mercredi 5 novembre 2014

Mulheres ...

... na vitrine,  enjauladas
Jorge Pinheiro

As situações de limite exemplificam as maravilhas do renascer em vida. Vemos isso, por exemplo, na expressão do rabino de Nazaré "onde pouco é perdoado, pouco amor é mostrado".


Lembro-me de uma moça nigeriana, Aminal Lawal, que foi condenada por ter um filho dois anos depois de separar-se do marido. Seria apedrejada, conforme ordena a lei islâmica, a Shariah.




Há mais de três mil anos, uma jovem chamada Raabe, na Palestina, também correu o risco de ser assassinada. 


E para entender o milagre do renascer em vida faço uma rápida correlação entre as histórias de Aminal e de Raabe. Mas é bom lembrar que a cultura da época situava a prostituição como comércio ilegal do amor sexual. E perdão diante de tal culpa e limite era, desculpa, renúncia às consequências punitivas justificáveis em face desta ação que transgredia preceitos afetivos jurídicos, morais e religiosos.


A Sharia é a aplicação do Alcorão na prática cotidiana, e em alguns países ainda é aplicado como lei. Assim, a morte por apedrejamento era um costume no Oriente Médio, e essa norma também fez parte da Torá judaica.


Aminal, a moça muçulmana, teve um filho fora do casamento. E por isso devia ser apedrejada. Mas o mundo ocidental se manifestou pela revogação da sentença. Então, os juízes islâmicos, pressionados pela opinião pública, usaram um subterfúgio para salvar Aminal. Alegaram que segundo a tradição islâmica um bebê pode estar em gestação por um período de até cinco anos. Ou seja, Aminal poderia estar grávida do marido.

Mas, me lembrei de uma caminhada pelo Red Light District, área livre de Amsterdam para o consumo de drogas e sexualidades várias, que fica entre Warmoesstraat, Oudezijds Voorburgwal e Oudezijds Achterburwal e suas ruas perpendiculares. É aqui que, por trás de cada vitrina de néon vermelho, moças se colocam, corpos à mostra, a espera de clientes. 

O Red Light District é, na verdade, um parque temático sexual, onde são desovados diariamente milhares de turistas e adolescentes que chegam em ônibus pulmann. Note-se que é proibido tirar fotos das moças que estão nas vitrinas. É um bairro que faz o tipo boêmio, embora aqui tudo seja milimetricamente planejado. Está cheio de bares, sex shops e tabacarias onde você pode comprar sementes de maconha das mais diferentes qualidades. A atmosfera é surrealista. 

As moças nas vitrinas me lembraram a boneca Barbie, que já passou dos 50, mas continua a ser a plastificação da sexualidade de consumo. Aquelas moças estão barbificadas sob as luzes de néon, numa espécie de jogo virtual, onde personalidades e imagens sexuais são criadas para transmitir uma ideia de liberdade que não existe no mundo real. Falo de jogo virtual porque as vitrinas transmitem a sensação de interação on-line, de plataforma virtual, presente no imaginário da garotada que se pluga ali. A moça não existe, mas sim a personagem, ou avatar, que recebe a missão de seduzir. A noção de jogo é sutil, mas está presente e é desafiante.

As moças estão de roupas íntimas, ou nuas, com um olhar maroto para os passantes. Caso haja interesse, negociarão serviços e preços. O serviço padrão é 15 minutos de sexo oral e coito por 50 euros. O que acontece nas vitrines não é domínio do real, mas o virtual usado como plataforma de jogos da imaginação. O comportamento sexual acaba sendo irrelevante ou responsável por emoções de vida real. Num jogo desse tipo, a função do olhar e os possíveis mergulhos no imaginário é o que conta. Por isso, vemos grupos de jovens, tirando sarro, desafiando uns aos outros, como se estivessem num parque de diversões. Não basta olhar, é necessário ser olhado e as moças sabem disso, e provocam com piscadelas ou um sorriso mais provocante e dirigido. E a garotada vem abaixo, como se tivesse realizado uma conquista de verdade. Sexo com a moça da vitrina é de simples execução. Afinal, com a personagem não se dialoga, se pergunta quanto custa. Por isso, apesar da expressão grotesca, é um fast food para jovens em bando. 

Após um século de lutas femininas por direitos e sentido de vida, é difícil, mesmo sob o argumento econômico de que elas fazem assim porque querem, olhar sem constrangimento mulheres enjauladas. 

Aqueles que defendem a permanência da prostituição de vitrina em Amsterdam dizem que tem vantagens, porque as moças são seus próprios patrões, não têm que pagar percentagem dos rendimentos para o proprietário de um bordel -- a não ser o aluguel razoavelmente alto do quarto – e pode escolher seu próprio horário de trabalho. Além do que, dizem, como há um fluxo interminável de clientes, podem faturar algumas centenas de euros por dia de trabalho. E porque trabalhar aqui pode ser mais seguro, pois com um gesto de mão podem acionar um botão para chamar o proprietário ou a polícia. 

Mas a verdade é que tal exposição humilha. Elas estão expostas lá na vitrina para que todos possam ver e, por isso, a maioria delas não vive em Amsterdam. Não querem ser reconhecidas por amigos, parentes e vizinhos. Outro fato importante é que a maioria delas não é natural dos Países Baixos, mas moças que vieram da Europa Oriental ou da Södra unionen. 

O Red Light District é o mais antigo bairro de Amsterdam. Tem fachadas do século XIV, canais e becos encantadores. Aqui está a mais antiga igreja da cidade, a igreja de São Nicolau, construída entre 1366 e 1566. E como o bairro era point da marujada, aqui na igreja você encontra as tumbas de almirantes em pinturas e esculturas de barcos. A torre octogonal é de estilo gótico-renascentista, era uma referência para os barcos que atracavam no porto.

Zlabya, Raabe, a moça da cidade de Jericó, depois da sua libertação, tornou-se mulher de Salmon, filho de Calebe, e mãe de Boaz. É bom lembrar que as prostitutas na Antiguidade, cultuais ou não, começavam seu ofício ainda na puberdade. Na vida escura e duvidosa dessa jovem, prostituta e mentirosa, deve ter brilhado a centelha de que com os hebreus havia um Eterno maior do que todos os deuses que ela conhecera. A cidade de Jericó estava em pânico, temendo um ataque dos hebreus, e entre o povo se comentava o que o eterno dos hebreus fizera na saída do Egito e durante a caminhada no deserto: Soubemos que o Senhor secou o mar Vermelho diante de vocês quando saíram do Egito. Também ficamos sabendo como, a leste do rio Jordão, vocês mataram Seom e Ogue, os reis dos amorreus, e destruíram os seus exércitos.

Zaná é uma palavra hebraica que pode ser traduzida como praticar prostituição, mas seu sentido literal quer dizer manter relações sexuais ilícitas. É a palavra que designa a atividade de Raabe, a jovem que escondeu os espiões enviados por Josué. Tal palavra normalmente se refere a mulheres e apenas duas vezes diz respeito a homens. A forma feminina é usada para indicar a prostituta. Tais pessoas recebiam pagamento, tinham marcas características que as indicavam, tinham suas próprias casas e deviam ser evitadas. Poucas vezes, a mulher com quem o ato é cometido é identificada como mulher casada, mas também nunca se afirma que é solteira.

Ambas mulheres, Aminal e Raabe, foram consideradas prostitutas, conforme o costume de suas culturas. A primeira adulterou e a segunda, segundo estudiosos, era uma sacerdotisa da religião dos cananeus, ou seja, uma prostituta cultual. Ambas mereciam a morte, mas renasceram para a vida pelo milagre do perdão. E perdão implica em libertação oferecida e esquecimento, por isso não importa mais se Aminal adulterou ou se Raabe era prostituta. Mas há uma diferença, não sei se para Aminal houve de fato libertação.

Já Raabe confiou na misericórdia e no poder da eternidade e renasceu em vida. E fez um declaração marcante ao reconhecer que o Eterno estava acima dos deuses cananeus: A eternidade é em cima no céu e aqui em baixo na terra. 

Estas palavras, proferidas por Raabe, são sentido pleno da vida e contrição. 


Centenas de anos mais tarde, o rabino de Nazaré, descendente da prostituta Raabe, disse a um religioso que o convidou para jantar: Você está vendo esta moça? Quando entrei, você não me ofereceu água para lavar os pés, porém ela os lavou com as suas lágrimas e os enxugou com os seus cabelos. Você não me beijou quando cheguei; ela, porém, não para de beijar os meus pés desde que entrei. Você não pôs azeite perfumado na minha cabeça, porém ela derramou perfume nos meus pés. Eu afirmo a você, então, que o grande amor que ela mostrou prova que os seus alvos errados estão perdoados. Mas onde pouco é perdoado, pouco amor é mostrado. 


Perdoar é esquecer, libertar, renascer. Eis o milagre que cobriu Raabe. Mas como ficam as outras moças enjauladas?