lundi 23 novembre 2015

A guerra da vida e nossas opções

Jorge Pinheiro

Deuteronômio 20:1 -- "Quando saíres para a guerra contra seus inimigos e vires os cavalos e carruagens e que são mais numerosos, não precisa temê-los, porque o Eterno, teu Deus, é contigo, ele te tirou da terra do Egito; (2) e acontecerá que, quando aproximar-se para uma batalha, o sacerdote vai chegar e vai falar com as pessoas; (3) e dizer: Ouve, ó Israel: você se lançará hoje para lutar contra seus inimigos. Não amoleça seu coração; não tenha medo, não se alarme, nem se quebrante diante deles; (4) pois o Eterno, teu Deus, acompanha você, para lutar por você, contra seus inimigos, para salvar você; (5) e vai falar aos guardas para dizer ao povo: quem é o homem que construiu uma casa nova e ainda não a estreiou? Volta para a casa, para que não morra na batalha e outro homem a estreie; (6) e quem é o homem que plantou uma vinha e não apreciou ainda seu primeiro fruto? Volte para a sua casa, para que não morra na batalha e outro homem desfrute do seu primeiro fruto; (7) e quem é o homem que se casou com uma mulher e não coabitou com ela? Volte para a sua casa, para que não morra na batalha e outro homem a leve; (8) e os guardas dirão às pessoas: quem é o homem de coração mole e tímido? Volte para casa para que o coração de seus irmãos não derretam como seu coração; (9) e acontecerá que, quando terminarem os guardas de falar ao povo, designará os oficiais das tropas na frente das pessoas".

O sacerdote que falou estas palavras é chamado -- miljama mashuaj cohen -- sacerdote ungido em circunstâncias de guerra. Antes de iniciar a campanha militar, ele pronuncia as palavras dos versículos 3 e 4, e faz três  perguntas à multidão reunida: "Quem é o homem que construiu...?" (v. 5) e um guarda repete a pergunta. "Quem é o homem que plantou uma vinha..." (v. 6) e um guarda repete a pergunta. "Quem é o homem que se casou com uma mulher...?" (v. 7) e um guarda repete a pergunta.

Casa, vinha, mulher. Esta é a moral judaica antiga, presente nos versículos 5, 6 e 7: antes do seu casamento, o homem deve possuir uma casa e ter um trabalho, que será mantido por ele e sua futura esposa, e só então pensar em casar. Um detalhe importante, porém, está presente no texto, o Eterno se preocupa com a sua vida material, ele quer que você usufrua da vida real, dos bens e frutos que você deve e pode conquistar.

Mas então o sacerdote faz uma quarta pergunta: "Quem é o homem que tem medo...?" (v. 8), e outro guarda repete as mesmas palavras ao povo.

Se os requisitos fundamentais para a construção da vida estão colocados e ordenados, e o Eterno se preocupa com eles e quer que você desfrute deles, você não pode temer os desafios, os perigos, enfim, a guerra da vida. 

Porque se tiver um coração mole e tímido contaminará, influenciará, os que estão ao redor de você. E a derrota e o fracasso serão inevitáveis. Por isso, o Deus Eterno diz nos versículos 3 e 4: "Ouve, ó Israel: você se lançará hoje para lutar contra seus inimigos. Não amoleça seu coração; não tenha medo, não se alarme, nem se quebrante diante deles; pois o Eterno, teu Deus, acompanha você, para lutar por você, contra seus inimigos, para salvar você".

Um pensar sobre as origens

Metáforas de nossa existência


Para os relatos das origens nos textos antigos da tradição judaica, o humano, construído à imagem e semelhança do eterno é síntese e projeção das forças da criação. E ao ter livre-arbítrio, um atributo da eternidade, tal imagem e semelhança se apresenta enquanto arquétipo conceitual e faz dele humano primordial.

hadam kadmon é uma expressão que traduz a idéia de humano primordial. Faz parte da compreensão de que aquele hadam era matrix, e nele estavam presentes os moveres originais da criação. Assim, hadam kadmon é diferente do hadam ha-rishon, o primeiro. Em hadam kadmon estava a consciência, a-vida, presente a partir daí na espécie. Estes moveres originais de hadam kadmon são os atributos ostensivos que a eternidade deu ao humano, ser coroa da criação, ter vontade específica e atuar no plano da criação a fim de construir seu destino.

A leitura dos textos antigos da tradição judaica não tem como função ou meta a compreensão científica do mundo físico, mas a construção da consciência. Dessa maneira, a revelação do Eterno ao ser humano, através dos textos antigos da tradição judaica, não é de como funciona o mundo e sua realidade, mas como devemos, enquanto pessoas e comunidades, colocar-nos sob missão do Eterno.

Os códigos culturais e de linguagem hoje são diferentes daqueles das épocas onde os relatos das origens surgiram. Assim, a melhor aproximação é analisarmos os relatos das origens nos textos antigos da tradição judaica em comparação com os relatos e tradições presentes nas culturas antigas das épocas referidas.

Existe uma leitura humana de seus relatos arquetípicos, onde se considera as metáforas das suas tradições religiosas como fatos. E como os relatos arquetípicos fundamentam a cultura e a linguagem, passamos a ter então culturas e linguagens que demonizam e segregam pessoas, grupos de pessoas, segundo a origem nacional, raça-etnia, religião e sexo, entre outros características. 

Uma dessas grandes metáforas é a de hawa. E a metáfora hawa traduz os encontros e desencontros de hebreus e povos palestinos nos séculos que antecederam à era comum. E mais tarde, os primeiros cristãos deram sequência a este movimento quando viveram, eles também, encontros e desencontros com as religiões de mistério do mundo greco-romana, com seus cultos à mãe-terra, à deusa-mãe. 

O primeiro cristianismo, que surgiu como facção do judaísmo, por questões de inserção e sobrevivência absorveu elementos da cultura e linguagem do mundo helênico. Estes cultos greco-romanos se inseriam em contextos religiosos e sociais muito antigos e, entre outros elementos, exprimiam a veneração da cor vermelha associada ao sangue menstrual. Na mitologia grega, a mãe dos deuses, Reia, Cibele para os romanos, traduzia a veneração ao próprio conceito de reia, que significa terra ou fluxo. Assim, dentro desta compreensão arquetípica, o humano fora formado a partir do barro vermelho.

A identidade da religião com a mãe-terra, a fertilidade, a origem da vida, aparece enquanto santidade da terra, que é o corpo da deusa. Assim, ao formar o humano, nas leituras sincréticas cristãs a eternidade parte do vermelho da terra e sopra a vida no corpo formado. A eternidade não é corpo, não está presente na forma, mas a mãe-terra está dentro e, também, na totalidade do mundo existente. O corpo de cada um, de cada uma, então, seria feito do corpo dela. Nessas leituras arquetípicas dá-se o reconhecimento da identidade universal de todos humanos.

No capítulo um do livro das origens, macho e fêmea são criados à imagem do Eterno. Algumas interpretações rabínicas consideram esta primeira criação um andrógino, porque a eternidade criou o humano à sua imagem, macho e fêmea. Na maioria das traduções ocidentais lemos que "o Eterno criou o homem à sua imagem, à imagem do Eterno o criou; ele criou homem e mulher (Gênesis 1:27). De fato, no texto hebraico a passagem está no plural: o Eterno criou da-terra à sua imagem, no sentido genérico de humano. Em seguida, o texto diz macho e fêmea foram criados. Não temos aí os pronomes próprios Adão e Eva, mas macho e fêmea.

Só no texto seguinte, no segundo capítulo do livro das origens, outro relato da criação, é que hawa, que tem vida, aparece. E a metáfora se fez relato factual, histórico, que ganhou força no judaísmo e, posteriormente, entre cristãos e muçulmanos. Assim, a metáfora arquetípica, lida a partir de hermenêuticas patriarcais, no correr dos últimos dois mil anos transformou-se em fato fundante das culturas monoteistas. E hawa passou a ser um pedaço de hadam. 

“Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar; E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada. Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma só carne”. (Gênesis 2: 21-24). 

Os estudos da psique, desenvolvidos a partir do século vinte, trabalham com a idéia de que a humanidade, em certa medida, guarda em seu psiquismo os arquétipos das origens enquanto espécie. E as metáforas das origens e de seus desdobramentos calam fundo nas emoções e percepções humanas de forma aparentemente instintiva. E todos entendemos o recado, o ser humano paga um preço ao optar por construir sua liberdade. Nesse sentido, hadam e hawa representam a condição humana, são arquétipos de nossa força e fraqueza enquanto humanos, seduzidos sempre por fatores aparentemente externos, como o desejo da conquista do mundo, do poder e do sexo, que nos seduzem de forma paradoxal, tanto para a expansão de limites, o que seria um bem, como para a limitação de nossas possibilidades, o que seria um mal.