vendredi 17 janvier 2014

Lutero e seu prefácio à carta aos romanos

PREFÁCIO À EPÍSTOLA DE SÃO PAULO AOS ROMANOS (1522)
Por Martinho Lutero

Essa epístola é a parte verdadeiramente principal do Novo Testamento e o mais puro de todos os Evangelhos. É digna e merecedora de que o cristão não só a saiba de cor, palavra por palavra, mas que se ocupe com ela diariamente como se fosse o pão diário da alma, pois ela jamais poderá ser lida ou contemplada em demasia e devidamente bem. E quanto mais é praticada, mais se torna agradável e saborosa. Por isso, quero dar também a minha contribuição por meio de meu prefácio, proporcionado-lhes, com a permissão de Deus, um acesso para que ela seja compreendida o melhor possível por todos. Porque, até agora, ela tem sido lamentavelmente obscurecida com comentários maldosos e todo tipo de falatório, ela que em si mesma é uma luz clara quase o suficiente para clarear toda a Escritura.

A LEI

Primeiramente, temos de conhecer a linguagem e saber o que São Paulo quer dizer com estas palavras: lei, pecado, graça, fé, justiça, carne, espírito e coisas semelhantes, caso contrário a leitura de nada adiantará. Neste caso, tu não deves entender a palavrinha “Lei” de maneira humana, como se fosse uma doutrina referente às obras que precisam ser feitas ou não, como ocorre com as leis humanas, quando a lei é cumprida por meio de obras, apesar de o coração não estar presente. Deus julga considerando o fundo do coração; por isso, a Sua Lei exige também o fundo do coração e não se dá por satisfeita com obras, mas pune, ao contrário, aquelas obras que não vêm do fundo do coração, por serem hipocrisia e mentira. Por essa razão, todas as pessoas são chamadas de mentirosas em Sl 115 [116, 11], pois ninguém cumpre, nem consegue cumprir a Lei de Deus do fundo do coração e porque todos encontram dentro de si mesmos a indisposição para o bem e a disposição para o mal. Onde não houver uma livre disposição para o bem, o fundo do coração não estará com a Lei de Deus; ali com certeza também haverá pecado e a merecida ira de Deus, embora exteriormente pareçam existir muitas boas obras e uma vida honrada.

Por essa razão, São Paulo conclui no segundo capítulo que os judeus são todos pecadores, e diz que apenas os cumpridores da Lei são justificados perante Deus. Ele quer dizer com isso que ninguém cumpre a Lei com obras, mas, ao contrário, lhes diz o seguinte: tu ensinas que não se deve cometer adultério e és adúltero. Do mesmo modo, aquilo que julgas num outro, tu condenas em ti mesmo porque fazes exatamente aquilo que estás julgando. Como se ele quisesse dizer: exteriormente, tu vives perfeitamente nas obras da Lei e julgas aqueles que não vivem do mesmo modo, e sabes ensinar a todos; tu vê o cisco no olho dos outros, mas não vês a trave diante do teu. Já que mesmo cumprindo exteriormente a Lei por meio de obras, por temor à punição ou por amor à recompensa, tu fazes isso tudo sem uma livre disposição e sem amor à Lei, mas indisposto e coagido, preferindo agir de outro modo se não fosse a Lei. Resulta daí que, no fundo do coração, tu te opões à Lei. O que significa então ensinar aos outros a não roubar se, no coração, tu próprio és um ladrão e exteriormente gostarias de sê-lo se pudesses? Se bem que a obra exterior não dura muito nesses hipócritas. Portanto, tu ensinas aos outros, mas não a ti mesmo; também não sabes o que estás ensinando e jamais entendeste a Lei corretamente. Ora, além disso, a lei aumenta o pecado, segundo ele diz no capítulo 5 [20], já que o ser humano acaba se opondo ainda mais a ela, quanto mais for exigido a fazer o que não é capaz.

Por isso, ele afirma no capítulo 7 [14] que a Lei é espiritual. O que significa isso? Se a Lei fosse carnal, as obras lhe bastariam. Sendo, porém, espiritual, ninguém a satisfaz, a não ser que tudo o que tu faças venha do fundo do coração. Mas ninguém dá um coração assim, a não ser o Espírito de Deus; é Ele que iguala a pessoa à Lei incutindo-lhe no coração a disposição para a Lei e levando-o a agir doravante não por temor ou coação, mas de coração livre. Portanto, é espiritual a Lei que quer ser amada e cumprida com um tal coração espiritual e que exige semelhante espírito. Quando ele não estiver no coração, neste permanecem o pecado, a indisposição, a hostilidade à Lei que afinal é boa, justa e sagrada.

Portanto, acostuma-te às seguintes palavras: são coisas bem diferentes fazer a obra da Lei e cumprir a Lei. A obra da Lei é tudo o que a pessoa faz e pode fazer no âmbito da Lei, de livre e espontânea vontade e por suas próprias forças. Mas como, sob e ao lado de tais obras, permanece no coração a indisposição e a coação no tocante à Lei, todas essas obras são perdidas e inúteis. É isso que São Paulo quer dizer no capítulo 3 [20] ao afirmar que ninguém será justificado perante Deus pelas obras da Lei. Por isso, tu vês agora que os rivais acadêmicos e os sofistas não passam de sedutores ao ensinarem a preparação para a graça por meio de obras. Como alguém consegue se preparar para o bem por meio de obras, se não faz uma boa obra sem indisposição e má vontade no coração? Como irá agradar a Deus a obra oriunda de um coração indisposto e contrariado?

Cumprir a Lei, contudo, significa realizar a sua obra com disposição e amor, e viver bem, livre e divinamente sem a coação da Lei, como se não houvesse Lei ou castigo. Mas quem dá ao coração essa disposição a um amor desinteressado é o Espírito Santo, conforme ele diz no capítulo 5 [5]. O Espírito, porém, não é dado a não ser em, com e por meio da fé em Jesus Cristo, como ele afirma no prefácio [1, 17]. Desse modo, a fé não aparece, a não ser por meio da palavra de Deus ou do Evangelho que Cristo prega enquanto filho de Deus e homem que morreu e ressuscitou por nós, segundo ele afirma nos capítulos 3 [21 -25], 4 [24-25] e 10 [9-17].

Disso decorre que apenas a fé justifica e cumpre a Lei, pois traz o Espírito oriundo do mérito de Cristo; o Espírito, porém, torna o coração disposto e livre, tal como exige a Lei; portanto, as boas obras advém da própria fé. É o que ele quer dizer no capítulo 3 [31], depois de ter rejeitado a obra da Lei dando a impressão de querer abolir a Lei por meio da fé. Não (diz ele), nós estabelecemos a Lei por meio da fé, isto é, nós a cumprimos por meio da fé.

O PECADO

Na Escritura, “pecado” significa não somente a obra exterior do corpo, mas todo movimento e agitação feitos para produzir a obra exterior, ou seja, do fundo do coração com todas as forças; desse modo, essa palavrinha é sinônimo de “fazer”, uma vez que assim a pessoa cai e penetra inteiramente no pecado. Já que também não acontece nenhuma obra exterior do pecado sem que a pessoa se entregue inteiramente, de corpo e alma. E a Escritura lança o olhar sobretudo para o coração e para a raiz e a fonte principal de todos os pecados, que é a falta de fé no fundo do coração. Portanto, do mesmo modo que apenas a fé justifica e suscita o espírito e a disposição para as boas obras exteriores, é apenas a falta de fé que peca, induz a carne e a dispõe a más obras exteriores, tal como aconteceu a Adão e Eva no paraíso, Gn 3.

Por isso, Cristo não apenas chama a falta de fé de pecado, mas declara em Jo 16 [8-9]: o Espírito castigará o mundo por cometer o pecado de não acreditar em mim. Por isso também, antes que aconteçam obras boas ou más, na qualidade de frutos bons ou maus, é preciso existir no coração fé ou falta de fé, na qualidade de raiz, seiva e força principal de todo pecado, o que também por isso é chamado na Escritura de cabeça da serpente e o velho dragão, os quais a descendência da mulher, Cristo, terá de esmagar, tal como foi prometido a Adão.

“Graça” e “dádiva” são diferentes porque graça significa na realidade a benevolência e o favor que Deus traz em si mesmo para nós, levando-O a verter em nós Cristo, o Espírito com suas dádivas, como fica evidente no capítulo 5 [15], em que ele afirma: a graça e a dádiva em Cristo etc. Se as dádivas e o Espírito em nós aumentarem diariamente e ainda assim não se tornarem perfeitos por ainda restarem em nós desejos maus e pecados que combatem o Espírito conforme afirma no capítulo 7 [14-23], em Gl 5 [17] e segundo a promessa feita em Gn 3 [15] sobre a disputa entre a descendência da mulher e a da serpente, ainda assim a graça será tanta que perante Deus seremos inteira e plenamente justificados; pois sua graça, diferentemente das dádivas, não se divide, nem se fragmenta, mas nos acolhe por inteiro na benevolência, por causa de Cristo, nosso intercessor e mediador, e porque as dádivas foram iniciadas em nós.

Portanto, tu entenderás o sétimo capítulo no qual São Paulo chama a si mesmo de pecador, para depois dizer no oitavo que nada há de condenável naqueles que estão em Cristo, em função das dádivas imperfeitas e do Espírito. Em virtude da carne ainda não estar morta, somos todos pecadores. Mas, por crermos em Cristo e termos começado no Espírito, Deus nos é tão propício e misericordioso, que não leva em conta, nem julga tal pecado; ao contrário, Ele procede conosco segundo a fé em Cristo, até que o pecado esteja morto.

A FÉ

“Fé” não é a ilusão e o sonho humanos que muitos tomam por fé; e quando veem que não ocorre nenhuma melhora na vida, nem boas obras, mesmo ouvindo e falando muito da fé, as pessoas caem no erro de dizer que a fé não basta e seria preciso fazer obras caso queiram tornar-se devotas e bem-aventuradas. Isso faz que, ao ouvirem o Evangelho, elas se lancem a produzir por seus próprios meios um pensamento no coração que diz: eu creio. E tomam isso como uma verdadeira fé, mas como isso não passa de um pensamento e de uma criação humana que jamais tocará o fundo do coração, elas então nada fazem e consequentemente nenhuma melhora acontece.

Mas a fé é uma obra divina em nós que nos modifica e nos faz renascer de Deus, Jo 1 [12], e mata o velho Adão tornando-nos pessoas diferentes de coração, temperamento, mentalidade e todas as forças, além de trazer consigo o Espírito Santo. Há algo vivo, ativo, atuante e poderoso na fé impossibilitando que ela cesse de praticar o bem. Ela também não pergunta se deve fazer boas obras, mas as faz antes que perguntem e está sempre em ação. Quem, porém, não realiza tais obras é uma pessoa sem fé que anda tateando à procura da fé e de boas obras, e não sabe o que é fé, nem o que são boas obras, e ainda fica tagarelando e conversando fiado sobre elas.

“Fé” é uma confiança viva e ousada na graça de Deus, com tanta certeza que morreria mil vezes por ela. E uma tal confiança e conhecimento da graça divina dá alegria, coragem e disposição perante Deus e todas as criaturas; é o que o Espírito Santo faz por meio da fé. Por isso, sem coação, todos se tornam voluntariosos e dispostos a fazer o bem, a servir a todos, a sofrer todo tipo de coisa por amor e em louvor a Deus, que manifestou semelhante graça; desse modo, é impossível separar a obra da fé; é tão impossível quanto separar a luz do fogo. Portanto, acautela-te contra teus próprios pensamentos equivocados e contra tagarelas inúteis que se fazem de inteligentes ao julgarem a fé e as boas obras, e são os maiores tolos. Peço a Deus que produza a fé em ti, caso contrário, tu talvez permaneças eternamente sem fé mesmo que cries e faças o que quiseres ou puderes.

A JUSTIÇA

“Justiça”, portanto, é essa fé e significa justiça de Deus, ou que vale perante Deus, já que é uma dádiva de Deus que leva o homem a dar a todos o que lhes é devido. Já que, por meio da fé, a pessoa se torna sem pecado e ganha disposição para cumprir os mandamentos de Deus; desse modo, ela honra a Deus e lhe paga o que Lhe é devido. Mas de bom grado, ela serve aos homens como puder, pagando assim a todos. Uma tal justiça, nem a natureza, nem o livre arbítrio, nem nossas forças podem produzir, pois, do mesmo modo que ninguém pode dar a fé a si mesmo, também não se pode eliminar a falta de fé. Como pretender afinal eliminar um único e minúsculo pecado? Por isso, está tudo errado, e não passa de hipocrisia e pecado o que acontece fora da fé ou em meio à falta de fé Rm 14 [23], por maior que seja o seu brilho.

CARNE E ESPÍRITO

Portanto, tu não deves entender aqui “carne” e “espírito” como se carne fosse apenas aquilo que se refere a impudicícia, e espírito o que se refere à interioridade do coração. Na realidade, Paulo chama de carne, tal como Cristo em Jo 3 [6], a tudo o que nasce da carne, a pessoa inteira, com seu corpo e sua alma, sua razão e todos seus sentidos. Por consequência, tudo nela se orienta segundo a carne, e a tu, portanto, compete chamar de carnal aquele que sem a graça muito inventa, ensina e tagarela sobre altos assuntos espirituais; isso tu podes aprender com as obras da carne, Gl 5 [20], visto que ele chama a heresia e o ódio de obras da carne. E, em Rm 8 [3], ele diz que a Lei se enfraquece por meio da carne: ele se refere não somente à impudicícia, mas também a todos os pecados, principalmente, porém, à falta de fé, que é o mais espiritual dos vícios.

Por outro lado, tu chamarás também de espiritual àquele que lida com as obras excessivamente exteriores, como Cristo ao lavar os pés dos discípulos, e Pedro ao conduzir o barco e pescar. Portanto, carne é a pessoa que interna e externamente vive e age de modo a servir aos interesses da carne e da vida temporal; espírito é a pessoa que interna e externamente vive e age de modo a servir ao espírito e à vida futura. Se não compreender desse modo tais palavras, tu jamais entenderás essa epístola de São Paulo, nem qualquer outro livro da Sagrada Escritura. Por isso, previne-te contra todos os mestres que usam essas palavras noutro sentido, seja quem for, ainda que sejam Jerônimo, Agostinho, Ambrósio, Orígenes e outros equivalentes ou mesmo superiores. Passemos agora à epístola.