosso país. E, por isso, se definiu como “um partido pós-comunista e pós-socialdemocrata”, que não buscava o “assalto ao poder” por meio de uma revolução violenta, nem tinha como objetivo conquistar o governo para amenizar o capitalismo. Mas via a necessidade de uma revolução democrática, capaz de construir um Brasil livre, igual e solidário, que socializasse a riqueza, o poder e o conhecimento. E agregava: “a revolução democrática é um longo processo. Ela não será resultado de teorias pré-elaboradas, nem de vanguardas auto-proclamadas, mas da ação de amplas maiorias conscientes de seus objetivos”.

E por isso, considerou, baseando em considerações do 5o. Encontro Nacional, de 1987, que havia a necessidade de desenvolver uma política de acumulação de forças, pois seria através desse processo que se alterariam as relações de poder e o partido poderia construir uma nova hegemonia, criando as condições para a transformação da sociedade brasileira. Tal acumulação de forças se daria através de movimentos que articulariam as lutas sociais com as transformações institucionais. E explicitava essa política: “sabemos que é importante combinar as ocupações de terra, as lutas no chão de fábrica, as greves e as mobilizações da sociedade em busca de novos direitos sociais e políticos com a ação nos parlamentos e nos governos municipais e estaduais”.

Dessa maneira, o PT propôs-se formular um programa alternativo das esquerdas para o Brasil, construído a partir dos eixos social, democrático e nacional, que deviam ser traduzidos em reformas econômicas e políticas radicais e apoiados por uma coalizão de forças sociais e políticas. Essas reformas teriam um efeito “desestabilizador sobre o capitalismo” e desencadeariam uma ofensiva reformuladora que necessitaria de uma nova correlação de forças na sociedade, condição para que as esquerdas chegassem ao governo e enfrentassem o problema do poder.

Anteriormente, quando elaborou o documento “O socialismo petista”, o campo da relação do PT com a utopia estabelecia um diálogo entre o socialismo que desejava alcançar e a experiência de transformar o mundo. Era uma inovação, já que fazia a defesa do pluralismo como princípio da democracia socialista e defendia a idéia de que o PT era uma síntese aberta de culturas libertárias, entre elas, o cristianismo. Ou seja, a utopia não estava dada, mas poderia “ser formulada através de ordenações capazes de indicar um princípio civilizatório alternativo ao mundo do liberalismo”, e se constituir em princípio de orientação da prática partidária: esse seria o caminho da utopia socialista. E, como consequencia, embora os trabalhadores continuassem a ser a base referencial do partido, a construção da utopia não estaria concebida como expressão do desenvolvimento da consciência dessas classes. Donde, a identidade socialista não seria auto-referida. Mas aqui surgiu um problema: se a utopia socialista não fosse vivida através do diálogo com a experiência das classes trabalhadores e dos excluídos, sobre que bases se haveria de construir o campo da experiência partidária? Ao não responder essa questão e diluir o campo da experiência partidária na construção de um hipotético bloco hegemônico, acabou por incluir todos os setores sociais e econômicos descontentes com o governo Fernando Henrique Cardoso nesse bloco. Assim, a utopia foi desencantada, e o PT abriu caminho para alianças com setores conservadores e inimigos do socialismo. 

A dimensão social como foi entendida pelo Programa da Revolução Democrática deveria partir de mudanças na economia que enfrentassem o capital financeiro nacional e internacional, assim como as pressões internacionais e os mecanismos de intervenção externa na economia. Temia a possibilidade de confronto, mas garantia que tal opção política não levaria ao populismo. 

As novas prioridades provocarão enfrentamentos com os interesses do capital financeiro nacional e internacional que condicionam hoje as grandes decisões econômicas nacionais. Inverter prioridades não significa opção populista. Uma política de distribuição de renda exige um ambicioso projeto de desenvolvimento e a definição de suas condições de financiamento. Um país como o Brasil permite (e exige) uma nova política econômica, mesmo levando em conta os graves constrangimentos internacionais atuais.

Acontece que antes, ao fazer a crítica da economia capitalista, a utopia socialista ressaltava o potencial transformador das culturas e a importância da criação de espaços plurais de formas de propriedade social. Por isso, criticava as sociedades baseadas no socialismo real por não terem se comprometido com a liberdade, nem se preocupado em estabelecer pontes com o ser humano enquanto pessoa, por terem desvinculado participação política e regulação da vida econômica. Eram tempos em que a utopia socialista do PT aproximava-se do cristianismo social. Até aquele momento, podemos dizer que a utopia socialista tinha uma compreensão cristã da vida e norteara politicamente o PT, mas agora, no final dos anos 90, a nova agenda democratica estaca sendo convertida em liberalismo radical.

É importante dizer, que muitas das bandeiras levantadas pelo Programa da Revolução Democrática sempre fizeram parte do ideário petista e que eram entendidas por suas bases como necessárias. Dessa maneira, o programa afirmava a necessidade de um modelo econômico estruturado em torno da construção de um mercado interno de bens de consumo de massa, capaz de “alimentar, vestir, dar moradia e transporte, aos milhões de brasileiro marginalizados ou empobrecidos”. O que exigiria uma reforma agrária, que garantisse terra, emprego e financiamento para os trabalhadores rurais, cobrando assim significado social e político e importância econômica, já que a agricultura familiar era entendida como componente de um projeto de desenvolvimento sustentado.

A bandeira da reforma agrária é cara à esquerda. Mobilizou camponeses no início da década de 1960 e nos anos 1980 levou ao Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. O problema é que, com o passar dos anos, o PT foi afunilando sua política partidária no caminho da democracia representativa. Assim, a utopia tornou-se “informulada”. E, porque os desafios da prática distanciaram-se da espera/esperança do socialismo, o PT não conseguiu formular como sua utopia deveria transformar o Brasil. E ao fixar os olhos na questão nacional, viu um gigante a ser vencido: um Estado vergado sob a dívida financeira, um Congresso conservador, os meios de comunicação sob domínio conservador, os estados nas mãos da oposição e a conjuntura internacional controlada pelos organismos financeiros, os grandes grupos e pelo poder militar. Tal situação congelou a utopia e levou o partido a defender a necessidade de uma longa transição democrática, porque  o discurso socialista carecia de fundamentos. 

Mas, seria possível discordar do Programa da Revolução Democrática quando ele definiu como prioridade especial um programa de educação, que erradicasse o analfabetismo, colocasse todas as crianças na escola e criasse as bases da cidadania. E que esse modelo deveria prever o refinanciamento do Estado para que pudesse impulsionar políticas sociais, e a redistribuição radical da riqueza? Ou quando propunha uma reforma tributária que desonerasse a produção, combatesse o rentismo, eliminasse os mecanismos de sonegação e evasão fiscais, e fosse um instrumento de distribuição de renda? De fato, o programa propôs um modelo que tivesse efeito expansivo sobre a economia e que articulasse um ciclo de desenvolvimento sustentado que, por sua vez, levasse a uma política industrial que compatibilizasse “a produção e atividade de micros, pequenas e médias empresas, com as de grandes grupos regionais, nacionais e internacionais, especialmente no âmbito de um Mercosul renovado”.

Não, de fato, ninguém no PT discordava dessas necessidades, Mas, como afirma Guimarães, ao não formular o sentido histórico desta transição criou-se as condições para o desencantamento da utopia. Essa informulação da utopia foi o lugar por excelência de onde surgiria o pragmatismo, o realismo político, que se transmutaria em acomodação diante das realidades do poder. O que poderia haver em comum entre o discurso de ruptura e o discurso que assume as limitações como virtude de governo? Esse impasse na definição da utopia socialista democrática abriria uma crise futura.

Apesar dessa informulaçao de sua utopia, continua a ter razão Oliveira quando diz que o PT testemunhou “a construção inédita na história brasileira e, a rigor, poucas vezes vista na história mundial: a construção de um partido de massas, nascido nas lutas reais das classes trabalhadoras brasileiras, posto como necessidade histórica e possibilidade inscrita na nova estrutura de classes, que emerge para ultrapassar a institucionalidade burguesa.

Ora, de fato, há que relacionar tradição e ruptura, ao se considerar os elementos em questão para definir o seu perfil, “nota-se que é a tradição do pensamento de esquerda ou dos partidos que se ligaram ao movimento operário no Brasil que foi confrontada com a conjuntura daqueles anos. E na medida em que esta tradição não responde às necessidades do momento, novas propostas são elaboradas. Como resultado deste contato intenso, o PT acaba por abrigar elementos importantes deste ‘velho’ universo político, sem deixar de realizar verdadeiras rupturas”.

Tais mudanças que levaram da utopia socialista à democracia enquanto realpolitik são uma realidade para a direção do Partido dos Trabalhadores. Tomemos, por exemplo, a análise feita por Pedro Tierra, um de seus teóricos sobre a discussão que se dá a partir das eleições municipais de 2000 acerca do esmaecimento do vermelho petista. 

“O exame dos resultados das eleições municipais de 2000 mostra que a moldura rompeu-se. (...) Abertas as urnas, abriu-se com elas uma verdadeira batalha em torno das versões oferecidas para entendermos os resultados. (...)Permeando todas elas, tentativas (...) preferem examinar os matizes internos para localizar qual PT afinal foi vencedor. O PT vermelho ou o PT cor-de-rosa? Diante do óbvio crescimento do Partido dos Trabalhadores, exercitou-se uma discriminação interna cujo propósito é justificar o discurso segundo o qual os milhões votos descarregados na sigla, não aspiram afinal a grandes mudanças. Ou seja, é um voto, em última análise... conservador”.

Entre as muitas declarações de Luís Inácio Lula da Silva, presidente do Partido dos Trabalhadores, que traduzem esse trânsito da utopia à realpolitik, é interessante a que ele faz à jornalista Miriam Leitão: 

Um homem de 56 anos não pensa como pensava aos 20. Quando comecei minha vida política, meu discurso era para metalúrgicos. Hoje, tenho que pensar no Brasil e adequar o discurso à realidade.

E, talvez por isso, antigas bandeiras foram pousadas no chão. Uma delas a velha luta anti-imperialista, tão cara aos socialistas brasileiros. E outro intelectual, Marcos Arruda, escreveu ao próprio Lula traduzindo em carta toda sua frustração.

“Dirceu e Lula, eu percebo e concordo que o PT como partido neste momento precisa tornar viável a vitória eleitoral. É preciso negociar com todos os atores, e ter uma estratégia clara para lidar com cada um. (...) Mas não parece ser isto que estão fazendo, pelo menos a partir do que experimentamos na Plenária e do que nos chega pela imprensa. Francisco Campos afirmou na FSP, e não pela primeira vez, que o PT  ‘não é contra o livre comércio, mas contra a forma como a ALCA está sendo implementada´. Coube ao candidato do PSTU, José Maria de Almeida, dizer, na mesma reportagem, o que o PT devia estar dizendo: Alcântara e ALCA ´estão dentro do questionamento sobre a soberania nacional. São duas vertentes de um mesmo tema´. Mas se o livre comércio e o mercado auto-regulado são a velha enganação do  capitalismo clássico, o de colocar raposa e galinhas dentro do galinheiro continental e dar a todos os mesmos direitos!... (...) A ALCA, conforme dissemos na Declaração de Quito que lhe mandei, é uma das três pinças da estratégia de dominação dos EUA sobre o continente, e talvez seja hoje, no reino do G. W. Bush, o menos crucial para o projeto imperial”.

E aqui vale a pena voltar ao mito. Garcia (1990) contou que quando Lula, numa de suas andanças pelo Brasil, foi perguntado se era comunista ou social-democrata, teria respondido que era um “torneiro-mecânico”. Tal colocação expressa a indefinição petista. Hoje, passados anos de história petista, talvez seja o momento de lhe propor uma réplica: qual torneiro-mecânico, o socialista ou o social-democrata? 

Pudenci Furtado, já se perguntava em 1996 sobre como as disputas ideológicas dentro do PT dificultavam a definição de seu perfil. Partido socialista ou social-democrata? Ou seja, era um partido para a classe trabalhadora, para a classe média ou para ambas. E concluía que ainda era cedo para afirmações categóricas. Mas apesar da indefinição, que em última instância traduz uma práxis partidária, não podemos esquecer a crescente importância do Partido dos Trabalhadores para a sociedade brasileira. Em termos sociais, o PT surgiu enquanto organização ligada às classes trabalhadoras da cidade e do campo, polarizando a política nacional. Um exemplo disso é o fato de que o PT atuou sobre o conjunto da sociedade brasileira modificando padrões sociais anteriormente estabelecidos. Assim, sua inserção nos grotões, através da presença cristã, modificou o perfil do voto conservador e de direita dessas áreas.

Ora, essa importância social nos leva à questão política. Sem mistificar os limites da presença do PT no cenário nacional, podemos dizer que construiu novas lideranças e desenvolveu uma maneira de fazer política, de diálogo com os setores excluídos e marginalizados da sociedade, senão inédita, ao menos resgatada, já que estava esquecida desde os governos de Vargas e João Goulart. Mas essa constatação não é unânime. Segundo Guimarães, por exemplo, “o PT apresenta uma série de elementos ideológicos (diluição de sua feição socialista), políticos (incompletitude programática e estratégica), organizativos (uma certa adaptação naturalista de sua estrutura, combinada com pressões de institucionalização) que dificultam a construção de um projeto alternativo à ordem capitalista. Estes elementos tendenciais, em sua projeção, se não alterados, poderão cristalizar uma cultura partidária que bloqueie o potencial transformador dos trabalhadores. O termo ´passivo´ que acompanha a caracterização vale exatamente para caracterizar a modalidade negativa da integração burguesa. 

Assim, considera que na cultura do PT, o enigma dos elos entre tradição e ruptura é conscientemente incorporado e sua resolução projetada para o futuro. Ou seja, no confronto com as utopias socialistas, o PT é um enigma espelhado em outro enigma: refletido, mas não revelado. Souza, porém, considera que o Partido dos Trabalhadores constitui, de fato, algo novo no cenário social e político brasileiro, mas uma novidade permeada de tradições e permanências legadas pelo passado.

A nova esquerda traz em seu âmago – ora negando, ora afirmando – a velha esquerda, já que os agentes da renovação história têm como paradigma os agentes da conservação histórica, seja para negá-los abertamente ou para incorporá-los implicitamente.

Talvez por isso, as recentes palavras do presidente Lula pareçam vir de um passado distante, de uma época em que lá na Vila Euclides os jovens, operários, estudantes e intelectuais, sonhavam com um Brasil socialista:

“Continuaremos a ter atuação decidida no sentido de unir as diversas forças políticas e sociais para construir uma nação que beneficie o conjunto do povo. Vamos promover um Pacto Nacional pelo Brasil, formalizar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, e escolher os melhores quadros do Brasil para fazer parte de um governo amplo, que permita iniciar o resgate das dívidas sociais seculares. Isso não se fará sem a ativa participação de todas as forças vivas do Brasil, trabalhadores e empresários, homens e mulheres de bem. Meu coração bate forte. Sei que estou sintonizado com a esperança de milhões e milhões de outros corações. Estou otimista. Sinto que um novo Brasil está nascendo”. 

Desencantada a utopia socialista, a esperança começaria a se esfumaçar e com ela, inclusive, o programa da revolução democrática.