mardi 3 mai 2022

Cristianismo e ética solidária

A ética solidária e cristianismo social 
-- Leituras tillichianas para o Brasil 

Jorge Pinheiro, PhD 


O fundamento da unidade espiritual é a religião. O fracionamento espiritual que acontece em determinadas épocas traduz fracionamento econômico, choque e distanciamento entre classes. E nas épocas em que temos um processo cultural de unidade temos também uma nova base de unidade e solidariedade social e econômica. 

Por isso, na história, rupturas espirituais vêm associadas a rupturas econômicas, da mesma maneira que processos de unidade espiritual vêm associados a processos de unidade econômica. 

Nesse sentido, há um processo de desenvolvimento que se realiza de forma desigual na história, mas que correlaciona mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais. Diante de tais circunstâncias, o cristianismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha: ou participa do processo, inspirando e atuando a favor desse desenvolvimento, ou se retrai e entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades nas quais está inserido. 

Seja qual for a opinião sobre a relação ética entre cristianismo e capitalismo, um fato deve ser ressaltado: é necessário e possível para o cristianismo manter um relacionamento com todas as formações econômicas e sociais, em especial com aquelas que buscam a igualdade de direitos e possibilidades para o conjunto da população, já que a rejeição do princípio da igualdade social de direitos e possibilidades em nome do cristianismo fere a universalidade do cristianismo. 

E se o cristianismo não somente deve, mas pode manter um relacionamento com economias e políticas solidárias, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeiro: devem e podem os governos que buscam tais transformações ter um relacionamento construtivo com o cristianismo? 

Para muitos, as concepções não-cristãs, muitas vezes materialistas, negam a possibilidade dessa aproximação, mas se entendemos que mesmo em Marx as concepções políticas de fato não são materialistas, mas econômicas, vemos que tais concepções mostram uma relação de causalidade entre fundamento econômico e organização espiritual da cultura. E, ao contrário, tal fundamento dá às ciências do espírito uma possibilidade metodológica extremamente fecunda, que não tem nada a ver com ateísmo ou materialismo. 

Quanto às organizações de esquerda, sejam elas socialistas ou não, é necessário ver a diferente atitude que têm em relação ao cristianismo e em relação às estruturas hierárquicas das igrejas. A história das igrejas cristãs no passado, e muitas vezes no presente, é passível de críticas. Suas alianças e opções fizeram como que se afastassem e dificultassem seus relacionamentos com parte da população excluída de bens e possibilidades. Tal situação facilita e potencializa a pregação do materialismo. 

Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que o materialismo seja um fenômeno constitutivo do socialismo. Antes, é uma herança da cultura burguesa cética e crítica. Essa herança foi adotada pelas correntes proletárias militantes e pelo socialismo na crença de que ajudaria a extirpar a ideia de opressão e abriria o caminho para a construção de um novo mundo, mais digno e justo. 

Embora, haja razões históricas para criticar as igreja cristas, os movimentos e partidos políticos socialistas erram quando negam a existência da base comunitária e solidária do ideal cristão, tal como pode ser percebida na pregação do Jesus apresentado nos Evangelhos. Quer dizer, ainda há em setores dos movimentos e partidos políticos socialistas uma hostilidade contra o cristianismo, hostilidade esta que fere a ética social, tão próxima daquelas propostas levantadas pelas comunidades cristãs dos primeiros séculos. 

Mas, se as ideias sociais dos movimentos e partidos proletários e socialistas não traduzem oposição essencial, de princípio, com o cristianismo e com as igrejas que vivem o mandato evangélico, os cristãos podem sem nenhum temor ter uma atitude positiva em relação a estes movimentos e partidos. 

Atitude positiva deve ser entendida como a realização do princípio da solidariedade cristã, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram exclusão e miséria. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico e de ações para a construção de uma outra ordem social, global sim, que inclua excluídos e periféricos. Isto porque as transformações sociais não são só necessidades e tarefas de operários e trabalhadores fabris, mas ideal ético que traduz anseios e esperanças dos mais variados setores da sociedade. 


[Sugiro a leitura de Paul Tillich, Le socialisme in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992].