samedi 20 avril 2013

JORGE PINHEIRO: Marco Feliciano -- política e religião

JORGE PINHEIRO: Marco Feliciano -- política e religião: 18.04.13   - Brasil Marco Feliciano Paradigma na relação religião-mídia-política no Brasil Magali do Nascimento Cunha J...

Marco Feliciano -- política e religião

18.04.13 - Brasil
Marco Feliciano
Paradigma na relação religião-mídia-política no Brasil

Magali do Nascimento Cunha
Jornalista, doutora em Ciências da Comunicação, professora da Universidade Metodista de São Paulo (Faculdade de Teologia e Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação)
Adital

Nestes meses de março e abril de 2013 temos lido, ouvido e assistido a um episódio sem precedentes no Congresso Nacional, que coloca em evidência a relação religião-política-mídia. Em 5 de março foi anunciada pelo Partido Socialista Cristão (PSC), a indicação do membro de sua bancada o pastor evangélico deputado federal Marco Feliciano (SP) como presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal (CDH). Foram imediatas as reações de grupos pela causa dos Direitos Humanos ao nome de Marco Feliciano, com a alegação de que o deputado era conhecido em espaços midiáticos por declarações discriminatórias em relação a pessoas negras e a homossexuais. O PSC se defendeu dizendo que seguiu um protocolo que lhe deu o direito de indicar a presidência dessa comissão, um processo que estava dentro dos trâmites da democracia tal como estabelecida no Parlamento brasileiro. Isto, certamente, é fonte de reflexões, em especial quanto ao porquê da defesa dos Direitos Humanos ser colocada pelos grandes partidos como "moeda de troca barata", como bem expôs Renato Janine Ribeiro em artigo publicado no Observatório da Imprensa (n. 740, 2/4/2013). Soma-se a isto o fato de o deputado indicado e o seu partido não apresentarem qualquer histórico de envolvimento com a causa dos Direitos Humanos que os qualificassem para o posto.

O que tem chamado a atenção neste caso, e que é objeto desta reflexão, é a "bola de neve" que ele provocou a partir das reações ao nome do deputado, formada por protestos públicos da parte de diversos segmentos da sociedade civil, mais a criação de uma frente parlamentar de oposição à eleição de Feliciano, e pelo estabelecimento de uma guerra religiosa entre evangélicos e ativistas do movimento de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT), e entre evangélicos e não-cristãos. E esta bola de neve é produto de fatores que se apresentam para além da CDH, e a expõem como um elemento a mais no complexo quadro da relação entre religião e sociedade no Brasil. Pensemos um pouco sobre estes fatores; vamos elencar quatro.

1. A reconfiguração do lugar dos evangélicos na política

Desde o Congresso Constituinte de 1986 e a formação da primeira Bancada Evangélica e seus desdobramentos, a máxima "crente não se mete em política" construída com base na separação igreja-mundo foi sepultada. A máxima passou a ser "irmão vota em irmão”.

Depois de altos e baixos em termos numéricos, decorrentes de casos de corrupção e fisiologismo, a bancada evangélica se consolidou como força no Congresso Nacional, o que resultou na criação da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) em 2004, ampliada nas eleições de 2010 para 73 congressistas, de 17 igrejas diferentes, 13 delas pentecostais. Os parlamentares evangélicos não são identificados como conservadores, do ponto de vista sociopolítico e econômico, como o é a Maioria Moral nos Estados Unidos, por exemplo. Seus projetos raramente interferem na ordem social e se revertem em "praças da Bíblia”, criação de feriados para concorrer com os católicos, benefícios para templos. Basta conferir o perfil dos partidos aos quais a maioria dos políticos evangélicos está afiliada e os recorrentes casos de fisiologismo.

Mais recentemente é o forte tradicionalismo moral que tem marcado a atuação da FPE, que trouxe para si o mandato da defesa da família e da moral cristã contra a plataforma dos movimentos feministas e de homossexuais, valendo-se de alianças até mesmo com parlamentares católicos tradicionalistas, diálogo impensável no campo eclesiástico.

Os números do Censo 2010 são fonte para a demanda de legitimidade social entre os evangélicos, e certamente de conquista de mais espaço de influência. Estudos mostram que desde 2002, período da legislatura em que a FPE foi criada, a cada eleição, o número de evangélicos no Parlamento (Câmara e Senado) aumenta em torno de 30% do total anterior. A estimativa, mantido este índice, é de chegarem a 100 cadeiras em 2014, o que representaria em torno de 20% das 513 do Congresso, refletindo a representatividade dos evangélicos no Brasil revelada pelo Censo 2010. Este é um projeto cada vez mais nítido deste segmento social que certamente visa, como os demais grupos políticos, muito mais do que cadeiras no Congresso, mas também presidências de comissões e de ministérios relevantes (para além do único atual tímido Ministério da Pesca, sob a liderança do bispo da Igreja Universal do Reino de Deus Marcelo Crivela).

A polêmica com Marco Feliciano deixa este projeto em evidência, já que não só uma presidência inédita de comissão foi alcançada, mas também maior visibilidade aos evangélicos na política e ao próprio PSC, que tem o nome "Cristão", mas sempre se caracterizou como um partido de aluguel para quem desejasse candidatura independentemente de confissão de fé. Pelo fato de estar nas manchetes durante semanas, o PSC já prevê que Feliciano, eleito com 212 mil votos por São Paulo em 2010, se tornará um "campeão de votos" nas próximas eleições, podendo atingir um milhão de votos, e ainda alavancará a candidatura do pastor Everaldo Pereira (PSC/SP) a presidente da República. Aliado de Marco Feliciano, o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, figura sempre presente nas mídias, declarou: "Se o Feliciano tiver menos de 400 mil votos na próxima eleição, eu estou mudando de nome".

Mais uma vez, é possível afirmar que a cada novo episódio, a relação evangélicos- política é dinâmica complexa que inclui disputas por poder e hegemonia no campo religioso, ambição dos políticos que veem no pragmatismo dos evangélicos fonte para suas barganhas de campanha, concorrência de grupos que competem por poder sociopolítico e econômico como as empresas de mídia, como veremos adiante.

2. O conservadorismo de Marco Feliciano e de seus "soldados"

A imagem dos "evangélicos" foi construída fundamentalmente com base na identidade de dois grupos de cristãos não-católicos: os protestantes de diferentes confissões que chegaram ao Brasil por meio de missões dos Estados Unidos, a partir da segunda metade do século XIX, e os pentecostais, que aportaram em terras brasileiras na primeira década do século XX, vindos daquele mesmo país. Esta imagem sempre mostrou ao Brasil um segmento cristão predominantemente conservador teologicamente, marcado por um fundamentalismo bíblico, um dualismo que separava a igreja do "mundo"/a sociedade e um anticatolicismo.

Desta forma, não é surpresa que um pastor evangélico, no caso Marco Feliciano, reproduza em seus sermões modernos e de forte apelo emocional, uma abordagem teológica tão antiga como a que embasa a ideologia racista, por meio da leitura fundamentalista de textos do Gênesis que contêm a narrativa da descendência de Noé. Também não é surpresa que Marco Feliciano conduza sua reflexão teológica por meio de bases que justifiquem a existência de um Deus Guerreiro e Belicoso, que tem ao seu redor anjos vingadores, que destrói do Titanic a John Lenon ou aos Mamonas Assassinas, continuando o que já fazia com os povos africanos herdeiros do filho de Noé, e que, nesta linha, certamente fará aos que assumem e apregoam o homossexualismo. Menos surpreendente é ainda que o líder religioso reaja a quem lhe faz oposição ou tenha posição diferente da sua classificando-o como agente do diabo e assim foram sinalizadas a própria formação anterior da Comissão de Direitos Humanos e celebridades como o cantor Caetano Veloso.

Quem se surpreende com o que Feliciano diz e com o apoio que ele recebe de diversos segmentos evangélicos desconhece o DNA deste grupo. Não há nada de novo aqui. O que há é maior visibilidade pela projeção que a mídia religiosa e não-religiosa têm dado a este discurso. Em 2010, por exemplo, o pastor estadunidense Pat Robertson, dono de um canal de televisão, declarou que o trágico terremoto no Haiti naquele ano era consequência de um pacto dos haitianos com o diabo no passado para se tornarem independentes da França. A declaração de Robertson, amplamente veiculada, provocou manifestações contrárias em todo o mundo. As palavras de Marco Feliciano no Brasil de 2013 são apenas o eco da mesma teologia.

Há algo novo, sim, neste processo, relacionado à articulação dos apoios a Feliciano que coloca em evidência o conservadorismo, antes atribuído mais diretamente aos evangélicos, que reflete uma tendência forte na sociedade brasileira de um modo geral.

É nesse contexto que o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), suplente da CDH, afirmou que se sente como "irmão” do presidente da comissão. "Como capitão do Exército, sou um soldado do Feliciano", declarou Bolsonaro, em matérias divulgadas pelas mídias em 27 de março, e acrescentou: "A agenda antes era outra, de uma minoria que não tinha nada a ver. Hoje, representamos as verdadeiras minorias. Acredito no Feliciano, de coração. Até parece que ele é meu irmão de muito tempo. Não sinto mais aquele cheiro esquisito que tinha aqui dentro e aquele peso nas costas. Aqui, era uma comissão que era voltada contra os interesses humanos, contra os interesses das crianças e contra os interesses da família. Agora, essa comissão está no caminho certo. Parabéns, Feliciano".

O deputado Bolsonaro tem um histórico de posicionamentos racistas e de conflito com ativistas sociais e militantes de movimentos gays. Em novembro de 2011, ele chegou a pedir, da tribuna da Câmara, à presidente Dilma Rousseff para que ela assumisse se gostava de homossexuais. Em março do mesmo ano, respondeu que "não discutiria promiscuidade" ao ser questionado em um programa de TV pela cantora Preta Gil sobre como reagiria caso o filho namorasse uma mulher negra.

No campo das igrejas, o já citado pastor Silas Malafaia, conhecido por polêmicas midiáticas desde a campanha presidencial de 2010, se alistou nas fileiras do deputado Feliciano e se tornou seu árduo defensor e colaborador desde o início da controvérsia da presidência da CDH. Até a Igreja Católica, explícita em suas posições quanto à ampliação de direitos civis de homossexuais, mas clássico "inimigo" dos evangélicos, é colocada por Feliciano na lista de aliados. Em entrevista à TV Folha-UOL (2/4/2013), o deputado explicitou: "Tenho alguns contatos com algumas pessoas da CNBB, mas com os grandes líderes do movimento católico não tive contato até porque quase não tenho tempo. Acredito que, nesse momento, todos eles me conhecem até porque o que eu sofro hoje de perseguição dado ao movimento LGBT, a Igreja Católica sofre isso no mundo todo. Inclusive, o novo papa, o papa Francisco, na Argentina quase foi linchado por esse grupo. Então, nós temos algumas coisas que, acredito, nos fazem pensar igual.(...) Eu fiquei feliz por termos ali um papa que ainda é bem ortodoxo, é bem conservador e que prima por aquilo eu acredito também, que a família é a base da sociedade. Aliás, a família é antes da sociedade".
Estas alianças estão produzindo efeitos até na qualidade do discurso de Marco Feliciano. Os benefícios proporcionados pela aproximação com lideranças mais experientes ficam evidentes nas mudanças no discurso do deputado como: "Só saio da presidência da CDH morto" para "Só saio da presidência da CDH se os deputados condenados pelo julgamento do mensalão, José Genoíno e João Paulo Cunha, deixarem a Comissão de Constituição e Justiça". Com isso, Feliciano atraiu para si a simpatia da mídia que se fartou na cobertura do julgamento do Superior Tribunal de Justiça e de segmentos conservadores, que, embora não concordem com seu nome na presidência da CDH, querem "a cabeça" dos condenados. Feliciano usa uma controvérsia ética para justificar a controvérsia de sua própria eleição - a CDH como moeda de troca partidária.

Alianças do religioso com o não-religioso formando exércitos que marcham em defesa da moral e dos bons costumes - em defesa da família - não é algo novo no Brasil, mas é bastante novo no espaço político que envolve os evangélicos e suas conquistas na esfera pública. Em matéria na Folha de São Paulo, de 7/4/2013, o diretor do instituto de pesquisa Datafolha, Mauro Paulino, declarou que o discurso de Feliciano atinge preocupações de parte da população: "Entre os brasileiros, 14% se posicionam na extrema direita. As aparições na imprensa dão esse efeito de conferir notoriedade a ele." Isto significa que apesar dos tantos slogans divulgados em manifestações presenciais e nas redes sociais - "Feliciano não me representa" - Feliciano, Bolsonaro e tantos outros são eleitos e ganham espaço e legitimidade. Portanto, há quem se sinta representado, sim, não somente do ponto de vista da popularidade mas do peso das articulações ideológicas em curso na sociedade brasileira.

3. Inimigos, um componente do imaginário evangélico

Exércitos precisam de inimigos. A teologia de um Deus Guerreiro e Belicoso sempre esteve presente na formação fundamentalista dos evangélicos brasileiros, compondo o seu imaginário e criando a necessidade da identificação de inimigos a serem combatidos. Historicamente a Igreja Católica Romana sempre foi identificadas como tal e sempre foi combatida no campo simbólico mas também no físico-geográfico. Da mesma forma as religiões afro-brasileiras também ocupam este lugar, especialmente, no imaginário dos grupos pentecostais.

Periodicamente, estes "inimigos" restritos ao campo religioso perdem força quando ou se renovam, como é o caso da Igreja Católica, a partir dos anos de 1960, ou quando aparecem outros que trazem ameaças mais amplas. Assim foram interpretados os comunistas no período da guerra fria no mundo e da ditadura militar. Há também um imperativo imaginário de se atualizar os combates, quando a insistência em determinados grupos leva a um desgaste da guerra. Durante o processo de redemocratização brasileira nos anos 80, o espaço que vinha sendo conquistado pelo Partido dos Trabalhadores, interpretado como nítido representante do perigo comunista, foi reconhecido como ameaça e campanhas evangélicas contra o PT reverberaram de forma religiosa o que se expunha nas trincheiras da política.

Com o enfraquecimento do ideal comunista nos anos 90 e com o PT chegando ao poder nacional com o apoio dos próprios evangélicos, a força das construções ideológicas estadunidenses abriu lugar à atenção à ameaça islâmica e houve algum espaço entre evangélicos no Brasil para discursos de combate ao islam. No entanto, como esta ameaça está bem distante da realidade brasileira - não se configura um inimigo tão perigoso nestas terras -, emerge, mais uma vez, o imperativo de se atualizar os combates. Não mais catolicismo, nem comunismo, não tanto islamismo... quem se configuraria como novo inimigo? Desta vez, um inimigo contra a religião e seus princípios, contra a Bíblia, contra Deus, contra o Brasil e as famílias: o homossexualismo.

Declarações de Marco Feliciano na mídia noticiosa expressam bem este espírito belicoso: "É um assunto tão podre! Toda vez que se fala de sexo entre pessoas do mesmo sexo ninguém quer colocar a mão, porque é podre. Por causa disso, um grupo de 2% da população – os gays – consegue se levantar e oprimir uma nação com 90% de cristãos, entre católicos e evangélicos, e até pessoas que não têm religião, mas que primam pelo bem-estar da família, pelo curso natural das coisas" (Rede Brasil Atual, 1/3/2013). "Existe uma ditadura chamada (...) "gayzista". Eles querem impor o seu estilo de vida e a sua condição sobre mim. E eles lutam contra a minha liberdade de pensamento e de expressão. Eles lutam pela liberdade sexual deles. Só que antes da liberdade sexual deles, que é secundária, tem que ser permitida a minha liberdade intelectual. A minha liberdade de expressão. Eu posso pensar. Se tirarem o meu poder de pensar, eu não vivo. Eu vegeto e morro". (TV Folha-UOL, 2/4/2013).

Consequência da eleição de inimigos e do combate a eles é o discurso de que há uma perseguição a quem se faz contrário, promovida pelo maior inimigo de Deus, Satanás. Esta ideia está claramente presente em afirmações de Feliciano como: "Eu morro, mas não abandono minha fé"; "A situação está tomando dimensões muito estranhas. É assustador, estou me sentindo perseguido como aquela cubana lá. Como é o nome? A Yoani Sánchez"; "Se é para gritar, tem um povo que sabe o que é grito. [...] Nós (evangélicos) sabemos qual é o poder da nossa fé".

A insistência da mídia noticiosa em enfatizar a guerra Feliciano-homossexuais, com o lado "inimigo" representado por um deputado, na mesma condição do primeiro, Jean Wyllys (PSOL/RJ), ativista do movimento LGBT, só faz reforçar a reconstrução do imaginário evangélico da guerra aos inimigos e da perseguição consequente. Isso tem gerado manifestações diversas de apoio a Feliciano entre evangélicos dos mais diferentes segmentos e ações como a da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB), realizada em Brasília neste abril, que aprovou uma moção de apoio a Feliciano, aprovada em votação simbólica por unanimidade. Feliciano agradeceu o apoio dizendo que "nunca houve uma comissão com tanta oração. Os pastores estão orando pela minha vida e pela comissão. Venceremos esta batalha".
Há ainda uma explosão de postagens em nas mídias digitais, em especial nas redes sociais. Por exemplo, uma montagem com foto de Marco Feliciano com uma faixa presidencial tem sido veiculada por usuários do Facebook, e, na primeira semana de abril já havia superado a marca de 65 mil compartilhamentos. A campanha pede que favoráveis à candidatura do pastor à presidência da República em 2014 compartilhem a imagem para demonstrar força nas redes sociais: "Campanha urgente: Marco Feliciano presidente do Brasil”, diz o texto.

Uma segunda imagem com comparações entre Marco Feliciano e Jean Wyllys também veiculada no Facebook, já havia superado 100 mil compartilhamentos em meados de abril, registrando mais de 7,5 mil comentários. Na imagem, há dados sobre o número de votos de cada um dos deputados, além de comparações entre as bandeiras políticas defendidas por cada um deles. A imagem quando compartilhada revela declarações pessoais de quem "curtiu" com texto que manifesta apoio ao pastor Feliciano: "Eu sou cristão, a favor da democracia, da vida e da família brasileira. Marco Feliciano me representa”.

A declaração de Silas Malafaia à Folha de São Paulo (7/4/2013) sobre a repercussão do caso entre os evangélicos e simpatizantes reflete bem este espírito: "Quero agradecer ao movimento gay. Quanto mais tempo perderem com o Feliciano, maior será a bancada evangélica em 2014".

Toda e qualquer análise e ação em torno da presença dos evangélicos nas mídias e na política não pode ignorar esta dimensão do imaginário da necessidade da criação de inimigos e da consequente perseguição. Isto é característico de religiões numericamente não-majoritárias, sendo portanto, fruto, entre outros aspectos, do caráter minoritário da presença evangélica em terras brasileiras.

4. As transformações e as revelações na relação mídia-religião

O histórico da presença evangélicas nas mídias não-religiosas no Brasil revela a hegemonia católica romana que vem pouco a pouco sendo diminuída por conta do espaço que os evangélicos vêm conquistando na esfera pública. Enquanto católicos sempre apareceram para expressar sua fé nas datas clássicas do calendário religioso e para se manifestar sobre temas amplos, à exceção dos casos controversos inevitáveis como a pedofilia praticada por clérigos, cuidadosamente tratados, evangélicos tinham espaço garantido quando se tratava de escândalos de corrupção ou situações bizarras.

Na última década, a expressiva representatividade dos evangélicos no país com o consequente declínio do catolicismo, e a ampliação de sua presença nas mídias e na política, torna este segmento não só visível mas um alvo mercadológico. As mídias passam a prestar a atenção no segmento e na lucratividade possível, em torno da cultura do consumo vigente.

Um exemplo ilustrativo se dá quando um personagem, por vezes protagonista, por vezes coadjuvante, como o pastor Silas Malafaia, que assume o papel da pessoa controvertida em todo este contexto e constrói sua imagem midiática como "aquele que diz as verdades”, é convidado para uma conversa com o vice-diretor das Organizações Globo, João Roberto Marinho (PINHEIRO, Daniela. Vitória em Cristo. Revista Piauí, n. 60, set 2011). Aí é possível identificar o patamar em que se encontra o segmento evangélico nas mídias. Segundo depoimento do pastor depois da conversa, Marinho teria alegado precisar conhecer mais o mundo dos evangélicos já que a emissora teria percebido que Edir Macedo não seria "a voz” dos protestantes no Brasil. O pastor Malafaia ganhou, então, trânsito em um canal destacado de comunicação e teve várias aparições no programa de maior audiência da Rede Globo, o Jornal Nacional.

Além do contato com Malafaia, as Organizações Globo, por meio da gravadora Som Livre, já contrataram grandes nomes do mercado da música evangélica que têm, a partir daí, espaço garantido na programação da Rede Globo. A Globo tirou da Rede Record, em 2011, o evento de premiação dos melhores da música evangélica, tendo criado o Troféu Promessas. A Rede Globo é também, a partir de 2011, patrocinadora de eventos evangélicos como a Marcha para Jesus e de festivais gospel. Noticiário inédito do mundo evangélico tem ganhado espaço na Rede, como por exemplo, a matéria sobre a reeleição de José Wellington Bezerra à presidência da Convenção Geral das Assembleias de Deus veiculada em matéria de 1'44 no Jornal da Globo, de 1'52 na Globo News, em 11 de abril, além de nota na CBN e no portal G1.
Neste contexto, o caso Marco Feliciano tem sido amplamente tratado pela grande mídia. Feliciano já foi entrevistado por todos os grandes veículos de imprensa e já participou dos mais variados programas de entretenimento - de talk-shows a games. Foi tratado com simpatia na entrevista de Vejae defendido pelo jornalista Alexandre Garcia em comentário na Rádio Metrópole (5/4/2013) com o argumento de "liberdade de opinião". Fica nítido que estes veículos não desprezam a dimensão do escândalo e da bizarrice relacionada ao caso, somada à atraente questão da homossexualidade que mexe com as emoções e paixões humanas e expõe a vida íntima de celebridades, como o caso da cantora Daniela Mercury que veio à tona na trilha desta história.

No entanto, o amplo espaço dado para que Feliciano e seus aliados exponham seus argumentos e sejam exibidos como simpáticos bons sujeitos revela que estas personagens ganham um tratamento bastante afável em comparação à execração imposta a outras em situações críticas da política brasileira, como a que envolveu os parlamentares do PT. Não temos aqui apenas os evangélicos como um segmento de mercado a ser bem tratado, mas, retomando a constatação de que Feliciano, Malafaia e Bolsonaro representam uma parcela conservadora da sociedade brasileira, é possível que haja uma identidade entre estes líderes e quem emite e produz conteúdos das mídias. Afinal, é a mesma mídia que constrói notícias sobre crimes protagonizados por crianças e adolescentes de forma a promover uma "limpeza" das cidades por meio de campanha por redução da maioridade penal no Brasil, ou que veicula programas que trazem enquetes durante um noticiário sobre crimes urbanos que indagam: "Ligue XXX ou YYY para indicar qual pena merece o criminoso? XXX para prisão ou YYY para morte".

São transformações na relação mídia e religião, com efeitos políticos, que merecem ser monitoradas e esclarecidas, tendo em vista a complexidade das relações sociais, em especial no que diz respeito à religião, e que devem ser potencializadas no ano eleitoral que se aproxima.

Um paradigma

O caso Marco Feliciano pode ser considerado um paradigma pelo fato de ser a primeira vez na história em que os evangélicos se colocam como um bloco organicamente articulado, com projeto temático definido: uma pretensa defesa da família. Com a polarização estimulada pelas mídias entre o deputado Feliciano e ativistas homossexuais foi apagada a discussão de origem quanto à indicação do seu nome em torno das afirmações racistas e de seu total distanciamento da defesa dos direitos humanos.

Torna-se nítida uma articulação política e ideológica conservadora em diferentes espaços sociais - do Congresso Nacional às mídias - que reflete um espírito presente na sociedade brasileira, de reação a avanços sociopolíticos, que dizem respeito não só a direitos civis homossexuais e das mulheres, como também aos direitos de crianças e adolescentes, às ações afirmativas (cotas, por exemplo) e da Comissão da Verdade, e de políticas de inclusão social e cidadania. Nesta articulação a religião passa a ser instrumentalizada, uma porta-voz.

A postagem de um pastor de uma igreja evangélica no Facebook reflete bem este espírito: "Devemos nos unir cada vez mais, já somos milhões de evangélicos no Brasil, fora os simpatizantes. Temos força, é claro que nossa força vem de Deus. Precisamos nos mobilizar contra as forças das trevas, que querem desvirtuar os bons costumes e a moral e, principalmente que querem afetar a honra da família. Se o meu povo que se chama pelo meu nome se humilhar e orar, não tem capeta que resista". E as palavras de Marco Feliciano ecoam como profecia: "Graças a Deus permanecemos firmes até aqui. Chegará o tempo que nós, evangélicos, vamos ter voz em outros lugares. O Brasil todo encara o movimento evangélico com outros olhos".

Nesse sentido é possível afirmar que os grupos políticos e midiáticos conservadores no Brasil descobriram os evangélicos e o seu poder de voz, de voto, de consumo e de reprodução ideológica. A ascensão de Celso Russomano nas eleições municipais de São Paulo, em 2012, já havia sido exemplar: um católico num partido evangélico, apoiado por grupos evangélicos os mais distintos. A eleição da presidência da CDH é paradigmática no campo nacional e ainda deve render muitos dividendos a Feliciano, ao PSC, à Bancada Evangélica e a seus aliados. O projeto político que se desenha, de fato, pouco ou nada tem a ver com a defesa da família... os segmentos da sociedade civil, incluindo setores evangélicos não identificados com o projeto aqui descrito, que defendem um Estado laico e socialmente justo, têm grandes tarefas pela frente.

[Autora do livro A Explosão Gospel. Um Olhar das Ciências Humanas sobre o cenário evangélico contemporâneo (Ed. Mauad)].

mercredi 17 avril 2013

A pensar Antonio Gramsci hoje


Gramsci: duas ou três palavras
Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Antonio Gramsci


A democracia não acredita na harmonia natural, mas crê possível submeter a natureza à razão. Ela crê numa harmonia metafísica, que se instaura necessariamente do processo histórico”. Paul Tillich, “Écrits contre les nazis”.1

Introdução

Nos últimos anos, como fruto da crise da esquerda mundial, mas também da instalação de governos de corte social-democratas no Brasil, renasceu a busca pela reflexão de pensadores marxianos. Assim, em várias universidades brasileiras, Antonio Gramsci, por exemplo, passou a ser estudado como nunca fora antes.

Ora, a busca pelo pensamento de Gramsci situa-se, nesse contexto de garimpagem do marxismo marginal, dito também não ortodoxo. Aqui neste texto, nos interessa pensar Gramsci em correlação com outro socialista, nada ortodoxo, Paul Tillich. Aliás, o pensamento socialista de Tillich é praticamente desconhecido no Brasil, apesar de ter trabalhado quase duas décadas sobre questões políticas analisadas a partir do que ele chamou socialismo religioso.

Gostaríamos de começar essa discussão com uma idéia exposta por Tillich, de que o socialismo é movimento profético de um mundo autônomo e racional, que a substância profética se exprime de maneira racional tanto no conhecimento como na ação, e que, por isso, a relação entre profecia e racionalidade é essencial no socialismo.2

Como a linguagem tillichiana é teológica, ao lê-lo nos vemos na obrigação de traduzi-lo. Assim, o que significariam as expressões “profético” e “profecia”? Tillich parte de uma compreensão peculiar do profetismo vétero-testamentário. Vê nele, tanto um clamor, como uma ação, um movimento em prol da justiça, que daria conteúdo, seria a essência da própria religião de Israel e, por extensão, do cristianismo e da Reforma protestante. Por isso, “movimento profético” é movimento de crítica social, que na modernidade levou à racionalidade da autonomia. Mas, para Tillich, socialismo implica em correlação permanente e necessária, ou seja, crítica social e racionalidade na autonomia. Assim colocada a questão, vemos que Tillich se afasta das correntes socialistas que repousam exclusivamente no racionalismo, em especial do bolchevismo, como das correntes que vêem a possibilidade de uma expansão crescente da autonomia, via democracia, ou seja, em especial do gramscianismo. É essa preocupação de Paul Tillich em correlacionar razão e autonomia que possibilita um diálogo crítico com Antonio Gramsci.  

Em uma análise do pensamento de Antonio Gramsci podemos começar afirmando que ele recriou a linguagem da tradição marxiana e codificou teoricamente seus conceitos. Falou de estado regulado, filosofia da práxis, grupo social, hegemonia, sociedade civil, estado ampliado, intelectual orgânico e moderno Príncipe. Mas, neste texto, nos interessa analisar suas idéias sobre a religião, hegemonia e Estado ampliado.

Marx partiu do fato de que a religião torna o ser humano estranho a si mesmo e desdobra o mundo em um mundo religioso, imaginário, e um mundo real. Por isso, considerava que o trabalho do teórico consiste em dissolver o mundo religioso em sua base terrena. Vai dizer, então, que Feuerbach não percebe que, findo o trabalho da crítica da religião, o principal ainda está por fazer. O fato de que a base terrena se separe de si mesma e se estabeleça nas nuvens, como reino independente, só pode ser explicado pela dissociação interna e pela contradição dessa base terrena consigo mesma.

O que deve, portanto, ser feito antes de qualquer coisa é compreendê-la em sua contradição e depois remover essa contradição. Assim, por exemplo, após descobrir que a família terrena é o segredo da Sagrada Família, é a família terrena que deve ser criticada teoricamente e revolucionada. Marx explica a crença religiosa por meio das contradições da sociedade humana e de suas dissociações, que induzem o ser humano a projetar fora do mundo, em um paraíso, a realidade na qual desejaria viver. Mas como afirma Radice,3 na quarta tese sobre Feuerbach, Marx afirma de modo explícito que a forma religiosa reflete um conteúdo histórico. Por estar impotente, o ser humano imagina uma potência divina, por estar abandonado cria uma providência.

E aonde levam essas visões? Aqui está a redescoberta pelo pensamento marxista oficial, no final dos anos 1960, da importância da consciência religiosa. Em seu décimo congresso o Partido Comunista Italiano diria que é necessário compreender como "a aspiração a uma sociedade socialista não só possa abrir caminho em homens que têm uma fé religiosa, mas que tal aspiração pode encontrar em uma sofrida consciência religiosa um estímulo frente aos dramáticos problemas do mundo contemporâneo".4

Dizemos redescoberta da importância da consciência religiosa porque Gramsci anos antes do décimo congresso do PCI afirmara que "a religião cristã, que – em certos períodos históricos e em condições históricas determinadas – foi e continua a ser uma necessidade, uma forma necessária de racionalidade do mundo e da vida".5

E o mais interessante é que Antonio Gramsci disse ser o marxismo herdeiro de dois movimentos culturais, a Reforma protestante e a Revolução francesa: "A filosofia da práxis pressupõe todo este passado cultural, o Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a revolução francesa, o liberalismo laico e o historicismo; em suma, o que está na base de toda concepção moderna da vida. A filosofia da práxis é o coroamento de todo movimento de reforma intelectual e moral, dialetizado no contraste entre cultura popular e alta cultura. Ela corresponde ao nexo Reforma protestante mais Revolução francesa: trata-se de uma filosofia que é também uma política e uma política que é também uma filosofia".6

O pensamento de Marx pode, então, ser entendido como desenvolvimento que se dá a partir de três correntes da Reforma protestante: a luterana que legou Hegel, a calvinista que legou Ricardo e a economia clássica, e a huguenote que criou o jacobinismo. Segundo Portelli, "a estas três fontes originais, Gramsci tenta ligar a tradição cultural italiana, principalmente Maquiavel, como precursor do jacobinismo, e Croce como desenvolvimento historicista da filosofia alemã. O marxismo torna-se assim um ponto de convergência destas três correntes sob a forma de crítica radical".7

Dessa forma, para Gramsci, a Reforma foi não somente uma reforma ao nível da economia, filosofia e política, mas também uma revolução cultural, no sentido de que procurou forjar uma nova humanidade. Para Gramsci a consciência religiosa cristã, que se traduziu em revolução cultural no século XVI, teve um caráter de suma importância na construção do pensamento contemporâneo. Ou, nas suas palavras: "da primitiva rusticidade intelectual do homem da Reforma (leia-se Lutero) decorreu a filosofia clássica alemã e o vasto movimento cultural de onde nasceu o mundo moderno".8

Numa leitura cristã protestante, Tillich9 considerou o socialismo10 produto da evolução espiritual e econômica, que preparou e se impõe com a Renascença, a Reforma e o surgimento do capitalismo. Visão compartida por Gramsci.11 Assim, o socialismo surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média, sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos, e só pode ser compreendida a partir desta evolução: sua permanência está ligada a esse desenvolvimento. Mas não devemos esquecer, porém, que foi do interior do cristianismo que brotaram as idéias socialistas.12

Mas Tillich teve uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê a massa em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Há uma séria divergência entre os dois pensadores: a crítica intelectual não se limita ao intelectual orgânico, é um processo maior que tem na massa orgânica uma dupla ação, de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite.

Na perspectiva tillichiana, a passagem da heteronomia à autonomia se deu através de ciclos que atravessaram épocas. Assim, os movimentos de massa dinâmica são encontrados no movimento religioso do cristianismo primitivo helenístico, no movimento político e racial da migração dos povos, no movimento espiritual e religioso da Reforma, na radicalidade anabatista e no movimento econômico do socialismo.13 Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, também estão presentes em diferentes esferas da cultura. Mas sempre como movimentos de libertação: a massa dinâmica é parteira de escravos oprimidos, de povos bárbaros excluídos, de leigos passivos, ou dos trabalhadores assalariados.14

Mas para os dois pensadores há uma busca de respostas entre aquele que encarna o espírito crítico e a ação consciente do intelectual orgânico. Assim, Gramsci afirma que "se a relação entre intelectuais e povo/nação, entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e governados, é dada por uma adesão orgânica, na qual o sentimento paixão torna-se compreensão e, portanto, saber, não mecanicamente, mas de forma viva, é somente então que a relação é de representação e que se produz o intercâmbio de elementos individuais entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes, isto é: que se realiza a vida conjunta que, só ela, é a vida social, cria-se um bloco histórico".15

Por isso para Gramsci, o intelectual quando representa determinada comunidade têm função superestrutural, ou seja, cultural, mas, apesar de sua organicidade, precisa exercer autonomia em relação às pressões sociais que sofre. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder.

Por isso, a partir de Tillich e Gramsci podemos dizer que o princípio da crítica intelectual é expressão humana e verbal do incondicionado, e resgata a tradição do profetismo bíblico,16 que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética. O profetismo era ao mesmo tempo revolucionário, mesmo quando voltado para o passado, e conservador, mesmo quando impulsionados pela paixão do porvir. Nada fazia sem invocar a tradição, no entanto, sua mensagem17 eram os novos tempos. Os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos pareciam ter algo em comum: uma atitude realista. A pregação do futuro não constituía o essencial de seus clamores; era antes, o fruto e o resultado final de um conhecimento aprofundado no mundo adjacente, da atualidade e do passado.18 Ora, essa função profética está presente na compreensão crítica de Gramsci e de Tillich do intelectual orgânico.

Mas, não podemos esquecer que para Tillich há limites para a ação do intelectual, pois a razão não é global. Ao contrário, cada criação do espírito é necessariamente afetada pelos limites da situação que a viu nascer. O espírito está sempre ligado a uma classe. No espírito está implícita uma situação particular de luta, de dominação ou de opressão, que conforma a própria consciência. Entendido assim, o espírito não é universalmente o mesmo em cada pessoa, exprime um ser social particular. A passagem à cultura não se faz simplesmente pela transmissão de bens culturais universais, mas pela formação inculcada por uma sociedade e uma situação de lutas determinadas, em meio a obras que exprimem ou exprimiram no passado esta possibilidade humana particular.19

Correlações entre Durkheim e Weber

E no que se refere à religião, podemos dizer sua proposta faz uma ponte entre Durkheim e Weber.20 Durkheim considera a religião a partir da idéia de vínculo social. A religião constituiria uma comunidade moral na os adeptos comungam um mesmo ideal. A palavra chave aí é solidariedade. E a solidariedade leva a uma memória coletiva, que organiza lembranças, ritualiza a crença. Os estudos de Durkheim sobre as sociedades têm o intuito de dar rumo a sua análise na qual a divisão do trabalho foi anteriormente sua preocupação central. Mais tarde, o diálogo com a antropologia será privilegiado e o universo da religião será pensado como consciência coletiva, abordagem que ele estende ao entendimento da nação, enquanto todo integrado no qual os indivíduos partilhariam uma mesma memória coletiva.

Weber trabalha em sentido diferente. A religião é instituição, a igreja, que atua como empresa de salvação das almas. É necessário, então, conhecer os meandros de sua doutrina, a organização de seu clero e a disputa entre visões e interesses distintos no quadro das crenças religiosas. Daí a atenção que dá às heresias, as rupturas no interior de uma mesma ordem ideológica, e sua relação com o poder de Estado.

Assim, Durkheim busca o que une e Weber realça o que separa. Mas Gramsci está interessado nas duas dimensões, no que une e no que divide. A religião, para ele, é uma concepção de mundo que elabora versões sobre a realidade, o que possibilita aos fiéis atuar segundo determinada ética, mas também os une no interior da mesma comunidade. Essa idéia atravessa as páginas dos Cadernos do cárcere, sintetizada na afirmação de que o catolicismo é o "intelectual orgânico" da Idade Média.

Como Weber, Gramsci estuda o papel dos intelectuais: seu cosmopolitismo, incentivado pelo poder de Roma, em relação à fragmentação do poder feudal e sua intolerância diante do que considera ameaça herética à unidade da Igreja. Mas, na qualidade de "orgânico", o catolicismo funcionaria como cimento cultural entre diferentes setores de uma sociedade hierárquica. Assim, a religião integra o que se encontra separado por lutas de interesses e discordâncias doutrinárias. A religião, no entanto, é parte de uma superestrutura mais ampla, a ideologia. É uma cosmovisão, tem valor cognitivo, interpreta o mundo ético, orienta a ação, e constrói uma moral que baliza a solidariedade dos fiéis. As ideologias possuem potencialidades diferentes destas, por isso Gramsci faz distinção entre filosofia e religião, e entre religião e senso comum, mas, ainda assim, todas as ideologias podem ser pensadas a partir dessa mesma matriz teórica.

Podemos, dessa maneira, dizer que as análises de Gramsci podem ser consideradas tanto no interior da tradição marxiana, como fora dela. Quando a ideologia, mas do que falsa consciência, é pensada como elemento cognitivo, uma concepção de mundo que brota da vida social, e se Gramsci, por ser marxista, elimina a idéia de transcendência e por extensão de natureza humana, a conclusão que se impõe é que não há sociedade sem ideologia. É interessante, que a partir do que vimos Gramsci prepara o caminho para outros teóricos do pensamento marxiano, como Althusser e seu "animal ideológico", e mesmo do estruturalista Lévy-Strauss e de seu "animal simbólico".

Há outro aspecto do pensamento gramsciano sobre a religião que remete à idéia de sociedade e que está calcado em seu historicismo. Como concepção de mundo, a religião afastar-se-ia da idéia de alienação, entendida na visão clássica marxiana como "falsa consciência", para ser apreendida como ideologia presente na história. Exemplo disso seria o catolicismo medieval, que possuiria valor positivo, era orgânico, e teria construído vínculo social entre as classes e os grupos sociais. Mas, no correr da Idade Média perdeu essa positividade, ao perder sua função de solidariedade, e passou a atuar como força reativa diante das mudanças.

Hegemonia e Estado ampliado

Para a construção de seu pensamento, Gramsci foge das construções ontológicas, e analisa a sociedade como conjunto de forças, imersas na história e marcada por interesses diversos. Podemos ver isso quando em carta à sua cunhada Tatiana Schucht. de dezembro de 1931,21 expõe seu conceito de Estado ampliado:

“Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção e a economia a um dado momento); e não como equilíbrio entre a sociedade política e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercidas através de organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.)”.

Ora, em geopolítica, hegemonia significa a supremacia de uma nação sobre outras, seja por sua presença militar, de coerção, seja pela presença política e cultural. Mas na política, o conceito formulado por Gramsci descreve a dominação ideológica de uma classe sobre outra, no caso da burguesia sobre os trabalhadores ou proletários.

Em Gramsci não é possível o domínio bruto de uma classe sobre as demais, a não ser nas ditaduras, ou seja, no Estado-coerção. Mas uma classe dominante para ser dirigente deve articular um bloco de alianças e obter o consenso passivo das classes e camadas dirigidas. Nessa busca de alianças, necessárias, a classe dominante sacrifica parte dos seus interesses materiais imediatos, vai além do horizonte corporativo, com a finalidade de construir uma hegemonia ética e política.

Ao estudar os mecanismos de construção desta hegemonia, Gramsci chega a um conceito fundamental na sua teoria política, a saber, o conceito de "Estado ampliado". O Estado moderno na Europa analisada por Gramsci não seria, para ele, apenas instrumento de força a serviço da classe dominante, mas força revestida de consenso, ou seja, combinaria coerção e hegemonia. O Estado ampliado pode, então, ser entendido como sociedade política + sociedade civil. E, nas sociedades de tipo ocidental, a hegemonia, que se decide nas inúmeras instâncias e mediações da sociedade civil, não pode ser ignorada pelos grupos sociais subalternos que aspiram a modificar sua condição e a dirigir o conjunto da sociedade.

O sentido de progresso civilizatório que a teoria gramsciana implica, reside no fato de que todo o movimento deve acontecer no sentido de uma absorção do Estado político pela sociedade civil, com o predomínio crescente de elementos de autogoverno e autoconsciência. A partir dessa teorização, Gramsci formula nos Cadernos do cárcere uma crítica ao stalinismo, a partir dos traços de hipertrofia do Estado soviético, que chama de "estatolatria", considerando que tal estado de ditadura sem hegemonia não subsistiria por muito tempo.

Assim o Estado se compõe de dois segmentos distintos, porém atuando com o mesmo objetivo, que é o de manter e reproduzir a dominação da classe hegemônica: a sociedade política (Estado em sentido restrito ou Estado-coerção) a qual é formada pelos mecanismos que garantam o monopólio da força pela classe dominante (burocracia executiva e policial-militar) e a sociedade civil, formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias, composta pelo sistema escolar, Igreja, sindicatos, partidos políticos, organizações profissionais, organizações culturais (revistas, jornais, meios de comunicação de massa, etc.).

E aqui merecem destaque os meios de comunicação, pois para sua época estavam ainda em sua fase embrionária, e a televisão nem sequer fazia parte dos projetos futurísticos da época. Isto só seria possível no início da década de 50. É exatamente através dos meios de comunicação modernos, que se dá a canalização da direção intelectual e moral, difundindo eficazmente as ideologias, da classe hegemônica vigente.

Assim, o Estado é a sociedade política gramsciano. E esta sociedade civil representa a nova determinação apresentada por Gramsci. Esta sociedade civil assume crescente dimensão no começo do século vinte, com os partidos de massa, sindicatos de trabalhadores e outras formas de organizações sociais. É após sua evolução histórica que a sociedade civil pôde ser capturada teoricamente. Antes disso, o Estado-coerção era muito superior em sua base material para se permitir tal percepção.

O que chama a atenção no modelo do Estado ampliado, desde o Leviatã de Hobbes até Marx, é o sentido unitário do Estado. Ou seja, até Marx, o Estado era entendido como algo diferente da sociedade civil, que seria extinto quando se extinguisse a divisão de classes dentro da sociedade, uma vez que era esta divisão que produzia a necessidade do Estado.

Em Gramsci, porém, quando agrega a sociedade civil ao Estado-coerção, nada fica de fora do Estado. Este todo, entretanto, não é homogêneo, é rico em contradições e é mantido por certo "tecido hegemônico" que a cada momento histórico é recriado em processo permanente de renovação dialética.

Assim, a luta pela construção de uma sociedade socialista, torna-se mais complexa e difícil do que imaginava Marx. Não basta ser classe dominante, tem que ser também classe hegemônica, dirigente. Desta forma o campo da luta entre as classes se amplia. E a democracia necessária ao socialismo será construída pelo bloco histórico hegemônico. Neste momento, a sociedade civil terá atingido uma base material superior a base material do Estado-coerção, atingindo o que Gramsci chama de "sociedade regulada".

Com a gradativa absorção da sociedade política pela sociedade civil, que atua através dos seus aparelhos de hegemonia, o Estado-coerção será substituído pelo Estado-ético. E esta figura remanescente do Estado-coerção, torna mais factível o modelo socialista e menos utópico em relação ao que planejara Marx.

Considerações finais

Nesta concepção de Estado, as democracias ocidentais estão próximas do socialismo. Mas fica uma questão: se a supremacia da sociedade civil se dará pelo consenso contra a coerção, onde fica o conceito de luta de classes, momento celular do pensamento marxista clássico?

Na verdade, para Gramsci a extinção da coerção do Estado se dará pela absorção deste pelo Estado-ético, ou seja, pela sociedade civil. Esta sociedade civil está inserida no Estado ampliado, e, por isso, não se pode falar de extinção do Estado, mas de uma reorganização do Estado onde um de seus componentes, atrofiada por falta disfunção ou necessidade, já que os conflitos passaram a ser administrados pela base material do consenso.
 
Há, porém, dois níveis superestruturais nas sociedades democráticas: o Estado ampliado, que é a sociedade civil, ou o conjunto dos aparelhos privados de hegemonia; e a sociedade política, ou o Estado no sentido restrito do termo, composto pelos organismos de coerção do aparelho burocrático-militar de dominação política. 
 
Nesse espaço a sociedade civil como o espaço do domínio da ideologia, portador material da hegemonia, encontra a possibilidade de legitimidade, de consenso, através dos aparelhos privados de hegemonia que propagam valores ideológicos. 
 
Assim, o conceito de estado ampliado procura apreender a configuração de forças sociais e políticas resultantes dos estados ocidentais do século vinte, idéia que confronta a proposta de Trotsky de revolução permanente a partir da idéia de hegemonia civil. Tal proposta-conceito parte da idéia de guerra de posição, que exige uma frente de combate no campo cultural, unida às frentes econômicas e políticas para a conquista da hegemonia pelas classes subalternas. A fórmula hegemonia civil propõe a participação das maiorias sociais nos aparelhos privados de hegemonia (sindicatos, partidos, escolas, igrejas, imprensa), que constituem as trincheiras de luta para obter posições de direção no governo da sociedade.

A proposta de extinção do Estado, no entanto, nunca é plena, pois sempre restará o governo para cuidar da sociedade civil. É claro que se entendermos assim podemos dizer que na distinção de função entre as pessoas que governam e as que vivem a vida da sociedade de consenso está presente ainda a dominação entre as classes e, portanto, os restos da coerção do Estado se farão presentes.

Em Gramsci está presente uma utopia que atravessou todo pensamento socialista: sonhar com o "bom selvagem" de Rousseau, em oposição ao "homem é o lobo do homem" de Hobbes. Esse Estado ético é uma idealização do ser humano que não peca, que poderia, então, viabilizar a construção de uma sociedade ética, igualitária e justa.

Mas, mesmo questionando Gramsci, podemos utilizar seus conceitos de estado ampliado e de hegemonia civil como estruturas de pensamento válidas para a análise social, não como proposta da utopia socialista, mas como ferramenta para delimitar e compreender o desenvolvimento das sociedades ocidentais contemporâneas, principalmente aquelas que se propõem democráticas.

Nesse sentido, entendemos porque Tillich diz que embora o socialismo e o proletariado estejam intimamente ligados pode existir tensões entre o momento universal e o momento particular. O momento universal pode formular exigências que ameaçam absorver o momento particular. O socialismo se tornará, então, uma idéia geral, desprovida de raízes sociais e perderá sua força histórica. Este é o perigo de um socialismo de intelectuais, que o proletariado sempre combateu com razão. Esse perigo provém da situação burguesa e de seu pensamento político particular. Ele procura a partir dessa situação burguesa elaborar uma ordem social futura fundada sobre a justiça, deixando de lado a situação proletária real.21 Sejam quais forem o sentido e o valor que se atribua a esta tentativa, ela não será socialista. A luta contra o socialismo utópico se apóia sobre a ligação indissolúvel que Marx viu entre socialismo e proletariado, que não pode ser quebrada por essa harmonia metafísica proposta pela globalidade burguesa.



Notas
1 Paul Tillich, “La décision socialiste” in Écrits contre les Nazis (1932-1935), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l´Université Laval, 1994, pp. 69-74.
2 Paul Tillich, idem, op. cit., p. 115.
3 Lucio Lombardo Radice, "Um marxista diante dos fatos novos no pensamento e na consciência religiosa", Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Ano III, Número 16, novembro/dezembro de 1967, pp. 6-7.
4 Radice, "Um marxista diante dos fatos novos no pensamento e na consciência religiosa", op. cit., pp. 10-11.
5 Hugues Portelli, Gramsci e a questão religiosa, São Paulo, Edições Paulinas, 1984, p. 32.
6 Portelli, Gramsci e a questão religiosa, op. cit., p. 188.
7 Portelli, Gramsci e a questão religiosa, op. cit., pp. 188-189.
8 Portelli, Gramsci e a questão religiosa, op. cit., p. 189.
9 Paul Tillich, "Christianisme e socialisme I", in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l'Université Laval, 1992, pp. 23-30.
10 "A filosofia da práxis pressupõe todo este passado cultural, o Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a revolução francesa, o liberalismo laico e o historicismo; em suma, o que está na base de toda concepção moderna da vida". Hugues Portelli, Gramsci e a questão religiosa, São Paulo, Edições Paulinas, 1984, p. 188.
11 Paul Tillich, "Christianisme e socialisme I", op.cit., p. 23.
12 Paul Tillich, "Masse et Esprit", op. cit., p. 81.
13 Paul Tillich, "Masse et Esprit", op. cit., p. 81.
14 Antonio Gramsci, Il Materialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce, Turim, Einaudi, 1966, p. 115.
15 Martin Buber, The Prophetic Faith, Nova York, 1949, apud León Epsztein, A Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, São Paulo, Edições Paulinas, 1990, p. 113.
16 Paul, Tillich, “Écrits contre lês nazis”, op. cit., p. 102.
17 Paul Tillich, "Le pasteur social" in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l'Université Laval, 1992, p. 290
18 León Epsztein, A Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, São Paulo, Edições Paulinas, 1990, p. 115.
19 Renato Ortiz, Notas sobre Gramsci e as ciências sociais, São Paulo, Revista Brasileira de Ciências Sociais, Out. 2006, vol.21, no. 62.
20 João Rego, Reflexões sobre A Teoria Ampliada do Estado em Gramsci, Recife, Caderno Cultural do Jornal do Commercio, 5/04/1991.
21 Paul Tillich, “Écrits contre les nazis”, pp. 84-85.