vendredi 25 novembre 2016

A dimensão religiosa na vida espiritual

Paul Tillich 
é considerado um dos pensadores mais influentes do século 20. Ensinou teologia e filosofia em várias universidades alemãs e foi para os Estados Unidos em 1933. Por muitos anos, foi professor de Teologia e Filosofia no Union Theological Seminary em Nova Iorque e, mais tarde, na Universidade de Harvard. Entre suas obras mais conhecidas podemos citar: Teologia Sistemática, A Coragem para Ser, Dinâmica da Fé, Amor, Poder e Justiça, e Teologia da Cultura.

Aqui analisaremos textos de Paul Tillich para reflexão sobre quatro temas: a dimensão religiosa; tempo e universalidade; da heteronomia à teonomia; do luteranismo ao socialismo religioso.

"Em tais circunstâncias, desprovida de um lar, de um lugar onde estabelecer sua morada, a religião descobre logo que não é necessária tal morada, que não necessita procurar um lar. Seu lar está em todas partes, quer dizer, na profundeza de todas as funções da vida espiritual da pessoa.

A religião é a dimensão da profundidade em todas elas, é o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano.

O que significa a metáfora profundidade? Significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual da pessoa, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano.

Manifesta-se na esfera moral com a seriedade incondicional do imperativo moral; donde, quando alguém rechaça a religião em nome da função moral do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião.

Manifesta-se no reino do conhecimento como a busca apaixonada de uma realidade última; por isso, quando alguém rechaça a religião em nome da função cognitiva do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião.

Manifesta-se na função estética do espírito humano como o anelo infinito de expressar um significado último; donde, quando alguém rechaça a religião em nome da função estética do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião.

A religião constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do ser humano. Eis o aspecto religioso do espírito humano".

Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 16-17. (Este texto foi publicado originalmente em Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954). 

A luta entre o tempo e o espaço


"O eterno do tempo é o Eterno da história. Isso significa em primeiro lugar, que é o Deus que atua na história com destino a uma meta final. A história segue uma direção, algo novo há de criar-se nela e por intermédio dela.

Essa meta designa-se de várias maneiras: bem-aventurança universal, vitória sobre os poderes demoníacos representados pelas nações imperialistas, chegada do Reino de Deus na história e, mais além da história, transformação da forma do mundo, etc.

Os símbolos são muitos – alguns mais imanentes, como no profetismo antigo e no moderno protestantismo, outros mais transcendentes, como nas doutrinas apocalípticas posteriores e no cristianismo tradicional --, mas em todos os casos o tempo dirige, cria algo novo, uma “nova criatura”, como chama Paulo.

O trágico círculo do espaço foi superado. A história tem um princípio e um fim definidos.

No profetismo, a história é história universal. Negam-se as limitações espaciais, as fronteiras entre as nações. Para Abraão todas as nações serão benditas, todas poderão adorar a Deus no monte Sião, o sofrimento da nação escolhida tem o poder de salvar todas as demais. O milagre do Pentecostes supera as diferenças do idioma.

Em Cristo salva-se e une-se o cosmo, o universo. Em sua tentativa de criar uma consciência humana indivisa, as missões têm um caráter universal. O tempo alcança plenitude na história e a história a alcança no reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz.

Isso nos leva ao ponto decisivo da luta entre o tempo e o espaço. O monoteísmo profético é o monoteísmo da justiça. Os deuses do espaço suprimem, necessariamente, a justiça. O direito ilimitado de todo deus espacial choca inevitavelmente com o direito ilimitado de outro deus espacial. A vontade poder de um dos grupos não pode fazer justiça ao outro. Isso é válido para os grupos poderosos que operam dentro da nação e para as próprias nações.

O politeísmo, a religião do espaço, é forçosamente injusto. O direito ilimitado de todo deus do espaço anula o universalismo implícito na idéia de justiça.

Este é o único significado do monoteísmo profético. Deus é um porque a justiça é uma. A ameaça profética que pende sobre o povo eleito, de ser rechaçado por Deus, por causa da injustiça, é a verdadeira vitória sobre os deuses do espaço.

A interpretação da história que nos dá o dêutero-Isaías, segundo o qual Deus chama os demais povos para castigar o povo por Ele escolhido, devido à sua injustiça, confere a Deus um caráter universal.

A tragédia e a injustiça são próprias dos deuses do espaço; a realização histórica e a justiça o são de Deus que atua no tempo, e por seu intermédio, unindo no amor o vasto espaço de seu universo".

Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A luta entre o tempo e o espaço, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 40-42.

Entre a heteronomia e a autonomia

"Todo sistema político requer autoridade, não só no sentido de possuir instrumentos de força, mais também em termos de consentimento mudo ou manifesto das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que está no poder representa uma idéia poderosa, que goze de significado para todos.

Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia, relação que em Tillich no ensaio O Estado como promessa e como tarefa caracteriza como segue:

“Toda estrutura política pressupõe poder e, conseqüentemente, um grupo que o assume. Posto que um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses, sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade política. Os sistemas ditatoriais carecem de correções contra o abuso da autoridade por parte do grupo de poder. O resultado é a escravidão da nação inteira e a corrupção da classe dirigente”.

Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, Entre a heteronomia e a autonomia, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 239-240.

Entre o luteranismo e o socialismo

É relativamente simples chegar ao socialismo quando se parte do calvinismo, em especial em suas formas mais secularizadas da última época; o caminho está muito mais cheio de obstáculos quando passa pelo luteranismo.

Sou luterano de berço, educação, experiência religiosa e reflexão teológica. Nunca me situei no limite entre o luteranismo e o calvinismo, nem sequer depois de experimentar as desastrosas conseqüências da ética social luterana e de reconhecer o inestimável valor da idéia calvinista do Reino de Deus para a solução dos problemas sociais.

A essência de minha religião continua sendo luterana. Ela abarca uma consciência de corrupção do existir, o repúdio de todo tipo de Utopia social (incluindo a metafísica do progressismo), a compreensão da natureza irracional e demoníaca da existência, o reconhecimento do elemento místico na religião, e o rechaço do legalismo puritano na vida privada e corporal.

Também meu pensamento filosófico expressa esse conteúdo singular. Até agora, só Jacob Bohéme, porta-voz filosófico do misticismo alemão, tentou uma elaboração especificamente filosófica do luteranismo. Através dele o misticismo luterano influenciou Schelling e o idealismo alemão, e através de Schelling, por sua vez, os filósofos irracionalistas e vitalistas que emergiram nos séculos XIX e XX.

Na medida em que grande parte da ideologia anti-socialista se baseou sobre estes últimos, o luteranismo atuou indiretamente através da filosofia e também diretamente como forma de controle sobre o socialismo. 

Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, Entre o luteranismo e o socialismo, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 259-263.

Além do Socialismo Religioso

Pareceu-nos interessante como forma de apresentar Paul Tillich, deixar que ele próprio nos fale de sua experiência norte-americana. Para isto, estamos partindo das idéias que apresenta em artigo publicado no Christian Century, em 15 de junho de 1949, e cujos direitos pertencem a Christian Century Foundation. Este artigo, em inglês, pode ser encontrado no site www.christiancentury.org e foi preparado por Ted & Winnie Brock para Religion Online.  Aqui não nos interessa transcrever o artigo do Christian Century, mas discutir as idéias expostas pelo teólogo alemão.
 
Tillich conta que não viveu uma mudança dramática de vida e experiência intelectual nos anos 40, mas uma lenta transformação, praticamente inconsciente, fruto de uma contínua adaptação aos modos e pensamento norte-americanos.

Ele conta que no verão de 1948, quando voltou pela primeira vez à Alemanha, desde 1933, viveu um claro teste da enorme mudança que sofreu. Houve uma mudança em seu modo de se expressar. O idioma inglês trabalhou nele, produzindo algo que seus amigos alemães consideraram um milagre: o fez compreensível. Nenhum anglicismo apareceu nas palestras que fez, mas o espírito do idioma inglês dominou seu coração, dando-lhe clareza, sobriedade e concretude.

Isto aconteceu indo contra suas inclinações naturais. Aprendeu a evitar o acúmulo de adjetivos, coisa freqüente no idioma alemão. Passou a evitar as ambigüidades, que é um vício freqüente do linguajar filosófico alemão. Além disso, o fez baixar à terra, rompendo com suas longas abstrações. 

“Tudo isso foi muito bem recebido por meus auditórios alemães, sendo visto como uma impressionante mudança de mente”. 

Falando na Alemanha sobre a situação da teologia no EUA, Tillich disse aos seus conterrâneos que a América estava adiante da Europa em teologia histórica e sistemática e mais ainda em relação à ética. Podia dizer isso porque tinha se dado conta de que as éticas são um elemento integrante de teologia sistemática, e teve muito tempo para aprender sobre as éticas individuais no pensamento americano.

No que se refere às éticas sociais, Tillich havia partido de sua experiência militante e teórica como socialista religioso na Alemanha. Mas foi nos Estados Unidos que ele percebeu a importância central que as éticas sociais têm para a teologia norte-americana. Por isso, considerava que ganhou teologicamente com sua experiência estadunidense. 

“Nos meus primeiros anos nos Estados Unidos fiquei surpreso e preocupado com a tremenda ênfase dada à questão do pacifismo, algo que me parecia de importância secundária e de resultado confuso. Mais tarde, descobri que todos os problemas teológicos giravam ao redor desta questão. Quando nos anos anteriores, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, a ideologia pacifista foi quebrada, vi que esta era uma indicação de que surgia uma atitude nova em relação à doutrina do homem e em relação ao Cristianismo. Esta mudança de mentalidade tornou tudo mais fácil para mim e me fez sentir em casa em meu trabalho teológico”. 

"Quando vim para América, em 1933, fui rotulado de neo-ortodoxo ou neo-supernaturalista. O que era incorreto, mas tenho de admitir que algumas das expressões que utilizava diante das audiências americanas levaram a tal uma impressão. Minha tarefa nos anos trinta era dar a meus alunos e aos outros ouvintes conta de minhas idéias teológicas, filosóficas e políticas, como tinham se desenvolvido durante os anos críticos de 1914 a 1933".

"Trouxe comigo da Alemanha a teologia de crise, a filosofia de existência e o socialismo religioso. Tentei traduzir essas expressões para meus alunos e leitores. Em todos os três destes campos -- o teológico, o filosófico e o político -- meu pensamento sofreu mudanças, em parte por causa de experiências pessoais, em parte por causa das transformações sociais e culturais que estes anos testemunhou. 

A maior das mudanças a nível mundial foi o político -- das incertezas dos anos trinta ao estabelecimento, nos anos quarenta, de um mundo de intenso dualismo -- assim como o ideológico. Antes da Segunda Guerra Mundial havia espaço para a esperança de que o espírito religioso-socialista penetrasse no Leste e no Ocidente, mesmo que de forma diferente, diminuindo os contraste e prevenindo os conflitos entre eles. Hoje não há base para nenhuma esperança. A expectativa que tínhamos depois da Primeira Guerra Mundial era de um kairós, de plenitude do tempo, mas tal esperança foi duas vezes abalada, primeiro pela vitória do fascismo e depois por sua derrota militar.

Não duvido que as concepções básicas do socialismo religioso sejam válidas, que apontem ao modo político e cultural de vida pela qual a Europa pode ser construída. Mas não estou seguro de que a adoção dos princípios do socialismo religioso seja uma possibilidade num futuro previsível. Em vez de um kairós criativo, vejo um vazio que só pode ser feito criativo se aceitar e suportar, rejeitando todos os tipos de soluções prematuras. Esta visão significa uma diminuição de minha participação naturalmente em atividades políticas. Minha mudança de mente também foi influenciada pelo desarranjo completo de uma tentativa política séria que fiz durante a guerra para atravessar a abertura entre Leste e Oeste com respeito à organização de Alemanha pós-guerra". 

Tillich diz que fala-se muito do repúdio das liberdades civis e os direitos do ser humano nos países comunistas, que significou uma desilusão para os liberais no mundo inteiro. Mas não pode ser negado que este repúdio dos direitos humanos teve também um efeito devastador naqueles que defendiam o socialismo religioso, como ele, que sem ser utópico, acreditava no amanhecer de uma era criativa, mas viu o mundo mergulhar num momento de profunda escuridão. 

"Existencialismo era bem familiar para mim, antes mesmo da palavra entrar em uso geral. A leitura de Kierkegaard em meus anos de estudante, o estudo completo dos trabalhos posteriores de Schelling, a devoção apaixonada por Nietzsche durante a Primeira Guerra Mundial, o encontro com Marx (especialmente com os escritos filosóficos dele), e finalmente minhas próprias tentativas religioso-socialistas me levaram a uma interpretação existencial da história. Assim, eu estava preparado para a ilosofia existencial desenvolvida por Heidegger, Jaspers e Sartre.

Apesar de o existencialismo virar moda, confirmei minha convicção de que sua verdade básica para a condição presente. A verdade básica desta filosofia, como vejo, é sua percepção da liberdade finita do ser humano, e, por conseguinte, da situação dele como perigoso, ambíguo e trágico. Existencialismo ganha sua significação especial para nosso tempo no imenso aumento em ansiedade, perigo e conflito na vida pessoal e social devido à estrutura destrutiva presente dos negócios humanos. 

A filosofia existencial se aliou com a psicologia profunda. Só pela recente guerra e seu resultado se tornou manifesto que doença psíquica -- a inabilidade para usar criativamente a liberdade finita da pessoa -- é mais difundida neste país que qualquer outra doença. Ao mesmo tempo psicologia de profundidade removeu sobras do pensamento do século 19 - ao nível do sociológico, ontológico e até mesmo implicações teológicas de fenômenos como ansiedade, culpa e neurose de compulsão. Fora desta nova cooperação da ontologia e da psicologia (inclusive psicologia social) uma doutrina do ser humano exerceu influência considerável em todos os reinos culturais, especialmente em teologia. 

Segundo Tillich foi sob esta influência que elaborou seu sistema teológico: "da possibilidade de unir o poder religioso de teologia neo-ortodoxa com a necessidade de levar a mente contemporânea à reflexão existencial, o que resultou na concepção do "método de correlação", quer dizer, perguntas existenciais e respostas teológicas. A situação humana, como interpretado pela filosofia existencial, a psicologia e sociologia posiciona a pergunta; a revelação, interpretado a partir dos símbolos de teologia clássica, dá a resposta. A resposta, claro, deve ser reinterpretada à luz da pergunta, como a pergunta deve ser formulada à luz da resposta. 

Parece mim, é possível evitar dois erros contraditórios em teologia, o supernaturalista e o naturalista. O primeiro faz da revelação uma pedra que cai em acima da história, aceita obedientemente, eliminando qualquer suficiência da natureza humana. O segundo substitui revelação por uma estrutura de pensamento racional derivada que julga através de natureza humana. O método de correlação superan o conflito entre supernaturalismo e naturalismo, eliminando a contradição permanente entre fundamentalismo ou neo-ortodoxia por um lado e humanismo teológico ou liberalismo por outro. 

No curso desta tentativa ficou claro para mim que a denominada teologia liberal tem que ser defendida com paixão ética e científica. Isto é, permanece o direito e dever da crítica filológico-histórica da literatura bíblica sem qualquer condição, a não ser a integridade de pesquisa e honestidade científica. Qualquer interferência dogmática com este trabalho nos dirigiria a superstições novas ou velhas -- mitos e símbolos  -- o que não pode ser feito sem a supressão de conhecimento. O poder deste neobiblicismo é óbvio na Europa continental, mas já pode ser sentido também aqui, e até mesmo entre liberais antiquados. 

Olhando para a última década de minha vida eu não vejo nenhuma mudança dramática de mente, mas um desenvolvimento lento de minhas convicções na direção de maior claridade e certeza. Acima de tudo eu vim perceber que algumas grandes e duradouras coisas são decisivas para a mente humana, e que agarra-las é mais importante que procurar mudanças dramáticas". 


Bibliografia


Paul Tillich, Die sozialistische Entscheidung. In: Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus. Gesammelte Werke II, Stuttgart, Evangelisches Verlagswerk, 1962, 219-265. Trad. fr. in: Écrits contre les nazis (1932-1935). Paris/Genève, Le Cerf/Labor et Fides, 1994. Trad. ing. in: Against the Third Reich, Paul Tillich’s Wartime Radio Broadcasts into Nazi Germany, editado por Ronald H. Stone, Mathew Lon Weaver.

A alegria é a prova dos nove

... ou sexo e rede no colo da cunhã
Jorge Pinheiro

“Tupi or not tupi that is the question”. (Oswald de Andrade, Manifesto antropófago).

[Paris] – Você já parou para pensar que em menos de cinco anos, entre 1555 e 1560, cerca de quatrocentos franceses emprenharam mulheres tupinambás e tiveram mais de mil filhos, segundo alguns, na verdade, dois mil brasileirinhos. Bem, talvez você não saiba porque a história é sempre situada, espacial e ideologicamente.

Quando se faz uma pesquisa na área acadêmica, geralmente, há um subproduto que não utilizamos, porque não está diretamente ligado ao nosso objeto, embora seja cientificamente interessante. É o caso desse artigo: surgiu a partir de elementos da pesquisa que desenvolvo na Europa, mas especificamente em Montpellier e Paris, sobre os huguenotes, protestantes franceses que estiveram no Rio de Janeiro, em 1557.

Neste artigo sobre o início da presença francesa no Brasil e dos relacionamentos entre franceses e tupinambás utilizo o caminho da correlação, como forma de aproximação de um fato histórico fundante. O método da correlação relaciona polos, o discurso eurocêntrico, no caso, e a interpretação desse discurso, que deve levar em conta a situação daqueles a quem ela se destina. Situação, aqui, são as formas políticas e sociais através das quais os franceses exprimiram as suas interpretações da existência tupinambá, geradora do mito do bom selvagem. Nesse sentido, o método da correlação possibilita que perguntas venham à tona, que haja individuação das respostas, permitindo travessias correlatas às perguntas colocadas pela própria existência dos brasis e seus costumes.

Nicolau Durand de Villegagnon (1510-1571) foi colega de João Calvino durante seus estudos em Paris. Junto com os Cavaleiros de Malta, a partir de 1531, participou das expedições militares de Carlos V contra Argel. Mas ficou conhecido como navegador. Vice-almirante da Bretanha, sua aventura mais empolgante e polêmica foi a fundação, em 1555, de um projeto de colonização que ficou conhecido como França Antártica, na baia de Guanabara. Para desenvolver tal projeto recebeu o apoio do almirante Gaspard de Coligny, homem de confiança do rei e militar de importante presença protestante, e dez mil libras para financiar a empreitada. 

A intenção francesa era fundar uma colônia no Brasil, a fim de fazer frente a expansão espanhola e portuguesa nas Índias Ocidentais e no Novo Mundo, onde calvinistas pudessem praticar o seu catolicismo reformado e evangelizar os brasis. Três navios partiram de Le Havre, com mais de quatrocentos colonos, a maioria ex-presidiários indultados por se juntarem à aventura de Villegagnon. E assim chegaram ao Brasil em novembro de 1555. Villegagnon construiu, então, o forte Coligny em uma ilha na baía de Guanabara e passou a usar o título de vice-rei da França Antártica. 

As relações com os brasis da região se mostraram tão boas, que Villegagnon e os colonos passaram a frequentar as festas, travaram contato com o comunismo libertário dos brasis, e muitos colonos acabaram por optar por essa nova forma de vida.

A França Antártica a princípio foi tolerante com os costumes dos brasis e as opções dos colonos, mas, com o tempo, Villegagnon percebeu que estava a perder seus homens. Estes passaram a ter companheiras tupinambás, a viver nas aldeias e adotavam a cultura dos brasis. Foi, então, que Villegagnon, por razões militares e de ocupação do território, proibiu todo comércio com os brasis, os acasalamentos e exigiu que seus colonos abandonassem as aldeias e voltassem ao forte. Ora, exigência quase impossível de ser respeitada, afinal aqueles homens tinham sido libertos das prisões franceses com a proposta de viajar para um novo mundo de aventuras inimagináveis. E tinham encontrado esse mundo, com espaços sem fim, mulheres brasis e sexo sem constrangimentos. Tinham descoberto que a alegria é a prova dos nove.

Uma das dimensões importantes da cultura tupinambá era o cunhadismo. Este elemento fundante da cultura dos brasis no litoral do Rio de Janeiro é uma hipótese fundante para se compreender a construção das ótimas relações que tupinambás e franceses construíram entre si. Os franceses se uniram sexual e matrimonialmente com as mulheres brasis, e assim se inseriram na estrutura social tupinambá, como genros ou cunhados. Pesquisas acadêmicas mostram que muitos europeus, e aí se incluem os franceses, e não apenas portugueses, se adaptaram com facilidade aos costumes brasis, a ponto de alguns tornarem-se lideranças expressivas entre os tupinambás.

Darcy Ribeiro considerou o cunhadismo a instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro. O cunhadismo estruturava as relações de parentesco entre os tupinambás ao incorporar pessoas estranhas à comunidade. O homem agregado à tribo recebia uma moça tupinambá como cunhã, ou seja, esposa. E quando a assumia, estabelecia laços de parentesco com todos os membros da comunidade.

“Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro”. (Oswald de Andrade, Manifesto antropófago).

O cunhadismo, enquanto sistema de parentesco relacionava um brasil ou agregado com os outros e, por extensão, com todos os membros da tribo. Assim, ao receber a cunhã, o francês passava a ter nela sua temericó e nos parentes da geração dos pais, outros pais ou sogros. O mesmo ocorria em sua própria geração, em que todos passavam a ser irmãos ou cunhados. Na geração inferior eram todos seus filhos ou genros. Esses termos de afinidade classificavam o grupo com quem podia ou não manter relações sexuais. Com os sogros e sogras devia evitar relações, mas podia manter relações abertas com os cunhados e cunhadas, assim como com genros e noras. 

Segundo Ribeiro, os franceses fundaram criatórios na baía de Guanabara com base no cunhadismo. E citou Capistrano de Abreu, quando este afirmou que por muito tempo não se sabia se o Brasil seria francês ou português, tal a força da presença e o poder da influência francesa junto aos brasis do litoral do Rio de Janeiro. Ainda segundo Ribeiro, mais de mil brasileiros, no caso franco-brasis, foram gerados como fruto do cunhadismo, quando franceses, tamoios e tupinambás viviam ao longo dos rios que deságuam na baía, inclusive na ilha do Governador, onde deveria ser implantada a França Antártica.

Assim, fruto da boa vida no paraíso dos brasis, os colonos não concordaram com seu vice-rei, se revoltaram, e aliados aos brasis, agora seus parentes, passaram a tramar o assassinato de Villegagnon. Diante de guerrilha que se avizinhava, o vice-rei recorreu ao amigo Calvino que, por esses tempos, exilara-se em Genebra, e pediu para mandar reforço religioso a fim de restaurar a moral e os bons costumes. E, em setembro de 1556, quatorze huguenotes, entre os quais dois pastores, Chartier e Richer, e um jovem muito promissor, Jean de Léry, deixaram a Suíça, embarcaram em Honfleur, sob a liderança de Du Pont de Corguilleray, e chegaram ao forte de Coligny em março 1557. Mas essa já é outra história. 

“Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”. (Oswald de Andrade, Manifesto antropófago).







A saga de José Manoel da Conceição

Prof. Dr. Jorge Pinheiro dos Santos
Faculdade Teológica Batista de São Paulo
Eixo Temático: História
Categoria: Mesa redonda

“Se a historiografia brasileira relega o protestantismo a segundo plano, ou mesmo o ignora, a literatura mundial é plena de clássicos trabalhos sobre o protestantismo e sua grande e decisiva influência na construção do chamado mundo moderno. De fato, a Reforma do século XVI rompeu definitivamente com toda a estrutura do mundo medieval e liberou o homem para pensar e fazer. Os grandes princípios do livre exame, da salvação pela fé, do sacerdócio universal, do direito de rebelião, da democracia na igreja local e da legitimidade dos juros e do lucro foram para sempre consagrados como conquistas dos tempos modernos. A ética protestante do manejo racional do dinheiro e o desempenho no trabalho perpassa a história moderna, seja de maneira positiva ou negativa. Autores importantes têm responsabilizado o protestantismo pelos males do capitalismo, assim como outros reconhecem sua decisiva contribuição para a liberdade e a livre iniciativa, coisas que, apesar de tudo, trouxeram o homem para um posto de dignidade no mundo em contraposição à inexorabilidade do destino social a que estava relegado no mundo antigo. Neste ponto, tenho a impressão de que o nosso protestantismo no Brasil não se inteirou do que representam os princípios que a Reforma nos legou a partir do século XIX, embora alguns deles, mesmo de maneira inconsciente, tenham exercido alguma influência na modernização do Brasil”. Antonio Gouvea Mendonça, Protestantismo no Brasil, Apontamentos sobre sua contribuição para a cultura brasileira, ABIEE -- I Encontro para historiadores 2004, Piracicaba, São Paulo.

“José Manuel da Conceição (1822-1873) foi um ex-sacerdote católico que ingressou na Igreja Presbiteriana do Brasil. Primeiro brasileiro ordenado ao ministério evangélico, foi convertido a fé reformada pela influência dos missionários norte-americanos do presbiterianismo do Brasil. Dedicou-se ao trabalho de evangelista itinerante no interior da então província de São Paulo, visitando as suas antigas paróquias onde o zelo pelo ensino da Bíblia lhe rendeu o apelido de "padre protestante". Conceição encontrou nesses lugares o ambiente preparado para a formação de comunidades evangélicas. Exerceu seu ministério junto ao povo expondo o evangelho sem ferir sentimentos religiosos tradicionais”. Segundo a enciclopédia online Wikipedia.

O APÓSTOLO DO PROTESTANTISMO

Ele ficou só. Quase como toda a sua vida. Só. Incompreendido, mobilizado por idéias para muitos, talvez para a maioria, tresloucadas. Ideias de Deus na cabeça. É possível que aquele verso, tão batido, tão marcado em suas memórias, tivesse naquele momento voltado mais uma vez, tomado corpo na sua carne magra e mais envelhecida do que o tempo vivido. Os que esperam no Senhor renovam as suas forças. Voam alto como águias, correm e não se ficam exaustos, andam e não se cansam. Pelas andanças Brasil a dentro ele viu e amou ver o gavião, piar forte e sobrevoar o céu azul. Conheceu esse predador temido pelos outros pássaros. E quem já acompanhou a sua morte? Ele se aninha longe, lá em cima, naquelas montanhas da Mantiqueira e a gente não sabe, nem vê. Esse velho, de 59 anos, estava a morrer, sem eira nem beira, em casa emprestada no meio do caminho. Dormiu, e em meio aos sonhos do Senhor, deixou as trilhas da vida, os caminhos da peregrinação. Exalou o suspiro derradeiro e deixou para nós, quase cento e setenta anos depois, lições de protestantismo.

Esse homem foi batizado José Manoel, paulista, e nasceu numa época conturbada. Na verdade alguns meses antes dos brasileiros, liderados por um nobre português, declararem a indep0endência da terra. O ano era 1822. O garoto morou em Sorocaba e foi educado por um padre, José Francisco de Mendonça que, na verdade, era seu tio. Educação boa aquela, cheia de latim e classicidades. Coisa para nenhuma família rica colocar defeito, mas que em relação à família de José Manoel não era o caso.

Bem, com um tio como padre e uma educação dessas, foi praticamente natural a escolha que fez. Foi para o seminário de Sorocaba. E aí fez amizade com alguns estrangeiros, ingleses e alemães. A Inglaterra nessa época era a rainha dos mares e modelo para os países do mundo. A jovem nação, recém saída da independência, além das boas relações diplomáticas e comerciais, procurava copiar os modos e costumes ingleses, mas esbarrava naquele protestantismo anglicano, que ninguém entendia bem o que era, mas que não caia bem frente ao catolicismo professado por essas bandas. De todas as maneiras, os reformados alemães e ingleses entregaram ao jovem um costume, ler o livro preto. E o próprio José Manoel conta:

"Eu ia com frequência a uma fundição de ferro em Ipanema (em Sorocaba, na minha região) onde visitava a família Godwin, cujo pai, Mr. Godwin, era superintendente da casa de máquinas. Eu me comovia profundamente ao observar o completo silêncio que lá reinava aos domingos. Era uma família inglesa. Mais tarde, quando eu fui admitido na comunidade, eu vi a totalidade das famílias a ler a Bíblia e livros devocionais. Mais tarde eu visitei quase todas as famílias alemãs e em todas eu encontrei o mesmo quadro de devoção e religião. Comecei a pensar: quem sabe se estes estrangeiros têm tanta religião como nós, os brasileiros? Seria a religião deles igual à nossa? Ainda, quem sabe se eles são mais religiosos que nós porque são mais civilizados do que nós?" [1]

E foi ordenado padre em 1845. Imaginem que padre sofisticado: falava latim, o que poderia ser considerado natural, mas também inglês, francês e alemão, lia a Bíblia e achava que as obras meritórias não garantiam o céu a ninguém. Logicamente, o apelido veio rápido: padre protestante. Tinha vinte e dois anos. Exerceu seu sacerdócio até 1864 nas cidades de Monte Mor, Piracicaba, Santa Bárbara, Taubaté, Sorocaba, Limeira, Ubatuba e Brotas. Amado por suas ovelhas, pelo jeitão simples de homem do interior, mas também por sua verve profética, por seus sermões teológicos, ficou conhecido por esse interiorzão paulista. Seus superiores também gostavam dele, afinal era um homem profundamente sincero, porém guardavam dúvidas. Esse era um tempo novo para a terra de centenária presença católica. Agora, chegavam aqui as novidades protestantes, gente que adorava sem imagens, que não reconhecia a autoridade papal e que se deixassem traria para cá os ventos novos da rebeldia protestante. Por isso, os superiores do padre José Manoel tomaram algumas medidas, evitaram que se estabelecesse numa paróquia, para que esta não se tornasse quartel-general de ideias estapafúrdias. Virou padre andarilho, a visitar e ministrar nas paróquias no interior da Província de São Paulo. E assim foi por quinze anos.

Esse tempo foi muito importante para José Manoel. Serviu para ele conhecer a alma brasileira, tão dócil, obediente e supersticiosa nas coisas da fé. Serviu para conhecer a sua igreja, tão hierarquizada, tão metida na política e tão distante das necessidades reais do seu povo. E serviu, muito mais ainda, para ele pensar a sua condição de humano condenado à perdição eterna. Miserável homem que sou! Ah! Como doía na alma de José Manoel a sua condição de pecador!

As conversas com os estrangeiros, a leitura da Bíblia e de literatura protestante, entre as quais a tradução alemã da História Sagrada do Antigo e Novo Testamento, publicada pela Laemmert, editora protestante do Rio de Janeiro, foram formatando uma consciência reformada naquele padre. E isso começou a ficar translúcido no seu sacerdócio. Aconselhava seus fiéis a lerem a Bíblia e quando noivas o procuravam para confessar-se antes do casamento, o padre protestante dizia: "Eu e você precisamos nos confessar a Deus e não aos homens".

Desejava que suas paróquias estivessem comprometidas com a fé, queria melhorar as condições de vida religiosa de suas ovelhas. Mas ele próprio atravessava um momento de profunda crise espiritual. As questões da salvação e do valor meritório das obras fizeram com que trilhasse um caminho semelhante ao de Lutero, quando condenou as indulgências por proporcionarem uma paz falsa. Lutero disse que a Igreja e seu sistema de comutação negavam a graça de Jesus. José Manoel conhecia as ideias do monge alemão, mas será que ele estava certo, mesmo? Não podia, sob tal pressão e dúvidas, continuar a exercer seu ministério. Quis abandoná-lo, mas seus superiores apresentaram uma proposta mais suave, dispensá-lo temporariamente de suas funções sacerdotais.

E, assim, foi viver em uma casinha do interior, perto de Rio Claro. Foi então que a ação missionária o alcançou. O pastor Blackford, conhecedor da fama do padre protestante, resolveu visitá-lo. Não foram necessárias grandes e profundas discussões, José Manoel de alma contrita esperava um momento como esse.

“Acreditá-lo-eis? Quando embrenhado nas cavernas das rochas esperava morrer longe das visitas do Pastor Evangélico, ei-lo que de mansinho, cingindo em torno de sua fronte uma auréola de glória, que me consumia no fogo da confissão; ei-lo, trazendo no peito um coração de pomba, não se desprezando de se aproximar de mim, que mais parecia com uma fera que com este humano, toma-me pela mão, consola-me, cheio de uma amabilidade a mais nobre, e salva-me”.[2]

Foi batizado na Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, no dia 23 de outubro de 1864, e consagrado pastor em São Paulo, em novembro de 1865.

Se por um lado, José Manoel sabia que tinha tomado a decisão certa, abandonando os erros do catolicismo romano, depois de, por tanto tempo, ter pregado e espalhado pelos sete ventos essas doutrinas, a angústia continuava a macerar sua alma. De Deus não se zomba. Passou dias orando e meditando. O que fazer. Se é que podia fazer alguma coisa. E tão angustiado andava que nem recebia seus amigos missionários. Mas, enfim, sentiu a voz de Deus lhe falar. O sangue de Jesus Cristo purifica de todo pecado. Tranqüilidade de alma. Escreveu, então, uma profissão de fé evangélica, onde narrou suas lutas espirituais, num estilo ardente, que hoje é um clássico da espiritualidade protestante brasileira.

E, assim, salvo pelo sacrifício vicário de Jesus, José Manoel lançou-se a maior de suas obras, apresentar às suas antigas ovelhas o Evangelho da graça. Iniciou seu ministério em Brotas, onde conquistou não apenas pessoas isoladas, mas famílias inteiras. Conhecido e respeitado, apesar dos apelidos na maioria das vezes ditos de forma carinhosa, falava de Jesus com tal fervor e doçura, que em Brotas, em apenas dois dias, levou ao batismo onze adultos e dezessete crianças. As famílias se convertiam, eram batizadas e participavam da celebração de ceia, no mesmo evento.

E assim, esse ex-padre, que de fato nunca abandonou totalmente sua catolicidade, passou a fazer viagens, aproveitando o conhecimento do interior paulista onde havia servido como padre. Em cada vila procurava explicar as razões da mudança em sua vida, os erros do catolicismo e a doutrina do protestantismo. Em sua última paróquia, Brotas, surgiu a que seria a maior igreja protestante no Brasil e que serviu para irradiar o presbiterianismo para outras regiões de São Paulo e Minas Gerais. Inicialmente, os primeiros seminaristas do presbiterianismo o acompanharam. Porém, após 1869, passou a realizar viagens solitárias. Em 1867, os missionários, vendo que enfrentava problemas emocionais e cansaço, fizeram com que viajasse para os Estados Unidos a fim de se tratar. Mas isso pouco adiantou. Ao voltar deu continuidade às suas viagens solitárias, que o distanciaram cada vez mais de seus colegas norte-americanos. Eles desejavam que José Manoel se sedentarizasse, assumisse uma igreja local, se estabelecesse como pastor presbiteriano. Mas o espírito de Paulo, o apóstolo, essa visão católica de falar ao mundo e as multidões, mesmo quando ia de casa em casa, o consumia. E a pastor-padre desaparecia por meses, se embrenhando por matas e mundos. Os missionários ficavam sem notícias de José Manoel e, não poucas vezes, mandaram pessoas à sua procura.

Teve sérias divergências com o projeto missionário dos norte-americanos. Intuitivo, mas conhecedor do jeito brasileiro de ser, sabia chegar ao povo e pregar um Evangelho contextualizado. Pautou seu trabalho pela itinerância, sem planejamento prévio. As divergências, na verdade, não eram apenas estratégicas, eram teológicas. Enquanto os missionários norte-americanos viam apenas idolatria e superstição na religiosidade brasileira, o José Manoel percebia os pontos positivos do catolicismo brasileiro. Mas do que construir uma nova religião. Começar do zero, desejava reformar o catolicismo. Não somente falando aos que estavam na base da pirâmide católica, mas a toda a Igreja. Nesse sentido, sonhou como Lutero e foi massacrado pelo sonho. Deixando para nós lições que até hoje não entendemos bem.

Esparsas notícias, uma situação permanente de quase fome durante as viagens, dormindo pelas beiras de estrada, e uma caridade franciscana, que o levava a dar o pouco dinheiro que ganhava às vezes como ofertas de antigas ovelhas eram doadas aos mais pobres ou, então, enviado para a missão. Uma muda de roupa gasta e suja, a comida frugal fez dele um pastor andarilho, magro, doente... Maltrapilho. Até preso foi, como indigente, até que sua identidade foi confirmada. Porém, não foi longe, desmaiou, foi socorrido por uma enfermaria militar do Campinho, próximo do Rio de Janeiro, onde morreu em 24 de dezembro de 1873.

Dados e números do seu ministério

Sua mensagem alcançou fazendeiros, líderes comunitários influentes, índios e escravos. E o deslocamento desses líderes para outras cidades levou o protestantismo a outras regiões do país.

Sua pregação itinerante começou em junho de 1866, na cidade de Ibiúna, e, a partir daí, fez cinco grandes viagens missionárias no período de um ano, no lombo de mulas ou a pé. Elas tiveram os seguintes itinerários:
·               1ª viagem (03.03.1866 a 03.06.1866) – Ibiúna, Sorocaba, Brotas, Limeira, Campinas, Belém (Itatiba), Bragança, Atibaia e São Paulo.
·               2ª viagem (04.06.1866 a início de outubro de 1866) – São José dos Campos, Caçapava, Taubaté, Pindamonhangaba, Aparecida, Guaratinguetá, Queluz, Rezende, Barra Mansa, Piraí, e retornou passando pelas mesmas cidades, uma a uma, até chegar a São Paulo.
·               3ª viagem (final de outubro de 1866 a 16.12.1866) – Cotia, Ibiúna, Piedade, São Roque, Piracicaba, Porto Feliz, Itu, Brotas, Itaquari (Itirapina), Rio Claro, Limeira, Piracicaba, Capivari, Campinas Belém (Itatiba), Bragança, Atibaia, Santo Antônio da Cachoeira (Piracaia), Nazaré Paulista, Santa Isabel e São Paulo.
·               4ª viagem (21.01.1867 a 07.02.1867) – Jacareí, Taubaté, Pindamonhangaba, voltando por Caçapava, São José, Jacareí, Taubaté e São Paulo
·               5ª viagem (14.02.1867 a 02.04.1867) – Santa Izabel, Nazaré Paulista, Santo Antônio da Cachoeira (Piracaia), Bragança, Amparo, Mogi Mirim, Ouro Fino, Borda da Mata, Santa Ana do Sapucaí (Silvianópolis) e, por fim, voltando a São Paulo.
Durante essas jornadas se hospedava em casas de pessoas que se sentia abençoadas com sua presença. Chegou a se hospedar na casa do subdelegado em Ibiúna, discutiu com padres em Aparecida, foi ao Rio de Janeiro participar da consagração pastoral do missionário Chamberlain, em meio da sua segundo viagem.

Foi excomungado por apostasia em 2 de abril de 1867, um ano e cinco meses após sua ordenação pastoral. No dia 3 de maio de 1867 escreveu sua resposta à excomunhão, onde apresentou as incoerências entre o catolicismo e o protestantismo. Em seguida empreendeu viagem pelos arredores de São Paulo, tendo sido recebido por um padre, velho amigo quer ainda o amava.

No final de maio de 1867, apresentou no Rio de Janeiro um relatório onde destacou o poder da Palavra e do Espírito. Contou que crianças convertidas quebravam os ídolos de seus pais, pregavam a estes e até para os padres.

Nos Estados Unidos, onde ficou por um ano para descansar, fez conferências, produziu trabalhos literários, traduziu, fez revisão, e produziu uma versão portuguesa do Novo Testamento.

De volta ao Brasil em outubro de 1868, faz nova viagem passando por Angra dos Reis, Parati, Cunha, Lorena e chegando a São Paulo.

Sentindo-se abandonado, continuou suas viagens. Mais uma vez só. Passou, então, a dedicar-se aos mais humildes, levando instrução religiosa e caridade, apoio social, orientações de higiene, atuando com enfermeiro, ajudando em serviços domésticos.

Por mais quatro anos fez assim, vivendo humildemente. Morreu enquanto dormia, num catre emprestado pelo major Fausto de Souza, autor de sua primeira biografia, tamanho impacto que lhe causou o pequeno contato que teve com o apóstolo. O major, convertido, tornou-se médico, presidente da província de Santa Catarina e defensor do protestantismo pregado por José Manoel da Conceição.

Referências bibliográficas

Mathias, Luiz Guilherme Lochem, Ser protestante, sendo brasileiro, Uma leitura “tillihciana” da vida e dos escritos do pastor José Manoel da Conceição, dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Juiz de Fora, 2008.
Mendonça, Antonio Gouvea, Protestantismo no Brasil, Apontamentos sobre sua contribuição para a cultura brasileira, ABIEE -- I Encontro para historiadores, Piracicaba, São Paulo, 2004.
Ribeiro, Boanerges, O Padre Protestante, Casa Editora Presbiteriana, São Paulo, 1950.
Léonard, Émile-G., O Protestantismo Brasileiro: Estudo de Eclesiologia e História Social, ASTE, São Paulo, SP, 1963. Tradução do francês por Linneu de Camargo Schützer.
Souza, Major Fausto de Ex-Padre José Manuel da Conceição, Imprensa Evangélica, Fevereiro de 1884.

Jornal
O Puritano, Ano II, n.º 54, 14 de junho de 1900.
_________, Ano II, nº 55, 21 de junho de 1900.
_________, Ano II, no. 56, 28 de junho de 1900






[1] O Puritano, 14 de junho de 1900, p. 1 e seguintes.
[2] José Manoel da Conceição, Profissão de fé Evangélica, O Puritano, Ano III, no. 59, p. 2.