Paul Tillich
é considerado um dos pensadores mais
influentes do século 20. Ensinou teologia e filosofia em várias universidades
alemãs e foi para os Estados Unidos em 1933. Por muitos anos, foi professor de
Teologia e Filosofia no Union Theological Seminary em Nova Iorque e, mais
tarde, na Universidade de Harvard. Entre suas obras mais conhecidas podemos
citar: Teologia Sistemática, A Coragem para Ser, Dinâmica da Fé, Amor, Poder e
Justiça, e Teologia da Cultura.
Aqui analisaremos textos de Paul Tillich para
reflexão sobre quatro temas: a dimensão religiosa; tempo e universalidade; da
heteronomia à teonomia; do luteranismo ao socialismo religioso.
"Em tais circunstâncias, desprovida de um lar, de um
lugar onde estabelecer sua morada, a religião descobre logo que não é
necessária tal morada, que não necessita procurar um lar. Seu lar está em todas
partes, quer dizer, na profundeza de todas as funções da vida espiritual da
pessoa.
A religião é a dimensão da profundidade em todas
elas, é o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano.
O que significa a metáfora profundidade? Significa
que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual da
pessoa, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental
do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em
absolutamente todas as funções criativas do espírito humano.
Manifesta-se na esfera moral com a seriedade
incondicional do imperativo moral; donde, quando alguém rechaça a religião em
nome da função moral do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria
religião.
Manifesta-se no reino do conhecimento como a busca
apaixonada de uma realidade última; por isso, quando alguém rechaça a religião
em nome da função cognitiva do espírito humano, rechaça a religião em nome da
própria religião.
Manifesta-se na função estética do espírito humano
como o anelo infinito de expressar um significado último; donde, quando alguém
rechaça a religião em nome da função estética do espírito humano, rechaça a
religião em nome da própria religião.
A religião
constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do ser
humano. Eis o aspecto religioso do espírito humano".
Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros
ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires,
Amorrortu Editores, 1974, pp. 16-17. (Este texto foi publicado originalmente em
Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954).
A luta entre o tempo e o espaço
"O eterno do tempo é o Eterno da história. Isso
significa em primeiro lugar, que é o Deus que atua na história com destino a
uma meta final. A história segue uma direção, algo novo há de criar-se nela e
por intermédio dela.
Essa meta designa-se de várias maneiras:
bem-aventurança universal, vitória sobre os poderes demoníacos representados
pelas nações imperialistas, chegada do Reino de Deus na história e, mais além
da história, transformação da forma do mundo, etc.
Os símbolos são muitos – alguns mais imanentes, como
no profetismo antigo e no moderno protestantismo, outros mais transcendentes,
como nas doutrinas apocalípticas posteriores e no cristianismo tradicional --,
mas em todos os casos o tempo dirige, cria algo novo, uma “nova criatura”, como
chama Paulo.
O trágico círculo do espaço foi superado. A história
tem um princípio e um fim definidos.
No profetismo, a história é história universal.
Negam-se as limitações espaciais, as fronteiras entre as nações. Para Abraão
todas as nações serão benditas, todas poderão adorar a Deus no monte Sião, o
sofrimento da nação escolhida tem o poder de salvar todas as demais. O milagre
do Pentecostes supera as diferenças do idioma.
Em Cristo salva-se e une-se o cosmo, o universo. Em
sua tentativa de criar uma consciência humana indivisa, as missões têm um
caráter universal. O tempo alcança plenitude na história e a história a alcança
no reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz.
Isso nos leva ao ponto decisivo da luta entre o tempo
e o espaço. O monoteísmo profético é o monoteísmo da justiça. Os deuses do
espaço suprimem, necessariamente, a justiça. O direito ilimitado de todo deus
espacial choca inevitavelmente com o direito ilimitado de outro deus espacial.
A vontade poder de um dos grupos não pode fazer justiça ao outro. Isso é válido
para os grupos poderosos que operam dentro da nação e para as próprias nações.
O politeísmo, a religião do espaço, é forçosamente
injusto. O direito ilimitado de todo deus do espaço anula o universalismo
implícito na idéia de justiça.
Este é o único significado do monoteísmo profético.
Deus é um porque a justiça é uma. A ameaça profética que pende sobre o povo
eleito, de ser rechaçado por Deus, por causa da injustiça, é a verdadeira
vitória sobre os deuses do espaço.
A interpretação da história que nos dá o
dêutero-Isaías, segundo o qual Deus chama os demais povos para castigar o povo
por Ele escolhido, devido à sua injustiça, confere a Deus um caráter universal.
A tragédia e a injustiça são próprias dos deuses do
espaço; a realização histórica e a justiça o são de Deus que atua no tempo, e
por seu intermédio, unindo no amor o vasto espaço de seu universo".
Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros
ensayos, A luta entre o tempo e o espaço, Buenos Aires, Amorrortu Editores,
1974, pp. 40-42.
Entre a heteronomia e a autonomia
"Todo sistema político requer autoridade, não só no
sentido de possuir instrumentos de força, mais também em termos de consentimento
mudo ou manifesto das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que
está no poder representa uma idéia poderosa, que goze de significado para
todos.
Existe, pois, na esfera política uma relação entre a
autoridade e a autonomia, relação que em Tillich no ensaio O Estado como
promessa e como tarefa caracteriza como segue:
“Toda estrutura política pressupõe poder e,
conseqüentemente, um grupo que o assume. Posto que um grupo de poder é também
um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses, sempre
necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida
em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade
política. Os sistemas ditatoriais carecem de correções contra o abuso da
autoridade por parte do grupo de poder. O resultado é a escravidão da nação
inteira e a corrupção da classe dirigente”.
Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros
ensayos, Entre a heteronomia e a autonomia, Buenos Aires, Amorrortu
Editores, 1974, pp. 239-240.
Entre o luteranismo e o socialismo
É relativamente simples chegar ao socialismo quando
se parte do calvinismo, em especial em suas formas mais secularizadas da última
época; o caminho está muito mais cheio de obstáculos quando passa pelo luteranismo.
Sou luterano de berço, educação, experiência
religiosa e reflexão teológica. Nunca me situei no limite entre o luteranismo e
o calvinismo, nem sequer depois de experimentar as desastrosas conseqüências da
ética social luterana e de reconhecer o inestimável valor da idéia calvinista
do Reino de Deus para a solução dos problemas sociais.
A essência de
minha religião continua sendo luterana. Ela abarca uma consciência de corrupção
do existir, o repúdio de todo tipo de Utopia social (incluindo a metafísica do
progressismo), a compreensão da natureza irracional e demoníaca da existência,
o reconhecimento do elemento místico na religião, e o rechaço do legalismo
puritano na vida privada e corporal.
Também meu pensamento filosófico expressa esse conteúdo
singular. Até agora, só Jacob Bohéme, porta-voz filosófico do misticismo
alemão, tentou uma elaboração especificamente filosófica do luteranismo.
Através dele o misticismo luterano influenciou Schelling e o idealismo alemão,
e através de Schelling, por sua vez, os filósofos irracionalistas e vitalistas
que emergiram nos séculos XIX e XX.
Na medida em que grande parte da ideologia
anti-socialista se baseou sobre estes últimos, o luteranismo atuou
indiretamente através da filosofia e também diretamente como forma de controle
sobre o socialismo.
Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros
ensayos, Entre o luteranismo e o socialismo, Buenos Aires, Amorrortu
Editores, 1974, pp. 259-263.
Além do Socialismo Religioso
Pareceu-nos interessante como forma de apresentar
Paul Tillich, deixar que ele próprio nos fale de sua experiência
norte-americana. Para isto, estamos partindo das idéias que apresenta em artigo
publicado no Christian Century, em 15 de junho de 1949, e cujos direitos
pertencem a Christian Century Foundation. Este artigo, em inglês, pode ser
encontrado no site www.christiancentury.org
e foi preparado por Ted & Winnie Brock para Religion Online. Aqui não nos interessa transcrever o artigo
do Christian Century, mas discutir as idéias expostas pelo teólogo
alemão.
Tillich conta
que não viveu uma mudança dramática de vida e experiência intelectual nos anos
40, mas uma lenta transformação, praticamente inconsciente, fruto de uma
contínua adaptação aos modos e pensamento norte-americanos.
Ele conta que
no verão de 1948, quando voltou pela primeira vez à Alemanha, desde 1933, viveu
um claro teste da enorme mudança que sofreu. Houve uma mudança em seu modo de
se expressar. O idioma inglês trabalhou nele, produzindo algo que seus amigos
alemães consideraram um milagre: o fez compreensível. Nenhum anglicismo
apareceu nas palestras que fez, mas o espírito do idioma inglês dominou seu
coração, dando-lhe clareza, sobriedade e concretude.
Isto aconteceu
indo contra suas inclinações naturais. Aprendeu a evitar o acúmulo de
adjetivos, coisa freqüente no idioma alemão. Passou a evitar as ambigüidades,
que é um vício freqüente do linguajar filosófico alemão. Além disso, o fez
baixar à terra, rompendo com suas longas abstrações.
“Tudo isso foi muito bem
recebido por meus auditórios alemães, sendo visto como uma impressionante
mudança de mente”.
Falando na Alemanha sobre a situação da teologia no
EUA, Tillich disse aos seus conterrâneos que a América estava adiante da Europa
em teologia histórica e sistemática e mais ainda em relação à ética. Podia
dizer isso porque tinha se dado conta de que as éticas são um elemento
integrante de teologia sistemática, e teve muito tempo para aprender sobre as
éticas individuais no pensamento americano.
No que se refere às éticas sociais, Tillich havia
partido de sua experiência militante e teórica como socialista religioso na
Alemanha. Mas foi nos Estados Unidos que ele percebeu a importância central que
as éticas sociais têm para a teologia norte-americana. Por isso, considerava
que ganhou teologicamente com sua experiência estadunidense.
“Nos meus
primeiros anos nos Estados Unidos fiquei surpreso e preocupado com a tremenda
ênfase dada à questão do pacifismo, algo que me parecia de importância
secundária e de resultado confuso. Mais tarde, descobri que todos os problemas
teológicos giravam ao redor desta questão. Quando nos anos anteriores, durante
e depois da Segunda Guerra Mundial, a ideologia pacifista foi quebrada, vi que
esta era uma indicação de que surgia uma atitude nova em relação à doutrina do
homem e em relação ao Cristianismo. Esta mudança de mentalidade tornou tudo
mais fácil para mim e me fez sentir em casa em meu trabalho teológico”.
"Quando vim para América, em 1933, fui rotulado de
neo-ortodoxo ou neo-supernaturalista. O que era incorreto, mas tenho de admitir
que algumas das expressões que utilizava diante das audiências americanas
levaram a tal uma impressão. Minha tarefa nos anos trinta era dar a meus alunos
e aos outros ouvintes conta de minhas idéias teológicas, filosóficas e
políticas, como tinham se desenvolvido durante os anos críticos de 1914 a 1933".
"Trouxe comigo da Alemanha a teologia de crise, a
filosofia de existência e o socialismo religioso. Tentei traduzir essas
expressões para meus alunos e leitores. Em todos os três destes campos -- o
teológico, o filosófico e o político -- meu pensamento sofreu mudanças, em
parte por causa de experiências pessoais, em parte por causa das transformações
sociais e culturais que estes anos testemunhou.
A maior das mudanças a nível mundial foi o político
-- das incertezas dos anos trinta ao estabelecimento, nos anos quarenta, de um
mundo de intenso dualismo -- assim como o ideológico. Antes da Segunda Guerra
Mundial havia espaço para a esperança de que o espírito religioso-socialista
penetrasse no Leste e no Ocidente, mesmo que de forma diferente, diminuindo os
contraste e prevenindo os conflitos entre eles. Hoje não há base para nenhuma
esperança. A expectativa que tínhamos depois da Primeira Guerra Mundial era de
um kairós, de plenitude do tempo, mas tal esperança foi duas vezes
abalada, primeiro pela vitória do fascismo e depois por sua derrota militar.
Não duvido que as concepções básicas do socialismo
religioso sejam válidas, que apontem ao modo político e cultural de vida pela
qual a Europa pode ser construída. Mas não estou seguro de que a adoção dos
princípios do socialismo religioso seja uma possibilidade num futuro
previsível. Em vez de um kairós criativo, vejo um vazio que só pode ser
feito criativo se aceitar e suportar, rejeitando todos os tipos de soluções
prematuras. Esta visão significa uma diminuição de minha participação
naturalmente em atividades políticas. Minha mudança de mente também foi
influenciada pelo desarranjo completo de uma tentativa política séria que fiz
durante a guerra para atravessar a abertura entre Leste e Oeste com respeito à
organização de Alemanha pós-guerra".
Tillich diz que fala-se muito do repúdio das liberdades
civis e os direitos do ser humano nos países comunistas, que significou uma
desilusão para os liberais no mundo inteiro. Mas não pode ser negado que este
repúdio dos direitos humanos teve também um efeito devastador naqueles que
defendiam o socialismo religioso, como ele, que sem ser utópico, acreditava no
amanhecer de uma era criativa, mas viu o mundo mergulhar num momento de
profunda escuridão.
"Existencialismo era bem familiar para
mim, antes mesmo da palavra entrar em uso geral. A leitura de Kierkegaard em
meus anos de estudante, o estudo completo dos trabalhos posteriores de
Schelling, a devoção apaixonada por Nietzsche durante a Primeira Guerra
Mundial, o encontro com Marx (especialmente com os escritos filosóficos dele),
e finalmente minhas próprias tentativas religioso-socialistas me levaram a uma
interpretação existencial da história. Assim, eu estava preparado para a
ilosofia existencial desenvolvida por Heidegger, Jaspers e Sartre.
Apesar de o existencialismo virar moda, confirmei
minha convicção de que sua verdade básica para a condição presente. A verdade
básica desta filosofia, como vejo, é sua percepção da liberdade finita do ser
humano, e, por conseguinte, da situação dele como perigoso, ambíguo e trágico.
Existencialismo ganha sua significação especial para nosso tempo no imenso
aumento em ansiedade, perigo e conflito na vida pessoal e social devido à
estrutura destrutiva presente dos negócios humanos.
A filosofia existencial se aliou com a psicologia
profunda. Só pela recente guerra e seu resultado se tornou manifesto que doença
psíquica -- a inabilidade para usar criativamente a liberdade finita da pessoa
-- é mais difundida neste país que qualquer outra doença. Ao mesmo tempo
psicologia de profundidade removeu sobras do pensamento do século 19 - ao nível
do sociológico, ontológico e até mesmo implicações teológicas de fenômenos como
ansiedade, culpa e neurose de compulsão. Fora desta nova cooperação da
ontologia e da psicologia (inclusive psicologia social) uma doutrina do ser humano
exerceu influência considerável em todos os reinos culturais, especialmente em
teologia.
Segundo Tillich foi sob esta influência que elaborou
seu sistema teológico: "da possibilidade de unir o poder religioso de teologia
neo-ortodoxa com a necessidade de levar a mente contemporânea à reflexão
existencial, o que resultou na concepção do "método de correlação",
quer dizer, perguntas existenciais e respostas teológicas. A situação humana,
como interpretado pela filosofia existencial, a psicologia e sociologia
posiciona a pergunta; a revelação, interpretado a partir dos símbolos de
teologia clássica, dá a resposta. A resposta, claro, deve ser reinterpretada à
luz da pergunta, como a pergunta deve ser formulada à luz da resposta.
Parece mim, é possível evitar dois erros
contraditórios em teologia, o supernaturalista e o naturalista. O primeiro faz
da revelação uma pedra que cai em acima da história, aceita obedientemente,
eliminando qualquer suficiência da natureza humana. O segundo substitui
revelação por uma estrutura de pensamento racional derivada que julga através
de natureza humana. O método de correlação superan o conflito entre
supernaturalismo e naturalismo, eliminando a contradição permanente entre
fundamentalismo ou neo-ortodoxia por um lado e humanismo teológico ou
liberalismo por outro.
No curso desta tentativa ficou claro para mim que a
denominada teologia liberal tem que ser defendida com paixão ética e
científica. Isto é, permanece o direito e dever da crítica filológico-histórica
da literatura bíblica sem qualquer condição, a não ser a integridade de
pesquisa e honestidade científica. Qualquer interferência dogmática com este
trabalho nos dirigiria a superstições novas ou velhas -- mitos e símbolos -- o que não pode ser feito sem a supressão
de conhecimento. O poder deste neobiblicismo é óbvio na Europa continental, mas
já pode ser sentido também aqui, e até mesmo entre liberais antiquados.
Olhando para a última década de minha vida eu não
vejo nenhuma mudança dramática de mente, mas um desenvolvimento lento de minhas
convicções na direção de maior claridade e certeza. Acima de tudo eu vim
perceber que algumas grandes e duradouras coisas são decisivas para a mente
humana, e que agarra-las é mais importante que procurar mudanças dramáticas".
Bibliografia
Paul Tillich, Die sozialistische Entscheidung. In:
Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen
Sozialismus. Gesammelte Werke II, Stuttgart, Evangelisches Verlagswerk,
1962, 219-265. Trad. fr. in: Écrits contre les nazis (1932-1935).
Paris/Genève, Le Cerf/Labor et Fides, 1994. Trad. ing. in: Against the Third
Reich, Paul Tillich’s Wartime Radio Broadcasts into Nazi Germany,
editado por Ronald H. Stone, Mathew Lon Weaver.
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