dimanche 12 février 2017

O derradeiro paradoxo

Existência e eternidade
Jorge Pinheiro*


Falar da ideia de imagem de Deus, imago Dei, da teologia do humano, e de seus desafios de ação e transformação da vida em direção ao reino de Deus nos remete à reflexão da própria eternidade. Ou seja, é como se voltássemos à pergunta: quem é o ser humano e o que caracteriza a nossa existência. É um assunto complexo, mas fundamental para quem deseja agir e construir o mundo.

A busca pela justiça passa por colocarmos no seu devido lugar a questão da identidade humana. Será que a existência se reduz a um conjunto de sensações, de emoções? Podemos admitir a identidade de uma pessoa se ela não puder ser percebida pelos sentidos? O cérebro é a causa da identidade?

Vou entrar com toda a cautela no tema. É gostoso conversar com o leitor. Se no corpo humano existem apenas fenômenos sucessivos, sem laço que ligue o passado ao presente, como se explicam o hábito, a associação de ideias e a memória? Ora, é necessário admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro e se liga aos atos que praticamos. Esta realidade é a própria identidade que expressa a existência de cada um de nós. E se existe a existência, tenho que perguntar o que ela é.

Tomando como modelo a complexidade do mundo, prefiro dizer que devemos ver que existem duas hipóteses: a existência se projeta na eternidade ou só existe o momento presente e o resto é aparência e virtualidade? Como combinar uma indigestão com o sentido pleno da vida? Somos substância extensa, divisível e palpável, seguimos e vamos além do momento. A existência é essa extensão e cada pessoa tem identidade na existência. Não é uma unidade numérica, mas una na sua diversidade. Mesmo quando a gente envelhece a permanece. Somos um ao longo do tempo e é esta unidade na existência que me confere identidade.

Talvez você leitor, questione: certo, você professor e pesquisador no campo da teologia, defende o princípio da existência que se projeta na eternidade. Você está dizendo que eu sou hoje e também amanhã. Um pedaço de mim envelhece, se desgasta, mas a identidade permanece. Não concordo com isso! Eu sei muito bem que o cérebro está ligado à vida mental. Se uma pessoa sofre uma lesão cefálica é quase certo que vai sofrer algum tipo de dano psicológico. O funcionamento do cérebro, as emoções e a memória estão relacionados. Embora não possamos genericamente correlacionar os estados psicológicos com os estados cerebrais, sabemos que tal correlação existe. Por isso eu digo que a vida mental tem origem no cérebro e que a existência enquanto extensão não existe.

Nada como conversar com gente inteligente. Por isso, deixe-me aprofundar os argumentos. A existência está unida ao momento e participa da vida, inclusive para realizar as suas operações. Mas, também é independente nas suas funções. Deste modo, a existência correlaciona todos os pensares e desejos. Assim, a existência não está imersa no tempo presente, é independente sob diversos aspectos. Lembro-me de que Aristóteles, o mestre grego, dizia que um ser se conhece por suas operações. Ora, de onde vêm as ideias? Ser inteligente, pensar, são atividades da pessoa ou da existência? É a existência que trabalha a inteligência. A matéria está presa às leis da matéria, mas a existência por ser extensiva tem maior liberdade diante dos impulsos da sensibilidade. A existência une, resume e transcende todos os arbítrios livres. A simplicidade que caracteriza os fenômenos da inteligência impede que afirmemos que o cérebro seja a causa do pensamento. Mas, é verdade, a inteligência precisa de um cérebro saudável para se expressar.

Pode ser que o querido leitor diga que gosta de uma parte do argumento, aquela em que fala da liberdade humana. Só que para falar de livre arbítrio não é necessário falar de existência? A existência é extensa, una e indivisível, então como pensá-la em relação com os cérebros? Ou seja, o que torna uma existência a mesma ao longo do amanhã e do depois de amanhã?

Aparentemente, aqui, os argumentos se esgotam e explicam os diferentes caminhos que buscamos para encontrar a justiça. Aqui está a divergência: o cérebro é ou não é o instrumento de que se vale a existência para expressar os pensamentos extensos? E se tomarmos como ponto de partida o sábio Aristóteles, quando disse que pensamos sem órgãos, que o entendimento não está ligado a nenhum órgão, e que pode trabalhar e existir separado do corpo...

Bem, se partimos de Aristóteles, vale a pena levantar uma hipótese. Na verdade, uma parábola criada por John Locke. Vejamos: um príncipe interrogou-se sobre como seria viver como um sapateiro. E um sapateiro sonhou em ter uma vida de príncipe.[1] Um dia eles tiveram a oportunidade de trocar todas as características mentais de ambos. O sapateiro passou a ter a memória, conhecimento e atributos pessoais do príncipe, cujas características mentais migraram para o sapateiro.  Depois da troca, a pessoa que agora é sapateiro lembrou-se ter sido um príncipe que desejava experimentar a vida de sapateiro. Ele disse: “Puxa, satisfiz minha curiosidade!” Reconheceu-se como príncipe e não como sapateiro. E vice-versa. Será isso mesmo?

Mas a estória se complica, porque o príncipe havia cometido um crime horrível, e para escapar da condenação resolveu recorrer à troca de cérebros. Após a troca, o crime foi descoberto, e os guardas vieram buscar o culpado. Sem saberem o que aconteceu, prenderam a pessoa que agora é o príncipe, que começou a gritar se dizendo inocente. A pessoa que agora é o sapateiro, que se reconheceu como o príncipe criminoso, saltou de alegria por ter escapado da condenação. Ora, se foi assim, era uma enorme injustiça, pois quem deveria ser condenado era a pessoa que agora é o sapateiro e não a pessoa que agora é o príncipe. Veja, a nossa identidade obedece à continuidade do cérebro. Uma pessoa no passado permanece idêntica a ela mesma no futuro se forem mantidas a memória e as características individuais dela. O príncipe que agora é o sapateiro é de fato o príncipe e, por isso, aquele que agora é o sapateiro é culpado pelos crimes do príncipe, uma vez que lhe é psicologicamente contínuo. E este deveria ser o veredicto correto: o sapateiro com o cérebro do príncipe é quem deveria ser condenado.

Mas há um ponto fraco neste argumento. Vamos complicar um pouco mais a parábola. Vamos acrescentar uma pergunta à estória: e se pudéssemos duplicar um cérebro e colocá-lo em corpos diferentes? Esses dois corpos seriam pessoas iguais ou diferentes? E se fossem diferentes, onde estaria a base da identidade da pessoa, o que faria dela uma pessoa diferentes da outra? Logicamente, não o cérebro, mas a existência que cada uma passaria a viver a partir dos cérebros colocados nos corpos. Com isso, quero dizer que a identidade de uma pessoa não reside no cérebro apenas, mas na existência que se vive. Ou seja, é a existência que constrói o nosso cérebro. Por isso, creio que talvez haja um ponto de contato entre nós. Talvez essa existência seja aquele sopro inicial lançado em nossas narinas pela eternidade, que será construção no caminhar de nossas experiências, emoções, sentimentos. E se for assim até mesmo a identidade é uma construção, algo que nos pertence enquanto potência.

Mais ainda podemos aprofundar a discussão. Vamos pensar numa estória contada pelo rabino de Nazaré, que falava do humano pobre e do humano rico. Essa estória traz imagens ilustrativas de julgamento e recompensa. Era uma estória construída para sábios e religiosos. Os sábios não pensavam existir vida eterna no sentido de recompensa e julgamento, apoiando-se na visão de que o repouso eterno é o lugar de todos os que morreram, sem diferenciação. Mas a estória estava dirigida também aos religiosos, que esperavam a instalação do reino eterno. As palavras tiveram uma audiência específica. A ênfase das palavras era referente ao julgamento e não à recompensa. Porque a penalidade do juízo não é o contraponto da recompensa, mas do reino do Eterno. Nestes termos, as palavras também visavam os sábios.

O reinar do Eterno já chegou e começou no ontem, está no hoje e se projeta no amanhã. Esta vida no reinar da eternidade é a vida das eternidades, que começa aqui e continua para sempre. Como a vida do reino é deixar que o Eterno reine nas gentes, a recompensa é a continuação do reinar da eternidade. A morte não interfere no reinar, apenas modifica a esfera de sua atuação. O ser humano após a morte tem suas emoções, histórias e memórias guardadas eternidade a dentro, a espera do ser levantado que lhe abrirá os céus e terra novos -- na intimidade do reinar da eternidade ou na separação do que é eterno. Para tratar a estória do homem pobre e do homem rico, é necessário ver que as palavras estão dirigidas a pessoas para evocar respostas.

Assim, é necessário compreender o contexto das palavras a quem estava sendo dirigida e com que objetivo foram empregadas. Algumas questões devem ser colocadas de antemão. O contexto maior começa fazendo uma diferenciação entre a prática dos religiosos e a forma de vida do reinar eterno. Há críticas ao espírito da religiosidade. A crítica enfatiza o tipo de vida do reinar da eternidade, a vida das eternidades, por sua qualidade. A crítica questiona a confiança de quem tem certeza de que estará presente no grande banquete do reino eterno: são os pobres, os coxos e os cegos que se encaminham ao banquete, porque as pessoas mais óbvias da lista de convidados estão preocupadas com outros assuntos.

Se você leitor, pensar com vagar, há um acordo nos argumentos aparentemente opostos. Um argumento é: se um louco pudesse ter transplantado o cérebro lesado por um outro que fosse são, com certeza pensaria de modo correto. Isto porque a desordem e a deterioração dos órgãos não lesam a inteligência em si mesma, mas somente a privam das condições e meios requeridos para o seu funcionamento normal. Pode-se dizer, então, que o cérebro é a interface entre o espírito do humano e o mundo material.

Aristóteles e os sábios judeus não admitiam nas pessoas dois princípios de vida, mas afirmavam que além da atividade consciente e psicológica, a existência inteligente possui também a faculdade de presidir às funções fisiológicas. Desta maneira, a existência seria o único princípio de toda a atividade vital das pessoas -- da vida vegetativa e sensitiva mas, também, da vida propriamente espiritual. A correlação íntima que existe entre as diversas operações da existência pensante, inteligência, sensibilidade e vontade, prova a unidade substancial do princípio de onde elas se originam. Esta mesma correlação se verifica entre as operações, as funções orgânicas e psicológicas.

Uma comoção violenta da existência pode parar a circulação do sangue ou pode gerar o medo que paralisa. Mas pode também, ao contrário, levar à confiança que sustenta as forças físicas. Ou seja, os distúrbios físicos atuam sobre nosso estado moral, e isso é reciproco. Demonstrada a união da existência, como se faz esta união?

Ora, e esse é um argumento fundante da realidade material, a pessoa não existe fora da existência. Da existência, o corpo recebe a sua unidade, a organização, a vida e atividades próprias, numa palavra, tudo o que faz dele humano. Assim, o corpo apenas se separa da existência pela morte, quando perde todos estes caracteres, todas as suas determinações específicas, dissolvendo-se nos elementos químicos de que foi formado. Quanto à existência, sem dúvida, existirá, na sua trajetória que engloba todos os humanos, sem corpo não há as faculdades que exigem o concurso dos órgãos corporais, como a imaginação, a percepção externa e a sensibilidade. Deste modo, o corpo é a matéria e a existência é a forma, e a união do corpo com a existência constrói um todo substancial e verdadeiro. É esta união no ser que faz da existência e do corpo um só princípio de ação, que faz com que não haja ação humana na qual o corpo não faça a sua parte, nem ação humana tão humilde e material que não repercuta na existência.

Donde, é certo que com a morte o corpo se dissolve. Acontecerá o mesmo com a existência e morreremos inteiramente? O que é a eternidade?

Aqui há um clamor da existência. Tais reflexões sobre a imago Dei e seu destino ecoam através de todos nós humanos, e nos levam a pensar que no Eterno está a sobrevivência pessoal e substancial, a identidade permanente da existência, que conserva as suas faculdades de amar e conhecer, sem as quais não há felicidade humana. No Eterno, a existência mantém a consciência da sua identidade, com as lembranças e responsabilidades do ontem que permanece, sem as quais não poderia haver nem recompensa nem julgamento: e em uma palavra, não existiria o princípio da justiça do Eterno. O corpo se desagrega e se dissolve logo que se separa do seu princípio de unidade, da sua forma substancial que é a existência dada pelo ruach do Eterno soprado sobre o humano em construção. A existência do ser como é não pode decompor-se, nem se desagregar, permanece no coração do Eterno. Este é o argumento ontológico da premissa de que a existência se projeta na eternidade. Isto porque, ontologicamente, se a partir da dimensão da essência, na eternidade, o Eterno profere yehi or, haja luz, e cria a dimensão da existência, o espaço-tempo, então, a existência passa a existir.

E se há o Eterno e sua lei moral na dimensão da existência, a justiça exige que o crime seja punido e a virtude seja recompensada. Neste mundo, nem a natureza, nem a sociedade, nem a própria consciência dispõem de atributos suficientes para recompensar plenamente a virtude ou punir adequadamente o vício. É necessário, portanto, que haja projeção da existência onde a justiça seja plenamente satisfeita e a ordem seja estabelecida. Este é o argumento moral, que demonstra a projeção da existência, mas não prova que esta existência seja ilimitada na sua duração. O argumento psicológico, que prova a perseverança da existência humana, assenta sobre o princípio de que o Eterno não se contradiz, por isso ao dar um fim a um ser, lhe dá também os meios de o atingir. Tudo na natureza do humano aponta para o fato de que é criado para atingir a felicidade. Mas, se não pode alcançá-la neste mundo, deve haver outra realidade onde tal projeto se concretize. E como a felicidade pressupõe expansão sem limites, segue-se que a realidade futura teria esta qualidade.

O humano aspira a um objeto eterno, a uma beleza, bondade e verdade absolutas, cuja posse nos deve fazer felizes. Nossas faculdades superiores possuem capacidade ilimitada, que não podem se satisfazer fora deste bem eterno, que não é outro senão o próprio Eterno. Mas, encontramos neste mundo o que sacia esta sede de felicidade humana, que preencha o vazio do coração criado para o Eterno? A natureza é tão limitada e o mundo tão pequeno, esta vida é tão curta e a realidade tão imperfeita! Queremos amar, queremos viver o mais possível, mas encontramos decepção, dor e morte. Assim, é evidente a desproporção entre os nossos meios e as nossas necessidades. O repouso eterno e alguns outros sinônimos que aparecem falam de um lugar para aqueles que deixaram o mundo dos vivos. O repouso eterno sempre foi visto com uma multiplicidade de facetas. Pode ser lugar de destruição, lugar de silêncio, reino dos mortos. Mas todos as leituras remetem à ideia de lugar dos que dormem. E também podemos falar de abismo, deserto e profundezas.

O contraste entre o desespero que se agarra às existências das pessoas e a esperança do reino do Eterno também está expressa no ser levantado para a vida – pois com os meus olhos O verei! Quando falamos do repouso eterno, as fronteiras da vida são definidas. As leituras da estória do homem pobre e do homem rico não visa realçar a dimensão espacial, mas a realidade relacional. Por isso, o repouso eterno não é tanto a dimensão do espaço e do tempo, mas estado de solidão, separação da vida. Não podemos esquecer que lei implica no conceito normativo de retribuição. O justo deveria receber recompensa material e o injusto carecia de bens, prazeres e saúde. Ricos eram naturalmente abençoados e dignos do reino.

Mas as leituras da estória do homem pobre e do homem rico desconstrói essa norma e nomeia o mendigo. É interessante notar que o pobre tem nome, é Lázaro, mas o rico não. Lázaro é Eliezer, aquele a quem o Eterno ajuda. Ter nome compõe identidade, nomeia o quem é quem. Há aí distinção entre o valor da vida do pobre em relação ao rico. Lá naquela época, o rico tinha destaque e atuava com desprezo frente ao mendigo. O Eterno, porém, o socorre. Donde, as críticas às práticas dos religiosos: a negligência para com os sem posses de bens e direitos; o fazer bem aos que podem retribuir, o orgulho e a infidelidade à lei, que exige amor ao próximo.

A estória fala da vida e levanta algumas questões que dirigem o pensar: ao renascer para a vida há consciência do estado, memória, juízo imediato, o que implica em alguma forma de retribuição. Há conforto para os justos oprimidos, não há mudanças no juízo, e a informação para receber o descanso está na lei do Eterno. Assim, na dimensão da eternidade há preocupação com aqueles descartados pela sociedade. Não há retorno para esta vida terrestre. A confiança no Eterno é o único mérito de homem pobre, que se expressa no nome que tem, Eliezer. A vida neste mundo é de pouca valia quando se passa à dimensão da eternidade.

Uma pergunta que provém da análise dessa estória pode bem ajudar a redefinir as prioridades do quotidiano. Que diferença faz a presente circunstância ou forma de atuar em termos de vida daqui a dez mil anos? Em certo sentido, é esta a pergunta que a estória faz aos religiosos. Outras registram a preocupação de ter um corpo inteiro quando formos levantados -- para tal devemos guardar qualquer parte do corpo que for amputada para ser incluída com o resto do corpo no sepultamento. Mas, parece que é melhor perder um olho se fizer a diferença no ingressar no reinar da eternidade. Melhor viver no reino coxo, cego, ou aleijado do que perder o reino por completo.

Mas, talvez leitor, você não concorde, porque aqui e no mundo, em todo ele, as gentes estão nas ruas, clamam por liberdade e justiça e aparentemente tais questões foram lançadas às calendas. Entendo o seu argumento, mas digo que, se ao nível da materialidade a ideia de imago Dei aponta para a construção do reino do Eterno no aqui e agora, ela não se limita a esta dimensão, já que a questão da justiça, por relacionar identidade e eternidade só pode se resolver numa equação: há uma eternidade, dimensão de sabedoria e justiça, onde nenhuma contradição é definitiva.

E, assim, a concepção de imagem de Deus, imago Dei, relaciona existência e eternidade e nos diz que a existência futura, projetada na eternidade, é infinita e sem limites, e sua realização é justiça, paz e alegria, em conformidade com os desígnios do Eterno.



* Jorge Pinheiro é Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2011) e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008), Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2006), Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2001) e Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (2001). É professor de tempo integral na Faculdade Teológica Batista de São Paulo e Jornalista Profissional. Atua na área de Ciências da Religião, com especialização nas relações entre política e religião; filosofia e teologia; judaísmo e cristianismo.







[1} Jorge Pinheiro, Identidade e eternidade, publicado no blog Cultura, política e religião, WEB: jorgepinheirosanctus.blogspot.com/identidade e eternidade, 17/01/2013.



A defenestração de Xixuaú

Os heróicos anabatistas não batizavam seus filhos pequenos.  Caso houvesse qualquer benefício no batismo infantil, as crianças anabatistas estavam fora dela. Se o batismo infantil fosse necessário para a salvação das crianças, então, os filhos dos anabatistas estariam perdidos. Mas eles não estavam nem aí. Por que?

A razão dos anabatistas recusarem o batismo às crianças pequenas não é segredo para ninguém.  Só quem tem consciência do bem e do mal e erra o alvo – e Paulo, o apóstolo, diz que todos erramos o alvo – precisa de regenerar-se em Cristo, e ser justificado pela graça, através da fé. Para os anabatistas, as crianças pequenas não se enquadram nessa compreensão: mesmo quando cometem erros, o fazem sem consciência de bem e mal.

É por isso que anabatistas e alguns dos seus companheiros de estrada afirmam que todas as crianças estão salvas, todas elas, porque ao não ter consciência moral de bem e mal em suas vidas estão cobertas pelo sacrifício vicário do Cristo.

Onde é mesmo que mora o pecado?
Por Jorge Pinheiro

A compreensão ordinária apresenta hadam, o cara que veio da terra, e hawah, a mulher que é vida, defenestrados da floresta por iavé, senhor do bem e do mal. Bem, defenestrados é um exagero, porque lançados pela janela seria impossível, porque floresta não tem janela. Mas a palavra defenestrados traduz bem o ato de violência e serve como ilustração sobre a apreciação que o senso comum faz da saída do casal de Xixuaú. Para quem não sabe, o rio Jauaperi é o coração da Amazônia e Xixuaú está lá, uma reserva com animais incríveis, vegetação exuberante e igarapés que deixaram hadam e hawah deslumbrados.

A teoria do pecado original é uma maneira transversa de ver a estória humana e flui em direção a um mar grande, uma outra teoria, a do estado de degradação da humanidade. Considera que a natureza humana foi corrompida por um erro original e que todo o humano está em estado de pecado porque é descendência de hadam e hawah. Às vezes, chamado de “o primeiro pecado”, “ou pecado de hadam” ou “o pecado dos pais”, a teoria toma formas diferentes na pluralidade do pensamento cristão, o que leva o pecado original a ser descrito de diferentes maneiras, indo da simples deficiência, como um aleijão, do tropismo ao pecado, de que somos flores do mal, o que pode ou não excluir qualquer idéia a priori de culpa, até a idéia de natureza degenerada e de culpa coletiva. Estas concepções levam a significados na teologia da essencialização do humano, particularmente em relação à graça e ao livre arbítrio.

Feios, sujos e malvados

“...propterea sicut per unum hominem in hunc mundum peccatum intravit et per peccatum mors et ita in omnes homines mors pertransiit in quo omnes peccaverunt...”

Parece que Ettore Scola tinha razão, teríamos sido condenados a viver em um muquifo? Homem, mulher, filhos e parentes, amontoados? E até com a ou o amante, junto, a brilhar na meia luz mortiça? A teoria do pecado original parte de algumas referências das escrituras judaico-cristãs, as epístolas de Paulo aos romanos (Rm 5.12-21) e aos coríntios (1Cor 15.22) e uma passagem do Salmo 51. Mas a primeira exposição sistemática sobre a condeção ao barraco foi proposta por Agostinho de Hipona, no século IV.

É importante notar, porém, que o referido texto fundante do relato, não apresenta menção ao "pecado original". E a palavra hadam, o da-terra, tem uma dualidade de sentido, primeiro enquanto pessoa do sexo masculino, mas também como agrupamento, espécie. Jean-Michel Maldamé ao analisar este duplo aspecto da universalidade do texto bíblico diz que hadam deve ser considerado como o pai de todos, uma personalidade coletiva que representa a humanidade. (Péché originel, péché d'Adam et péché du monde. Arquivo: http://biblio.domuni.eu/articlestheo/pecheor/po000002.htm).

O pensamento rabínico não concorda com a visão da danação de origem, que se reproduz ad aeternum. Ao contrário, a considera uma perversão da mitologia cristã. E tal compreensão também está ausente no Corão, embora não seja visto assim por todos os muçulmanos. O certo é que para Mahommed, hadam é o pai comum dos humanos e o primeiro profeta do Islã.

Mas a formalização do conceito, entre os cristáos do medievo, partiu de Agostinho, em sua leitura da epístola aos romanos, feita na época em que combatia o monge celta Pelágio, que via a criação e a existência como convite ao belo, puro e bom, mesmo depois do casal de índios ter deixado Xixuaú.

Agostinho, pateando nas pegadas de Orígenes, a partir do neoplatonismo, procurou responder a algumas questões: por que o mal existe? Por que a morte existe? E deu uma resposta instrumental, ao citar o apóstolo quando disse que se por um hadam o errar o alvo entrou no cosmo, e com o pecado a corrupção, assim a corrupção passou a toda a humanidade porque todo mundo erra (Rm 5,12).

O texto escrito à comunidade de fé de Roma, mencionado acima, fala do erro de hadam como a ofensa de uma pessoa, não dogmatiza o ato, como Agostinho se sentiu obrigado a fazê-lo, numa leitura sem paralelo com o texto de Bereshit.

Paulo disse que sua formação intelectual aconteceu aos pés de Gamaliel, ou seja, que ele era um fariseu. E por ser fariseu, usou a hermenêutica, middot, ensinada pelos perushim, fariseus. A leitura tipológica era uma regra dessa hermenèutica. O princípio é: "o gesto dos pais é um espelho para o filho”. Em outras palavras, "a experiência de tudo o que foi vivido pelos patriarcas, incluindo hadam, vai acontecer aos seus descendentes".

Paulo aplica este método em 1Coríntios 10, que é um midrash baseado em Números 20.8. Este é um processo hermenêutico que sobrevive no ditado rabínico: "A história não se repete, gagueja".

Agostinho chamou a ação do casal de pecado de origem. Para explicá-lo disse que se transmitia a todos os humanos, por geração, herdada como defeito. E seguiu as pegadas do preconceito contra a sexualidade humana, tão denegrida pelos estóicos. Tal interpretação choca-se com o texto de Bereshit, que fala da árvore como do "conhecimento do bem e do mal", expressão que traduz a idéia de consciência diante das alternativas da existência, que faz do humano sapiens e o separa do restante do reino animal. O emparelhamento do "pecado de origem" com as relações sexuais produziram uma rica e trágica mitologia cristã, incluído aí a idéia da maçã, para uns, e da vagina como abertura para o inferno, para outros. Mas só podemos falar de consciência diante do bem e do mal, a partir de Bereshit 3.7-13, que descreve a compreensão da incompletude existencial, que diante dos limites, dos quais a morte é o maior, lança o humano a sonhar com a imortalidade.

A presença da teoria do pecado de origem nas denominações cristãs foi sendo consolidada com o correr dos séculos. A teoria agostiniana teve influência em quase toda a teologia ocidental. No segundo Concílio de Orange, quando a liberdade de ação e pensamento de Pelágio foi condenada, parte da doutrina de Agostinho recebeu aprovação oficial. Mas o design da predestinação rígida foi rejeitado. Tal tentativa católica de criar um equilíbrio do agostinianismo esbarrou posteriormente na leitura reformada, que levou às últimas consequências a interpretação trágica do pecado de origem.

Os cristãos orientais, assim como os anabatistas no Ocidente, preferiram uma abordagem diferente para a questão da graça e do errar o alvo, apoiando-se na idéia de theosis, isto é, na busca da união com o Eterno, que foi chamada também de processo de santificação e glorificação. Os dois grupos se reconhecem mais nas teses de João Cassiano do que nas de Agostinho. Por isso, são considerados semi-pelagianos. Entendido aqui que o semi-pelagianismo, teoria que se desenvolveu no sul da Gália, no século V, por João Cassiano, Vicente de Lerins e Salvian de Marselha, traduz uma reflexão teológica onde o ser humano não é visto como mestre de sua salvação, mas que esta, dom gratuito de iavé, deve repousar sobre a resposta positiva do humano consciente de seu afastamento de iavé. Nesta letura, há uma distinção entre o começo da fé, o abrir-se ao chamado de iavé, enquanto ato da vontade livre, e o progresso da fé, obra divina de santificação do humano redimido.

O Magistério católico formatou o ensinamento sobre a transmissão do pecado de origem com as críticas de Agostinho a Pelágio e, depois no século XVI, opondo-se à Reforma protestante. Tal formatação não significou a inclusão de todas as idéias de Agostinho, já que condenou as idéias agostinianas presentes na teologia reformada e também no pensamento jansenista.

Assim o Catecismo da Igreja Católica descreve o pecado de hadam: "O homem, tentado pelo diabo, deixou morrer em seu coração a confiança em seu Criador (Gn 3.1-11) e, abusando de sua liberdade, desobedeceu ao mandamento de Deus". (CEC397 -- "Catechisme de l'Église catholique", primeira edição francesa 1992. Versão definitiva com modificações, 1997, Édition française Pocket, N°3315, 1999. ISBN 2-266-09563-3). E explicita as consequências:

Dessa maneira, o catolicismo diz que por seu pecado Adão, como o primeiro homem, perdeu a santidade e a justiça originais que havia recebido de Deus não só para si mas para todos os seres humanos. E que em sua progênie, Adão e Eva transmitiram a natureza humana ferida por seu primeiro pecado, portanto, privada da santidade e da justiça originais. A essa privação os católicos chamam de pecado original. CEC 416-417.

O catecismo diz ainda que o pecado original é chamado de "pecado" de modo analógico: é um pecado "contraído" e não "cometido", um estado e não um ato (CCC 404). Este estado é transmitido para a raça humana por "propagação", não por "geração", como proposto por Agostinho, que abriu a porta para a suspeita sobre a sexualidade. O Catecismo diz que não podemos especificar o modo como isso de deu.

Assim, a espécie humana seria em Adão um corpo doente. Por esta "unidade da humanidade" todos os homens estão implicados no pecado de Adão, como todos estão envolvidos na justiça de Cristo. No entanto, “a transmissão do pecado original é um mistério que não podemos compreender plenamente". CEC 404.

Para o Magistério católico, vencer o pecado de origem é possível graças a ressurreição de Cristo. "A vitória sobre o pecado conquistada por Cristo nos deu situação melhor do que aquilo que o pecado tinha tirado". A situação humana é descrita como se segue:

"Embora específica para cada um (Concílio de Trento: DS 1513), o pecado original traduz em cada descendente de Adão o caráter de falta pessoal. É a privação da santidade e da justiça original, mas a natureza humana não está totalmente corrompida: ela é ferida em suas próprias forças naturais, sujeitos à ignorância, do sofrimento e do domínio do morte, e inclinada ao pecado (esta inclinação para o mal é chamado de "concupiscência"). O Batismo, dando vida à graça de Cristo, apaga o pecado original e retorna o homem a Deus, mas as conseqüências para a natureza, enfraquecida e inclinada ao mal, persistem no homem e no apelo à guerra espiritual". CEC 405.

E diante disso, apresentaram uma explicação especial para o dogma da conceição de Maria, posição única porque ela teria recebido antecipadamente os frutos da ressurreição de seu filho: "A Virgem Maria foi, desde o primeiro instante da sua concepção, por uma graça e favor singular de Deus Todo-Poderoso, em vista dos méritos de Jesus Cristo, o Salvador do gênero humano, preservada imune de toda mancha do pecado original", conforme afirmou o papa Pio IX, na bula Ineffabilis Iavé, que proclamou o dogma.

A teologia ortodoxa também emprega a expressão "pecado original", apesar de não usar o sentido proposto pelo catolicismo ocidental. Adere ao ensino dos pais da Igreja Oriental, de que o pecado do primeiro homem, com todas as conseqüências e a punição que sofreu, hereditário à espécie humana. Uma vez que cada ser humano é descendente do primeiro homem, ninguém está isento da marca do pecado, mesmo que tal pecado tenha acontecido para que um dia todos possam viver sem pecado.

E assim, tem sido desde o primeiro pecado do primeiro nascido entre os homens. Este pecado tem passado, com todas as suas consequências, a todos os descendentes naturais de Adão, disse Cirilo de Alexandria (apud John Karmiris, A Synopsis of the Dogmatic Theology of the Orthodox Catholic Church, Scranton, Pa.: Christian Orthodox Edition, 1973, p. 35-36).

Os ortodoxos mantiveram-se relativamente afastados dos debates ocidentais sobre a questão do pecado original, e tomaram uma posição de equilíbrio em alguns aspectos. Reconheceram que o pecado de hadam teve consequências para o cosmo, mas rejeitaram qualquer noção de culpa coletiva. Além disso, excluiram a ideia de que a natureza humana é tão corrupta que é incapaz de exercer livre arbítrio, ou seja, conforme as teorias da predestinação particular e da corrupção total defendida por João Calvino.

Em relação à transmissão do pecado original, os ortodoxos afirmaram que a transmissão do pecado original pela hereditariedade natural deve ser entendida em termos de unidade da natureza humana, na consubstanciação de todos os humanos, que estão unidos pela natureza em uma entidade mística. E isto porque a natureza humana é única e indivisível o que faz com que a transmissão do pecado desde o primogênito de toda a raça humana seja compreensível: "a partir de uma raiz, a doença se espalhou para toda a árvore. Adão é a raiz que viu a corrupção”. (Cirilo de Alexandria, fonte citada).

Outra questão a ser levantada, ao ler Bereshit 3, é se podemos falar pecado no sentido agostiniano, pois Paulo no seu texto aos romanos apresenta a lei como limite dinâmico entre o bem e o mal.

Vejamos esta questão. Ao invés de, por que a corrpção?, vamos perguntar por que o mal? Ora, as escrituras judaico-cristãs nos dizem que os pais comeram uvas verdes e as crianças tiveram seus dentes embotados (Ez 18.2) e que iavé é zeloso e repreende os erros dos pais nas gerações que se seguem (Dt 5.9). Então, parece haver uma sequência no fazer humano, seja ela biológica ou cultural e, por isso, também há uma cobrança de iavé diante da repetição dos erros antigos pelas novas gerações. Ou seja, o mal perpassa a existência humana.

Agostinho relacionou este mal à sexualidade, mas Bereshit apresenta a alienação/mal como afastamento do Eterno. É intessante ver que as escrituras judaicas dizem que morre quem peca, e que o filho não herda a falha do pai, nem a culpa do pai cai sobre o filho, pois a justiça ficará sobre o justo e a impiedade do ímpio sobre ele próprio. (Ez 18.20).

Portanto, a transmissão de fatores genéticos existe no sentido biológico, natural, assim como a tranmissão cultural enquanto gaguejar da história, mas não há transmisão da danação espiritual fora da escolha e ação humanas. O que é um paradoxo diante dos textos do parágrafo anterior, mas mostra culpa e pecado, presentes em Bereshit 4.7, não como falha e imposição hereditária, mas como escolha ética, que fundamenta a agir livre.

“Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar”. Gn 4.7)

Só um detalhe: nada nos diz que o casal de índios era imortal. Tudo indica exatamente o contrário. Estão vai a pergunta: como a morte pode ser o castigo de iavé diante do exercício de liberdade presente em Bereshit 3.13?

E vemos que iavé, depois do ato de distanciamento, deste “o meu caminho eu mesmo traço”, não resolveu destruí-los. Na verdade, cheio de cuidados, costurou roupas de pele, pois hadam e hawahtiveram seus olhos abertos e viram que estavam nus. Assim, a preocupação do texto não está no pecado de origem, mas em outro lugar.

Duas questões devem ser levadas em conta na leitura: (1) o casal foi defenestrado da floresta ou deixou para trás a natureza de onde brotou? (2) O casal de índios fez algo que os animais não fazem, que a natureza não faz, agiu de forma livre. Donde a pergunta retorna: o casal foi defenestrado por que usou tal prerrogativa e teve que arcar com as consequências de deixar a floresta? Ou a alienação, o distanciamento, rompeu com sua condição existencial natural e fez dele homo sapiens sapiens, que tem metalinguagem, pensa seus próprios pensamentos e a projeção de seu agir?

A alienação tende a levar à úbere, conceito que traduz a idéia de algo fértil, fecundo, luxuriante, de uma pessoa da qual emana alguma coisa útil e vantajosa, mas que paradoxalmente é cheia de confiança em excesso, de orgulho, ou mesmo de insolência contra iavé. O apóstolo Tiago descreve o processo da alienação que dá origem à úbere e segue em direção à corrupção, da seguinte maneira: primeiro se deseja o que não deveria ser desejado. Mergulhado no emaranhado do desejo mal pensado, caminha-se na direção de sua realização, erra-se, então, o alvo existencial, o que leva à corrupção (Tg 1.14-15).

Ou como disse iavé a qayin, o-lança: se você tivesse feito o que é certo, estaria sorrindo, mas você agiu mal e, por isso, lehatati está na porta, querendo saltar em cima de você. Ele quer dominá-lo, mas você precisa vencê-lo. (Gn 4:7)

Hadam e hawah antes do distanciamento não tinham desenvolvido o pensamento hipotético-dedutivo. Metaforicamente, viam em preto e branco. Não eram inocentes no sentido de um recém-nascido, mas sua compreensão de mundo repousava sobre o pensamento lógico-formal. Iavé cuidava deles e se fazia presente na vida deles (Gn 2.15-17; 3.8-10; Ec 7.29). O casal no ato do distanciamento não sabia que estava a construir a consciência humana, porém, a partir da separação e da úbere percebeu que não era natureza e isso é constatado quando pensa a sua existência e se vê desnudo. Assim, de forma desigual e combinada, na dialética afastamento/ aproximação, ao deixar a natureza para trás, tem início a construção do pensar humano. Torna-se homo sapiens sapiens, faz metalinguagem, pensa seu pensamento e as construções do seu agir. Faz sua primeira experiência existencial e deixa Xixuaú. No ato abre a vereda do caminhar humano, e no engatinhar pleno de úbere perde o colo quente e tem início a difícil experiência da liberdade (Gn 3; Rm 5.12-19; Ef 2.12; Rm 3.23). Deixa o útero, nasce para a compreensão moral do fazer bem e do malfazer e passa a necessitar do exercício diário da livre escolha. Mas é esse caminho, que se por um lado traduz distanciamento, por outro possibilita a reaproximação, o reencontro, já num outro nível, naquele da escolha consciente, quando exclama como o apóstolo da dúvida... meu Senhor e meu Deus!


Textos para sua pesquisa


Robin Collins, Understanding Atonement: A New and Orthodox Theory, 1995 Veja também: http://home.messiah.edu/~rcollins/Philosophical%20Theology/Atonement/AT7.HTM e
http://home.messiah.edu/~rcollins/HOME.HTM).





De Charles Darwin a Teilhard de Chardin

O desafio da existência

"A linguagem humana é profunda como o mar, e as palavras dos sábios são como os rios que nunca secam” (Provérbios 18.4).

Nos séculos dezenove e vinte, o protestantismo fundamentalista e a ciência se confrontaram através de porta-vozes muitas vezes brilhantes e referenciais nessas duas áreas. E é esse confronto que José Mário Galdino aborda aqui com maestria, ao analisar dois textos que são expoentes de extremidades: Os fundamentos, discurso e relação entre religião e ciência moderna, obra maior do evangelicalismo conservador, e Religião e ciência: a relação entre a ciência moderna e religião, de Bertrand Russell.
Mas, nesta abertura à reflexão de Galdino, considero que dois pensadores são paradigmáticos de encontros e desencontros do desafio da existência, Charles Darwin e Teilhard de Chardin.
Charles Darwin continua polêmico,  nestes mais de duzentos anos após seu nascimento e mais de cento e cinquenta anos depois da publicação de A Origem das Espécies. Afinal, como sabemos, é difícil, principalmente para o fundamentalismo religioso aceitar que o ser humano, visto como elemento de um ecossistema, não é autônomo e independente em relação às outras espécies.

Da mesma maneira, o jesuíta Pierre Teilhard de Chardin, precursor do evolucionismo cristão, foi um cientista e teólogo proibido pela igreja. Só depois da morte, em 1955, aos poucos suas pesquisas e produção saíram do ostracismo. Hoje é leitura obrigatória quando em teologia se discute criacionismo e evolução.

Assim, as discussões sobre a origem da vida continuam a gerar polêmicas, principalmente porque muitos leitores da Bíblia tomam o relato de Gênesis, em seus três primeiros capítulos, como literalidade absoluta. Por isso, as ideias de Darwin causam tanto desconforto hoje como em 1858, quando apresentou a teoria da evolução à comunidade científica.

Quase setenta anos depois daquele desconforto, em 1926, Teilhard de Chardin, com 45 anos de idade, vivendo e trabalhando como paleontólogo em Tientsin, na China, escreveu à sua prima Margueritte Chambom: "Estou decidido a relatar o mais simplesmente possível a experiência ascética e mística que vivo e ensino há algum tempo. Não pretendo abandonar o rigor do cristianismo. Mas quero ir adiante".

Na época de Darwin, outra leitura sobre a origem da vida, defendida pelo pastor William Paley, ameaçou ganhar força: dizia que a adaptação dos organismos vivos era fruto de um projeto inicial, de um desenho inteligente. Paley procurava, dessa maneira, construir uma ponte entre as duas compreensões da origem da existência. A leitura de Darwin, porém, era radical: os seres vivos se desenvolveram a partir de mudanças aleatórias e as particularidades do humano se deram por razões adaptativas.

O Darwin da teologia

Para Chardin, “ir adiante” era uma postura de paleontólogo. Mas ele não era só um paleontólogo, era teólogo e místico. Assim, ir à frente significava que arriscaria se tornar o Darwin da teologia. E, em Tientsin, onde a Companhia de Jesus acabara de abrir um instituto de estudos superiores e para onde foi mandado numa espécie de exílio, pois lá suas ideias não repercutiriam, mergulhou em pesquisas de campo e produção teórica.

É interessante ver que as oposições que Darwin e Chardin enfrentaram foram semelhantes. Ainda hoje, mesmo na Europa e Estados Unidos, a teoria da evolução só é de fato bem aceita em meios científicos. Mas muito possivelmente as reservas por parte da população possam ser explicadas pelos equívocos e folclores atribuídos a Darwin.

Um exemplo é o chamado “darwinismo social", que afirma existir raças superiores e raças inferiores, e que foi amplamente utilizado pelo nazismo. Darwin não defendeu tais ideias. Ao contrário, quando deixou o Brasil disse que não voltaria mais a um país escravagista. Já folclore é a ideia linear da evolução, presente naqueles desenhos de um macaco de quatro, outro semi-ereto na frente e, por último, o homo sapiens. De acordo com Darwin, o homo sapiens não veio do macaco, mas de um ancestral comum tanto ao homo sapiens como aos macacos. E, mais ainda, não há uma espécie menos evoluída e outra mais evoluída: todas emergem como ramificações da vida que se espraia.

A Companhia de Jesus, sem desejar, colocou Chardin no lugar certo, pois em Tientsin estavam sendo realizadas escavações e expedições paleontológicas. De 1923 a 1946, ele permaneceu lá. E não se afastou de suas pesquisas. Aprofundou-se na ciência, a procura de um novo pensar teológico. E foi assim que surgiu sua principal obra, O fenômeno humano (1955), onde apresentou os conceitos que passaram a balizar o evolucionismo cristão. Mas escreveu também outros trabalhos importantes: O coração da matéria (1950), O surgimento do homem (1956), O lugar do homem na natureza (1956), O meio divino (1957), O futuro do homem (1959), A energia humana (1962), Ciência e Cristo (1965).

Chardin formatou novas leituras da evolução, da estrutura orgânica do universo e da tendência do ser a alcançar um estado cada vez mais orgânico, de unificação. O fim da existência passou a ser visto como a convergência das consciências individuais na consciência do centro Ômega, momento de completude do processo evolutivo.

"Uma só liberdade, tomada isoladamente, é fraca, incerta e pode facilmente errar nos seus tateios. Uma totalidade de liberdades, agindo livremente, acaba sempre por encontrar o seu caminho. E eis por que, incidentemente, sem minimizar o jogo ambíguo da nossa escolha em face do Mundo, eu pude sustentar implicitamente, no decurso desta conferência, que nós avançávamos, livre e inelutavelmente, para a Concentração através da Planetização. Na evolução cósmica, poder-se-ia dizer, o determinismo aparece nas duas pontas, mas, aqui e lá, sob duas formas antitéticas: em baixo, uma queda no mais provável por defeito, - em cima, uma subida para o improvável por triunfo de liberdade".[1]

Universo e consciência

O universo, para Chardin, está impregnado de pensamento, o que se torna patente com a evolução, através da crescente complexidade estrutural que a matéria alcança. Chardin intuiu laivos de consciência nos graus ínfimos da existência, no plano físico do universo. A evolução levou esta consciência a revelar-se mais avançada no ser humano. Ora, a organicidade do todo implica uma lógica, seria absurdo determo-nos neste ponto do caminho sem continuá-lo.

Assim, para Chardin, o fenômeno humano não completou a sua trajetória e não alcançou a necessária conclusão, mas tal movimento está implícito na lógica do desenvolvimento do próprio fenômeno. Então Cristo, para este cientista e teólogo, pode ser proposto à ciência como biotipo do fenômeno humano, como modelo que o humano poderá atingir com a evolução, e o Evangelho como a lei social da unidade coletiva representada pela humanidade do futuro. Esse é o processo da evolução, numa correlação das compreensões da ciência e da espiritualidade cristã. E o humano faz parte deste processo.

Chardin constrói, assim, uma teologia da evolução, onde a santificação se dá por meio da presença universal do pensamento imanente de Deus. É a sagração da evolução. Chardin caminhou no terreno do cristianismo, mas fez uma nova leitura da origem da existência, onde a estrutura mais íntima do ser é de natureza psíquica, para concluir que a vida é pensamento coberto de morfologia e a espiritualidade é o ápice da evolução.

Ou como diz numa oração: "Rico da seiva do Mundo, subo para o Espírito que me sorri para além de toda conquista, revestido do esplendor concreto do Universo. E, perdido no mistério da Carne divina, eu já não saberia dizer qual é a mais radiosa destas duas bem-aventuranças: ter encontrado o Verbo para dominar a Matéria, ou possuir a Matéria para atingir e receber a luz de Deus".[2]

Galdino constata que a racionalidade na modernidade e o cientificismo não foram capazes de alcançar todos os registros da vida social, e que o movimento fundamentalista não se rendeu às novidades da modernidade. Ou seja, ainda hoje religiosos cristãos, católicos e protestantes adotam a mesma postura dos fundamentalistas do início do século passado.
O livro de Galdino, por sua profunda pesquisa de autores e pensares, é uma referência, mas também um grito profético, no sentido de que novos ventos cheguem repletos de tolerância para que ciência e religião possam estabelecer suas práticas, reservando espaço para o diálogo. O que nos leva a ler o trabalho de Galdino com entusiasmo e também esperança.
Creio, assim, também, que a partir das vidas de Darwin e Chardin podemos dizer que pensar a existência humana é tarefa aberta e permanente para a ciência e a teologia. E que, mais do que perder-se em formulações dogmáticas, quer na ciência ou na teologia, o desafio humano é a busca para compreender como (ciência) e por que (teologia) estamos conectados à existência e ao Universo.

Jorge Pinheiro
Professor Doutor em Ciências da Religião



[1] Teilhard de Chardin, “La formation de la Noosphère”, Revue des Questions Scientifiques, Louvain, jan. 1947, pp. 7-35.The Future of Man, New York: Harper & Row, 1964.
[2] Teilhard de Chardin, La Messe sur le Monde, Ordos, 1923.