samedi 17 janvier 2015

Olhos azuis

Memórias de Jorge Pinheiro, no início dos anos 1960, quando adolescente, em Copacabana.

Os olhos azuis de Jussara

“Já que (...) não posso infundir a fé no coração de ninguém, não posso, nem devo obrigar ou coagir ninguém a isso, pois Deus opera isso sozinho e vem habitar anteriormente no coração. Por isso, se deve deixar a palavra livre e não querer juntar nossa obra a ela: nós certamente temos o ius verbi, mas não a executionem. Cabe-nos pregar a palavra, mas as conseqüências pertencem unicamente ao agrado de Deus”. Lutero, reformador do século 16.

Rua Santa Clara. Posto 4


O sol está de derreter asfalto. Dá para fritar ovos na avenida Atlântica. Tio Walter joga peteca com os amigos. E Lolita, minha jovem tia, de maiô cavado nas costas, lembra a personagem de Nabukov, ao menos na minha cabeça de adolescente.

-- Luís, passa Dagelle nas minhas costas.

Obediente, gosto dessa mistura do cheiro do bronzeador com a maresia, cumpro à risca, devagar, a ordem recebida.

Meus primos Marcus e Júlio, à beira d’água, fazem seus castelos de areia, que a arrebentação, feroz realidade, desfaz um a um. Como formigas insistem, gritam e dançam, quando uma onda maior alisa a areia.

Maria, minha mãe, fez para mim um calção que é uma bandeira. Pegou uma blusa estampada de rosas grandes e como costura muito bem fez um calção lindo, o mais colorido de toda a praia. Mas caiu bem.

E minha turma, uma gang atribulada, quase todos do Externato Duque de Caxias, elogiou. Minha namorada, Jussara, me agarrou pelo braço e saímos... Eu com ela, ela com o rebelde dela.

Jussara tem 14 anos, faz balé e mora na rua Serzedelo Correia. Eu tenho 16 e fui aluno de latim do professor Pompílio da Hora no Atheneu São Luís, no Catete. O velho Pompílio me adorava, eu era o melhor aluno de latim que ele tinha. Mas, certa vez, me expulsou da sala. E me fez sair pela janela, aos gritos:

-- Você não é digno de sair pela porta.

Pulei. E quando já estava fora, me fez voltar à sala, com um ensinamento estranho:

-- Não viva de tal maneira, que possam dizer para você: “Puxa, nunca imaginei que você fizesse isso”.

Pompílio, primeiro negro brasileiro a ser nomeado embaixador na África, dando lições de transgressão a seu pupilo.

Jussara me agarra pela cintura, rindo e apontando para o mar. A gang brinca de boto furando as ondas...

Morena de olhos azuis, ela não é bonita, é linda. Minha vida toda se resume nisso: futebol de areia todas as tardes depois das quatro, toda televisão que dá para ver, muito livro e Jussara para me levar ao cinema. E saímos na maior pinta. Eu de rancheira e camisa de ban-lon branca e ela de vestido de fustão rodado. Depois do cinema, comemos waffles ali na avenida Nossa Senhora de Copacabana. 

Os anos 60 começam a desabrochar. Lá em casa, Walter e Lolita deram adeus ao JK, um pouco preocupados com os ares que sopram. Tio Walter prefere o Lott, mas o povo vai de Jânio. O jeitão do magrela não me agrada. É o homem da caspa de talco, do sanduíche de mortadela e da Vila Maria, em São Paulo.

Toda minha família sempre foi juscelinista, até o tio Walter que é austríaco e veio para cá no meio da guerra. Magro, um metro e noventa, cabelos lisos e negros, foi atleta do Flamengo. Remava. Foi capataz de fazenda. Levou um tiro de um peão, na barriga. Casou-se com minha tia Iracema, que era estilista e dona de loja no centro. Depois da morte de Iracema veio Lolita, filha de mãe espanhola e pai italiano. Bailarina. É vinte anos mais nova que o Walter. E doze anos mais velha do que eu. É amiga, confidente, tia e, às vezes, mãe. Esta última função é a que menos gosto.

Alguns anos depois da morte de meu pai, Walter e Lolita me adotaram. Os dois filhos, Marcus e Júlio, vieram mais tarde.

Hoje, tio Walter tem loja de moda, um Jaguar 53, usa tanga na praia, um escândalo que Lolita aprova, e joga religiosamente peteca com os amigos domingo de manhã aqui no Posto 4, em Copacabana.

-- No que você está pensando? Está tão calado – pergunta Jussara.

-- O azul dos teus olhos é mais bonito que o azulão besta do mar.

-- Bobo!

-- É verdade. Prefiro esse azul aqui àquele lá.

-- Bobo duas vezes. Aquele lá é maior. Olha, nem fim tem...

-- É, mais o teu eu posso levar comigo.

-- Só se eu deixar...

-- E você deixa?

-- Depende...

-- De que?

-- Ué, para onde?...

-- Quero o azul dos teus olhos como farol, que baila, na ilha, no meio do mar...


-- Puxa, então eu deixo.