mercredi 28 septembre 2016

Eclesiologia e revolução anabatista

    Jorge Pinheiro, PhD

No Novo Testamento o termo igreja é usado para designar o povo de Deus na sua totalidade, ou só uma assembléia local. A igreja é uma comunidade fraterna das pessoas redimidas por Cristo Jesus, divinamente chamadas, divinamente criadas, e feitas uma só debaixo do governo soberano de Deus. A igreja como uma entidade local um organismo presidido pelo Espírito Santo é uma fraternidade de crentes em Jesus Cristo, que se batizaram e voluntariamente se uniram para o culto, estudo, a disciplina mútua, o serviço e a propagação do evangelho, no local da igreja e até os confins da terra.

A igreja, no sentido lato, é a comunidade fraterna de pessoas redimidas por Cristo e tornadas uma só na família de Deus. A igreja, no sentido local, é a companhia fraterna de crentes batizados, voluntariamente unidos para o culto, desenvolvimento espiritual e serviço.

A igreja, como uma entidade, é uma companhia de crentes regenerados e batizados que se associam num conceito de fé e fraternidade do evangelho. Propriamente, a pessoa qualifica-se para ser membro de igreja por ser nascida de Deus e aceitar voluntariamente o batismo. Ser membro de uma igreja local, para tais pessoas, é um privilégio santo e um dever sagrado. O simples fato de arrolar-se na lista de membros de uma igreja não torna a pessoa membro do corpo de Cristo. Cuidado extremo deve ser exercido a fim de que sejam aceitas como membros da igreja somente as pessoas que deem evidências positivas de regeneração e verdadeira submissão a Cristo.

Ser membro de igreja é um privilégio, dado exclusivamente a pessoas regeneradas que voluntariamente aceitam o batismo e se entregam ao discipulado fiel, segundo o preceito cristão.

O batismo e a ceia do Senhor são as duas ordenanças da igreja. São símbolos, mas sua observância envolve fé, exame de consciência, discernimento, confissão, gratidão, comunhão e culto. O batismo é administrado pela igreja, sob a autoridade do Deus triúno, e sua forma é a imersão daquele que, pela fé, já recebeu a Jesus Cristo como Salvador e Senhor. Por esse ato o crente retrata a sua morte para o pecado e a sua ressurreição para uma vida nova.
A ceia do Senhor, observada através dos símbolos do pão e do vinho, é um profundo esquadrinhamento do coração, uma grata lembrança de Jesus Cristo e sua morte vicária na cruz, uma abençoada segurança de sua volta e uma jubilosa comunhão com o Cristo vivo e seu povo.

O batismo e a ceia do Senhor, as duas ordenanças da igreja, são símbolos da redenção, mas sua observância envolve realidades espirituais na experiência cristã. 

O socialismo nasceu no final da Idade Média com os anabatistas, no início do século dezesseis. Eles eram cristãos reformados que se levantaram contra a dominação dos príncipes alemães e da igreja católica. Partiram de uma frase de Marcos, apóstolo de Jesus, que disse que quem cresse e fosse batizado seria salvo. A partir dessa afirmação, deduziram que quem não crê de nada serviu o batismo quando pequeno. Então, negaram todo valor ao batismo de crianças, afirmando que aquele sacramento, até então o batismo era visto como sacramento, deveria ser recebido quando a pessoa tivesse plena consciência do que estava a fazer. E aqueles que tinham sido batizados antes da idade da razão, sem consciência do que estavam recebendo, deveriam ser batizados de novo. E as células e as comunidades anabatistas começaram a crescer. 

O crescimento dos anabatistas na Alemanha e na Europa central se tornou um problema para as autoridades eclesiásticas, porque propunha às pessoas a não batizarem seus filhos. Logicamente, os católicos e, por extensão, os reformados se colocaram em oposição direta a essa idéia, e o como o poder eclesiástico estava intimamente ligado aos príncipes feudais na Alemanha e também na Europa central, as forças do feudalismo se lançaram ao extermínio dos anabatistas.

Nessa conjuntura de choque, em Zurique, em meio ao pessoal que seguia o reformador Zwinglio, surgiu um grupo de anabatistas que rejeitou o poder eclesiástico, fosse ele reformado ou católico, exigindo a autonomia das comunas cristãs. E, assim, eles próprios passaram a escolher seus pastores e a construir comunidades separadas do estado. E a confissão de Schleithein reagrupou várias dessas comunidades ao redor das sete teses de Schaffhouse, o primeiro tratado de teologia anabatista, que dizia: 

(1) O batismo está reservado aqueles que aceitam a fé, quer dizer, aos adultos seguros da redenção, que desejam viver fielmente a mensagem do Cristo. (2) A ceia do Senhor não é simbólica: é uma cerimônia de lembrança feita com pão e vinho, mas nela não há nem consubstanciação, nem transubstanciação. (3) O pastor é eleito livremente pela comunidade e não está investido do sacerdócio. (4) Estão excluídos da ceia do Senhor todos os fiéis que caíram em erro ou pecado. (5) A separação do mundo é total: tanto eclesiástica como política. É necessário se separar de todas as instituições que não vivem o Evangelho. (6) Um anabatista não pode exercer funções civis e nunca servir às forças militares do mundo. (7) Ele não deve jamais fazer juramento.

Mas, sem dúvida, o pastor luterano Thomas Müntzer foi o grande líder na construção de uma abordagem socialista da revolução camponesa é. Em 1521, liderou um grupo de anabatistas que se somaram aos camponeses sublevados ao redor da reivindicação de terra e liberdade. Müntzer criou assim, pela primeira vez na história um movimento de libertação camponês anabatista. 

Müntzer não foi apenas um teólogo, mas um militante que praticava sua fé. Acreditava ser um profeta de Deus, chamado para implantar o Reino de Deus. Seu dever era denunciar e executar as sentenças contra os governantes que exploravam o povo. Suas pregações estavam impregnadas de conteúdo social e político: o fim da velha igreja deveria marcar o inicio de uma nova ordem social.

Friedrich Engels, colaborador de Karl Marx, argumenta que nas guerras camponesas lideradas pelos anabatistas se travaram lutas de classe. E apesar de terem uma cara religiosa, suas reivindicações iam além da expressão religiosa que apresentavam. Para Engels, a política de Müntzer nasceu de seu pensamento revolucionário, que caminhava adiante da situação social e política de sua época da mesma maneira que sua teologia. Seu programa exigia o estabelecimento imediato do Reino de Deus, com o milênio de felicidade, anunciado como retorno da Igreja à sua origem, com a supressão de todas as instituições que se encontravam em contradição com o mandamento de Cristo.

Para Müntzer, o céu estava aqui no chão. E por isso o militante cristão deveria construí-lo na vida. A esse militante cabia a missão de estabelecer o reino de Deus sobre a terra. Assim, depois da morte não haveria céu, nem inferno. Da mesma maneira, não existia diabo, mas a cobiça dos senhores feudais. Seus sermões se mesclavam ao clamor político, que deveria instaurar uma ordem social. A partir de Müntzer, os anabatistas fizeram dos sermões proféticos, elaborados a partir da realidade social em que estavam inseridos, manifestos revolucionários, cujas propostas atemorizavam príncipes e governantes eclesiásticos em toda a Europa. A compreensão que os anabatistas tiveram através do cristianismo da condição social em que se encontravam os camponeses e excluídos, sem dúvida, quebra o estereótipo da fé como fator de alienação social e política. 

Mais tarde, em combate, seu exército foi derrotado e ele foi preso e executado. Mas a guerra camponesa na Alemanha se estendeu até 1525, quando os anabatistas revolucionários foram afogados em sangue.

O sonho anabatista, porém, não morreu aí, subsistiu no coração de muitos. Sete anos depois da morte de Thomas Müntzer, em 1532, uma insurreição tomou conta da cidade de Müntzer. Ela foi iniciada por um ex-padre da Catedral de Müntzer, que se tornou luterano, Bernard Rothmann. Mas este foi expulso da cidade e na seqüência, em 1534, o pastor anabatista Jan Matthys, junto com outros líderes, entre os quais Jan van Leiden e Gert Tom Kloster, declarou a cidade livre do domínio dos príncipes e do poder eclesiástico. 

Matthys iniciou uma revolução social: os proprietários de terras foram expropriados e suas terras e bens distribuídos entre os camponeses. Dando seqüência à revolução, ele e um grupo de anabatistas atacaram a guarnição liderada pelo príncipe Franz von Waldeck, que era também bispo de Münster e chefe do exército. No confronto Matthys foi morto. Foi, então, sucedido por Jan van Leiden. Após um ano de resistência, Waldeck liderou um exército bem equipado e assaltou a cidade. Jan van Leiden e seus oficiais foram torturados e executados. Os combatentes anabatistas foram lançados às prisões e, posteriormente, deportados para outras regiões da Alemanha e Suíça. 

A partir desse momento as pequenas comunidades anabatistas, que reuniam crentes conscientes de sua fé, passaram a viver umas isoladas das outras, de forma clandestina. Seus líderes eram leigos que pregavam em roupas civis. Adotavam uma disciplina e uma ética rígidas a fim de sobreviverem na clandestinidade. Essas pequenas igrejas se refugiaram no interior da Europa e se estruturaram de forma autônoma. Cada igreja vivia do compromisso de cada crente. 

O massacre dos camponeses em Frankenhausen, em 1525, e a morte de Thomas Müntzer permitiram que Hans Denck (1500-1527) surgisse como o grande pensador do anabatismo do sul da Alemanha. Se o anabatismo de Müntzer tinha duas faces, uma de transformação interna, pessoal, no poder do Espírito, e outra de transformação social, que se correlacionavam numa visão revolucionária do Reino de Deus, o anabatismo de Denck tinha apenas uma face: calcava-se na revolução interna das pessoas e era de expressão pacifista. Assim, o anabatismo de Denck repousou sobre a renovação das pessoas e não sobre a revolução da sociedade. 

A expressão eclesiologia, vem do grego ekklesia, e define a área da teologia cristã que trata da doutrina da igreja: sua origem e seu papel na salvação. Mas analisa também a realidade da igreja em seus aspectos estruturais, história, ou seja, sua forma de se relacionar com o mundo, seu papel social, as mudanças ocorridas, as crises enfrentadas, a relação com outras denominações e sua forma de governo.

O regime de administração eclesiástica congregacionalista é um sistema onde cada congregação local é independente. A igreja local possui autonomia para sua própria reflexão teológica, expansão missionária, relação com outras congregações e seleção de seu ministério. 

Um pouco de história

Convém notar que até 1525-1526, o movimento protestante era mais ou menos informal na Alemanha. Mas com a Guerra dos Camponeses, a secularização de conventos, o abandono do direito canônico e a recusa dos bispos de se associarem ao movimento reformador vão empurrar as autoridades civis, favoráveis às novas orientações, a se envolver na reorganização da igreja reformada. Esta ação vai se inspirar nas visitas pastorais tradicionais, efetuadas antes pelos bispos. Os príncipes alemães passaram, então, a visitar as paróquias, com delegações compostas de juristas e teólogos. A partir de 1530, criaram instituições permanentes com superintendentes, levando as igrejas a ficarem dependentes do príncipe que, de fato, substituiu o bispo. Nascia assim a igreja territorial, apesar das reservas de Lutero. 

Em 1555, a Dieta de Augsbourg proclamou o princípio do Cujus regio, ejus religion segundo o qual o príncipe ou uma outra autoridade podia determinar a religião das pessoas. A legislação e o órgão jurisdicional, em especial matrimonial, passaram para o poder do príncipe, que o entrega a uma instância jurídica: e o príncipe ou o magistrado das cidades passam a ser a autoridade última em matéria de liturgia, doutrina ou nomeação de sacerdotes. Os bens eclesiásticos secularizados são incorporados diretamente às possessões dos príncipes, ou geridos por administradores autônomos, em especial as escolas. Dessa maneira, passa a existir um permanente controle sobre o comportamento religioso e o estado jurídico e financeiro das paróquias, bem como sobre sua ortodoxia e a vida moral dos pastores. Essa situação se estende pela Europa reformada, Escandinávia e Inglaterra e Suíça. Apesar do peso das autoridades políticas ser considerável, em Genebra e Estrasburgo e alguns outros lugares, as relações permanecem tensas entre as autoridades eclesiásticas e autoridades civis. O que faz com que, diante da hostilidade das autoridades civis, igrejas reformadas tenham dificuldades de se implantar e sobreviver. Isso vai acontecer na Espanha, na Itália e na França, onde os reformados enfrentam a oposição do direito canônico católico e dos Parlamentos. Mas, em alguns desses locais, serão apoiados pela nobreza local e pelas autoridades de certas cidades. Apesar das perseguições, muitas igrejas vão se organizar de acordo com os princípios da eclesiologia calvinista, a fim de serem reconhecidos e tolerados pelo Édito de Nantes, de 1598. 

Thomas Müntzer e outros dissidentes do protestantismo reformado procuraram mobilizar seus pares e exigir das autoridades políticas liberdade de expressão e de ação religiosas e criaram comunas autônomas, proibindo os seus adeptos de exerceram funções políticas no Estado. Tal postura abriu o caminho para a perseguição. Os anabatistas, mas também os espiritualistas, como Frank e Schwenckfeld, denunciaram a ação repressiva das autoridades políticas contra as igrejas e a sua intervenção no domínio da fé. Mas, apesar do protestantismo reformado ter apresentado a afirmação do indivíduo frente ao Estado, Lutero considerou que ninguém não podia crer que sua consciência era vinculada apenas ás Escrituras. Assim, a Reforma viveu esse paradoxo, reforçou a vida comunitária rejeitando a piedade privada e solitária, valorizou a adoração nas assembléias e insistiu na disciplina.

Em cidades como Estrasburgo levantou a solidariedade com os nécessitados e inaugurou uma espécie de segurança social que beneficiou os pobres que não podiam mais trabalhar. Assim, a partir de Lutero, a vida monástica quase desapareceu do espaço protestante. A vida eclesiástica dos protestantes desenvolveu-se exclusivamente no âmbito das igrejas. Desapareceu a separação de naturezas entre o clero e o fiel. O pastor, casado e integrado na vida social, preencheu uma função entre outras. E as formas de organização das Igrejas passaram a ser variadas. Se, no âmbito luterano, o peso das autoridades civis era considerável, em tensão com pastores e em detrimento da participação dos fiéis, com Calvino, as igrejas reformadas criaram uma eclesiologia que se caracterizou por quatro ministérios: pastores, anciãos, diáconos e doutores. Reunidos em consistório, pastores e anciãos cuidavam da disciplina eclesiástica, excluindo de cena os pecadores impenitentes. As igrejas reformadas na França, por exemplo, adotaram este sistema, mas instituíram também sínodos provinciais e sínodo nacional. Mas em outros lugares, surgiram alternativas a esta perspectiva reformada. Bucer e outros, por exemplo, valorizaram a família, promovendo cultos de família nucleados pelo chefe da casa, sublinhando o seu papel no ensino. Desiludido com a debilidade da vida comunitária nas grandes igrejas de Estrasburgo, Bucer estabeleceu, em 1547, a função de eclesiólogo nas igrejas, o Christliche Gemeinschaften, que não estavam sujeitos ao controle do magistrado. A partir desse momento, uma pessoa poderia aderir à igreja por livre confissão de fé pessoal, submetendo-se à disciplina da igreja. Tais reuniões, que lembram nossas escolas bíblicas, completar o ensino apresentado nos cultos e promoviam o crescimento da fé comunitária. A experiência durou alguns anos, mas foi retomada posteriormente por Spener, o pai do pietismo.

A Reforma Protestante do século XVI reacendeu os princípios bíblicos da justificação pela fé e do sacerdócio universal, que foram novamente colocados em foco. Contudo, enquanto Lutero, Calvino e Zuínglio mantiveram o batismo infantil e a vinculação da igreja ao Estado, os anabatistas liderados por Georg Blaurock, Conrad Grebel e Félix Manz, a partirt de uma compreensão congregacional da igreja, caminharam em direção a uma reforma mais radical, em última instância, revolucionária. Os anabatistas fundaram então sua primeira igreja no dia 21 de janeiro de 1525, próxima a Zurique, na Suíça, de acordo com a doutrina e conduta cristãs pregadas no Novo Testamento e testemunharam alegremente de sua nova vida em Cristo.

De forma geral, podemos apresentar alguns pontos centrais da teologia anabatista: a Bíblia, principalmente a ética do Novo Testamento, deviam ser obedecidas como a vontade de Deus, embora não sistematizassem tal teologia, mas aplicavam-na no dia-a-dia. A interpretação da Bíblia era realizada nos cultos e reuniões da igreja. Essa posição de evitar discussões teológicas evitou divisões de carácter doutrinários nas denominações anabatistas. 

Os credos e confissões eram vistos apenas como documentos que tinham como objetivo demonstrar em que se se cria, assim não requeriam adesão formal a eles. Aceitavam, portanto, em essência os credos históricos do Cristianismo, mas não o professavam.

A igreja era congregacional. O regime de administração eclesiástica congregacional é um sistema onde cada igreja local é independente, e possui autonomia para sua própria reflexão teológica, expansão missionária, relação com outras igrejas e seleção de seu ministério. Assim, cada igreja anabatista era uma comunidade voluntária formada de pessoas renascidas, e não eram subordinadas à nenhuma autoridade humana, fosse ela o Estado, ou hierarquia religiosa. Evitavam, também, participar das atividades governamentais, jurar lealdade a nação, participar de guerras. Para os anabatistas, a igreja não é uma instituição espiritual e invisível, mas uma coletividade humana e real, marcada pela separação do mundo e do pecado, com uma posição afirmativa em seguir os mandamentos de Cristo. 

Todas as igreja anabatistas celebravam o batismo adulto por infusão como símbolo de reconhecimento e obediência a Cristo. Foi por isso que ficaram conhecidos como anabaptistas, “re-baptizadores”, do grego “ana” e “baptizo”, em alemão, Wiedertäufer. Eram chamados Wiedertäufer porque seus convertidos eram batizados em idade adulta, desconsiderando o até então batismo obrigatório da igreja romana. Assim, re-batizavam todos os que já tivessem sido batizados em criança, afirmando que o verdadeiro batismo só tem valor quando as pessoas se convertem conscientemente a Cristo.

Além do batismo, consideravam a Santa Ceia não transmitia graça, mas um ato in memoriam da morte morte e ressurreição de de Jesus Cristo.

Afirmavam ainda a autoridade da igreja em disciplinar seus membros e até mesmo definir sua expulsão, a fim de manter a pureza das pessoas e da igreja. Quanto à salvação, os anabatistas criam no livre-arbítrio, defendendo que o ser humano tem a capacidade de se arrepender de seus pecados e Deus regenera e o ajuda a andar em uma vida de regeneração. A compreensão do livre-arbítrio aliada ao conceito de justificação pela fé, tornou-se para os anabatistas a base teórica do pensamento revolucionário que viveram. Pois, se Lutero e a Reforma Protestante clássica aplicaram essa doutrina apenas à vida religiosa-moral, ou seja, o pecador apesar de injusto era justificado pelo sacrifício de Cristo, os anabatistas levaram tal compreensão à esfera social. Ou seja, nenhuma autoridade, fosse religiosa ou secular, teria o direito de exigir a aceitação de qualquer crença correta de quem quer que fosse. A fé à verdade é suprema: é devoção a Deus. Existe um elemento sagrado na integridade que diz não ao poder do Estado e da própria religião quando estas decidem arbitrar sobre o conjunto da sociedade em matéria de fé e conduta religiosa. Dessa maneira, a vida em liberdade somada à justificação pela fé levou os anabatistas à exigência incondicional de lutar pela verdade e pelo bem, o que significou expandir a justiça e a liberdade de pensamento e ação. Fizeram o julgamento da situação presente e partiram para a sua transformação, já que o Reino de Deus devia acontecer aqui, na materialidade das vidas expropriadas e despossuídas. 

Assim, a essência do cristianismo consistiria em uma adesão prática aos ensinamentos de Cristo e a ética do amor regeria todas as relações humanas. 

O que é único na teologia anabatista, principalmente depois de Menno Simons, é a visão peculiar sobre a natureza de Cristo, que possuía uma leitura semi-nestoriana, já que acreditavam que Jesus foi concebido miraculosamente pelo Espírito Santo no ventre de Maria, sem ser biologicamente filho dela, também. Maria, portanto, foi um instrumento usado por Deus, mas não theodokos, mãe de Deus. 

Dessa maneira, podemos dizer que a teologia anabatista é principalmente eclesiologia, tendo sua base na vida comunitária e Igreja. 

Em 21 de janeiro de 1525, Hans Denck foi obrigado a deixar Nuremberg e nunca mais retornar. No curso do próximo ano e meio, ele sofreu o mesmo destino em outras cidades no sul da Alemanha e Suíça devido ao seu espiritualismo radical. Ele se uniu aos anabatistas do sul da Alemanha e se tornou seu líder mais eloqüente até sua morte precoce pela peste em 1527. Esse braço dos anabatistas difere dos Irmãos Suíços. E estes últimos denunciaram a ala de Denck como de irmãos falsos, conforme a Schleitheim Confession.

Sua Confissão Ante o Concílio de Nuremberg é parte da herança teológica dos irmãos hutteritas, dos menonitas e dos pietistas alemães, e seus escritos influenciaram os trabalhos de espiritualistas como Sebastian Frank (1495 1592) e Caspar Schwenckfeld (1490-1561). Frank foi escritor e impressor, expulso de Strasbourg por ordem das autoridades de Ulm, em 1544, reeditou a Vulgata latina a partir de uma versão revista por Servet. Em 1557, foi preso em Frankfurt por ter imprimido um texto sobre a guerra de Schmalkalden. Ele também imprimiu poetas latinos expurgados pela Igreja Católica. Já Caspar Schwenckfeld von Ossig foi um nobre alemão que se converteu ao protestantismo reformado, mais especificamente ao espiritualismo anabatista. Foi um dos promotores da Reforma na Silésia. Schwenckfeld chegou às idéias reformadas através de Thomas Müntzer e Andreas Karlstadt. Divergiu de Lutero em relação à Ceia do Senhor (1524) e seu pensamento influenciou o anabatismo, puritanismo na Inglaterra, e o pietismo. 

Confissão ante o Concílio de Nuremberg, em 1525

Eu, Hans Denck, confesso que verdadeiramente considero, sinto, e percebo que por natureza eu sou uma pessoa pobre de espírito sujeito a toda doença do corpo e da alma.

Ainda assim, eu também sinto alguma coisa dentro de mim que poderosamente resiste a minha obstinação inata e me leva para uma vida ou santidade que parece tão impossível de alcançar como parece inconcebível para o meu corpo ascender ao(s) céu(s) visível (visíveis).

Eles dizem que isso vem para a vida através da fé. Eu deixei estar. Mas quem me deu essa fé? Se isto é inato em mim, então eu devo ter essa vida naturalmente, (mas) não é isso.

Desde a infância eu aprendi a fé dos meus pais e usei a linguagem dela depois, também através da leitura de livros humanitários e, o mais importante, eu me gabava de ter fé mas nunca considerei realmente sua contrapartida, a qual por natureza é inata em mim, apesar de eu ter sido frequentemente reprovado por isso.

Essa falsa [isto é, tradicional] fé decisivamente confronta a pobreza de espírito anteriormente mencionada. Pois vejo verdadeiramente que essa doença inata ou pobreza de espírito não é o todo enquanto empobrecer fundamentalmente; quanto mais eu estou preocupado comigo mesmo, mais necessariamente isto aumenta.

Como uma árvore enferma por natureza, não se torna melhor mas só piora; por mais ataduras e cuidados que tenha, se não atentar para a raiz e dominá-la.

Aquele que gostaria de ter dinheiro e ainda não tem nenhum, diria alegremente ter mil florins se [apenas] isso fosse verdade. Mas como ele não os têm, ele não deve dizer também, a fim de que falando assim ele enganaria as pessoas, e a ele mesmo mais do que todos.

Eu queria muito que eu tivesse fé , isto é, vida. Mas, como isso não é alicerçado completamente dentro de mim, eu não posso enganar nem a mim mesmo, nem aos outros. 

De fato, se eu digo hoje, eu acredito, eu posso, contudo, amanhã reprovar a mim mesmo por mentir, ainda que não eu, mas a verdade [reprova], a qual eu percebo imperfeitamente em mim.

Isso eu reconheço em mim mesmo, sem dúvida, como a verdade, o porquê, meu Deus (!), eu escutarei o que isso deseja me dizer; e eu não deixarei ninguém arrancá-los de mim.

E onde eu discernir o que é elevado ou baixo em uma criatura eu escutarei; para onde isso me dirigir eu irei de acordo com a sua vontade, de onde isso me levar eu fugirei.

Visto como eu suponho [percebo] a Escritura Sagrada em meu poder, eu não entendo nada. Quanto mais essa [verdade] me compele, mais eu consequentemente entendo, não por mérito, mas pela graça.

Por natureza, eu não posso, de fato, crer na Escritura Sagrada. Mas isso [é o que está] em mim, eu não digo, de mim, mas o [qual] me compele sem qualquer desejo ou ato meu, que me compele a ler a Escritura Sagrada por causa do seu testemunho.

Consequentemente, eu a leio e encontro especial testemunho o qual poderosamente confirma que exatamente o que assim me compele é [o] Cristo a quem a Escritura Sagrada testifica ser o Filho do Altíssimo.

Quanto a essa fé, eu não ouso dizer que eu a tenho, pelo motivo declarado. Quão melhor eu vejo que a minha incredulidade não pode estar diante Dele. Por isso, eu digo: Muito bem então, no nome do onipotente Deus, a quem eu temo do fundo do meu coração. Senhor, eu creio, ajuda-me na minha incredulidade! 

Assim como Pedro , eu tomo a Escritura Sagrada para ser um farol que brilha no escuro. A escuridão da minha incredulidade é por natureza profundamente enraizada na verdade. A Sagrada Escritura, o farol, brilha na escuridão, mas não pode por si mesma (por ser escrita por mãos humanas, falada por boca humana, vista por olhos humanos e ouvida por ouvidos humanos) remover plenamente a escuridão. Mas, quando o dia, essa luz eterna amanhece, quando a estrela da manhã que a fé como um grão de mostarda a qual em breve anuncia o sol da justiça do Cristo nasce em nossos corações, como a Sagrada Escritura também testemunha acerca do patriarca Jacó , então apenas assim a escuridão da incredulidade é superada. Isso ainda não está em mim.

Enquanto tamanha escuridão está em mim, é impossível que eu deva entender completamente a Sagrada Escritura. Mas, se eu não a entendo, como eu deveria então tirar [a] fé disso? Isso significaria que a fé origina-se de si mesma se eu alegasse isso antes de ser revelado a mim por Deus.

De fato, aquele que não quer esperar a revelação de Deus mas presume o trabalho que pertence unicamente ao Espírito de Deus, certamente faz pouco do mistério de Deus, documentado na Sagrada Escritura – uma abominação dissoluta diante de Deus – e perverte a graça do nosso Deus em libertinagem, como é apontado nas epístolas de Judas e 2 Pedro .

Daí, logo depois da morte dos apóstolos, seguiram-se muitas divisões ou seitas todas as quais preparadas por si mesmas com a Sagrada Escritura mal compreendida. Por que mal compreendida? Procedendo impetuosamente de acordo com seus próprios pressupostos, elas adquiriram uma falsa fé antes de rogarem a Deus pela verdadeira.

Por isso, Pedro ainda diz que a Sagrada Escritura não é uma questão de interpretação própria , porém compete ao Espírito Santo interpretá-la, quem também a deu primeiro.

Dessa interpretação do Espírito cada um deve primeiramente estar seguro em si mesmo. Onde isto não for assim, é falso e não vale de nada. O que é falso e não vale de nada alguém pode refutar com outro testemunho da Sagrada Escritura.

Essa é a minha posição com a qual eu me apego, de bom grado, para o amor e a honra de Deus e para o mal e a desgraça de ninguém, exceto o que não está na verdade.

Disto é (em parte) percebido facilmente o que eu me atenho com respeito a Sagrada Escritura, pecado, justiça de Deus, lei, e evangelho. Contudo, para brevemente eu me explicar, eu falo dessas quatro últimas da seguinte forma:

Incredulidade sozinha é pecado, o qual a justiça de Deus extirpa através da lei. Tão logo a lei perde essa função, o evangelho toma o seu lugar. Pelo ouvir da mensagem a fé vem . Fé não tem pecado. Onde não há pecado, a justiça de Deus habita.

Assim, a justiça de Deus é o próprio Deus. Pecado é o que cresce sozinho contra Deus; isto na verdade não é nada.

A justiça trabalha através da palavra que estava desde o início e é dividida em duas, subsequentemente, lei e evangelho, por causa da posição dupla a qual Cristo como Rei da justiça pratica, a saber: extirpar a incredulidade e trazer a vida aos crentes. 

Sendo assim, todos os crentes eram outrora incrédulos. Consequentemente, tornando-se crentes, desse modo primeiro tiveram que morrer na condição de que eles não poderiam mais viver para si mesmos como um não crente faz, mas [para] Deus através de Cristo que eles podem caminhar de fato não sendo tanto na terra mas no céu, como disse Paulo. 

Davi também comprovou isso quando ele disse: O Senhor faz descer à sepultura e dela resgata .

Em tudo isso eu creio (Senhor, esmague minha incredulidade) verdadeiramente, agora na expectativa, de quem quer que deseje negar e derrubar isso. Por isso, eu intento também registrar que eu creio no batismo e na ceia do Senhor. Agora [meu tempo] é curto. O Senhor esteja conosco. Amém. 

Sobre o Batismo

Eu, Hans Denck, ainda confesso, que eu em verdade entendo, à medida que isso é compreendido por mim, que todas as coisas que são impuras por natureza, quanto mais as purificamos, menos podemos realizar com elas.

Quem se aventuraria a lavar o vermelho do tijolo e o preto do carvão visto que eles não são essencialmente diferentes? Em todo caso, isso seria um trabalho desnecessário, porque (a) natureza não é de modo essencial mudada e superada.

Do mesmo modo, é tão inútil lavar externamente um homem cujo corpo e alma são por natureza impuros se ele não estiver de início arrependido e convencido interiormente.

A poderosa palavra de Deus sozinha é capaz de sobrevir e penetrar dentro do abismo da impureza do homem, exatamente como um solo árido é preparado pela boa chuva.

Onde isso acontece, nasce o conflito no homem antes da natureza ceder, e [resulta em] desespero, então presume-se que ele deve perecer de corpo e alma [e que] ele poderá não suportar o trabalho que Deus começou.

Como se supõe, quando chega uma grande enchente [que] a terra não poderá agüentar, mas será lavada.

Em grande desespero Davi disse: Senhor Deus, ajuda-me, pois as correntezas subiram até a minha alma .

Mas tamanho desespero, embora grande ou pequeno, dura tanto quanto o eleito está em seu corpo, e o trabalho de Cristo começa imediatamente após isso.

Por isso, não apenas João Batista, mas também os apóstolos de Cristo batizaram-se nas águas. A razão: tudo que não sobrevivesse a água pode de fato tolerar menos o fogo, pois o batismo de Cristo é no Espírito, (e) a perfeição de seu trabalho.

Essa água ou batismo santifica (1 Pe 3), não que ela remova a sujeira do corpo, mas por causa do compromisso de uma boa consciência diante de Deus. 

Esse compromisso significa que, aquele que se deixa ser batizado o faz perante a morte de Cristo, que morreu assim como este também morre para Adão; como Cristo ressuscitou, ele também caminhará na nova vida [de] Cristo, de acordo com Romanos 6.

Onde esse compromisso está, o Espírito de Cristo está junto e acende o fogo do amor o qual consome completamente o que permanece enfermo, e completa a obra de Cristo. Depois disso acontece o Sabbath, o eterno descanso em Deus, acerca do qual todas as línguas se calam.

Onde o batismo formal exala o compromisso anteriormente mencionado, é bom. Onde não é isso não serve para a razão indicada. 

O batismo formal não é preciso para a salvação; como Paulo disse, ele não foi enviado para batizar, o que seria desnecessário, mas para pregar o evangelho [que é] necessário .

Mas, o batismo interno, acima mencionado, é necessário. Como está escrito, quem crer e for batizado será salvo .

Sobre a Ceia de Cristo

Eu, Hans Denck, confesso novamente, assim como, que percebo que sou por natureza doente de corpo e alma, verdadeiramente envenenado e febril; tudo que eu neste enfermo, envenenado e desassossegado corpo e alma como , não afasta minha doença, mas apenas a piora .

Eu percebo também que isso que me conduz e prepara, não como eu desejaria mas como isso mesmo deseja, me adverte e diz como um médico cheio de fé [que] por causa do veneno correndo em meu sangue, a febre não pode ser aliviada exceto se o sangue for acalmado e subjugado.

E isso pode ser feito de dois modos: através da abstinência e da sangria. Estar de dieta significa que alguém não está bem internamente, com alimentação irregular, isto é, com falsa satisfação. Sangria significa que alguém também deveria suportar sofrimento externo pela recomendação do médico.

Essa é a obra de Cristo concernente à morte de Adão. Agora, embora isso não tenha sido concluído enquanto eu vivo no meu corpo, isso entretanto começou no corpo [e] às vezes também padecendo por causa do compromisso com Deus como eu coloco meu querer no querer de Deus através de Cristo, o Mediador, como dito acima com relação ao batismo.

Aquele que, portanto, está lembrado e come o invisível pão vivo, sempre será fortalecido e capacitado na vida justa.

Aquele que, portanto, está lembrado e bebe do vinho invisível do cálice invisível, o qual Deus desde o início verteu através de seu Filho, através da palavra, torna-se exaltado e não mais sabe nada sobre si mesmo, mas através do amor de Deus torna-se divino e Deus está humanizado nele.

Isso é denominado ter comido o corpo de Cristo e ter bebido o sangue de Cristo, João 6.

De fato, aquele que, portanto, está lembrado, tão frequentemente quanto lembra do que o Senhor diz, isto é, tão frequentemente come o pão e bebe do cálice, celebra e proclama a morte do Senhor.

Assim sendo, para aquele que, entretanto, fisicamente também come e bebe, isso é verdadeiramente benéfico e saudável para o corpo porque o corpo sujeita-se ao Espírito e também o serve em verdade.

Já se isso é soar e aclamar, então não pode diferir da palavra de Deus, como Paulo frequentemente chamou de dar ouvidos . Mas visto que isso é invisível no pão visível e ainda não diferente do pão, portanto, isto é, de fato, o Mundo invisível no corpo visível, que é concebido pelo Espírito Santo, nascido de Maria, a Virgem.

Como o comer e o beber, um não pode ser sem o outro em benefício próprio. Comer sem beber causa indigestão e não nutre. Isso é o propósito de Paulo quando ele diz: Ainda que eu tenha fé capaz de mover montanhas, e não tiver amor, nada disso ainda valeria!.

O beber sem o comer enfraquece e intoxica. Amor sem fé engana a si mesmo naquilo que significa amar a todos por causa de Deus. Por um tempo, entretanto, isso assim pode parecer, contudo, isso realmente não prevalece. Visto que de repente tornar-se evidente que apenas isso é amado por ele, que foi amado antes ainda de ser mal; e que ele sempre odeia o que a verdade lhe diz, ainda que seja bom.

O comer e o beber, juntos ambos são benéficos. O comer alegra e fortalece, o beber acende o amor e aperfeiçoa aquilo para que o Cristo veio, que é a purificação do pecado que realizou-se no derramamento do sangue de Cristo.

Assim sendo, o que foi dito acima diz respeito ao pão visível, também podendo ser aqui referente ao cálice.

O mesmo pode viver sem esse pão exterior através do poder de Deus onde quer que sua glorificação o requerer, como fez Moisés no Monte Sinai e Cristo no deserto . Sem o pão interior ninguém pode viver. O justo vive pela fé . Aquele que não crê, não vive.

Tudo isso eu confesso do fundo do meu coração diante da face do Deus invisível, para quem através dessa confissão eu devo me submeter humildemente; eu não deveria dizer eu, mas ele propriamente me sujeita a Ele, não por Ele mesmo, mas para todas as criaturas Nele. Não obstante,

Eu imploro a todas as criaturas e a sua sabedoria, a qual está nas mãos de Deus, através do terrível e grande nome de Deus, para julgar-me e aos meus irmãos presos, a quem eu amo em verdade, não de acordo com a aparência mas de acordo com a verdade. Assim também o Senhor julgará quando ele vier em sua glória no dia da revelação de todos os mistérios. Amém. Amém.

Assim, a diferença entre Müntzer e Denck repousou sobre o Cristo internalizado. E é a partir do Cristo internalizado que Denck construiu uma eclesiologia alternativa à hierarquia romana e, inclusive, à exegese dos reformadores. Para Denck, a presença do Cristo internalizado era mais importante do que o próprio batismo de adultos e, inclusive, às Escrituras. E essa transformação interna do cristão deveria ser construída através das experiências de vida, das lutas internas e externas que enfrentamos e do sofrimento. Foi a partir dessa concepção que Denck modificou as perspectivas revolucionárias de Müntzer, exortando os fiéis a manter suas espadas embainhadas até que Deus desse a ordem para que as utilizassem. Denck, no sul da Alemanha, abriu o caminho para o anabatismo pacifista, mas sugeriu que se organizassem em células, sem, contudo, formarem comunidades separadas do restante da sociedade.

O princípio governante para uma igreja local é a soberania de Jesus Cristo. A autonomia da igreja tem como fundamento o fato de que Cristo está sempre presente e é a cabeça da congregação do seu povo. A igreja, portanto, não pode sujeitar-se à autoridade de qualquer outra entidade religiosa. Sua autonomia, então, é válida somente quando exercida sob o domínio de Cristo.
A democracia, o governo pela congregação, é forma certa somente à medida que, orientada pelo Espírito Santo, providencia e exige a participação consciente de cada um dos membros nas deliberações do trabalho da igreja. Nem a maioria, nem a minoria, tampouco a unanimidade, reflete necessariamente a vontade divina.

Uma igreja é um corpo autônomo, sujeito unicamente a Cristo, sua cabeça. Seu governo democrático, no sentido próprio, reflete a igualdade e responsabilidade de todos os crentes, sob a autoridade de Cristo.

Tanto a igreja como o estado são ordenados por Deus e responsáveis perante ele. Cada um é distinto; cada um tem um propósito divino; nenhum deve transgredir os direitos do outro. Devem permanecer separados, mas igualmente manter a devida relação entre si e para com Deus. Cabe ao estado o exercício da autoridade civil, a manutenção da ordem e a promoção do bem-estar público.
A igreja é uma comunhão voluntária de cristãos, unidos sob o domínio de Cristo para o culto e serviço em seu nome. O estado não pode ignorar a soberania de Deus nem rejeitar suas leis como a base da ordem moral e da justiça social. Os cristãos devem aceitar suas responsabilidades de sustentar o estado e obedecer ao poder civil, de acordo com os princípios cristãos.

O estado deve à igreja a proteção da lei e a liberdade plena, no exercício do seu ministério espiritual. A igreja deve ao estado o reforço moral e espiritual para a lei e a ordem, bem como a proclamação clara das verdades que fundamentam a justiça e a paz. A igreja tem a responsabilidade tanto de orar pelo estado quanto de declarar o juízo divino em relação ao governo, às responsabilidades de uma soberania autêntica e consciente, e aos direitos de todas as pessoas. A igreja deve praticar coerentemente os princípios que sustenta e que devem governar a relação entre ela e o estado.

A igreja e o estado são constituídos por Deus e perante Ele responsáveis. Devem permanecer distintos, mas têm a obrigação do reconhecimento e reforço mútuos, no propósito de cumprir-se a função divina.

Jesus Cristo veio ao mundo, mas não era do mundo. Ele orou não para que seu povo fosse tirado do mundo, mas que fosse liberto do mal. Sua igreja, portanto, tem a responsabilidade de permanecer no mundo, sem ser do mundo. A igreja e o cristão, individualmente, têm a obrigação de opor-se ao mal e trabalhar para a eliminação de tudo que corrompa e degrade a vida humana. A igreja deve tomar posição definida em relação à justiça e trabalhar fervorosamente pelo respeito mútuo, a fraternidade, a retidão, a paz, em todas as relações entre os homens, raças e nações. Ela trabalha confiante no cumprimento final do propósito divino no mundo.

Esses ideais, que têm focalizado o testemunho distintivo dos batistas, choca-se com o momento atual do mundo e em crucial significação. As forças do mundo os desafiam. Certas tendências em nossas igrejas e denominação põem-nos em perigo. Se esses ideais servirem para inspirar os batistas, com o senso da missão digna da hora presente, deverão ser relacionados com a realidade dinâmica de todo o aspecto de nossa tarefa contínua.

A igreja tem uma posição de responsabilidade no mundo; sua missão é para com o mundo; mas seu caráter e ministério são espirituais. 

O poder formativo dessa eclesiologia congregacional, aliado a dois conceitos teológicos, liberdade e justificação pela fé, transformaram em poder e propostas de novas formas sociais e religiosas. Mas a revolução protestante, sem dúvida, ainda engatinhava, não soube organizar-se para dar forma à utopia que propunha. Os anabatistas souberam expressar seu protesto enquanto causa do caráter incondicional do divino e causa concreta da situação histórica. Em pleno século XVI, sua teologia eclesiológica construiu pela primeira vez na história uma teologia da crise, mas, podemos dizer, que não souberam unir a importância do não profético à sociedade presente ao sim criativo da utopia. Então, é o caso de perguntar: seria possível, naquele momento, unir a crítica e a criação? A revolução anabatista, enquanto princípio, poderia viver a realidade da graça e a luta pelas transformações estruturais da realidade? Se não conseguiram, ficou o desafio: nenhuma hierarquia pode se apoderar do direito à graça e exigir que os cristãos se submetam à autoridade na busca pela salvação. E, assim, fica entre nós o sonho anabatista: a fé é humana, mas não vem do humano, embora se realize no humano. A graça é pregada e assim vem a fé. Ter fé significa ser tomado e transformado pela graça, e isso acontece aqui no chão, na materialidade de nossas vidas.

A guisa de conclusão, é necessário dizer que hoje, ao analisar tais propostas, que ressuscita entre nós a teoria social dos anabatistas, de contrapor as políticas de poder ao amor cristão, vemos que para o pacifismo negativista é impossível integrar política e estilo de vida cristão. Considera, então, que a igreja deve rejeitar qualquer forma de poder representado na ordem econômica e política sob o poder do Estado. Mas ao rejeitar as políticas de poder das sociedades, aceita, por exclusão, já que a política também se faz por omissão, o uso do poder que está instituído, pois, ao não defenderem uma retirada do mundo, colocam-se sob o poder presente. 

Neste sentido, o pacifismo negativista difere do separatismo anabatista, revolucionário e de confronto, que historicamente propôs a radical separação entre igreja e Estado em nome da liberdade e da justificação pela fé. Aquele separatismo revolucionário acreditava que o fracasso das políticas de poder eram impedimentos para a manifestação da vontade de Deus. O anabatismo, assim, era de fato um fundamentalismo, mas de cunho humanístico, pois fazia a crítica da política e propunha o enfrentamento físico dos poderes do mundo. O que nos leva a dizer que traduzia uma atitude política consciente. Hoje, a espiritualidade cristã brasileira não é separatista e não foge do mundo: acredita ter uma missão moral de transformação, mas, muitas vezes, nega a possibilidade de real envolvimento político, por temer o poder político. Ora, se a comunidade cristã tem uma ética política, deve utilizar os meios que possibilitam chegar aos fins que busca. Rejeitar o poder é rejeitar políticas. Tal rejeição pode até ser aceita, desde que seus agentes tenham consciência do que estão fazendo e, coerentemente, proponham a revolução do mundo. Quando uma comunidade acredita que a omissão diante da política e do poder favorece à instalação do reino de Deus, tem-se a negação da política como política cristã, o que fortalece aqueles grupos que buscam o poder em benefício próprio. E, ao contrário do que crê o pacifismo negativista, tal postura não estabelece o Reino de Deus. 

Bibliografia

Jean Séguy, Les Assemblés Anabaptistes Mennonites de France, Paris e La Haye, Mouton, 1977.

J-M. Mayeur, Ch. Pietri, A. Vauchez, M. Venard, “Les Réformateurs radicaux” in Marc Lienhard, Histoire du Christianisme des origines à nos jours (vol. 7, “De la réforme à la Réformation (1450-1530), Desclée, 1994, pp. 830-850.

Série Documents Anabaptistes de l’École Biblique Mennonite Européenne (Centre de Formation et de Rencontre du Bienenberg), Bienenberg, 4410, Liestal – Suisse: No. 1, “Lettres de Conrad Grebel à Thomas Müntzer” (1973, 1975).

https://www.facebook.com/jpsanctus/posts/10202779235235950

samedi 17 septembre 2016

Sexo e rede no colo da cunhã

A alegria é a prova dos nove
ou sexo e rede no colo da cunhã
Jorge Pinheiro 


“Tupi or not tupi that is the question”. (Oswald de Andrade, Manifesto antropófago).

[Paris] – Você já parou para pensar que em menos de cinco anos, entre 1555 e 1560, cerca de quatrocentos franceses emprenharam mulheres tupinambás e tiveram mais de mil filhos, segundo alguns, na verdade, dois mil brasileirinhos. Bem, talvez você não saiba porque a história é sempre situada, espacial e ideologicamente.

Quando se faz uma pesquisa na área acadêmica, geralmente, há um subproduto que não utilizamos, porque não está diretamente ligado ao nosso objeto, embora seja cientificamente interessante. É o caso desse artigo: surgiu a partir de elementos da pesquisa que desenvolvo na Europa, mas especificamente em Montpellier e Paris, sobre os huguenotes, protestantes franceses que estiveram no Rio de Janeiro, em 1557.

Neste artigo sobre o início da presença francesa no Brasil e dos relacionamentos entre franceses e tupinambás utilizo o caminho da correlação, como forma de aproximação de um fato histórico fundante. O método da correlação relaciona polos, o discurso eurocêntrico, no caso, e a interpretação desse discurso, que deve levar em conta a situação daqueles a quem ela se destina. Situação, aqui, são as formas políticas e sociais através das quais os franceses exprimiram as suas interpretações da existência tupinambá, geradora do mito do bom selvagem. Nesse sentido, o método da correlação possibilita que perguntas venham à tona, que haja individuação das respostas, permitindo travessias correlatas às perguntas colocadas pela própria existência dos brasis e seus costumes.

Nicolau Durand de Villegagnon (1510-1571) foi colega de João Calvino durante seus estudos em Paris. Junto com os Cavaleiros de Malta, a partir de 1531, participou das expedições militares de Carlos V contra Argel. Mas ficou conhecido como navegador. Vice-almirante da Bretanha, sua aventura mais empolgante e polêmica foi a fundação, em 1555, de um projeto de colonização que ficou conhecido como França Antártica, na baia de Guanabara. Para desenvolver tal projeto recebeu o apoio do almirante Gaspard de Coligny, homem de confiança do rei e militar de importante presença protestante, e dez mil libras para financiar a empreitada. 

A intenção francesa era fundar uma colônia no Brasil, a fim de fazer frente a expansão espanhola e portuguesa nas Índias Ocidentais e no Novo Mundo, onde calvinistas pudessem praticar o seu catolicismo reformado e evangelizar os brasis. Três navios partiram de Le Havre, com mais de quatrocentos colonos, a maioria ex-presidiários indultados por se juntarem à aventura de Villegagnon. E assim chegaram ao Brasil em novembro de 1555. Villegagnon construiu, então, o forte Coligny em uma ilha na baía de Guanabara e passou a usar o título de vice-rei da França Antártica. 

As relações com os brasis da região se mostraram tão boas, que Villegagnon e os colonos passaram a frequentar as festas, travaram contato com o comunismo libertário dos brasis, e muitos colonos  acabaram por optar por essa nova forma de vida.

A França Antártica a princípio foi tolerante com os costumes dos brasis e as opções dos colonos, mas, com o tempo, Villegagnon percebeu que estava a perder seus homens. Estes passaram a ter companheiras tupinambás, a viver nas aldeias e adotavam a cultura dos brasis. Foi, então, que Villegagnon, por razões militares e de ocupação do território, proibiu todo comércio com os brasis, os acasalamentos e exigiu que seus colonos abandonassem as aldeias e voltassem ao forte. Ora, exigência quase impossível de ser respeitada, afinal aqueles homens tinham sido libertos das prisões franceses com a proposta de viajar para um novo mundo de aventuras inimagináveis. E tinham encontrado esse mundo, com espaços sem fim, mulheres brasis e sexo sem constrangimentos. Tinham descoberto que a alegria é a prova dos nove.

Uma das dimensões importantes da cultura tupinambá era o cunhadismo. Este elemento fundante da cultura dos brasis no litoral do Rio de Janeiro é uma hipótese fundante para se compreender a construção das ótimas relações que tupinambás e franceses construíram entre si. Os franceses se uniram sexual e matrimonialmente com as mulheres brasis, e assim se inseriram na estrutura social tupinambá, como genros ou cunhados. Pesquisas acadêmicas mostram que muitos europeus, e aí se incluem os franceses, e não apenas portugueses, se adaptaram com facilidade aos costumes brasis, a ponto de alguns tornarem-se lideranças expressivas entre os tupinambás.

Darcy Ribeiro considerou o cunhadismo a instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro. O cunhadismo estruturava as relações de parentesco entre os tupinambás ao incorporar pessoas estranhas à comunidade. O homem agregado à tribo recebia uma moça tupinambá como cunhã, ou seja, esposa. E quando a assumia, estabelecia laços de parentesco com todos os membros da comunidade.

“Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro”. 
(Oswald de Andrade, Manifesto antropófago).

O cunhadismo, enquanto sistema de parentesco relacionava um brasil ou agregado com os outros e, por extensão, com todos os membros da tribo. Assim, ao receber a cunhã, o francês passava a ter nela sua temericó e nos parentes da geração dos pais, outros pais ou sogros. O mesmo ocorria em sua própria geração, em que todos passavam a ser irmãos ou cunhados. Na geração inferior eram todos seus filhos ou genros. Esses termos de afinidade classificavam o grupo com quem podia ou não manter relações sexuais. Com os sogros e sogras devia evitar relações, mas podia manter relações abertas com os cunhados e cunhadas, assim como com genros e noras. 

Segundo Ribeiro, os franceses fundaram criatórios na baía de Guanabara com base no cunhadismo. E citou Capistrano de Abreu, quando este afirmou que por muito tempo não se sabia se o Brasil seria francês ou português, tal a força da presença e o poder da influência francesa junto aos brasis do litoral do Rio de Janeiro. Ainda segundo Ribeiro, mais de mil brasileiros, no caso franco-brasis, foram gerados como fruto do cunhadismo, quando franceses, tamoios e tupinambás viviam ao longo dos rios que deságuam na baía, inclusive na ilha do Governador, onde deveria ser implantada a França Antártica.

Assim, fruto da boa vida no paraíso dos brasis, os colonos não concordaram com seu vice-rei, se revoltaram, e aliados aos brasis, agora seus parentes, passaram a tramar o assassinato de Villegagnon. Diante de guerrilha que se avizinhava, o vice-rei recorreu ao amigo Calvino que, por esses tempos, exilara-se em Genebra, e pediu para mandar reforço religioso a fim de restaurar a moral e os bons costumes. E, em setembro de 1556, quatorze huguenotes, entre os quais dois pastores, Chartier e Richer, e um jovem muito promissor, Jean de Léry, deixaram a Suíça, embarcaram em Honfleur, sob a liderança de Du Pont de Corguilleray, e chegaram ao forte de Coligny em março 1557. Mas essa já é outra história. 

“Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”.
(Oswald de Andrade, Manifesto antropófago).

vendredi 16 septembre 2016

Algumas dicas do meu amigo Yeshua ben Sirac

Yeshua, filho de Sirac, por isso chamado Ben Sirac, escreveu reflexões que entraram para a cultura judaica como peças da sabedoria judaica helenizada, escritas entre os anos 190 e 124 antes da Era Comum. Aqui ele fala sobre a amizade e espero que você, como os cristãos dos primeiros séculos, possa fazer bom proveito dessas reflexões. Jorge Pinheiro.

Os textos de Yeshua ben Sirac não fazem parte dos textos sagrados do judaísmo. Professor ligado aristocracia jovem de Jerusalém, fez viagens ao exterior em missões oficiosas, o que nos leva a crer que tenha ocupado cargo de importância junto ao Sinédrio, organismo de governo sob a responsabilidade do sacerdote maior. Por ter vivido em Jerusalém entre os anos 200 e 180 antes da Era Comum, viveu os tempos de transição da dominação complacente dos ptolomeus do Egito em direção à dominação sangrenta dos selêucidas da Síria. Trabalhou com o sacerdote-maior Simão (50.1-24), que ocupava tal função quando Jerusalém foi conquistada por Antíoco III em 198. Viveu a tragédia da deposição e assassinato de Onias III, filho de Simão, em 174, e a perseguição de Antíoco Epífanes (175-163) contra a cultura e religião judaicas. Assim, viveu sob dominções estrangeiras que oscilaram entre a complacência e o terror, e assistiu e possivelmente apoiou a insurreição liderada pelos Macabeus, em 167.

Por isso, ao contrário de estarmos diante de um livro apenas religioso a obra de Jesus ben Sirac traduz uma sabedoria destinada a consolidar a segurança do Estado, frente a inimigos externos e internos. Nesse sentido, despido da linguagem religiosa que possibilitou sua leitura sem censura e perseguições, estamos diante de textos que nos falam sobre os procedimentos do Estado na construção de sua segurança.

Tomemos por exemplo esse bloco de pensamentos e o leiamos como dirigido a elite dos dirigentes Macabeus e a aristocracia jovem que sobe ao poder com eles.

“Palavras amáveis multiplicam os amigos, uma língua afável multiplica as palavras corteses. Sejam numerosos os que te saúdam, mas teus conselheiros, um entre mil! Se queres adquirir um amigo, adquire-o provando-o: não te apresses em confiar nele. Há quem seja amigo na hora que lhe convém, mas não permanece tal no dia da aflição. Há o amigo que se transforma em inimigo e revela as divergências, para tua desonra. Há o amigo, companheiro de mesa, que não permanece tal no dia da aflição. Na tua prosperidade será como tu mesmo, dando ordens com desenvoltura a teus servos. Mas se fores humilhado, estará contra ti e se ocultará da tua vista. Mantêm distância dos inimigos e usa de cautela com os amigos. Amigo fiel é refúgio seguro: quem o tem encontrou um tesouro. Amigo fiel não tem preço: é um bem inestimável. Amigo fiel é um elixir de longa vida: os que temem o Senhor o encontrarão.  Quem teme o Senhor dirige bem sua amizade: como ele é, tal será seu companheiro”. Ben Sirac 6.5-17.

O leitor apenas religioso, de ontem e de hoje, vê apenas um tratado sobre a amizade nas palavras de ben Sirac. Mas se levarmos em conta que as invasões de Alexandre levaram ao Oriente uma nova civilização, globalizada enquanto helenismo, era necessário pensar questões como choque de culturas, religião e ecumenismo que pela força, diplomacia e comércio tendiam a abolir fronteiras e colocar em xeque o judaísmo.
                                                                                                                            
Ben Sirac, homem da inteligência judaica, acolhe aspectos importantes da cultura grega, como a filosofia estóica, mas sabe que a adoção não crítica do helenismo põe em risco a religião judaica (Sr 2.12-14) base da cultura da região. E critica as concessões e entregas de membros do sacerdócio e da aristocracia, conforme denuncia o movimento dos Macabeus (cf. 1Mc 1-2).

Assim, ben Sirac trabalha com um paradoxo, a busca da liberdade e a presença do mal, traduzida na presença imperial. O ser humano foi criado livre (15.14), e o mal não se encontra na divindade, mas na ação humana (15.11-13). Aí está a fonte do mal (21.27; 25,24). Mas é possível enfrentar as forças da destruição (31.10).

Por isso, sua religião se aproxima de uma antropologia política, e aqui quero destacar alguns desses elementos. Faz uma apologia do nacionalismo judaico através do resgate da tradição dos antepassados (44.1-49,16). Opõe a Lei outorgada a Israel no Sinai (24.23), ou seja, a jurisprudência judaica, ao helenismo. E diante da nova racionalidade da filosofia grega reivindica a sabedoria judaica que fala do temor de Deus, enquanto aplicação da Torá escrita (1.26; 6.37). Dessa maneira, como professor e homem da inteligência chama ao estudo da Lei como tarefa para a sobrevivência nacional. E defende a fé tradicional: Deus é eterno e único (18.1; 36.4; 42.21); é o autor da criação (42.21.24), conhece todas as coisas (42.18-25).

E como homem da inteligência defende um futuro nacional, político, para a nação viável e soberano. Isso pode ser visto, em linguagem religiosa na oração que faz pela libertação e restauração de Israel (36,1-17), quando diz “glorifica tua mão e teu braço direito. Excita o teu furor e derrama tua cólera. Suprime o adversário e aniquila o inimigo. Apressa o tempo, lembra-te do momento fixado e divulguem-se as tuas façanhas. Por um fogo vingador seja devorado o que sobreviver, e os que maltratam teu povo encontrem sua ruína. Esmaga as cabeças dos chefes inimigos que dizem: "Não há ninguém como nós!” 

Essa oração poderia ser eco do messianismo que começa a crescer no período macabeu, mas sua interpretação permanece discutida.

A atitude do Sirácida em face de uma crença na ressurreição, o seu amor do culto, sua veneração pelo sacerdócio sadoquita (cf. 51,12 no hebraico) e, por outro lado, a falta de referência explícita às idéias messiânicas que se desenvolverão nos meios fariseus fizeram-no relacionar-se com uma espécie de pré-saduceísmo. De fato, pode-se situá-lo na linha desse movimento conservador, nacionalista, ligado à Lei escrita. Mas seria um erro assimilá-lo pura e simplesmente aos saduceus que conhecemos pelos evangelhos e por Flávio Josefo: ele viveu antes da diferenciação do judaísmo em seitas caracterizadas.

Em relação às nações pagãs, Ben Sirac manifesta uma atitude já tipicamente judaica. Após certa abertura universalista nos profetas, as dificuldades do período pós-exílico levaram Israel a um particularismo pouco a pouco reforçado pela idéia da eleição bem como pelas exigências práticas da vida segundo a Lei: circuncisão, sábado, regras de pureza alimentar e ritual. A concepção helenista do homem cidadão do universo, então em voga, não arrefeceu a ufania do autor de pertencer à raça escolhida no meio da qual a própria Sabedoria estabeleceu sua residência privilegiada (24,7ss). 

Ele recomenda separar-se, principalmente dos ímpios (11,33; 12,14; 13,17), atitude dos essênios de Qumran, que dará aos fariseus essa designação característica: "os separados". O mundo aparece, pois, dividido em duas categorias, a dos bons e a dos maus ou, equivalentemente, a dos sábios e a dos insensatos (21,11-28). Contudo, há traços reveladores de uma sensibilidade nova no judaísmo, e certos desenvolvimentos sobre o perdão (27,30-28,7) encontrarão paralelos nos Evangelhos. Talvez mesmo a concepção do "semelhante" que é "carne" como cada ser humano (28,4-5) anuncie já a idéia de que todos os homens são irmãos. Aliás, a exegese judaica antiga compreendeu às vezes Lv 19,18 da seguinte maneira: "Amarás o teu próximo como a outro tu mesmo".

mercredi 14 septembre 2016

Ser batista hoje

Existirmos -- a que será que se destina?
[Letra de Caetano Veloso, Cajuína. Álbum: Omaggio a Federico e Giulietta -- Ao Vivo, 1999].

O século XXI confronta. Diante disso, questões entram na ordem-do-dia: sabemos mais ou menos o que fomos e um pouco do que somos, mas nada ou pouco do que seremos. O ser batista tem raízes na revolução liberal inglesa do século XVII, porém fomos influenciados também pela Reforma radical e pela Reforma magisterial. Mas foi no século XVIII, sob o Iluminismo, que o pensar batista europeu lançou raízes e se espraiou. E desempenhou papel na história do pensamento na Inglaterra, na Europa continental e nos Estados Unidos. Combinou Escrituras judaico-cristãs e espiritualidade e no século XIX deu ao mundo pensadores de vanguarda, ao construir o que veio a se chamar Evangelho social.

Ser batista, hoje, não é algo definido e preciso, principalmente quando se entra na discussão se somos ou não protestantes e se pertencemos ou não ao tronco dos cristãos rebeldes da Idade Média. Por isso, os batistas são olhados como seitas autônomas sem representatividade civil e opositores de toda e qualquer ligação com o Estado. Idéia que em parte se justifica se olharmos os batistas a partir da ótica de Ernst Troeltsch e Max Weber. E como é difícil definir a diversidade, já que encontramos movimentos batistas fideístas, fundamentalistas, liberais e racionalistas, é necessário fazer o caminho da análise daquilo que é comum, ou seja, das formas do ser batista, mais ou menos presentes na teologia batista.

A fé sem razão e a razão sem fé

Em primeiro lugar o pensar batista busca uma fé inteligente. Nega o divórcio entre a fé e o pensamento, embora reconheça a importância das correntes cristãs que olham a fé como distanciamento da razão, ruptura da lógica e salto na irracionalidade do mistério insondável. O pensar batista procura a consistência e as correlações entre fé e razão. Por isso, interage com a cultura. Sem negar que existe o mistério, entende o pensamento como construção que não pode prescindir da fé e da razão.

O Brasil nesses tempos bicudos da alta modernidade combate o pensamento que se quer autônomo, por preferir a massificação das ideias. A sociedade brasileira na alta modernidade tem optado por reproduzir a globalização da indústria do entretenimento e da comunicação de massas. A vida proposta pela alta modernidade, para além dos problemas estruturais da sociedade brasileira, nos faz inquietos e superficiais. Visa o espetáculo e se perturba diante de perguntas que procuram razões. Desafiados a avançar, é preciso entender que aquilo que parece não é, e o que não parece, é. Não dá para depositar confiança, asi nomás.

O pensar exige uma fé que não se atrofie, por isso a espiritualidade é um aliado precioso na construção do sentido da vida. A razão sem fé, mesmo verdadeira, não é razoável, torna-se racionalismo. A razão, convenientemente amparada, reconhece que há coisas que estão além, e que é incapaz de penetrar a contento no mistério da vida e do universo. Aceita seus limites e, portanto, a existência de dimensões para além dela. No entanto, mantém abertura e espírito de crítica. Isso impede que ter fé seja dizer ou fazer qualquer coisa.
 
Atualmente, vemos piedades emocionais exuberantes, quentes. Cultivam afetos, mas temem o pensamento. Temos, então, dogmatismo, fundamentalismo, que ensinam a olhar, a fazer, a dizer, formatam opiniões blocadas. Oferecem certezas e, por extensão, conforto e preguiça. Fogem das questões e perguntas dolorosas. Estas formas de piedade repousam sobre o realismo literalista. Mas temos um outro lado, a vida no questionamento permanente, que duvida da possibilidade da verdade, embora busque freneticamente a descoberta. Repousa sobre o ceticismo nihilista. Ora, fé implica em crença, paixão e sentimentos, é experiência com o mistério do Eterno. As Escrituras judaico-cristãs desafiam o amor humano a se realizar diante do Eterno com coração, força, mas também com o pensar. E é esse pensar que aprofunda, fundamenta e direciona a fé. Essa compreensão se contrapõe ao realismo literalista e ao ceticismo nihilista.

A magia do texto, contextos e pretextos

O estudo cultural e histórico de cada porção das Escrituras judaico-cristãs, principalmente do Novo Testamento, é uma necessidade. Não basta a linguística e as línguas originais, porque o Novo Testamento não é revelação ditada, mas apresenta testemunhos da revelação. É um conjunto de escritos que nos dizem como pessoas, os discípulos,  receberam e compreenderam o que Jesus disse e fez no meio do povo.

“Pois quando tu me deste a rosa pequenina/ Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina/  Do menino infeliz não se nos ilumina”.

Jesus não escreveu. Sabemos de sua doutrina e vida por aquilo que os discípulos relataram. Suas idéias encontram-se nas suas histórias. Donde, temos a documentação neotestamentária como textos fundantes para conhecer Jesus de Nazaré e sua pregação. Mas a investigação do Jesus histórico continua, ao menos ao nível acadêmico, quando utilizamos outras fontes e métodos, que remetem ao estudo dos contextos e pretextos, porque a magia do texto sempre possibilitou através da história vôos inusitados.

A pessoa transcendente e a mensagem imanente

A tradição cristã sempre deu mais importância à pessoa transcendente de Jesus do que a imanência de seus ensinos. O Credo apostólico, por exemplo, diz que ele  "foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu da Maria virgem, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu aos infernos, subiu aos Céus ...". Menciona assim o Cristo da fé, encarnado, morto e ressurrecto, mas omite seu ministério.

Os eventos crísticos, que são ensinamentos, histórias e relatos, muitas vezes são esquecidos. Não podemos construir uma fé transformadora apenas sobre o Credo. A vida do Evangelho está no que Jesus disse, na forma como apresentou a ação e a presença do Eterno. Assim como sua concepção da existência humana, sobre o significado da fé. Para o ser humano, a imanência da mensagem é tão importante quanto o mensageiro transcendente. Em teologia dizemos que o Cristo cumpre três funções: uma função real, pois reina sobre o mundo; uma função sacrificial, pois foi oferecido em sacrifício para a salvação dos seres humanos; e uma função profética, pois ensina e prega.

Certas correntes do catolicismo romano e ortodoxo privilegiam a função real. O protestantismo magisterial realçou a função sacrificial. Mas não podemos deixar de lado, como que esquecida, sua função profética.

A crucificação de Jesus que respondeu às circunstâncias históricas, dentro do projeto de redenção, é uma necessidade teológica para a salvação dos seres humanos. Passagens neotestamentárias falam da morte de Jesus como sacrifício oferecido ao Eterno, como pagamento pela alforria. Mas esse projeto redentivo estaria capenga sem a função profética, que fez dele messias e salvador.j


Na Universidade de Salamanca

lundi 12 septembre 2016

Bendito o que vem em nome do Senhor

Meu Jesus, Salvador
Baruch ata Adonai Elohenu mélech haolam!
Bendito sejas Tu, nosso D'us, rei do universo!

Apresentação
Um testemunho de Jorge Pinheiro / o encontro com o Mashiah

Mas quem é esse Mashiah?

1. O mistério revelado

1 Coríntios 15.3-8
"Pois o que primeiramente lhes transmiti foi o que recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, e apareceu a Pedro e depois aos Doze. Depois disso apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez, a maioria dos quais ainda vive, embora alguns já tenham adormecido. Depois apareceu a Tiago e, então, a todos os apóstolos; depois destes apareceu também a mim, como a um que nasceu fora de tempo".

Três detalhes:

* nossos pecados / hamartía -- nossos alvos errados, nossas falhas, nossa corrupção.
** O sepultamento do corpo de Jesus confirma sua morte. José de Arimatéia e Nicodemos, ao prepararem o corpo de Jesus para o sepultamento, teriam percebido se Jesus não estivesse realmente morto, conforme João 19:38-42.
*** ressuscitou / egeiró -- foi levantado, ressurgiu.

A. O Mashiah, o nosso Cristo, nos apresenta quem é ser humano que Deus planejou. Jesus, o Cristo é Eterno e homem, essencialmente perfeito e pleno. Nesse sentido, entendemos que o Cristo encarnado possibilita uma compreensão do que é a humanidade, traduzindo numa linguagem cheia de vida os conteúdos fundamentais daquilo que está dito em Gênesis sobre o ser humano, antes do pecado.

B. O Cristo revelado é a dimensão mais profunda do humano, a dimensão que traduz aquilo que o cristão é: filho adotado do amor e da graça do Eterno, criado para honra, glória e louvor do Criador.

Uma das linhas-força dessa teia de idéias teológicas presente nas Escrituras hebraico-judaicas é a de halakha. Mais do que propor uma adoração a Deus, as Escrituras nos falam de andar com ele. Daí a idéia de caminho. Se o ser humano é colocado a cada momento e a cada dia diante da exigência de exercer sua liberdade e escolher entre o bem e o mal, ou, como diz Deuteronômio 30.15, “vejam que hoje ponho diante de vocês vida e prosperidade, ou morte e destruição”, ele deve trilhar o caminho através da lei.

E o Mashiah, o nosso Cristo, mostrou o verdadeiro sentido da halakha, Ele é a halakha -- Ele é o caminho!

2. O Cristo revelado cria uma nova comunidade

Efésios 5.25-27
"Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível".

A. O corpo de Cristo sobre a terra é uma nova vida com Cristo e em Cristo, dirigida pelo Espírito Santo. A comunidade dos fiéis nasce a partir dele, com o derramar do Espírito.

B. A luz da ressurreição de Cristo reina sobre a igreja e a alegria da ressurreição, do triunfo sobre a morte, compenetra-se nela. O Senhor ressuscitado vive conosco e nossa vida é uma vida misteriosa em Cristo. Os cristãos levam este nome precisamente porque são de Cristo, vivem em Cristo e Cristo vive neles.

C. A encarnação não é unicamente uma idéia ou uma teologia; é antes de tudo um fato que se produziu uma vez no tempo, mas que possui a força da eternidade. E esta encarnação perpetua, sem confusão, as duas naturezas: a natureza divina e a natureza humana.

3. A nova comunidade/ a igreja nos prepara para a eternidade

Apocalipse 22.16
"Eu, Jesus, enviei o meu anjo para dar a vocês este testemunho concernente às igrejas. Eu sou a Raiz e o Descendente de Davi, e a resplandecente Estrela da Manhã".

A. A igreja é o corpo místico/ espiritual de Cristo, enquanto unidade de vida com Ele. Expressa-se a mesma idéia quando se dá à igreja o nome de esposa de Cristo ou esposa do Verbo. A igreja, enquanto corpo de Cristo não é Cristo-Deus-homem, pois ela não é mais que sua humanidade; mas é a vida em Cristo e com Cristo, a vida de Cristo em nós. ou como nos diz o apóstolo Paulo na epístola aos Gálatas 2.20

"Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus, que me amou e se entregou por mim".

B. A igreja, em sua qualidade de corpo de Cristo, que vive da vida de Cristo, é por Ele mesmo o domínio, onde está presente e onde opera o Espírito Santo. Eis aqui, porque se pode definir a igreja como uma vida bendita no Espírito Santo. A igreja é obra da encarnação do Cristo, ela é encarnação: na igreja Deus se assimila à natureza humana e através da igreja o corpo se assimila à natureza divina. É a santificação, que os pais chamavam deificação (Zeosis) da natureza humana, conseqüência da união de duas naturezas em Cristo.

C. A igreja é o corpo de Cristo: enquanto igreja participamos da vida divina da Trindade. Ela é a vida em Cristo, é o corpo de Cristo, que permanece unida à Trindade.

Por isso, o apóstolo Paulo na carta aos Colossenses 3.3-4 nos diz:

"Porque vocês já estão mortos, e a vida de vocês está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então também vocês serão manifestados com ele em glória".

E finalizo com esta benção:

אשרי הוא כי יבוא על שמו של אלוהים
Baruch haba b'shem Adonai. No evangelho de Mateus 23.39, Jesus após proferir uma série de sentenças sobre a geração que o rejeitara proferiu essas palavras proféticas:"Não me vereis até que venhais a dizer: Bendito o que virá em nome do Senhor". Esta expressão, no hebraico "Baruch haba b'shem Adonai", é uma citação do Salmo 118, um cântico do povo de Israel, que clamava a salvação pelo Messias ao dizer também: Hosana, filho de Davi.

E eu digo mais uma vez -- meu Jesus, Salvador!