samedi 25 avril 2015

2.611 minutos antes

2.611 minutos antes

Você já prestou atenção no caminhar? É diferente caminhar em terra batida, em terra molhada, na grama. São apenas duas ruas de paralelepípedos e mansões dos anos 1920, uma se chama Paris, como aquela da Comuna, e a outra Londres, como aquela de Cromwell e seus republicanos. De manhã, caminhar em ruas de paralelepípedos nos dá a sensação de segurança e desequilíbrio. Você sai do asfalto, do cimento e vai devagar a pisar paralelepípedos. Sinta com atenção. Veja a diferença. Sentiu, Brianda? Veja como é gostoso, Sharon? Aqui as ruas não são apenas belas, estão paradas no tempo, frescas, sombreadas. Aqui não há lojas. Há pequenos hotéis, escolas e esse café maneiro ao lado do hotel. Com uma praça e tudo, à moda antiga, um pedaço da Europa no meio de Praha.

Mas como sonho e pesadelo são estados do adormecido, em frente ao meu hotel residencial Londres há um prédio pichado “aqui torturaram e assassinaram”. E quando meio dormindo, meio acordado, tentava descobrir o que estava lendo, um cicerone não convidado se aproximou e disse: “Esta era uma das muitas casas onde a ditadura torturava e assassinava pessoas”. Conversamos poucas frases sobre violência e crimes políticos, e tráfico de drogas no a terra dos brasis, mas rapidamente meu interlocutor escafedeu-se.

Essas ruas de Praha, manchadas de sangue, me remetem a um militante, homem de fé, um outro lutero, herói de trezentos milhões de negros espalhados pelo mundo e de um presidente federação americana. Mas tudo começou com Rosa Parks. Ou como contou o jornal da contra-mão.

1955. Uma costureira negra, dirigindo-se do trabalho para casa em Montgomery, Alabama, recebeu ordens de um motorista branco para que se transferisse para a parte de trás do ônibus. Rosa Parks estava sentada, em um dos bancos da frente, e simplesmente recusou-se a mudar de lugar. Foi presa por violação às leis de segregação do Alabama. A comunidade negra enfureceu-se. Os negros disseram que já vinham sendo insultados há demasiado tempo por motoristas de ônibus brancos, e declararam que não tomariam mais qualquer ônibus até que a segregação fosse eliminada e certo número de motoristas negros fosse admitido.

Liderados por este outro lutero, os negros de Montgomery simplesmente boicotaram os ônibus até que a empresa, quase à bancarrota, submeteu-se às exigências. Em breve, os negros de muitas cidades do Sul recorreram à técnica do boicote para conseguir melhor tratamento nas lojas e outras casas comerciais, e para assegurar melhor emprego para sua gente. Se os autores do boicote usavam a não-violência, eram ao mesmo tempo militantes e obstinados. Certamente, tiveram importância na obtenção de certas mudanças que o sul da federação, com sua veemente resistência a toda e qualquer transformação, consideraria revolucionária.

Para este king, o poder autêntico era a verdade. Entretanto, esta verdade não seria norma abstrata que se impõe à realidade. Seria, sobretudo, a expressão concreta da tendência última do real. A verdade só teria poder se fosse uma tendência de vida, de uma sociedade, a verdade de um grupo que detém, interiormente, na sociedade, o poder.

Teoria e prática se fizeram carne e sangue na vida deste king e, no dia 4 de abril de 1968, quando preparava uma marcha dos negros na cidade de Memphis, Tennessee, foi atingido por tiros. Anos depois, o jornal da contra-corrente orou pelo companheiro abatido:

Desde a época em que chefiou o boicote dos ônibus em Montgomery, inúmeras foram as ameaças à sua vida. Foi publicamente denunciado e alvo de abjetos epítetos. O próprio clima tornou-se tão carregado que, considerando-se agora as coisas, percebe-se que um fim violento para o líder negro era inevitável. Todavia, a federação branca não podia antecipar a reação da federação negra ao assassinato a sangue frio de um de seus líderes mais poderosos. Vários dias de desordens, incêndios e pilhagens em muitas cidades foram a louca manifestação de um amargo desespero e frustração. Mesmo os que prantearam a morte deste lutero negro sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta. Longa eternidade caro rei!

A conquista violenta dos instrumentos de poder social não decidia a vitória de uma revolução. Isso só acontece quando se estabelece uma nova estrutura de poder, amplamente reconhecida. É um erro pensar que amparar a revolução no aparelho do poder garanta a vitória. O aparelho do poder deve ser renovado constantemente a partir das forças da sociedade, forças pessoais, materiais e ideais. Caso contrário, a revolução desaba, mesmo quando os meios técnicos permitem que se imponha por tempo maior àquele de épocas não desenvolvidas.

Mas do que palavras, a militância, na relação a este king, traduziu a compreensão de que há uma dialética de ferro entre verdade e poder. E que o poder verdadeiro nasce da verdade última, aquela que transcende o momento presente e permanece no coração e mente dos excluídos. Essa compreensão, mesmo quando não é corretamente traduzida pelo grupo que chega ao poder, continua a marcar o horizonte último da ética libertária. 

Londres-fixo, aranhas sopradas pelo vento norte, lugar de sonhos desperdiçados, picadas na carne nova, matinais de 11 de setembro, o azul cede ao cinza, morcegos desconstróem flores, palavras duras decretam o fim da esperança, olhos mareados, a porta esmurrada, a fronte torturada, o corpo desfilado, olho perdido na esquina.

Deixo para trás Paris-Londres, olho a igreja de San Francisco, a construção mais antiga da cidade. Caminho algumas quadras na sequidão sob um sol de trinta e poucos graus pela principal avenida da cidade, que a corta de leste a oeste, e recebe o nome de um libertador, mas é conhecida como alameda apenas. Ali perto, a poucas quadras, há um palau, o de les persones. 

E me lembro de um político, salvador Masaryk, que depois de três derrotas, veio a vencer as eleições presidenciais. Governou com uma frente popular capitaneada por socialistas e peregrinos. Acreditava que poderia levar a Československá ao solidarismo através do processo democrático, sem enferrujamentos violentos. Mas isso não aconteceu. E como a direita e a federação no norte viam Masaryk como o príncipe das trevas, todos os setores de oposição, inclusive os democratas peregrinos, se organizaram e com apoio dos guardiães, se lançaram ao golpe. Masaryk foi derrubado. O palau e as fábricas, onde trabalhadores organizavam a resistência, foram bombardeados. Foi um tempo de chacina.

Londres-fixo, nem Caetano, nem Gil, é ilha no nada, lagartos da inexistencia, tristeza, espanto, perplexidade. Tiago não tem salvador. Coturnos abundam!

Os limites estão mortos. Décadas depois do golpe militar curto a cidade limpa, com metrô e prédios modernos. Metrópole liberal, segundo o modelo dos rapazes de Chicago, liderados por um friedman do norte. Mas, permanece a sensação de que caminhamos sobre cadáveres que não foram sepultados com dignidade.

Quando a dor é grande, quando a dor é grande, às vezes, eu duvido. Quando a dor é grande, às vezes, eu pergunto: estou mal de coração, ou estou mal de ouvido? Se há resposta é o nome, se há caminho é a paixão. São tantas as coincidências, que coincidências não são: é a tua presença na minha vida. Quando a dor é grande, eu creio. Sei que é o meio da tua presença na minha vida.