jeudi 15 avril 2021

Faz tempo que eu te amo

 Faz tempo que eu te amo



Il y a longtemps que je t’aime – Juliette (Kristin Scott Thomas) retorna à sua família e à sociedade após 15 anos de ausência. Apesar da longa e violenta separação familiar, sua irmã mais nova, Léa (Elsa Zylberstein), decide abrigá-la em sua casa, onde mora com o marido, as duas filhas adotivas e o sogro. Aos poucos, a trama revela uma questão crucial que subjaz enquanto tragédia que manteve Juliette afastada por tanto tempo da vida em liberdade. 



No filme do escritor Philippe Claudel, cujo nome não era muito conhecido como cineasta, o tema de fundo é a morte doce, ou seja, o ato de proporcionar morte sem sofrimento a um doente de enfermidade incurável que produz dores não toleráveis. 


Juliette levou seu filho Pierre, de seis anos, que estava enfermo, em estado terminal, à morte sem sofrimento, expressão que conhecemos pelo termo grego
euthanasía. Ela mesma, médica, fez os testes de laboratório e diagnosticou o estado da criança, que sofria dores terríveis. E lhe aplicou uma injeção letal. A eutanásia ativa é crime na França, e Juliette, considerada culpada, foi condenada a 15 anos de prisão. 


Ela está enferma, que desespero! O devo fazer? 

Ela está enferma, que desespero! Como enfrentar isso?

Que conforto, que remédio? Ó céus, você tem que me ouvir 

Enquanto esse duro mal que está diante, este mal que você vê 

Ferir sem piedade a doçura de seu rosto!

 
[Etienne La Boétie (1530-1563),
Elle est malaade, helas! que faut-il que je face?] 


Falar de eutanásia, a morte doce, é tabu, quando não preocupação mórbida. Mas, por incrível que pareça, essa questão está ligada à vida. E aqui desejamos discutir a questão a partir da nova legislação francesa sobre o tema e as reflexões que católicos e protestantes elaboraram na França.

 
O problema que se levanta é: até que ponto se pode ou se deve lutar para diminuir um sofrimento terrível e terminal? A questão colocada é: deve-se finalizar uma vida que não é mais vida consciente e plena? Muitos consideram que tal ação não significa somente liberar da angústia da morte, porque aqui a questão central não mais é a morte, porém por fim a não-vida que se assenhoreou da vida. 


No dia 22 de abril de 2005, a França promulgou uma lei sobre o fim da vida, onde reconheceu o direito ao tratamento médico sedativo cujos efeitos secundários podem ser de antecipar o fim do paciente. 


A lei oferece também ao paciente e sua família a possibilidade de dizer não ao tratamento não razoável, não à reanimação artificial e não aos tratamentos agressivos. Mas a lei também possibilita um relacionamento aberto entre o paciente, sua família e o médico, apoiando este último judicialmente se uma dessas alternativas for a opção, desde que ele forneça informações completas sobre a situação do paciente. 


A lei também dá a qualquer adulto o direito de apresentar diretivas antecipadas para que sua vida não seja prolongada por meios artificiais, em caso de danos físicos ou de degradação física ou neuropsíquica. 


Se você levantar, cruel, o punho à Terra grave

Se for necessário lá no alto que rico se seja, 

Pensa em mim, por Deus, me leve,

Que com um golpe de mão Caronte nos passe a ambos 


Mas, se a lei prevê o direito de deixar morrer, não propõe que se forneça assistência ativa para morrer. A questão aqui é deixar a morte chegar, mas não se trata de por fim à vida. Portanto, a eutanásia ativa não é reconhecida, mas a eutanásia passiva já não é considerada um homicídio. 


É interessante lembrar que 30 anos antes da nova legislação francesa sobre a morte terminal, 1976, o Conselho Permanente do Episcopado francês em nota sobre a eutanásia propôs que não fosse proibido o uso de analgésicos para aliviar a dor, mesmo que indiretamente tal tratamento pudesse acelerar a morte de um paciente em idade avançada.


Ou se é o que dizem os dois irmãos de Helena,

Que um pelo outro no céu, e aqui embaixo se encontram, 

Destina-me à parte enviada. 


Anos depois, em junho de 1991, a Comissão de Ética da Federação Protestante da França também discutiu a questão dos doentes terminais, e considerou que os cuidados paliativos deviam ser desenvolvidos e incentivados. Mas que diante da dor irredutível, quando tais cuidados de nada servissem, o debate sobre a "vida decente" deveria por em cheque o próprio modo de vida das sociedades ocidentais. 


Por isso, os protestantes franceses consideraram que a defesa da eutanásia é uma réplica da tão condenada terapia agressiva, que traduziria a pretensão de nossa sociedade de se considerar senhora e mestra sobre a vida e a morte. Mas, acreditavam que diante do pedido da morte doce, quando se torna impossível lutar pela vida, deve-se ouvir e não julgar.

E por fim alertaram que quer seja permissiva ou restritiva nenhuma lei ou instância moral pode suprimir a responsabilidade ética do paciente, dos médicos e dos amigos. Por isso, a questão não poderia ser legislada de forma apressada, pois o futuro do direito europeu sobre doenças terminais e eutanásia só poderia ser construído a partir de um intenso debate público. 


Tenha, tenha de mim, tenha piedade 

Deixe-nos, em nome de profunda amizade, 

Eu morrer de sua morte, ela viver de minha vida.




O gozo em rosa

O gozo em rosa

 

As visões de mundo do camponês hebreu e mesmo do judeu do início da era comum eram diferentes das cosmovisões cristãs modernas. Talvez, o que de maior temos a aprender com hebreus e judeus é que a profundidade do texto é a sua humanidade. 

 

Ao mergulhar nessa humanidade temos, então, a possibilidade de encontrar sua transcendentalidade. E isso pode ser alcançado de duas maneiras: a acadêmica, que nos interessa aqui, e aquela da própria vida, quando chegamos lá através da maceração de nossa pessoalidade, da crise, da dor e do risco. 

 

Quando o intelectual judeu Samuel Cahen fez a primeira tradução das Escrituras judaicas para o francês, entre 1831 e 1851, em dezoito volumes – A Bíblia, novas traduções – procurou ir além das traduções anteriores, cristãs. Sua tradução, em edição bilíngue, trouxe para o leitor não-judeu a estrutura hebraica, as construções literárias e os hebraísmos. 


No século passado, seguindo a tradição de Cahen, André Chouraqui construiu uma tradução enciclopédica (1974-1977): a partir de exegetas como Rashi e Ibn Ezra fez a leitura oriental dos textos do testamento judaico. 


Ao compreender com os antigos exegetas judeus que a humanidade do texto é o caminho para o encontro possível com o transcendente, vamos, como exercício exegético, analisar dois versos de histórias e momentos diferentes das Escrituras judaicas. Não podemos esquecer, porém, que a escolástica teorizou modos de ler o quadrivium, conceito derivado da junção de duas palavras latinas: quattuor, que significa quatro, e via, que quer dizer caminho. Temos assim na leitura de um texto quatro vias: literária, pedagógica, teológica e escatológica. Quadrivium é encruzilhada e foi utilizado como hermenêutica por Hugo São Vitor e Tomás de Aquino. Mas, hoje, nas nossas leituras estamos interessados no sentido literário dos textos. 


“Na luta, o homem, ao ver que não podia vencer, bateu no vazio da coxa e enforcou a força de criar de Jacó”. (Gênesis 32.25).


O primeiro verso escolhido, que se situa no primeiro livro, o das origens, fala da luta do patriarca Jacó com um homem – a palavra hebraica no texto é îxe, homem, macho, e não anjo. A tradução SEV (versão de 1569) diz: “Y cuando el varón vio que no podía con él, tocó la palma de su muslo, la palma del muslo de Jacob se descoyuntó luchando con él”. É uma boa tradução, porque a expressão palma “kaph” se refere à cavidade ou parte do corpo que é dobrável ou curva, e “yarek” que foi traduzido por “muslo”, se refere a lombo, ou lugar do poder de procriação. 

 

Na luta com esse que poderia ser seu próprio irmão Esaú ou um dos capangas dele, o homem não conseguiu vencer Jacó. Então, já cansado, o homem recorre ao golpe mais antigo, que acaba com qualquer luta, dá uma joelhada no vazio da coxa de Jacó e estrangula sua força. 


Terminações nervosas, sensibilidades. Escroto, testículos. O chute produz sangramento interno, inchaço, dor. O músculo se retrai, nervos e artérias se enroscam e impedem o fluxo de sangue. O coice foi bravo, a cápsula se rompe e vaza. 


Visto assim, na sua humanidade, o texto fala de dois homens que lutam madrugada adentro, e que um deles, o trapaceiro, é golpeado na força de sua virilidade, sendo derrubado por um golpe em baixo e por baixo. Caído, resfolegando, entre gemidos, pede ao seu oponente um favor: liberdade para seguir adiante. E o homem – Esaú ou um capanga – diz para ele: segue seu caminho, hoje você não trapaceou, você venceu. Arrastando-se, aquele que se agarrou ao tornozelo do irmão, se levanta: foi alforriado, está livre para seguir em frente. 


As escrituras judaicas contêm uma jóia da literatura oriental: o Cântico dos cânticos. O superlativo não existia no hebraico, daí a idéia do mais bonito dos cânticos. O poema conta uma história de amor entre uma moça negra, a Sulamita, e um pastor. 


Para os cristãos, não estamos diante do erotismo oriental, mas de uma alegoria sobre o amor transcendente do Eterno. Agora, porém, neste artigo, nos interessa o caminho que o poema faz na materialidade do erótico humano. Por isso, vamos trabalhar apenas um verso do Cântico dos cânticos, procurando manter viva a expressão e seu conteúdo aparentemente não-religioso. 


“Entra na casa do vinho, o seu estandarte é desejo”. (Cântico dos cânticos 2.4). 

 

Temos no verso em hebraico o verbo “bow” ir para dentro, entrar, que está no grau hifil, causativo, no modo perfeito; a expressão metafórica “bayith yayin”, casa do vinho; “degel” bandeira, estandarte; e “ahabah” que expressa prazer, desejo sexual. A Vulgata de São Jerônimo traduz assim: “introduxit me in cellam vinariam ordinavit in me caritatem”. A tradução italiana de Diodati (versão de 1649) diz: “Egli mi ha condotta nella casa del convito, E l’insegna ch’egli mi alza è: Amoré”. E a tradução SEV de 1569, diz: “Me llevó a la cámara del vino, y puso su estandarte de amor sobre mí”. 

 

Estamos diante de um poema oriental. A expressão “casa do vinho”, em seu sentido literário, não deve ser tomada literalmente, mas seguindo tradições orientais antigas – e também portuguesas – é uma metáfora, ao modo de “adega do vinho” ou “casa rosada”, entre outras. 


Até o final do século XIX, a moral estabelecia que arte e literatura eram ofensivas aos costumes quando recorressem à sexualidade ou a linguagem incluísse termos licenciosos. Em tais casos, arte e literatura eram consideradas eróticas ou pornográficas, já que não se discerniam os termos. Hoje, entendemos erótico como relativo ao desejo sexual ou que aborda o amor sexual, e pornográfico como aquilo que descreve ou evoca luxúria. 


Como muito desses sentimentos dos oitocentos ainda têm raízes profundas na cultura, o verso acima é canto que choca a mentalidade ocidental, pois a Sulamita, a jovem do Cântico dos cânticos, diz que seu amante a penetra quando ela está menstruada. É o tempo do durante, da casa do vinho, do gozo em rosa. E, assim, a regra da menstruação enquanto tempo de impureza, presente no livro de Levítico (15.19), é derrubada pela relação do casal. Não há nenhuma crítica ao ato, que ela apresenta como uma opção que nasce do desejo. 


E falar de desejo nos remete a um pequeno trecho de outro texto clássico da literatura oriental, as Mil e uma noites – Alf Lailah Oua Lailah – uma coletânea de textos árabes, persas, hindus, siríacos e judaicos. Os contos mais antigos remontam ao século XII no Egito. Mas agora nos interessa a relação do filho do mercador Ghânim e a favorita do sultão, Qût al-Qulûb. 


“Quando o gracioso filho do mercador Ghânim e a bela favorita do sultão foram para o leito, ele queria, mas ela não. Sobre a cintura da amante se podia ler: difícil. A resistência da mulher aumentava o desejo do homem. Os meses passaram e as coisas se inverteram. Quando mais tarde ela lhe dava beijos de incentivo, ele recuava e cada um ia dormir na sua esteira.” 


O filho do mercador e a favorita do sultão enfrentam a intermitência do desejo, mas no verso 2.4 do Cântico dos cânticos a Sulamita e seu amante estão em modulação unissonante: é pra ser, prazer, parônimo. 


Entendemos melhor a presença do erótico nos textos orientais antigos quando lemos Michel Foucault na História da Sexualidade, A Vontade de Saber. Para ele, no Ocidente, existem dois procedimentos diante do bem e do mal do sexo. Um procedimento desconfiado diante das culturas romana antiga, chinesa, hindu, japonesa e árabe, que desenvolveram uma ars erotica. Tal arte tira sua verdade do próprio prazer, entendido como experiência onde não há lugar para proibições, mas também do prazer que pode ser medido pela tesura do corpo e do espírito. Essa arte erótica é experiência e seu conhecimento não tem como ser transmitido pelo discurso. Sua força está no símbolo. 


A cultura ocidental não construiu uma ars erotica, por isso o outro procedimento nasceu de uma scientia sexualis, que gera regras para definir o bem e o mal do sexo. Assim, a sexualidade ocidental é, predominantemente, resultante de um discurso constituído em scientia sexualis, que a religião sacralizou para produzir a verdade sobre o sexo. 


O erotismo está presente nos textos antigos, no Cântico dos cânticos e nas Mil e umas noites, porque é dimensão da sexualidade lida através da ars erotica. Mas é olhado com desconfiança pela moral que repousa sobre a scientia sexualis. Eros é expressão humana e assim deveria ser visto pelos exegetas que se debruçam sobre textos orientais da ars erotica. 


Ou seja: o verso 2.4, analisado na profundidade do humano, nos fala de desejo, atributo da espécie, que nasce da capacidade de pensar o prazer. A jovem do Cântico dos cânticos não nos diz que durante a menstruação tem mais vontade de transar, mas também não nos diz o contrário. Se é regra, se não é regra, não sabemos. Somos informados, porém, que o desejo é um estandarte. E assim o amante entra na casa do vinho.


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