mardi 10 novembre 2020

A vida além da vida

O rabino Moshe Chaim Luzzatto, mais conhecido como Ramhal, certa vez nos convidou a manter um diálogo entre nosso espírito e nossa psiquê. E nesse diálogo o espírito pergunta: é o meu desejo entender o texto de Devarim/ Deuteronômio 4.39, que diz: você deve saber em seu coração que o Senhor é Deus. Ora, este é um princípio da emunah, da fé como posicionamento. E diante da pergunta, a psiquê respondeu: para onde você quer ir? E a partir daí o diálogo aconteceu, onde o espírito constatou que os princípios da fé são válidos para ele também no que se refere a direção a tomar. No entanto, alguns são válidos e outros não. Afinal, estaria ele ainda circunscrito às leis da emunah?

Donde o intelecto perguntou quais eram verdadeiros para ele e quais ele compreende. O espírito respondeu, a existência de haShem, sua unidade, sua eternidade, o fato de que é incorpóreo e separado de toda a materialidade. E aceito também a criação do universo, a profecia, a profecia de Moisés, a imutabilidade da Torá e sua origem divina. Todos esses princípios fazem parte da emunah e eu os entendo e não preciso de explicação. Por outro lado, a providência, o princípio de recompensa e punição, a vinda do mashiah e a ressurreição dos mortos ... Eu tenho a emunah para o dever religioso, no entanto, desejo encontrar uma explicação satisfatória para eles.

Ora, estamos diante das diferentes leituras que fazemos enquanto pessoas e de nossas experiências neste mundo do aqui e agora. Por isso, podemos dizer, como já o fizeram alguns rabinos, que o Olam haba, o outro mundo, são os frutos de nossos esforços e nossos trabalhos neste Olam haze, neste mundo aqui. Por isso, o kadish nos direciona no sentido de sermos consagrados para servir a haShem com todo o coração, com toda a nefesh e com todos os nossos meios. A recompensa acontecerá no Olam haba de nossas boas ações terrenas, a única riqueza que carregamos. Isso é garantido e certo, e a recompensa no Olam haba será o ser levantado para a vida eterna. Essas foram palavras do rabino Shimone Zini.

Mas podemos falar de dois mundos futuros. Um é o mundo além do tempo messiânico, aquele que Adonai permitiu para todas as pessoas que Ele criou: para aperfeiçoar limites e reparar fraquezas. Segundo o Talmude, algumas pessoas conseguem isso por sua piedade, outras pelo arrependimento e outras pelo sofrimento. O tempo que Ele estabeleceu é de seis mil anos, de acordo com as palavras dos sábios. Então Ele renovará o Seu mundo para que os homens sejam como anjos e não como burros; eles vão ser despojados de sua matéria e as seus limites: a inclinação para o mal e seus resultados, conforme o rabino Ramhal, no Daat Tebunot.

O Talmude ensina que o mundo vai durar seis mil anos. Serão dois mil anos de idolatria para nos ensinar o obscurantismo e impacto devastador sobre a Terra e o universo; dois mil anos de Torá para nos ensinar a verdade e sua importância para a condição humana e dois mil anos do tempo do mashiah, que intercalará tempos de escuridão paradoxal e luz, para dar às pessoas uma última chance de desfrutar de seu livre arbítrio, a fim escolher livremente o bem, e para cada povo ter a sua oportunidade de escolher a verdade divina. Mas durante o sétimo milênio de história este mundo será destruído. Um mundo cuja forma grosseira desaparecerá em favor de uma forma sutil que se tornará refinada nos milênios que se seguem e que constituem o essencial da eternidade por vir, o Ôlam habam de que nos fala Daâth Tébounoth, 3.40.

Se tomamos o Olam haba em seu primeiro sentido, o além imediato, enquanto continuidade da morte terrena, ou em seu segundo sentido, de além do fim dos tempos messiânicos, a noção de vida após vida, corresponde no judaísmo à fé na imortalidade da pessoa. 

Esta compreensão é, sem dúvida, a parte mais complexa da tradição judaica. Mas tal fato não é frustrante para um fiel sefardita, como seu avô, pois aceitamos com humildade a submissão livre a haShem, ao reconhecer nossas limitações à condição humana. Assim, o jardim do Éden, o tempo do mashiah, a ressurreição dos mortos, são conceitos que, com abordagens diferentes e sentidos diferentes, nos falam da vida além da vida, deste ir além.

Deve ficar claro que há um cosmo, uma dimensão da vida além da vida e que toda ação humana tem repercussões para além do aqui e agora. O ruach, o sopro do haShem em nós, colocado ainda no jardim do Éden, é centelha de haShem em nós, é um sopro da eternidade em nós. Quando o espírito deixa a matéria, permanece em relação com este corpo, desde que não seja colocado no chão. O espírito flutua acima do corpo, contempla, vê e ouve tudo o que está acontecendo ao redor da antiga matéria. Então viaja pelo corpo em sua decomposição, durante os doze meses após a morte, até o colapso total da matéria. Tal concepção da vida após a vida permite considerar a vida neste Olam haze de forma madura e séria, especialmente quando em uma idade jovem é ensinado aos descendentes que aqueles que nascem vão morrer.

Os dias da nossa existência terrena não podem ser desperdiçados como fósforos que são queimados e depois jogados. As alegrias humanas muitas vezes são propósito legítimo, quando repousam sobre a dignidade, a pureza e a santidade. Mas são alienação quando se distanciam do real significado e propósito da existência neste Olam haze. É por esta razão que Shlomo, rei de Israel, foi considerado sábio por excelência e nos disse que é melhor ir a uma casa onde há lamentação, do que à uma casa onde há festa, porque na primeira casa vemos o desenlace e daí extraímos importantes lições. 

A lição é que não se deve sentir angústia ou medo da morte. Esta é uma passagem esperada, para a qual todos devemos nos preparar, mas que por si só não envolve nada de dramático para aquele ou aquela que continua sua viagem. Fica no entanto, a saudade legítima para aqueles queridos que estão no Olam haze, por causa da separação. Por isso, bereshit nos diz que haShem viu tudo o que havia feito e considerou que era eminentemente bom. E o rabino Meir disse que o era bom significa que aqui estava a morte e ela era boa. Portanto, não é a morte como tal que é temida, mas sim o modo de preencher nossa Olam haze. Por isso, dizemos que como ninguém sabe o dia em que dará início a sua travessia, vivamos o bem no eterno, pois uma hora de arrependimento e boas ações vale mais do que toda a vida do mundo futuro. E uma hora de felicidade no Olam haba vale mais do que toda a vida deste mundo.

E o rabino Eliezer Hakappar nos disse que aqueles que nascerem eventualmente morrerão, e os mortos serão ressuscitados, os vivos serão julgados, saberão, ensinarão e reconhecerão que Ele é aquele que é haShem, Adonai que forma, Adonai que cria, Adonai que compreende, Adonai que é Juiz, Adonai que é Testemunha, Adonai que é Parte no Julgamento, Adonai que pronunciará a sentença. Antes dele não há iniquidade, nem esquecimento, nem aceitação de pessoas, nem corrupção, porque todas as coisas são dele. Saiba que tudo é levado em conta. E que sua propensão não lhe tranquiliza fazendo você acreditar que o túmulo constituiria para você um refúgio. Pois é a despeito de você que você foi formado e sem o seu consentimento que você nasceu. E é a despeito de você que você vive, sem o seu consentimento você morrerá e apesar de você terá que prestar contas de seus atos perante o "Rei dos reis dos reis", o Santo abençoado seja ele, nos diz Pirké Aboth, na última Michna 4.

Se entendemos a permanência da ruach é para melhor capacitar-nos a apreender a vida terrena. Apesar de seus limites, desapontamentos, enfermidades, provações, a vida humana constitui a passagem única e indispensável da preparação neste Olam haze, tornando possível merecer a vida no Olam haba.

"Quando chegar a hora em que seremos cortados como espigas de milho, vamos cair sem medo, pois o campo de nossa ruach, fertilizado pelo penhor da dor e do orvalho do choro, nos enriquecerá com a colheita mais preciosa do que a dos campos terrestres”, disse o rabino Daniel Renassia.

Esta emunah no Olam haba é uma força vital em nossa rota terrestre, repleta de limites. Além disso, descobrir um homem de fé chamado Jó, é fonte reconfortante para os desamparados diante das injustiças humanas, dos ciúmes, das mentiras e do ódio.

A vida tem sentido e valor. Mas este sentido e valor cresce quando a motivação é norteada pelo viver os mandamentos da Torá, mas não morrer por eles. A Torá é para a vida que se projeta no além da vida. É por isso que os justos, mesmo quando estão mortos neste aqui e agora, são chamados de vivos no Olam haba, enquanto os injustos, mesmo quando estão vivos no aqui e agora são chamados mortos no Olam haba.

Há uma ideia muito bonita no judaísmo que diz que este mundo é como se fosse um vestíbulo do mundo futuro. Por isso, devemos nos arrumar no vestíbulo para poder entrar no palácio. 

Pessoas e povos afirmam que existem outras formas para acessar o Olam haba, com ou sem HaShem. Essas compreensões, tipicamente humanas, são vistas como aboda zara, a adoração da idolatria. E de acordo com a Torá, a falha original do primeiro homem feito à imagem de Adonai, era de que não deveria comer do fruto conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que comesse, morreria. E, interessante é que depois que comeu, hadam começou a perceber que, de acordo com as previsões anunciadas pela serpente, ele havia se tornado capaz de criar mundos, permitindo-lhe discutir, desafiar ou mesmo se opor à vontade de haShem, sem que Adonai o cortasse da sua vida terrena. Este erro de julgamento de hadam foi a punição por sua transgressão, mas também o ponto de partida das justificativas morais que darão origem a todas as diferentes formas de idolatrias.

A vida é também vida além da vida. Vida além da vida tem uma primeira relação com a materialidade humana, mas contém também o ruach, componente da eternidade no humano. Assim, seu destino, que repousa sobre seu livre arbítrio, na conclusão de sua missão terrestre, é a travessia em direção ao mundo eterno.

A travessia pode ser parto doloroso, mas também passagem gloriosa, que preside à inauguração de uma nova vida. Essa noção de durabilidade é reforçada pela esperança, que nasce da emunah, na ressurreição dos mortos, conforme nos diz o profeta Daniel 12.2.

Se o Olam haba parece difícil de ser alcançado e merecido, é certo que Adonai nunca apresenta desafios que o humano não possa enfrentar e vencer. Para aqueles que não pertencem ao povo da estrela, haShem definiu as lei de Noé, que tem como central uma ideia: que o humano se guie pela integridade de sua consciência, e respeite esses sete preceitos que representam os próprios fundamentos da moralidade humana: (1) Não praticar idolatria, (2) não blasfemar contra Adonai, (3) não cometer homicídio, (4) não roubar, (5) não cometer adultério e não manter relações incestuosas, (6) estabelecer tribunais e (7) não molestar os animais, ingerindo um órgão retirado em vida.

E fica uma lição, o humano foi criado para a alegria no haShem e para apreciar o esplendor da Sua presença, porque essa é a verdadeira delícia e o maior prazer, superior a todos os prazeres existentes. O propósito deste prazer é o mundo porvir, que foi criado e preparado para esse propósito. No entanto, o caminho que nos conduz com segurança parte deste mundo, nos disse o rabino Ramhal.

Assim, a Torá ensina que o dia virá quando o Senhor reinará para sempre, Shemot, Êxodo 15. E Adonai será rei sobre toda a terra. Naquele dia Adonai será Um e Seu Nome será Um, conforme nos disse o profeta Zacarias (14).





Nós batistas, ontem e hoje

A identidade batista, ontem e hoje


Quando em qualquer parte do mundo, sejam quais forem as circunstâncias, uma comunidade de fé praticar as doutrinas do Novo Testamento teremos aí uma igreja batista.

Através dos tempos, os batistas se notabilizaram pela defesa de sete princípios:

1º - A aceitação das Escrituras Sagradas como regra de fé e conduta.
2º - O conceito de igreja como comunidade local, democrática e autônoma,
formada de pessoas regeneradas e biblicamente batizadas.
3º - A separação entre Igreja e Estado.
4º - A liberdade de consciência.
5º - A responsabilidade individual diante de Deus.
6º - A autenticidade e apostolicidade das igrejas.

E sétimo -- Nos caracterizamos também os batistas pela cooperação entre as igrejas. Não havendo poder que possa constranger a igreja local, a não ser a vontade de Deus, manifestada através de seu Santo Espírito. 

Os batistas, baseados no princípio da cooperação voluntária das igrejas, realizam uma obra geral de missões; de evangelização, de educação teológica, religiosa e secular; de ação social e de beneficência. 

Para a execução desses fins, organizam associações e convenções, não tendo estas, no entanto, autoridade sobre as igrejas; devendo suas resoluções ser entendidas como sugestões ou apelos.

Para os batistas, as Escrituras Sagradas, em particular o Novo Testamento, constituem a regra de fé e conduta, mas, de quando em quando, as circunstâncias exigem que sejam feitas declarações doutrinárias que esclareçam os fiéis, dissipem dúvidas e reafirmem posições. 

Os batistas são, depois do pentecostalismo, o movimento mais numeroso do protestantismo radical, compreendido como um cristianismo biblicista, conversionista e militante. É a principal confissão protestante norte-americana e tem um crescimento significativo no Brasil. Em termos gerais, desenvolveu-se a partir de cinco traços distintivos:

1. A prática do batismo por imersão da pessoa convertida, 
como testemunho de compromisso e fé
2. As Escrituras como regra em matéria de doutrina, ética e fé
3. Eclesiologia congregacionalista e de proclamação, 
com autonomia da assembléia local composta de militantes engajados
4. Teologia de inspiração calvinista, com destaque para a conversão pessoal
5. Defesa da liberdade de consciência e de expressão, 
e oposição à interferência da autoridade civil ou eclesiástica na vida da igreja.

Esse protestantismo radical se caracteriza, assim, pela referência à tradição confessional, mas também por uma plasticidade marcante. 

A nível global, a Aliança Batista Mundial reúne cerca de 35 milhões de batistas e busca definir políticas de evangelização, reconciliação entre batistas, defesa da liberdade religiosa e assistência às igrejas batistas localizadas em regiões carentes do mundo. A Aliança Batista Mundial foi fundada em Londres em 1905.

Os precursores dos batistas foram, ideologicamente, os anabatistas da época da Reforma. Congregações anabatistas da Holanda no início do século XVII e grupos de puritanos independentes ou congregationalistas, que fugiram da Inglaterra para a Holanda fazem parte dessa construção histórica. Influenciados pelos anabatistas, puritanos independentes convenceram-se de que o batismo cristão é apropriado apenas para adultos convertidos, como testemunho de seu compromisso e fé pessoal.

De volta à Inglaterra, este grupo formou a primeira congregação batista em 1611, com John Smyth. Duas décadas depois, Roger Williams (1639) formou a primeira congregação batista em Providence (Rhode Island). A partir de então, os batistas, já com influências da teologia calvinista, cresceram rapidamente nos Estados Unidos. A democracia informal centrado nas Escrituras tornou-se uma referência política na construção de igrejas em situação de fronteira, sob nas regiões rurais do Sul, Meio-Oeste e Extremo Oeste norte-americano. Assim, essas regiões foram povoadas pelos batistas, uma tendência que se mantém até hoje.

Os batistas olham a vida cristã como fé pessoal, serviço e testemunho. Isso faz dos batistas militantes da causa protestante radical. Cada pessoa deve nascer de novo, estar convertido para uma nova vida e a partir daí congregar numa igreja. Para os batistas, a igreja local é o resultado da conversão e da graça, uma comunidade de crentes reunidos: não é a mãe da experiência cristã, nem fonte de graça, como na tradição católica.

A igreja local é santa porque a fé e a vida de seus congregados são santas. A igreja local, pelo menos em princípio, não tem nenhuma autoridade sobre seus membros, em sua liberdade de consciência ou em assuntos eclesiásticos.

Devido à sua plasticidade, os batistas temos mostrado características opostas na história. Pela ênfase na autoridade da Bíblia, na compreensão puritana estrita, na ética vitoriana, e compreensão da absoluta necessidade da fé e santidade pessoal, a maioria dos batistas é conservadora, tanto nas questões de fé, como de moral. Mostram-se temerosos diante das filosofias e teologias modernas e da política liberal. O evangelho e a Bíblia são interpretados literalmente, dentro dos princípios tradicionais batistas. A ética cristã são os princípios básicos das Escrituras, que nenhum batista deve abandonar. Por esta razão, muitas convenções batistas se recusam a aderir ao movimento ecumênico e ignoram o evangelho social, e sua preocupação com a justiça econômica, política e social.

Porém, devido a ênfase na liberdade de consciência e de crença pessoal e a importância da vida cristã longe da autoridade eclesiástica, de dogmas e rituais, os batistas são líderes do liberalismo, parece contraditório, mas não é, tanto a nível político como teológico. Muitos seminários e igrejas batistas são conhecidas por estilo de adoração, atitudes sociais e teologias liberais. Os batistas foram importantes na criação do movimento ecumênico no início do século XX e por suas participações nas controvérsias que dominaram o século XX nos Estados Unidos: entre teologia moderna versus fundamentalismo, entre o evangelho social versus o evangelho individual, e entre ecumenismo versus exclusivismo.

Mas, os batistas tiveram sempre papéis de destaque nos dois polos, apesar de contrários. Exemplo disso foi Walter Rauschenbusch, pastor e teólogo batista e um dos teóricos do Evangelho Social. E no Brasil podemos citar o Manifesto dos Ministros Batistas de 1963, de claro conteúdo político e social a favor das reformas de estrutura no país.

O século XXI confronta. Diante disso, questões entram na ordem-do-dia: sabemos mais ou menos o que fomos e um pouco do que somos, mas pouco do que seremos. O pensamento batista tem raízes na revolução liberal inglesa do século XVII, porém somos também herdeiros da Reforma radical e da Reforma magisterial. Mas foi no século XVIII, sob o Iluminismo, que o pensamento batista europeu lançou raízes se espraiou. 

E desempenhou papel na história do pensamento na Inglaterra, na Europa continental e nos Estados Unidos. Combinou Escrituras judaico-cristãs e espiritualidade e no século XIX deu ao mundo pensadores de vanguarda, ao construir o que veio a se chamar Evangelho social.

Ser batista brasileiro, hoje, não é algo definido e preciso, principalmente quando se entra na discussão se somos ou não protestantes e se pertencemos ou não ao tronco dos cristãos radicais da Idade Média. Por isso, os batistas são olhados como seitas autônomas sem representatividade civil e opositores de toda e qualquer expressão do Estado. 

Idéia que em parte se justifica se olharmos os batistas a partir da ótica de Ernst Troeltsch e Max Weber. E como é difícil definir a diversidade, já que encontramos movimentos batistas fideístas, fundamentalistas, liberais e racionalistas, vamos fazer o caminho da análise daquilo que nos é próprio, ou seja, das características do ser batista, que atravessa e permanece em todas as leituras batistas.

O pensamento batista busca uma fé inteligente. Nega o divórcio entre a fé e o pensamento, embora reconheça a importância das correntes cristãs que olham a fé como ruptura da lógica, distanciamento da razão, e salto na irracionalidade do mistério insondável. 

Assim, o pensamento batista procura a consistência e as correlações entre fé e razão. Por isso, interage com a cultura. Sem negar que existe o mistério, e que não se pode confundir fé e razão, entende o pensamento como construção que não pode prescindir nem da fé, nem da razão.

O Brasil nesses tempos da alta modernidade combate o pensamento que se quer autônomo, que tende à massificação das ideias. A sociedade brasileira na alta modernidade tem optado por reproduzir a globalização da indústria de entretenimento e da comunicação de massas. A vida proposta pela alta modernidade, para além dos problemas estruturais da sociedade brasileira, nos faz inquietos e superficiais. Visa o espetáculo e se perturba diante de perguntas que procuram razões. Desafiados a avançar, os batistas entendem que aquilo que parece não necessariamente é, e o que não parece, pode ser. Não dá para depositar confiança nas expressões culturais desta alta modernidade.

A fé exige um pensar que não se atrofie e a espiritualidade não é um adversário, mas um aliado indispensável, precioso, na construção do sentido da vida. A razão sem fé, embora verdadeira, não é razoável, torna-se racionalismo. A razão, convenientemente conduzida, reconhece que há coisas que estão além dela, e que é incapaz de penetrar a contento no mistério da vida e do universo. Aceita seus limites e, portanto, a existência de dimensões para além dela. No entanto, mantém abertura e espírito de crítica. Isso impede que ter fé seja dizer ou fazer qualquer coisa.

Atualmente, temos a piedade emocional exuberante, quente. Cultiva afetos, mas teme o pensamento. Temos, então, dogmatismo, fundamentalismo, que ensina a olhar, a fazer, a dizer, formata opiniões blocadas sobre o mundo. Oferece certezas e, por extensão, conforto e preguiça. Foge das questões e perguntas dolorosas. Essa forma de piedade repousa sobre o realismo literalista. Mas temos um outro lado, a vida no questionamento permanente, que duvida da possibilidade da verdade, embora busque freneticamente a descoberta. Repousa sobre o ceticismo nihilista. 

Ora, fé implica em crença, paixão e sentimentos, é experiência com o mistério do Eterno. As Escrituras judaico-cristãs desafiam o amor humano a se realizar diante do Eterno com coração, força, mas também com o pensar. E é esse pensar que aprofunda, fundamenta e direciona a fé. Essa compreensão se contrapõe ao realismo literalista e ao ceticismo nihilista.

O estudo histórico das Escrituras judaico-cristãs, principalmente o Novo Testamento, é uma necessidade. É necessário conhecer a antropologia e a cultura judaicas e não somente o grego koinê. O Novo Testamento não é revelação ditada, mas testemunhos da revelação. É um conjunto de escritos que nos dizem como pessoas, os discípulos, receberam e compreenderam o que Jesus disse e fez no meio do povo.

Jesus mesmo não escreveu. Sabemos de sua doutrina e vida por aquilo que os discípulos relataram. Suas idéias encontram-se nas suas histórias. Dondem temos a documentação neotestamentária, como textos fundantes, para conhecer Jesus de Nazaré e sua pregação. Mas a investigação do Jesus histórico pode continuar, ao menos no nível acadêmico, se utilizarmos outras fontes e métodos, que remetem ao estudo dos textos e contextos, embora muitas vezes ofereçam mais hipóteses do que certezas.

A tradição cristã dá mais importância à pessoa de Jesus do que aos seus ensinos. O Credo apostólico diz a respeito dele: "... foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu aos infernos, subiu aos Céus ...". Menciona assim o Cristo da fé, encarnação, morte e ressurreição, mas omite seu ministério.

Os eventos crísticos, que são ensinamentos, histórias e relatos, muitas vezes são esquecidos. Não podemos construir uma fé transformadora apenas sobre o Credo. A vida do Evangelho está no que Jesus disse, na forma como apresentou a ação e a presença do Eterno. Assim como sua concepção da existência, sobre o significado da fé. Para o ser humano, a mensagem é tão importante quanto o mensageiro. Em teologia dizemos que Cristo cumpre três funções, um função real – reina sobre o mundo --, uma função sacrificial -- foi oferecido em sacrifício para a salvação dos seres humanos – e uma função profética -- prega e ensina.

Certas correntes do catolicismo romano e ortodoxo privilegiam a função real. O protestantismo magisterial realçou a função sacrificial. Mas não podemos deixar de lado, como que esquecida, sua função profética.

A crucificação de Jesus que respondeu a circunstâncias históricas, dentro do projeto de redenção, é uma necessidade teológica para a salvação dos seres humanos. Passagens neotestamentárias falam da morte de Jesus como sacrifício oferecido ao Eterno, como pagamento pela alforria. Mas esse projeto redentivo estaria capenga sem a função profética, que fez dele messias e salvador.

A mensagem de Jesus foi apresentda dentro das categorias judaicas do pensamento de seu tempo. Temos, então, de traduzi-la, ressignificá-la, não para deformá-la, mas para mantê-la relevante e viva. Para que possa ser aplicada à realidade brasileira, e seja aplicada a nossa existência.


Jorge Pinheiro, pastor batista