jeudi 15 décembre 2011

O nascimento de uma criança


 
O povo que andava na escuridão viu uma forte luz: 
a luz brilhou sobre os que viviam nas trevas” (Isaías 9.2).

É comum todos os anos ouvirmos estas palavras do profeta Isaías, nas comemorações do nascimento de uma criança judia. E a cada ano, estas palavras têm um novo sabor e fazem reviver o clima de alegria e caminhada, que é típico do nascimento.

Ao povo atribulado e oprimido, que andava em trevas políticas e sociais porque estava sob o jugo do Império romano, apareceu uma luz forte. Sim, esta luz forte, irradiada da humildade de uma criança nascida numa vila sem importância – Beitlehem, em hebraico, A Casa do Pão, em português  -- é a luz do sentido pleno da vida. Se a primeira luz foi a do Big Bang, conforme nos conta o livro das Origens (1.3), mais brilhante é a luz que traz o sentido da vida àquele que reconhece a miserabilidade e clama por justiça!

O nascimento é a festa da luz da eternidade entre nós. Na criança d´A Casa do Pão, a luz primeira volta a resplandecer no céu da existência para dissipar as nuvens da alienação. O brilho do triunfo do que é necessário e perene aparece no horizonte da história para propor um caminho novo, a marcha na construção de um novo mundo de alegria, justiça e paz!

A travessia noturna


“Tu, ó Eterno, aumentaste esse povo e lhe deste muita felicidade. Eles se alegram pelo que tens feito, como se alegram os que fazem as colheitas ou como os que repartem as riquezas tomadas na guerra” (Isaías 9.3).

O anúncio vale também para nós, homens e mulheres do alvorecer do terceiro milênio. A comunidade reúne-se em louvores para escutar a boa nova do nascimento de uma criança. Em meio ao terror do Império presente nas vidas, da noite fria no deserto, o nascimento é momento de memória.

Após longa espera, irrompe o esplendor do dia novo. Nasceu a criança, a eternidade conosco! Nasceu aquela que foi anunciada pelos profetas e invocada pelos que andavam nas trevas. Na escuridão e silêncio da vida clandestina, a luz faz-se mensagem de novo caminho.

Mas não contrasta esta certeza do novo caminhar com a realidade histórica em que vivemos? Diante dos fatos que ouvimos, esta palavra de um novo caminho parece sonho. Mas é nisso mesmo que se encerra o desafio do caminho, tornando este anúncio simultaneamente consolador e exigente. O caminhar novo nos envolve na exigência solidária do que é necesário e perene e ao mesmo tempo nos leva a apoiar o diferente e o igual, sempre gente como nós.

Solidários no caminhar


“Deus revelou a sua graça para dar salvação a todos”. (Tito 2, 11).

Nesta memória do nascimento, nossos corações estão inquietos e preocupados com a persistência, em diversas regiões do mundo, de guerras, penosas carências, tensões sociais. Procuramos uma resposta que mobilize e transforme.

O texto da carta de Paulo a Tito recorda-nos que o nascimento da criança traz a liberdade aos extremos da terra e aos momentos da história. Para todo homem e mulher nasce a criança que tem os títulos de conselheiro, forte, eterno, príncipe da paz. (Isaías 9.6). Ela traz a resposta que necessitamos, que desfaz temores e dá coragem para a ação do caminhar em direção ao novo aparentemente impossível.

Nesta noite de memória torna-se mais firme a confiança na força redentora da palavra que se fez carne e habitou entre nós. Quando as trevas parecem prevalecer, a criança nos diz para ir em frente! Ela derrota o poderio do mal, liberta da escravidão da morte e nos convida ao banquete da vida.

Sou chamado a me mobilizar em força solidária, assumir a parceria pelo mundo novo. Sou chamado a vencer o mistério da iniqüidade, ser testemunha de solidariedade e construtor da paz. Vamos, a partir da memória, aos campos d`A Casa do Pão para encontrar a criança, mas também para com ela encontrar outras gentes, irmãos e irmãs feridas no corpo e oprimidas no espírito. A festa da luz é travessia noturna em direção ao sentido pleno da vida!

Teologia e política (3)

Reflexões sobre a construção 
histórica do Partido dos Trabalhadores 

Terceira parte 
Algumas questões teóricas 
sobre o movimento de massas 
Paul Tillich

A palavra massa, para Paul Tillich [Masse et Esprit, Études de philosophie de la masse[1]], transformou-se em slogan político e social. Expressão esta que conota superioridade e idolatria. Por isso, quando se deseja discutir seriamente o conceito massa é necessário definir seus contornos e esfriar um pouco a fervura do slogan[2]. 

Segundo Tillich, há dois conceitos de massa, um formal e outro material, o primeiro de ordem psicológica e sociológica e o segundo de ordem histórica e social[3]. Em termos formais, a massa consiste numa associação de pessoas que, na associação, deixam de ser indivíduos. Sua individualidade se perde e ele se submete à coletividade. A pessoa se torna um átomo, desprovido de suas qualidades, seu movimento próprio, e se transforma em pura quantidade subordinada ao movimento da massa. Através da psicologia das massas pode-se ver como a alma perde sua forma individualizada uma vez que toma a forma da massa e como o indivíduo entra em contradição com ele próprio, já que é um átomo da massa ou um ser bem singularizado.[4]

Tillich considera que no movimento psíquico da massa alguns elementos se separam e se isolam, adquirindo eficiências por eles próprios. Isto porque um indivíduo é o resultado de uma longa evolução interior e sua alma está ligada a milhares de liames à vida da alma em sua totalidade, que assim torna-se autônoma [5]. Na massa, as forças de inibição, de reflexão e de matizações caducam. Tudo se transforma. Assim, podemos resumir essas transformações em duas leis. A lei da imediaticidade, segundo a qual a massa não reflete, mas é. Ela tem uma existência objetiva, não subjetiva como afirmou Hegel, ela é em si, não para si [6]. 

A massa não sabe porque ela faz aquilo que faz. Quando acede a ela própria é sempre através de certos indivíduos, um orador ou chefe. A massa é imediata, vive inteiramente o presente, sem ligações com o passado ou o futuro, sem lembranças ou reflexões. Suas motivações são irracionais. Mas para Tillich, a lei da imediaticidade explica o desabrochar dos instintos biológicos imediatos, que estavam inibidos. Também mostra a existência de um princípio espiritual imediato que se faz presente, que pode ser traduzido como o abandono ao instinto do momento em direção à disponibilidade da revelação espiritual do presente, revelação de uma espiritualidade subjetiva impura [7]. 

Ou seja, a irracionalidade das motivações pode dirigir ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. A outra lei da psicologia das massas, segundo Tillich, é a lei da amplificação. Se a vida espiritual do indivíduo perde suas inibições, se tal fato se repete em cada indivíduo presente, como num alternador, o vivido por um, suscita em outro experiência idêntica, porque a massa vivencia ela própria o ser massa. Essa lei nos leva a dois aspectos da vida da alma, o aspecto emocional e o aspecto intelectual. 

Em todo movimento da massa podemos observar a força do entusiasmo, a amplificação das paixões, da coragem, que podem levar ao seu sacrifício e destruição. Do lado intelectual, a lei da amplificação age de forma mais discreta, porque o processo de reflexão não convém à massa por causa de sua complexidade[8]. De certo ponto de vista, explica Tillich, o indivíduo está mais alerta que a massa, mas a massa pode se elevar bem acima das consciências subjetivas, com suas intuições mais simples, mas também maiores e também com sua clarividência disso, que prepara o espírito objetivo no momento presente[9]. A amplificação pode levar ao monumental e ao heroísmo, mas também ao demoníaco e à destruição. E as intuições da massa podem se conformar ao espírito ou lhe ser refratário.[10]

As leis da psicologia das massas são leis naturais, afirma Tillich. Elas são sempre válidas e necessárias onde uma pluralidade se encontra reunida. Elas têm valor para todos os estamentos sociais, para um grupo de marginais, assim como para uma assembléia de nobres. Com ironia superior, elas regem uma reunião de convencidos individualistas, assim como explicam o sentimento de superioridade existente na palavra massa, quando usado como slogan [11]. Segundo Paul Tillich, no conceito material de massa, a essência de um grupo de homens determinado é ser essencialmente formado conforme a psicologia das massas[12]. 

Por isso, no sentido histórico do termo, a massa, quer sejam classes ou ordens, raças ou círculos, partilha do destino de ser excluído de toda formação espiritual individual. Vemos, então, que para Tillich a imediaticidade da massa faz com que desabroche nela instintos biológicos que estavam inibidos no indivíduo, o que traz à tona um princípio espiritual imediato: a disponibilidade à revelação espiritual do momento presente. 

Essa imediaticidade é o que leva a massa ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. Ao lado da imediaticidade, os aspectos emocional e intelectual são amplificados. As forças do entusiasmo e da coragem são amplificadas de tal modo que podem levá-la ao sacrifício e destruição. Assim, a massa se eleva acima das consciências individuais com intuições simples, mas com clarividência disso. Este processo prepara o espírito objetivo no momento presente. Quando objetivamente a massa vive esse processo de espiritualização, nela, religião e cultura se misturam. A esse primeiro momento de evolução da massa Tillich chama de massa mística. 

No contexto geral de uma análise do socialismo, não se pode deixar de levar em conta que a evolução histórica dá nascimento a diferentes tipos de massa, conforme o modelo de desenvolvimento das relações entre religião e cultura.[13] O primeiro estado consiste em uma unidade onde os dois ainda não se distinguem. Uma segunda etapa é marcada pela autonomia da cultura: assim, ela se diferencia mais e mais da religião, a ponto de gerar a secularidade moderna. Mas esta ruptura e separação são catastróficas tanto para a cultura como para a religião. E serão então superadas pela etapa final da teonomia, caracterizada pela presença de conteúdo religioso em todas as formas autônomas da cultura[14]. 

Podemos facilmente reconhecer os elementos desse esquema na descrição que Tillich faz dos diferentes tipos de massa. A massa mística corresponde à religião de origem: é a fusão dos indivíduos numa única comunidade que engloba tudo. Vem em seguida a etapa da autonomia, onde os indivíduos se diferenciam cada vez mais da comunidade de origem, até tornarem-se completamente independentes e separados. Mas ainda é massa sem forma e cultura, que não se colocou em movimento e caminhou para um estado de individualização. Essa é o estado de massa técnica ou mecânica, característico da moderna sociedade industrializada[15]. 

A partir daí surge a perspectiva de uma etapa final onde a massa e a individualidade pessoal formarão uma nova união, uma síntese nova, chamada massa orgânica, que corresponderá ao ideal da teonomia. Logicamente, nem sempre se caminhará em direção a este ideal: mas o tempo histórico que orienta nessa direção é o da massa dinâmica[16]. Dessa maneira, para Tillich, a massa dinâmica é sempre revolucionária, não unicamente no sentido político do termo – inclusive este é o sentido menos freqüente --, mas sempre em um sentido de fé espiritual e social. É necessário que ela seja revolucionária, porque o sentido de seu movimento é precisamente ir além do estado de massa e todas as formas que são responsáveis por este regulamento [17]. 

Assim, para Tillich o movimento da massa dinâmica parte da massa mecânica e é essencialmente um movimento de libertação: o movimento da massa dinâmica parte da massa mecânica, já existente ou em perigo de aparecer, e visa a supressão da massa, visa à massa orgânica, não importando que esse começo seja ou não atendido.[18]

Vemos aqui que Tillich tem uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê a massa em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Sem desejar fazer um confronto entre os dois pensadores, tocamos apenas no ponto que metodologicamente nos interessa: a vanguarda não se limita ao militante ou intelectual, é um processo maior que tem na massa orgânica uma dupla ação, de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite. 

Uma tal visão abre perspectivas interessantes na análise e compreensão de diferentes situações históricas, em especial do momento vivido pelo Brasil no final dos anos 1970. A questão da transformação da sociedade, a luta pela democratização e a formação do Partido dos Trabalhadores são compreendidos melhor através do caminho metodológico construído por Paul Tillich em seus escritos socialista. E como ele afirmou, todas as questões convergem para uma mesma resposta: a humanidade deve ter origem nas profundezas de um novo conteúdo, onde será superada a oposição entre massa e personalidade. Onde um novo conteúdo será produto da graça e do destino.[19]

Notas
[1] Publicado em Berlim e Frankfurt por Edições da Comunidade Operária, em 1922, e mais tarde em Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de L’Université Laval, 1992, pp. 48-112. 
[2] Idem, op.cit., p. 75. 
[3] Idem, op.cit., p. 75. 
[4] Idem, op.cit., p. 76. 
[5] Idem, op.cit., p. 76. 
[6] Idem, op.cit., p. 76. 
[7] Idem, op.cit., p. 76. 
[8] Idem, op.cit., p. 77. 
[9] Idem, op.cit., p. 77. 
[10] Idem, op.cit., p. 77. 
[11] Idem, op.cit., p. 77. 
[12] Idem, op.cit., p. 77. 
[13] Jean Richard, Introduction au Tillich Socialiste, La masse prolétarienne, in Paul Tillich, Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de L’Université Laval, 1992, p. XLI. 
[14] Idem, op.cit., p.XLI. 
[15] Idem, op.cit., pp. XLI-XLII. 
[16] Idem, op.cit., p. XLII. 
[17] Idem, op.cit., p. XLV. 
[18] Paul Tillich, Masse et Esprit in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de L’Université Laval, 1992, p. 81. 
[19] Idem, op. cit., p.72.