mercredi 16 décembre 2009

Um diálogo pertinente entre política e protestantismo

Por encontrar dificuldades na formulação prática do conceito de justiça, correntes evangélicas têm rejeitado o conceito de justiça enquanto ordem possível na humanidade. A justiça enquanto ordem possível na humanidade traduz a idéia de que o ser humano tem um conhecimento universal do bem e por isso compreende a necessidade de justiça. O conceito defendido por muitas comunidades evangélicas é o de que a justiça é uma ordem apenas possível através da redenção e, por isso, não existiria um conhecimento seguro de justiça fora da revelação. Dentro dessa leitura teológica, só houve justiça na origem.

Assim, ao rejeitar a possibilidade de uma ordem universal fora da revelação, tal compreensão teológica leva a um problema epistemológico, pois afirma que a razão não tem nada a dizer fora da revelação. Essa visão teve e tem conseqüências práticas na elaboração de estratégias para a ação política, porque define que só a partir da fé se pode falar com autoridade sobre justiça. Ou seja, os evangélicos não poderiam, como consequência, militar politicamente com não-cristãos, pois não há base secular para o envolvimento político dos cristãos.

Desse modo, ao negar o conhecimento natural do bem político, a única alternativa é omitir-se, porque política é coisa mundana, ou estabelecer uma política evangélica sectária. Por isso, no Brasil, evangélicos buscaram impor normas redentivas, favorecendo o distanciamento dos fiéis da política, ao contrário daqueles que defendem uma teologia do conhecimento universal do bem, que rechaça a negatividade das ordenanças da redenção por isolar, alienar e separar a pessoa e a comunidade da prática política.

Ora, numa leitura teológica do conhecimento universal do bem, a justiça deve estar baseada em reivindicações universais de direito, pois estabelecer justiça em base de autoridade sectária é violentar a compreensão de que todas as pessoas têm um conhecimento do bem: donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça.

Assim, a justiça deve ser definida dentro do contexto de uma determinada ordem social e deve ser aplicada em termos de particulares, pois fundamentar o argumento da justiça apenas na pessoa não é o bastante. E devido à universalidade das normas de justiça e à universalidade da consciência de justiça, uma pessoa pode ter procedimentos e práticas que aprofundem políticas e programas que favorecem a justiça. É exatamente isso que os direitos cidadãos buscaram trazer para as democracias representativas. É o reconhecimento de que os meios empregados não devem violentar os fins procurados.

É necessário, ainda, reconhecer que as normas de justiça são objetivas e que existem independentemente da volição humana. Conseqüentemente, podem ser feitas reivindicações em nome da justiça e podem ser rejeitadas reivindicações em nome da justiça. Considerando que o amor deve ser volitivamente entregue, justiça exige reconhecimento independente da vontade humana. Essa discussão sobre a justiça, nos leva à questão da democracia.

A partir da Revolução Francesa de 1789, as declarações de direitos passaram a se abrir com o enunciado de que os seres humanos são livres e iguais. Foi assim que a Europa assumiu a realidade da dimensão universal do direito à liberdade e à igualdade, que mobilizou os movimentos de libertação de escravos, mulheres e povos. A constatação desse direito à liberdade e à igualdade legitimou as revoluções burguesas, e a democracia representativa apresentou-se como a forma política através da qual essas liberdades se exprimiriam.

A crise da democracia representativa

Mas, a democracia representativa enquanto expressão da justiça entrou em crise, porque cultura da modernidade burguesa se encontrava em crise. No Brasil, tal situação foi presenciada no final do governo militar, com a campanha pelas Diretas, que mobilizou dois milhões de pessoas nos atos realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro. Mas, diante do possível desmoronamento do regime militar, iniciou-se um processo onde a democracia representativa funcionou não como forma política de expressão dos direitos à liberdade e igualdade, mas como elemento de controle e restrição dessas liberdades. E as eleições surgiram, então, como alternativa para que o fim do regime militar não desembocasse numa derrocada fragorosa e a mobilização das massas levasse a uma ampliação da democracia participativa. Essa democracia de amplo espectro, participativa, que surge à galope do movimento das massas dinâmicas, é o que chamamos de revolução democrática.

No Brasil a revolução democrática, entendida como etapa anterior ao socialismo e defendida pelos democratas radicais e socialistas reformistas, já tinha sido abortada em 1964, e o foi de novo em 1984, quando ficou claro que as mobilizações conduziriam à extinção do autoritarismo militar e civil. Em 1964, assim como em 1984, o Brasil arrancou na direção de uma democracia de participação. No correr da década de 1990, no entanto, voltaram a surgir condições para uma expansão da democracia de participação, onde a classe trabalhadora, sob a liderança do PT, poderia marchar em direção ao governo, já que a Constituição de 1988 abrira essa possibilidade, e as mobilizações das massas, surgidas a partir da deterioração da ordem legal, davam às pessoas e aos movimentos o lugar de atores sociais.

De fato, as eleições possibilitaram a conquista de espaços democráticos representativos, e permitiram que a voz social e política dos trabalhadores fosse ouvida nacionalmente. E, possibilitou também que as intervenções dos trabalhadores fossem num crescendo diante do debilitamento da política neoliberal. Assim, os trabalhadores começaram a enfrentar seus adversários no próprio campo da luta eleitoral, conquistando espaços democráticos representativos, mas essas vitórias políticas foram aos poucos, dentro do PT, fortalecendo as teses de que o objetivo era a revolução democrática, nesta etapa da democracia burguesa da revolução, e não a conquista do poder e a construção de uma nova sociedade socialista.

A democracia representativa não é um fim em si, mas instrumento de mediação das relações de poder. Isto pode ser compreendido quanto se constata que a democracia representativa enquanto objetivo da revolução burguesa encontra-se em crise, porque se tornou escrava das leis de mercado. Assim, como toda a sociedade burguesa, está submetida à economia. Essa enfermidade crônica da democracia representativa levou os trabalhadores a viverem num mundo sem garantias.

Logicamente, se há crise cabe perguntar se pode haver transformação, embora se saiba que transformar não signifique necessariamente restaurar valores que já não respondem às necessidades de trabalhadores e excluídos. Fazer assim seria heteronomia, que só reafirma o autoritarismo. Transformar o princípio de liberdade e igualdade significa reinventar a democracia, o que se traduz na idéia solidária da incondicionalidade da justiça. Os valores podem ser reinventados, mas isso significa dizer que as massas em movimento, autônomas, devem participativamente tomar essa democracia representativa de assalto, pois ela só permanecerá se mudar, porque não é um estado natural da sociedade, é sempre um ensaio. Por isso, necessita ser reinventada sempre, e diante da ditadura das leis do mercado, dos fundamentalismos e das mídias controladas pelos grandes grupos, a democracia tem que ser liberdade e igualdade para aquela maioria que não tem voz e vez.

Se a democracia é mediadora, embora não seja um fim em si, não basta que as pessoas votem, elejam governantes, e permaneçam distante das ações do poder: a democracia reinventada implica em participação. Mas a democracia não pode ser recriada se partir daquilo que é pré-estabelecido. Dizer que a democracia é uma mediação fundamental nas relações entre classes e partidos não significa que em todos os lugares ela será igual. Se os seres humanos podem ser livres e iguais, as sociedades têm que se articular para a maioria excluída, e este é o caso brasileiro, os direitos à liberdade devem levar aos direitos sociais, à igualdade. Mas se não existirem as mesmas condições de possibilidade não pode funcionar a democracia, pois se não garante a realização da liberdade não se pode esperar que funcione enquanto mediação fundada sobre os princípios da justiça social.

Os mitos fundantes não bastam

E não basta os mitos fundantes da democracia afirmarem o caráter universal de que “todos os seres humanos são livres e iguais”: isto só será possível enquanto comunidade internacional ativamente participante. Essa é a base do internacionalismo defendido pelos trabalhadores e socialistas. E tal discussão nos remete, mais uma vez, à questão da transcendência da justiça.

Se a transcendência da justiça está correlacionada à transcendência do amor, em termos teológicos amor e justiça não podem ser contrapostos. O amor pode ir além da justiça, mas nunca pode buscar menos que a justiça. O amor pode inspirar reverência à justiça, mas nunca pode ser desculpa para esquecer as reivindicações da justiça. E se a justiça é uma qualidade objetiva que estabelece direitos e obrigações, projetos podem e devem ser desenvolvidos pelas pessoas e comunidades para criar ações que sirvam às reivindicações da justiça.

Dado o fato que nem todas as pessoas buscam a justiça de boa vontade, o poder pode ser usado legitimamente quando serve à causa de justiça. Isso significa dizer que o amor não pode usar o poder para alcançar seus fins, mas que a justiça têm que usar o poder para alcançar seus fins. Tais distinções são necessárias porque não se pode dizer a um governo que ame, porque suas ações têm por base o poder, e porque as reivindicações do amor estão arraigadas em reconhecimento pessoal e particular ao invés de normas universais de justiça.

Mas como os cristãos sociais proclamam, as boas noticias da autonomia, sensibilizam as comunidades para as demandas da justiça. Conseqüentemente, permanece a justiça enquanto serviço de amor. Assim, usar o Estado como um instrumento de amor está fora do objetivo de um partido de trabalhadores, pois levaria a um Estado sectário, quando não totalitário. Por causa disso, as normas distintivas da justiça serão usadas pelo partido para delimitar o que é meu e o que é teu.

Negar a justiça em nome do amor seria negar os direitos das pessoas, que são a base de qualquer democracia representativa e participativa. O conceito de justiça, então, aliado aos de amor e poder apresentam as alternativas para as comunidades cristãs ao pensar a ação política num partido de trabalhadores. A política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve as reivindicações da justiça. Amar, sem rejeitar o poder, indo além dos direitos e deveres estabelecidos pela justiça, possibilita um testemunho de justiça e uma motivação moral que coroam o ato justo.

Amar, através da mediação pessoal, complementa a justiça em suas demandas objetivas. Podemos então dizer que a fome é exclusão da terra, da renda, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania. Porque, quando uma pessoa chega a não ter o que comer, tudo o mais já lhe foi negado. Ou seja, é morte em vida. Donde, a alma da fome é política, como disse Betinho.

Quando a justiça é negada, a política torna-se escrava do poder. Perde o eixo da vida da ação política, já que a injustiça só será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa, e essa é uma tarefa política. Para conquistar tal dignidade, o poder deve ser exercido. Assim, a síntese deste diálogo pertinente entre política e protestantismo é a justiça.