vendredi 25 mars 2016

El nostre estimat de Barcelona

Fotos Naira Pinheiro

































Paul Tillich, o mundo em colapso e a esperança socialista

Teologia e política ... Jorge Pinheiro, PhD

Paul Tillich nasceu num lar luterano, na cidade alemã de Starzddel, perto de Berlim, em 1886. Em 1910, graduou-se doutor em Filosofia, em Breslau, e em 1912 licenciou-se em Teologia, em Halle. Durante a I Guerra Mundial serviu como capelão no exército alemão. Psicologicamente, foi muito afetado pela visão das mortes e da destruição em massa causadas pela guerra. Sofreu dois colapsos nervosos e sua fé num cristianismo calcado no romanticismo alemão do século dezenove desabou. Ele conta como foi esse sofrimento, que produziu a grande transformação de sua vida: 

“A transformação ocorreu durante a batalha de Champagne, em 1915. Houve um ataque noturno. Durante toda a noite, não fiz outra coisa senão andar entre feridos e moribundos. Muitos deles eram meus amigos íntimos. Durante toda aquela longa e terrível noite, caminhei entre filas de gente que morria. 

Naquela noite, grande parte da minha filosofia clássica ruiu em pedaços; a convicção de que o homem fosse capaz de apossar-se da essência do seu ser, a doutrina da identidade entre essência e existência... Lembro-me que sentava entre as árvores das florestas francesas e lia “Assim Falou Zaratustra”, de Nietzsche, como faziam muitos outros soldados alemães, em contínuo estado de exaltação. Tratava-se da liberação definitiva da heteronomia. O niilismo europeu desfraldava o dito profético de Nietzsche, ‘Deus está morto’. Pois bem, o conceito tradicional de Deus estava mesmo morto”.8 

O mundo em colapso e a esperança socialista 

Para Tillich, o mundo entrara em colapso, e com ele o otimismo naquela cultura que tinha depositado sua confiança no ser humano e acreditado no progresso da civilização. "A experiência dos quatro anos de guerra -- escreveu Tillich --, abriu diante de mim e de todos de minha geração tal um abismo que nunca pôde ser fechado novamente". E foi em Verdun que Tillich situou sua ruptura com o liberalismo teológico alemão. Como vimos, ele fala com 

(Nota -- 8 “To be or not to be”, Time Magazine, 16.03.1959, Vol. LXXIII, No. 11, pp. 47ss. Tillich foi capa desse número da revista, com chamada especial: “A theology for protestants”). 

tristeza daquela noite que, em meio ao trovejar dos canhões, depois de procurar durante horas dar um pouco de conforto aos moribundos que chegavam ao acampamento, ao amanhecer, exausto, dormiu entre cadáveres. E ali morreu seu idealismo teológico. Há nesta descrição da batalha de Verdun uma releitura das memórias de Goethe quando este fala da batalha de Valmy: "Neste lugar e neste dia começa um tempo novo da história do mundo". Goethe disse que Valmy foi o começo do século dezenove, marcado pela fé na razão, na paz, na justiça e na democracia, convencido de que a cultura européia chegava a um momento especial de sua história. Em Verdun, Tillich descreve o fracasso desta fé, a queda desta convicção e, também, o fim do século dezenove.9 

A experiência que Tillich viveu como capelão durante a I Guerra Mundial, não foi simplesmente uma experiência particular, mas em última instância a compreensão da condição humana, enquanto demonstração da situação espiritual do momento que se abria para o mundo. Nesse sentido, seu destino pessoal coincide com o destino de milhões de pessoas e da Europa inteira. Com a guerra, a derrota da Alemanha e o fim da monarquia, algo novo emergiu do desastre, surgiu das profundezas, da dimensão da profundidade do inconsciente de milhões de pessoas. Se durante alguns anos, o destino da morte cobriu uma geração inteira, derrubando por terra o edifício do século dezenove, desse caos surgia a possibilidade de mudança, de construção de algo novo. 

O julgamento da I Guerra Mundial levou Tillich à compreensão de que não se pode divinizar nenhuma construção política. Mas ao se fazer o julgamento da guerra, também se faz o julgamento das possibilidades humanas. Ora, tal julgamento tem um aspecto positivo, que Tillich chamará de kairós10: é um momento de graça onde a possibilidade humana se torna plena de força divina. Mas este kairós é diferente das propostas apresentadas por aqueles socialismos que se posicionam a favor da guerra, pois o kairós aponta para a possibilidade de um mundo novo. E a esperança que ele gera é maior que a simples ilusão humana, pois esta esperança tem o próprio Deus por fundamento, já que aqui a graça gera o kairós. 

(Notas -- 9 André Gounelle, Fernand Chapey: “Paul Tillich: esquisse biographique”, Montpellier, Institut Protestant de Théologie, Etudes Théologiques et Religieuses/ETR, 1978/2, 53, pp. 223-224. 10 Paul Tillich, “Kairos I” in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec: Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 116-117. Der Widerstreit von Raum und Zeit, Gesammelte Werke, VI, Evangelisches Verlagswerke Stuttgart, 1963, pp. 53-72. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier). 

Herdeiro do pensamento alemão do século dezenove, Paul Tillich é devedor do idealismo alemão, em especial de Hegel e Schelling,11 mas é a partir de 1919, na Alemanha destruída pela I Guerra Mundial que começa a trabalhar sobre a idéia de uma teologia da cultura. Aspecto de destaque em sua obra é o fato de ter elaborado uma teologia da história, já que recusou exercer “a tarefa de mero coletor e divulgador de fatos e dados. O importante era tornar vivo o que já passou, era olhar o passado para compreender a situação presente, era aliar os fatos a uma interpretação”.12 

Para ele, cultura tem uma leitura diferente daquela que terá para a antropologia da segunda metade do século dezenove, que inclui a produção humana em toda a sua riqueza e diversidade. Para ele, cultura é a produção da intelectualidade européia ilustrada. E por baixo das manifestações culturais específicas se faz presente a religião. Assim, a religião expressa o incondicionado, dando margem a manifestações especiais, que se apresentam enquanto cultura. Daí seu interesse em manter um permanente diálogo com artistas, escritores e com o mundo social-democrata da época. Dessa maneira, durante toda sua vida Tillich será um teólogo da cultura e um filósofo da religião. 

Para Tillich, depois da I Guerra Mundial, era preciso abandonar aquele Deus concebido pela teologia do século dezenove e fazer o cristianismo responder aos problemas e às exigências contemporâneas. Assim, depois da guerra começou a repensar seu cristianismo e se aproximou do socialismo do Partido Social Democrata alemão. Conforme explica o próprio Tillich, ele poderia ter desenvolvido sua filosofia a partir da leitura de Nietzsche, mas a experiência da revolução alemã de 191813 dirigiu suas preocupações em direção a uma filosofia da história, a partir da sociologia e da politica. E seu estudo de Ernst Troeltsch (1865-1923)14 preparou a mudança de direção.15 

(Notas -- 11 Na sua tese sobre Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, La mystique et la conscience de la culpabilité dans le développement philosophique de Schelling (1912), Tillich apresentou o ponto de vista de Schelling sobre mito e mitologia. Martin Leiner, “ Mythe et modernité chez Paul Tillich ”, in Marc Boss, Doris Lax, Jean Richard (ed.), Mutations religieuses de la modernité tardive, Actes du XIVe. Colloque International Paul Tillich, Marselha, 2001, Hamburgo, Londres, LIT, 2002, p. 9. 12 Cláudio de Oliveira Ribeiro, “Teologia e Ciências: Uma aproximação entre a produção teológica latino- americana e a de Paul Tillich”, in Por Uma Nova Teologia Latino-Americana, A Teologia da Proscrição, vv. aa., São Paulo, Paulinas, 1996, pp. 211-212. 13 Paul Tillich, “ La situation spirituelle du temps présent. Rétrospective et perspective ” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 330-331. Die religiose deutung der gegenwart, Gesammelte Werke, X, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1968, pp. 108-120. Trad. fr. de Nicole Grondin e Lucien Pelletier. 14 Paul Tillich, “Ernst Troeltsch. Son importance pour l’histoire de l’esprit ” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 219-220. “ Ernst Troeltsch, Versuch einer geistesgeschichtlichen Wurdigung ”, Begegnungen, Gesammelte Werke XII, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1971, pp. 166-174. Trad. fr. de Nicole Grondin et Lucien Pelletier). 

Para definir os contornos do socialismo tillichiano em sua fase inicial devemos nos remeter a dois textos escritos nos dois anos subseqüentes à revolução de 1918, redigidos no calor da vitória revolucionária, e que se encontram em “Christianisme et socialisme I e II”.16 Embora esses textos não tenham a profundidade sistemática dos escritos socialistas dos anos 1920-30, eles procuram explicar de um ponto de vista teológico o papel da revolução que acabava de acontecer na Alemanha. 

Assim, em 1919, Tillich deu uma conferência pública cujo conteúdo foi um esforço para fundamentar teologicamente um artigo que tinha escrito antes, onde dizia ser tarefa do cristianismo assegurar a unidade interior do ser humano futuro, através da construção de uma nova síntese entre a religião e a cultura. Na conferência afirmava que tal exigência estava fundamentada na radicalidade da teologia. A conferência recebeu o título de “Sobre a idéia de uma teologia da cultura”.17 

Aqui Tillich empreende pela primeira vez uma definição da tarefa da teologia, no quadro das ciências da cultura. Ela aparece como ciência normativa, não por impor sua autoridade sobre as normas da conduta humana ou por traduzir o processo dos julgamentos de valor que esta conduta requer, mas porque está interessada em situações concretas, que constituem seu conteúdo. Ou, em outras palavras, ela é normativa porque é reveladora de sentido. 

A teologia, para Tillich, enquanto ciência do indivíduo deve partir do contexto histórico e cultural. Ele observa que as éticas teológicas anteriores tinham se dado como tarefa analisar o arraizamento da vida moral, ou seja, a raiz concreta do indivíduo em sua comunidade. Mas, agora, no momento em que a teologia reconhece a existência de uma comunidade cultural externa à igreja, comunidade que constitui o horizonte imediato das decisões do indivíduo e que se enraíza numa cultura contemporânea global, a constituição de uma ética teológica pura não é mais possível: torna-se necessário elaborar uma teologia da cultura.18

O nazismo como pano de fundo 

(Notas -- 15 Paul Tillich, “On the boundary, an autobiographical sketch”, in The Interpretation of History, New York- London, Scribner, 1936, p. 54. Aux Confins, Paris, Planète, p. 67. Trad. fr. Jean-Marc Saint. 16 Marc Boss, “ Protestantisme et modernité: résonances troeltschiennes des premiers écrits socialistas de Tillich (1919-1920) ”, in A Dumais et J. Richard, editores, Ernst Troeltsch et Paul Tillich, pour une nouvelle synthèse du christianisme avec la culturele de notre temps, Québec : Les Presses de l’Université Laval, L’Harmattan, 2002, pp. 88. 17 Jean-Claude Petit, La Philosophie de la Religion de Paul Tillich, Genèse et évolution, la période allemande 1919-1933. Montréal : Fides, Héritage et Projet, 1974, pp. 17-19. 18 Jean-Claude Petit, La Philosophie de la Religion de Paul Tillich, op. cit., pp. 19-20). 

Anos mais tarde, em janeiro de 1933, o nacional-socialismo chegava ao poder. Entre os anos de 1919 e 1924, Tillich tinha participado do Círculo Kairós, um grupo de reflexão sociológico, filosófico e teológico do socialismo. Entre os anos 1920 e 1927 ajudou a editar os Cadernos do Socialismo Religioso, e em 1929/30 os Novos Cadernos do Socialismo. Mas com o advento do nazismo ao poder, ele percebe que o socialismo havia nascido como kairós, com a reflexão contextual da revolução socialista, e deveria desaparecer com ela. 

Nesse contexto de ascensão do nazismo, de crise e derrota da revolução socialista, não se poderia esquecer o fato de que o julgamento divino se apresenta paradoxal porque declara absoluto, perfeito e santo aquilo que é relativo, imperfeito e pecador, o ser humano. Assim, partindo da teologia de Lutero e de seu conceito de salvação pela graça, Tillich faz uma nova abordagem da questão social na Alemanha e na Europa: aquilo que aparece como abismo da realidade, que reduz a nada o que existe, que coloca todas as coisas sob julgamento, tem um lado positivo. É possível afirmar que o contexto de julgamento pode levar a uma vontade de moldar o mundo de maneira imanente, momento do novo, quando o reino de Deus se faz presente no mundo. 

Fruto desses anos de reflexão e militância intelectual, Tillich formulou seu conceito de socialismo religioso19 e escreveu A Decisão Socialista,20 livro que foi queimado publicamente pelos nazistas em 1933. Se tivesse ficado na Alemanha, possivelmente Tillich tivesse terminado seus dias num campo de concentração, mas salvou-se ao aceitar o convite para lecionar na Universidade de Columbia e no Union Theological Seminary, em Nova York. 

No século vinte, poucos teólogos tiveram tanta influência como Paul Tillich, que procurou responder às questões universais relacionando cultura e fé. Em termos teológicos sua pressuposição básica era de que a fé não é necessariamente inaceitável para a cultura e a cultura contemporânea não é necessariamente inaceitável para a fé. Buscou desenvolver uma 

(Notas -- 19 Paul Tillich, “Le socialisme religieux I” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919- 1931), Paris, Genebra, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 355-362. Christentum und soziale Gestaltung, Gesammelte Werke II, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1962, pp. 151-158. Trad. fr. de Nicole Grondin et Lucien Pelletier. 20 Paul Tillich, “La Décision Socialiste”, in Écrits contre les nazis (1932-1935), Paris, Genève, Québec: Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994, pp. 17-170. “Die sozialistische Entscheidung”, in Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, Gesammelte Werke II, 1962, pp. 219-365. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier, introd. de Jean Richard). 

teologia cujo método consistiu em relacionar fé e cultura, a fim de responder ao desafio de contextualizar a mensagem cristã num primeiro momento para a intelectualidade socialista e, posteriormente, para o ser humano contemporâneo. 

A cultura socialista no início do século vinte via a religião como ópio, fator de alienação das massas. A contribuição de Tillich foi oferecer ao pensamento socialista, a partir de uma nova maneira de fazer teologia, respostas sobre o significado de vida. O que Tillich procurou demonstrar é que uma compreensão de Deus é consistente com a compreensão socialista do mundo, e o que o intelectual via como uma deficiência na construção das idéias cristãs, Tillich encarava como uma oportunidade de alcançar o conhecimento não-empírico. 

Se para um pensador socialista a gênese do futuro repousava sobre a luta de classes, para Tillich o socialismo traduzia o clamor contra a desumanidade, era um protesto contra sociedade industrial, que substituía os seres humanos por máquinas, dilacerando-os nos dentes da engrenagem da produção e do consumo capitalistas. Se a tecnologia levava a isso, onde estava a esperança e a resposta ao descontentamento vivido por essas gerações? O elemento perdido nesse processo era o espírito. Assim, Tillich resgata Kierkegaard21 quando dá ênfase à potência da individualidade humana, à existência.22 O que deve ser encontrado só o será através de sua própria coragem interna. Dessa maneira, a pergunta fundamental de existência humana é: o que eu sou? E essa pergunta só pode ser respondida por aquele que pergunta. 

O intelecto permite um conhecimento do funcionamento do universo físico e das complexidades dos sistemas do macrocosmo. Antes de uma pessoa poder dominar as técnicas, a consciência do observador precisa conhecer o lugar dele no esquema das coisas. Porém para entender o conceito, a razão, é necessário entender a ontologia fundamental que expressa as condições de essência e existência. Por isso, a ontologia existencial em Tillich eleva a pergunta pelo ser e pelo não-ser à teologia, que pode responder à pergunta sobre Deus a partir da luz que o não-ser reflete. O que Tillich apresentou ao mundo é um modo de unir verdades infinitas à uma cultura que parece desconsiderar a consistência histórica. O medo de um propósito perdido prevaleceu naquelas décadas de violência e destruição. Diante do equilíbrio perdido e da presença do caos permanente, Tillich redescobriu o equilíbrio e usou o presente 

(Notas -- 21 Pedro Rubens, Discerner la foi dans des contextes religieux ambigus, enjeux d’une théologie du croire, Paris, Les Editions du Cerf, 2004, p. 183. 22 Marc Boss, “Persistance du socialisme religieux dans la Philosophie existentielle de Paul Tillich”, in Marc Dumas, François Nault e Lucien Pelletier (ed.), Théologie et culture: hommages à Jean Richard; Quebec, Les Presses de l’Université Laval, 2004, p. 343-347). 

como fogo que acende a pira. Para ele a chave está no espírito, pois sem poder criativo não há vida. O espírito é poder, assim como a razão, que se unem e transcendem. As obras de arte, a literatura e a poesia, a filosofia e a política são frutos não só da razão, mas também do espírito. São criações individuais, mas também universais da razão e do espírito. Em todo trabalho humano de relevo pode-se ver a profundidade do que é individual, a grandiosidade de algo único, que acontece, mas que não pode ser repetido, e que, não obstante, por atravessar os séculos é universal, mas acessível ao conjunto dos seres humanos. 

Assim a teologia, enquanto conhecimento humano, particular, mas também universal, traduz- se enquanto maneira de busca do transcendente. A distância entre a fé e cultura, através da teologia, deve ser estreitada para que o ser humano possa resistir à tentação de que apenas o que é físico e material é o padrão maior da civilização. A teologia da cultura de Tillich é um marco para aqueles que investigam a espiritualidade humana aparentemente perdida, isto porque o mundo tecnológico não pode ser compreendido em profundidade sem a admissão de que a espiritualidade faz parte do conhecimento e busca do gênero humano. Assim, o fundamento da teologia da cultura está no fato de que a ontologia da cultura é um desdobramento da ontologia do ser humano. Na direção desse fundamento está a pergunta sobre a unidade ontológica da cultura: qual o princípio antropológico da criação cultural? 

Quando dizemos que o ser humano é o único animal que cria seu próprio universo de significação é na cultura que vamos encontrar o ato e a forma da expressividade humana como ser histórico. O primeiro momento da reflexão teológica sobre a cultura consiste em assegurar, seja ao ato da criação cultural, seja na forma do seu objeto, a unidade que só pode ser pensada em oposição ao fluxo do tempo e à dispersão do espaço onde a experiência se situa. A unidade ontológica da cultura reside na relação dialética que vigora entre a estrutura transcendental do sujeito, que se manifesta no ato da criação cultural, e a idealidade transcendental da obra de cultura, manifestada na forma transtemporal e transespacial que lhe assegura perenidade simbólica. A teologia apresenta-se, então, como paradigma da ontologia da cultura, pois tematiza a transcendência do ato como interrogação sobre o que é, tanto no que se refere à idealidade da forma, como na objetividade do ser.23 

(Nota -- 23 Henrique C. de Lima Vaz, “Ontologia da Cultura” in Cultura e Filosofia, aula inaugural do Curso de Filosofia do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura (IFAC), da Universidade Federal de Ouro Preto, setembro de 1994, pp. 6-12). 

A partir dessa leitura teológica da cultura, o resultado da relação entre a politica e a fé cristã levou Tillich a um sofisticado sistema de pensamento, onde a teologia da cultura tornou-se algo especial dentro da história da teologia. Talvez, pudéssemos falar de uma teologia sociopolítica, ou mesmo de uma teologia do socialismo, já que a concepção teológica de Tillich parte de uma leitura sociológica e histórica, e de uma análise crítica. Para ele, a relação entre teologia e política nunca pode ser descrita apenas pela conjunção “e”, mesmo quando um movimento político está fundamentado numa concepção de mundo. Nesse caso, duas atitudes são possíveis: pode-se ver a política sob o ângulo da luta pelo poder e seu objetivo estratégico; ou pode-se levar em conta as pretensões desse grupo político em encarnar uma concepção de mundo e submeter suas pretensões ao tribunal das categorias teológicas. Neste caso, não estamos falando mais de política, mas de teologia política. Em outras palavras, há um setor da teologia da cultura, que a teologia não pode esquecer se quiser manter a exigência da incondicionalidade da mensagem cristã.24 

Segundo Eberhard Amelung, que foi orientado por Tillich em sua tese de doutorado, em Harvard, os principais conceitos desenvolvidos com o socialismo religioso,25 como kairós e teonomia são fruto da leitura tillichiana da situação histórica dos anos 1920 na Alemanha. Dessa maneira, para Amelung, o compromisso socialista religioso de Tillich constitui a matriz de sua teologia da cultura, e possivelmente de toda a sua teologia. 

(Notas -- 24 Paul Tillich, “De quoi est-il question? Réponse à Emanuel Hirsch”, in Ecrits contre les nazis, Paris, Genève, Québec, Editions du Cerf, Editions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994, pp. 301-302. “Theologische Blatter”, Der Widerstreit von Raum und Zeit, Gesammelte Werke, VI, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1963, pp. 214-218. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.  25 Paul Tillich, “Le socialisme religieux II” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919- 1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 451-466. “ Religioser sozialismus II”, Christentum und Soziale Gestaltung, Gesammelte Werke II, Evangelisches Verlagswerke Stuttgart, 1962, pp.151-158. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier).