mercredi 27 novembre 2013

Política e teologia -- a praxe solidária

A praxe solidária e a teologia da vida: questões que um político cristão deve levar em conta -- uma leitura a partir de Enrique Dussel

Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Devemos nos distanciar (1) do marxismo lido a partir do ateísmo e (2) da religião que faz a legitimação da dominação. E a partir desse distanciamento, procurar definir caminhos para a militância política das comunidades cristãs. E aqui, sem dúvida, encontramos uma complementaridade fundamental e necessária à teologia: a atividade militante dos cristãos no interior das comunidades religiosas é motivada por diferentes opções históricas, tanto a favor da legitimação da dominação, que pode ser chamada de religião super/estrutural, como a favor da crítica da dominação, ou seja, da religião infra/estrutural. Entre os dois extremos situa-se um amplo campo religioso, ambíguo, já que a instituição religiosa necessita tanto do organizador como do profeta. E é a partir da análise dessa ambiguidade que devemos traçar as questões centrais que envolvem realidade brasileira e dão forma à praxe do militante cristão.

O momento analético é a afirmação da exterioridade: não é somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade. É a superação da totalidade a partir da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. O momento analético é crítico por isso: é a superação do método dialético negativo. Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, o imprevisível para a totalidade, aquilo que surge a partir da liberdade não condicionada e inovadora. Como consequência, a analética é prática: é uma economia, uma pedagogia e uma política que trabalham para a realização da alteridade humana, alteridade que nunca é solitária, mas tem o seu centro e fundamento na pessoa real.

Discutir a religião como infra/estrutura e super/estrutura é superar a visão de que as lutas de emancipação no Brasil e na América Latina tiveram origem nos movimentos milenaristas, que se adaptaram e organizaram movimentos políticos ou retrocederam convertendo-se em religiões alienadas no sentido mais limitado do termo. A religião é a primeira consciência que o ser humano tem de si mesmo, e as relações morais, do filho com os pais, do marido com a mulher, do irmão com o irmão, do amigo com o amigo, enfim do ser humano com seu próximo, são relações religiosas.

A religião, enquanto conjunto de mediações simbólicas e rituais, como doutrina explicativa do mundo e que se posiciona a partir da referência ao Absoluto, participa do fechamento do sistema sobre si mesmo. Essa totalidade do sistema é um processo de divinização, que cumpre a função de ocultar a dominação. A noção de religião super/estrutural traduz esse processo de divinização do sistema europeu e depois norte-americano: significa des/historificar a totalidade social, dialetizar negativamente um processo que tem origem, crescimento e plenitude. A divinização leva a um outro processo, à fetichização, que apresenta uma compreensão não/histórica da totalidade social vigente. A fetichização consiste, então, na identificação da estrutura atual com a natureza, ou seja, ela está aí, está colocada por vontade divina.

As massas, enquanto excluídas e passivas, vivem a ideologia das classes dominantes, pois o sistema apresenta de forma ambígua ideais utópicos que oferecem respostas às suas necessidades. Ao aceitar a religião super-estrutural da classe dominante enquanto rito simbólico do triunfo dos dominadores e derrota dos dominados, as massas vivem sob a resignação passiva, a paciência derrotista e a humildade aparente.

A miséria religiosa é expressão da miséria real, entretanto, é também uma forma de protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da pessoa excluída, carente de sentido pleno de vida. A necessidade da religião em abandonar as ilusões sobre sua própria situação é a exigência de que abandone uma situação que necessita de ilusões. Por isso, a crítica da religião é a crítica do sofrimento enquanto expressão de santidade. A crítica da religião não descarta as necessidades reais daqueles que carecem de bens e possibilidades. A crítica da religião denuncia o mito da prosperidade mágica, para que o ser humano pense, para que atue e transforme sua realidade como pessoa consciente.

A tarefa do político cristão solidário consiste em verificar a verdade que está aqui. E é tarefa do cristianismo solidário, que se encontra ao serviço da vida, uma vez que está desmascarada a santidade da auto-alienação humana, desmascarar a auto-alienação em suas formas não santas. De tal modo que a crítica do céu se transforme em crítica da terra, e a crítica da religião em crítica da política.

A expressão religião infra-estrutural indica a anterioridade da responsabilidade prática que se tem com o excluído dentro do sistema. Essa anterioridade não diz respeito exclusivamente à super-estrutura de um sistema futuro, mas diz respeito também à sua infra-estrutura. O ser humano religioso transcende o sistema vigente de dominação e vê como sua responsabilidade o serviço ao excluído. A religião nesse caso é a instauração de uma nova praxe. O fato de que a praxe religiosa infra-estrutural possa se tornar super-estrutural não nega o fato de que a crítica profética continua a irromper na história. Essa presença de responsabilidade social com o excluído mostra a vigência do clamor profético e funciona como freio das pressões alienadas e super-estruturais.

O ateísmo, enquanto negação dessa necessidade de essencialidade, perde sentido, pois, ao negar o Absoluto, afirma mediante a negação a existência do ser humano. Mas o cristianismo solidário não necessita dessa mediação, pois surge enquanto consciência sensível, teórica e prática do ser humano. É autoconsciência positiva do ser humano, não mediada pela superação da religião, do mesmo modo que a vida real é realidade positiva para o ser humano, não mediada pela superação da propriedade privada. O cristianismo solidário surge como negação da negação da emancipação e da recuperação humana, é o princípio dinâmico do porvir, mas não é em si a finalidade do desenvolvimento humano, a forma última e única da sociedade humana.

A militância religiosa faz parte de uma luta mais ampla, onde a religião infra-estrutural cumpre papel de aliado estratégico, levando o militante religioso a assumir tarefas, praxes nos níveis político, econômico e não apenas ideológico. O ateísmo, por isso, oculta, pois fecha as portas ao aliado estratégico, à religião infra-estrutural, que se fará presente enquanto houver seres humanos obstinados pela responsabilidade diante do excluído, sentido incondicional de justiça, esperança de um novo cairos.       

Assim, para o político cristão a história universal é produção humana a partir do trabalho humano, que transforma a natureza e produz o nascimento do ser humano em sociedade. É nesse processo permanente que o ser humano constrói sua essencialidade: do ser humano em direção ao ser humano, como essencialização da natureza, e da natureza para o ser humano, como existência humana. 

O êxito nesse processo depende das condições de possibilidade, ou seja, é impossível separar teoria e praxe. Por isso, uma teologia da vida deve saber integrar os princípios enunciados na escolha de fins, meios, e métodos que devem levar à praxe crítica do sujeito histórico, aqueles que estão excluídos do sistema-mundo. Este sistema-mundo ao impossibilitar a produção e reprodução da vida semeia doenças, fome, terror e morte. As vítimas são os seres humanos, cuja dignidade e vidas são destruídas. A globalidade excludente leva a um assassinato em massa e ao suicídio coletivo. Porém, a praxe do solidarismo enfrenta de um lado o anarquismo contrário à instituição e de outro o reformismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem ser enquadradas dentro de princípios gerais, ético e crítico, a fim de que de forma factual ético-crítica se possa negar as causas da negação do excluído. Essa é uma luta des/construtiva, que exige meios proporcionais àqueles contra os quais a luta é travada. Mas, se a praxes traduz uma ação des/construtiva, promove transformações construtivas: leva à uma nova ordem com base num programa planejado que é realizado progressivamente, mas nunca totalmente.

mardi 26 novembre 2013

La grâce

LE COMMANDEMENT DE LA GRÂCE
André Loverini

Le titre de cet article aura peut-être surpris. Quand on parle de commandement, en effet, on pense loi. On ne pense pas grâce. Et pourtant...

La grâce au commencement
Le commandement n’est pas premier. Les deux récits de la Création disent, chacun à sa manière, que l’œuvre de Dieu n’a d’autre source que son amour. Le point de départ, ce à partir de quoi tout commence, c’est donc la grâce, si nous entendons par là l’œuvre absolument gratuite de Dieu en faveur de sa créature.
Il a préparé la Terre, pour en faire la demeure de l’humanité. En celle-ci, il a voulu trouver son « image », non pour jouir du plaisir égoïste que peut procurer un reflet, mais pour donner à des êtres qu’il a appelés à la vie la joie de lui ressembler. L’histoire de la création se conclut sur le verbe donner. « Je vous donne toute herbe qui porte sa semence... et tout arbre dont le fruit porte sa semence » (Gn 1,28). Ce don ne s’arrête pas au présent de l’herbe et de l’arbre, il s’ouvre sur l’avenir de la semence. Promesse de fidélité, sans autre motif que la grâce ! C’est toute la terre, enfin, que Dieu a confiée à l’homme comme à la femme, en leur disant : « dominez sur elle ». Grâce, évidemment : rien n’a été mérité, gagné ou conquis, tout a été donné.
Grâce encore au septième jour ! Le quatrième l’annonce : situé à égale distance du premier et du dernier, entre la lumière initiale et la paix qui clôt le récit, Dieu le choisit pour placer dans le ciel ces « lampes » dont l’un des rôles est de « marquer les fêtes ». Ainsi s’exprime son désir d’offrir à l’humanité, non seulement la régence terrienne, mais la relation aimante avec son créateur. La conclusion est ce jour sans fin, le septième, qui englobe notre histoire entière, y compris notre aujourd’hui, où ne cesse de retentir l’appel qu’a si bien compris l’auteur de la Lettre aux Hébreux : « aujourd’hui, si vous entendez sa voix, n’endurcissez pas votre cœur ! » (Hé 3,7.15 ; 4,7).
Grâce toujours, dans ce merveilleux récit de Gn 2 ! Quel soin Dieu ne prend-il pas de l’homme, en lui offrant le jardin d’Éden, et, déjà, en le pétrissant à partir d’une poussière inerte à laquelle il donne, par son souffle, la vie. Quelle attention que de l’avertir d’un danger possible, alors que tous les fruits du merveilleux jardin lui sont largement offerts! Quelle déférence que de lui laisser le soin de discerner, parmi tous les animaux, s’il est parmi eux quelque créature capable de lui être une « aide et un vis-à-vis » ! Et quel don que cette femme ! si proche et si différente, qui lui apporte ce qui lui manquait, et qui lui offre davantage et mieux encore : la possibilité d’aimer et d’être aimé. Et donc de ressembler à Dieu !
Grâce enfin, jusque dans la tragédie du troisième chapitre ! D’abord dans la délicatesse avec laquelle sont abordés les coupables, ensuite dans la promesse du libérateur (Gn 3,15b), enfin dans le don des fourrures (Gn 3,21) ! Ici apparaît la grâce dans des dimensions qu’elle ne présentait pas auparavant. À la bonté du projet, à la grandeur de la vocation, à la générosité des dons, viennent s’ajouter la compassion − le don des fourrures  − et le pardon − la promesse faite à Ève.

Au commencement, la Parole
 « Au commencement était la Parole ». Par ces mots, Jean signale la participation du « Fils Unique » à l’œuvre de la Création. Il souligne, en même temps, un des points de notre « ressemblance » à Dieu : la parole. Cette ressemblance est une grâce au-delà de toute mesure. Car « Dieu est amour », beauté et bonté inégalables ! Lui ressembler : quel programme ! Mais comment pourrait-on lui ressembler sans aimer, sans aimer comme Lui ? Et comment aimer sans parler ?
Parler, c’est s’exprimer, et donc se dire soi-même, s’offrir en quelque sorte aux autres. Ainsi Dieu, qui « se nomme » à Moïse, s’est déjà nommé dans sa création, pour finir par se nommer en Christ. Jean ne nous dit-il pas, à propos de celui-ci, qu’il est « la Parole de la vie », et qu’en lui « la vie s’est manifestée » (1 Jn 1,1.2) ?
Dieu, le Vivant, a créé l’homme pour que celui-ci puisse vivre devant lui, et donc avec lui. Accordée à l’humanité, la parole va bien plus loin que les échanges utilitaires, si nécessaires soient-ils, qu’elle rend possibles. Elle nous permet en outre de dire le monde, à la louange de son Créateur. Elle est l’instrument de notre pensée, l’outil de notre savoir et de notre sagesse. Elle nous élève sur les ailes de la poésie. Grâce à elle, nous nous rencontrons les uns les autres, nous nous découvrons, et nous pouvons dire notre amour les uns pour les autres. Parler n’est pas seulement s’offrir aux autres, c’est s’ouvrir à eux : aimer, et pouvoir être aimé.
Plus encore, la parole rend possible le dialogue avec Dieu. Ici apparaît l’un des aspects les plus extraordinaires (et pourtant nous le vivons dans l’ordinaire de nos jours) de la grâce divine. Non seulement nous pouvons entendre Dieu − s’il n’y avait rien de plus, notre rapport à lui ne pourrait être que celui de subordonnés à un chef, ou d’esclaves à un maître – mais nous pouvons lui parler. Le comble, c’est qu’il nous écoute. Si étonnant que cela puisse paraître, il se met, lui, à notre écoute ! Grâce encore, grâce toujours !

La grâce avant la Loi
La grâce est antérieure à la Loi. C’est « par la foi », et donc par grâce, qu’Abraham a été reconnu comme juste et cela bien avant qu’intervienne la Loi (Rm 4,13 et passim). Rien d’autre ne motive l’appel adressé au patriarche, pas plus que les promesses qui l’accompagnent (Gn 12,1-3). L’amour que Dieu lui porte est entièrement gratuit.
La Loi est venue avec Moïse. Elle est en elle-même une grâce. Elle devait aider le peuple élu à vivre. Mais, après la chute, la nature humaine en fait l’occasion du péché. Dès lors, la Loi peut faire naître en nous le désir de ce qu’elle interdit, nous plonger dans le désespoir de l’impardonnable culpabilité, devenir au contraire l’instrument  qui nous permet de nous absoudre tout en condamnant les autres, ou bien nous priver de la liberté que nous a acquise le Christ. Certes, elle « est sainte et le commandement est saint, juste et bon ». Mais elle est impuissante : seule la grâce peut. La Loi nous condamne : seule la grâce pardonne. La Loi « qui devait nous conduire à la vie nous donne la mort » (Rm 7,10). Seule la grâce donne la vie. Nous ne pouvons vivre que par elle.

Le commandement suprême.
À un Pharisien qui lui demande : « quel est, dans la Loi, le grand commandement ? » Jésus répond : « Tu aimeras le Seigneur ton Dieu de tout ton cœur, de toute ton âme, de toute ta force et de toute ta pensée : c’est là le grand, le premier commandement. Mais un second lui est semblable : ‘‘tu aimeras ton prochain comme toi-même’’ et il ajoute : « à ces deux commandements sont suspendus toute la Loi, et les prophètes » (Mt 22,35-40).
C’est là le grand commandement. Ici se découvrent le cœur, le fond, la réalité à la fois première et dernière. Car de lui dépendent « toute la Loi et les prophètes », autrement dit : tout le message de l’A. T. et son accomplissement en Christ. Ce qui a inspiré la Loi et les prophètes, c’est l’amour de Dieu qui aboutit à la croix.
Ce commandement ne nous dit pas ce que nous devons faire. Il affirme ce que Dieu veut que nous soyons. Non pas des esclaves qu’on ne distingue guère des animaux ; non pas des serviteurs qui obéissent par peur ou par intérêt ; ni des mécaniques privées de toute liberté. Dans le commandement d’aimer, nous entendons, non pas la voix d’un souverain qui exige, comme il en a le droit, l’obéissance, mais celle du Dieu qui, toujours « a aimé le premier » (1 Jn 4,19) et qui veut que nous lui ressemblions..
Serait-ce à dire que nous hésitons à reconnaître la souveraineté de Dieu ?. Loin de nous une telle pensée ! Sans doute existe-t-il des exemples de souverains aimés par leurs sujets. Ce qui caractérise la relation entre un souverain et ses sujets, cependant, c’est le pouvoir, la force, la distance. L’amour n’y est pas nécessaire. Encore moins devrait-il être exigé. Or c’est lui qu’exige le commandement suprême. On pourrait même dire : il n’exige que l’amour.

La plus haute exigence
À l’amour vertigineux de Dieu, on ne peut vraiment répondre que par l’amour, et par quel amour ! Nos textes nous le disent, qui convoquent « tout notre cœur, toute notre âme, toute notre force et toute notre pensée ». Un amour absolu, sans limite : le plus haut, le plus désintéressé, le plus intelligent, le plus énergique, le plus exigeant.
Pourquoi une telle exigence ? Parce que l’amour de Dieu a exigé davantage encore de lui-même. Parce qu’il est absolument gratuit, immérité, et ne trouve aucune justification dans les personnes qui en sont les objets. Dieu a aimé ceux qui ne l’aimaient pas, pardonné ceux qu’il aurait dû condamner. Il a accepté la mort du Fils bien-aimé en faveur de ceux-là mêmes qui étaient responsables de son supplice.
Aussi le commandement « tu aimeras le Seigneur » a-t-il plus de  force que n’aurait simplement (si l’on peut dire) un ordre souverain. Il nous élève au rang de fils. Il nous introduit dans l’intimité même de Celui qui est amour. Il nous bouleverse, parce que nous découvrons ce qu’est l’amour dans sa vérité. Il nous place devant la croix, ou plutôt devant le crucifié. Crucifié pour nous. Ressuscité pour nous. Et qui a vécu pour nous. Nous sommes les bien-aimés de Celui qui est amour ! Sous le commandement, nous entendons l’appel de celui qui nous aime.

La grâce pour vivre 
Au légiste qui vient de lui citer « le grand commandement », Jésus déclare : « fais cela et tu vivras » (Lc 10,28). Tu vivras, en effet, parce que tu ne vis pas encore ! Et pour que tu vives vraiment, il faut que tu changes dans « tout ton cœur, toute ton âme et toute ta pensée ».
Mais comment s’élever à une telle hauteur ? Comment devenir tels que nous ne sommes pas, tels que Jésus seul a été, tels qu’il est. Nous qui savons si mal aimer, comment pourrions-nous aimer ainsi ? Quel effort de la pensée, du cœur, de l’âme en serait-il capable ? Le commandement nous écrase, l’appel nous paralyse.
S’ouvre alors la porte d’or sur tous les possibles. Car ce que ni la chair ni le sang ne pouvaient, ce dont la loi était incapable, voici que cela nous est « donné ». L’amour, objet suprême du commandement, peut naître dans nos cœurs, non comme le résultat de nos pauvres efforts, mais comme le fruit de l’Esprit. Celui-ci n’habite-t-il pas en nous désormais ? Qui sommes-nous pourtant pour être les hôtes de Dieu ? Incapables, insuffisants, indignes ! Mais tellement aimés !
Le Saint-Esprit œuvre en nous, transformant notre intelligence, rectifiant nos erreurs, débusquant nos illusions, nous introduisant à la pensée de Dieu. Il éclaire à nos yeux les réalités du monde et le projet du Créateur. Il nous rend sensibles à la misère de notre prochain (fût-il le plus riche des humains !), il nous ouvre à l’amour fraternel (fût-ce pour le plus petit de nos frères). Il nous délivre de toutes nos idoles, même de celles que nous ne connaissions pas comme telles. Surtout, il nous découvre toute la profondeur de l’amour que Dieu nous porte, toutes les richesses de sa Parole, toute la noblesse de notre vocation. Ce qui nous était impossible, voici que nous apprenons, peu à peu, à le vouloir, à le désirer, à l’accomplir.
Telle est l’œuvre du Saint-Esprit. Mais nous ne sommes pas encore parvenus à la perfection. Sous le poids de vieilles habitudes, devant les révoltes de notre « nature » et la pression du monde, nous nous tournons vers notre Père : « renouvelle-nous la grâce de ton Saint-Esprit ! renouvelle en nous un esprit bien disposé ! Apprends-nous à aimer ! Apprends-nous à t’aimer ! »

La grâce pour finir
Tout est grâce dans nos vies en Jésus-Christ ! Et tout, dans nos vies, a pour but ultime de célébrer la grâce, de la manifester, d’en illustrer la suprême beauté. « Nous avons été choisis », en effet, « dès avant la fondation du monde, pour servir à la louange de la gloire de sa grâce ». Plus que la puissance, plus que l’intelligence, plus que la sagesse, plus que l’autorité – qui certes, chacune en son rang, méritent notre admiration −, plus que tout ce qui est au monde, la grâce de Dieu, qui a vaincu le péché, nos ignorances et nos révoltes, la grâce, généreuse jusqu’au sacrifice du Fils Bien-Aimé, peut inspirer nos vies et notre adoration. Elle est, par excellence, la gloire de Dieu.
C’est pourquoi le chrétien se sait libre ; libre de la liberté la plus belle : libre d’aimer vraiment. Aussi ne suit-il pas les principes du monde : il ne cherche ni les honneurs, ni le pouvoir, ni même la reconnaissance. Il donne sans esprit de retour, renonce aisément à ses droits, aime ceux qui le haïssent et bénit ceux qui le maudissent. Il vit selon la générosité de la grâce. Son modèle, c’est, évidemment, Jésus, l’agneau de Dieu, le Sauveur, le Seigneur. 

La grâce est la source et le couronnement de toute vie vraiment chrétienne.

André Loverini

vendredi 22 novembre 2013

Saremo felice!

Sejamos felizes!
A lembrar dias de verão em Florença
Por Jorge Pinheiro

Por que eu tenho que escrever tudo?
Tudo?
Não tudo! 
Tudo é muita coisa! 
Talvez apenas sobre Florença no dia depois da festa de São Pedro em Roma
Faz calor, quase quarenta
Claire Tenet, soprano, grazie, sonhos de imagens sobre os sons da velha Igreja
Via Por Santa Maria, ponte Vecchio
Fagotes abrindo o caminho para violinos, sinfonia Prokofiev n º 7
O ombro é tocado por um anjo que me diz desperta do sono sem acordar as folhas ao redor
Os tubos em um crescendo
O corpo pesa o peso e acho que abrucezzo
Isso é tudo? 
Tudo é muita coisa! 
Dante, onde está Dante? 
Está aqui, voou com seus amigos para dentro de nossas almas em um amanhecer mineiro
Sangram os sonhos greco-latinos, sonhos possuídos pelo violoncelo sem limites
Os sons sāo sinos da noite
E viva Florença
Augusta e bela!

Saremo felice!

Perché devo scrivere tutto?
Tutto?
Non tutto! 
Tutto è molto! 
Forse solo di Firenze il giorno dopo la festa di San Pietro a Roma
È caldo, quasi quaranta
Claire Tenet, soprano, grazie, sogni di immagini, i suoni dell'antica chiesa
Via Por Santa Maria, ponte Vecchio
Fagotti spianando la strada per violini Sinfonia n. 7 di Prokof'ev
La spalla è toccata da un angelo che mi dice che si risveglia dal sonno senza risveglio delle foglie intorno
I tubi in un crescenti
Il corpo pesa il peso e penso che abruzzese
Questo è tutto? 
Tutto è molto! 
Dante, dov'è Dante? 
Sono qui, ha volato con i suoi amici nella nostra anima in un minatore di Alba
Sanguinare il greco-latino di sogni, di proprietà di violoncello sogni senza limite
I suoni sono campane della sera
E vivere Firenze
Augusta e bella!

Sucesso na velhice

הצלחה – Sucesso, que o Eterno abençoe as obras das suas mãos!
Hatzlakha rabbah! – Boa sorte!

A velhice é uma certeza, se você tem saúde e não morrer de bala. Dedico às velhas e velhos queridos. E àquelas que estão se preparando para chegar lá. JP.

“Derrama sobre nós a tua graça, ó Senhor, nosso Deus! Dá-nos sucesso em tudo o que fizermos. Sim, dá-nos sucesso em tudo”. Salmo 90.17.

1. Sucesso na velhice?

Nesta canção, Moisés mostra que Deus é o Eterno. Deus do passado, do presente e do futuro. É Ele quem define o tempo de vida das pessoas. Sabe que para Ele mil anos é como se fosse um dia. Por isso, Moisés deposita sua fé no Eterno. E fé é fundamental -- sem ela não há sucesso. 

A partir de Deus, nossa mente descobre novas formas de fazer, de resolver problemas. Isso é sabedoria, que nasce do temor diante da autoridade e soberania de Deus. E sem sabedoria não há sucesso. 

"Desta maneira, quem não sabe que tudo o que acontece é obra do Senhor? Pois na sua mão está a vida de todos os seres vivos e o espírito que anima todos os seres humanos. O ouvido sabe distinguir as palavras, como o paladar distingue o sabor que lhe agrada. A velhice dá sabedoria, uma vida longa produz inteligência. Por isso, ele tem a sabedoria e o poder, compreende e percebe tudo". (Jó 12:9-13)

A este elemento -- a sabedoria -- podemos chamar de fator crítico de sucesso, ou seja, aquilo que é necessário para que um projeto realize seu objetivo, sua missão. 

E se o Eterno nos deu tempo de vida, Ele nos deu, enquanto esse tempo durar, o objetivo de realização pessoal, debaixo de sua graça.

2. As nossas limitações

Moisés em sua canção mostra que as pessoas são falhas e erram seus alvos existenciais. Somos tentados pela superficialidade dos desejos de nossa natureza humana, cobiça e soberba que nos levam por caminhos errados, por maldades, iras e culpas. Por isso, o hebreu diz que devemos saber contar cada dia de nossa vida para que tenhamos um coração cheio de sabedoria. 

Moisés está dizendo que não há sucesso, seja na juventude, maturidade ou velhice, quando não encaramos da forma certa o que pretendemos fazer. Devemos reconhecer nossa dependência do Eterno para ir mais longe, para superar a carga social da limitação da idade e consequentemente nossos medos. O sucesso é destino do Eterno para nossas vidas em todas as idades, pois não depende apenas de capacidade, mas de visão. 

Donde, de forma jocosa, uma pergunta:



Praticamente todas as respostas têm sua razão de ser, mas não respondem a questão central. Então, vamos em frente.

3. Vida plena

Sucesso significa otimizar resultados. Se você descer ladeira abaixo você está em apuros, porque só existe uma maneira de ter sucesso nessa empreitada é fazendo skating. Você sabe qual é o caminho? Isso é importante, porque nenhuma estrada é um caminho fácil, mas pior ainda é quando se vai na direção contrária ao sucesso. E Moisés clama por amor, alegria e felicidade porque sabe que essas bênçãos pavimentam o caminho da realização plena de nossa humanidade. 

E de forma prática, pede que ao Eterno que abençoe as obras de nossas mãos. O nosso fazer, os nossos modos de fazer, nossos planos e objetivos. Mas, lembre-se: o saber fazer é importante, porém mais importante são os valores que movem você, se você, de fato, acredita que Deus está nesse negócio. Se tem a certeza que está fazendo a coisa certa e de que o Eterno está com você, então você está na direção certa. Começou a trilhar o caminho do sucesso nesta idade que Deus lhe deu.

Do pastor e amigo, Jorge Pinheiro. 

mardi 19 novembre 2013

O que aprendemos com os sacerdotes medo-persas

Para você preparar o seu sermão do Dia de Reis
Por Jorge Pinheiro

Mateus 2.1-12

1. Quem eram os magoi?

O historiador grego Heródoto (ap. 480-ap. 425 a.C.) diz que os magos eram uma tribo  de sacerdotes medos, sob os reis aquemênidas (séculos VI-IV a.C.). Diz Heródoto: 

"As tribos dos medos são as seguintes: os busos, os paretacenos, os estrúcatos, os arizantos, os búdios e os magos" (História I,101)... 

"Astiages relatou a visão que tivera em sonho aos intérpretes magos, e ficou apavorado ao ouvir as suas palavras" (História I,107)... 

"Astiages (...) para decidir a sorte de Ciros, mandou chamar os mesmos magos que, como dissemos, tinham interpretado seu sonho; quando eles chegaram Astiages lhes perguntou qual havia sido a sua interpretação da visão. Os magos lhe deram a mesma resposta anterior: disseram que o menino teria fatalmente reinado" (História I, 120)... 

"Dizendo essas palavras ele [Astiages] mandou primeiro empalar os magos intérpretes de sonhos, que o haviam convencido a deixar Ciros viver" (História I, 128)... 

"Sua maneira de sacrificar aos deuses é a seguinte (...) Depois de a carne ser arrumada dessa maneira um mago se aproxima e canta por cima dela uma teogonia (dizem que esse é o assunto de seu canto); ninguém tem o direito de oferecer um sacrifício sem a presença de um mago" (HERODOTOS, História. Brasília: Editora da UnB, 1985. Sobre os magos, cf. YAMAUCHI, E. M. Persia and the Bible. Grand Rapids, MI: Baker Books, 1996, p. 467-491).

O geógrafo grego Estrabão (ap. 64 a.C.-19 d.C.) diz que os magos oferecem libações e sacrifícios diante do altar do fogo: 

"Na Capadócia (pois ali a seita dos Magos, que são também chamados Pýraithoi ['acendedores de fogo'], é grande e neste país há também muitos templos dos deuses persas) o povo..." (STRABO, Geography, Books 15-16. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1995. Sobre as libações, cf. Geografia 15.3.14). 

O escritor ateniense Xenofonte (ap. 430- ap.355 a.C.), em sua obra Ciropedia 4.5.14, faz a mesma afirmação sobre as libações.

Quando Cambises estava no Egito, lutando para conquistá-lo em 525 a.C., um mago chamado Bardiya/Smerdis, fazendo-se passar por irmão de Cambises, tomou o poder na Pérsia, sendo, em seguida, derrotado por Dario I. Na famosa inscrição no rochedo de Behistun, o impostor, também conhecido como Gaumata, é chamado por Dario, em Persa Antigo, de magush. Aliás, palavra de sentido incerto. Sugeriu-se que possa vir do Proto-Indo-Europeu magh- = "ser capaz de".

Os persas usaram derivações da palavra magush como uma palavra para "sacerdote" até o fim da era sassânida, por volta de 650 d.C. Um sacerdote comum era chamado mog e o sacerdote chefe era magupat, "senhor dos magos". 

A relação dos magos com Zaratustra é controvertida, assim como a religião dos magos sob os aquemênidas. É possível que os magos medos tenham sido substituídos por Dario I pelos magos persas - que aceitavam o zoroastrismo - após a revolta de Gaumata. De qualquer maneira, em muitos escritos antigos, os magos aparecem associados ao zoroastrismo e a Zaratustra. Na época helenística os magos aparecem também cada vez mais associados à astrologia. E Zaratustra com eles ([YAMAUCHI, E. M. Persia and the Bible, p. 467-474. "Zoroastro" é apenas outra forma, derivada do grego, para falar do mesmo Zaratustra)

2. Melquior, Gaspar e Baltazar e seus presentes

Os presentes dos sacerdotes em Mateus 2,11 - ouro, incenso e mirra - traduzem o que o Menino significava para os eles.

Isaías 60,6 diz a propósito do esplendor de Jerusalém, glorificada por Iahweh, que recebe as riquezas vindas das nações pelas mãos de seus reis e de seus povos: 

"Uma horda de camelos te inundará
os camelinhos de Madiã e Efa;
todos virão de Sabá
trazendo ouro e incenso
e proclamando os louvores de Iahweh".

E o Salmo 72,10-11 diz:

"Os reis de Társis e das ilhas vão trazer-lhe ofertas.
Os reis de Sabá e Seba vão pagar-lhe tributo;
todos os reis se prostrarão diante dele,
as nações todas o servirão".

O ouro de Ofir (no sudoeste da Arábia), o incenso e a mirra do Iêmen (Sabá, na Bíblia) e da Somália.

Os Pais da Igreja
Tertuliano os chamou de reis.

Justino Mártir, Tertuliano e Epifânio, sabedores da origem dos presentes, disseram que eles vinham da Arábia.

Clemente de Alexandria, Cirilo de Alexandria, 
São João Crisóstomo, Orígenes, que eram da Pérsia.

Uma história persa relatada no Evangelho Siro-Árabe da Infância conta:

Nesta mesma noite, um anjo da guarda foi mandado à Pérsia e apareceu às pessoas do país na forma de uma estrela muito brilhante, a qual iluminou toda a terra dos persas. Ora, como no dia 25 do primeiro kanun - festa da natividade de Cristo - celebrava-se uma grande festa na casa de todos os persas adoradores do fogo e das estrelas, os magos, com grande pompa, celebravam magnificamente sua solenidade, quando, de repente, uma luz viva brilhou por cima de suas cabeças. Deixando seus reis, suas festas, todos os seus divertimentos e suas casas, saíram para apreciar o espetáculo. Viram no céu uma estrela brilhante em cima da Pérsia. Pelo seu brilho, ela se assemelhava a um grande sol.

E seus reis disseram aos sacerdotes em sua língua: "Que sinal é este que estamos vendo?" E eles, como por adivinhação, disseram: "Nasceu o rei dos reis, o deus dos deuses, a luz emanada da luz. Eis que um dos deuses veio anunciar-nos seu nascimento para irmos oferecer-lhe presentes e adorá-lo".

Levantaram-se então todos, chefes, magistrados, generais, e disseram aos seus sacerdotes: "Que presentes convém levarmos?" E os sacerdotes lhes disseram: "Ouro, mirra e incenso".

Então os três reis, filhos dos reis da Pérsia, tomaram, como que por uma disposição misteriosa, um, três libras de mirra, o outro, três libras de ouro, e o terceiro, três libras de incenso. Estavam revestidos de seus preciosos indumentos, a tiara na cabeça e seu tesouro nas mãos. Ao canto do galo, deixaram seu país, com nove homens que os acompanhavam, e partiram, precedidos da estrela que lhes tinha aparecido.

O Excerpta Latina Barbari, um manuscrito latino traduzido do grego, do século VI, conservado na Biblioteca Nacional de Paris, nomeia os magos como Bithisarea, Meliquior e Gathaspa.

Um tratado atribuído a Beda, monge do mosteiro de Jarrow, Inglaterra, ca. 673-735), chamado Excerpta et Collectanea chama os magos de Melquior, Gaspar e Baltazar. E foram estes os nomes que prevaleceram. Diz o texto:

Melquior, um homem velho com cabelos brancos e longa barba... ofereceu ouro para o Senhor como a um rei. O segundo, de nome Gaspar, jovem, imberbe e de pele avermelhada... honrou-o como Deus com seu presente de incenso, oferenda digna da divindade. O terceiro, de pele negra e de barba cerrada, chamado Baltazar... com o seu presente de mirra testemunhou o Filho do Homem que deveria morrer (YAMAUCHI, E. M. Persia and the Bible, p. 486-487). 

O nome Melquior significa "meu Rei é luz"; Baltazar (que Deus Baal/Senhor proteja o rei) derivado do nome babilônico dado a Daniel, "Belteshazzar" (cf. Dn 1,7); Gaspar  (Gisbar / Gasparinu, tesoureiro) pode vir do nome indiano Gundaphorus, segundo Edwin M. Yamauchi, o. c., p. 486, nota 115.22].

Quando o veneziano Marco Polo (ca.1254-ca.1324) viajou para a Pérsia, as tumbas dos magos lhe foram mostradas.

Ouro, porque Ele é Rei

"Puseram acima da sua cabeça uma tabuleta onde estava escrito como acusação contra ele: 'Este é Jesus, o Rei dos Judeus'.” (Mateus 27:37 NTLH)

Incenso, porque Ele é Deus

"Em seguida disse a Tomé: — Veja as minhas mãos e ponha o seu dedo nelas. Estenda a mão e ponha no meu lado. Pare de duvidar e creia! Então Tomé exclamou: — Meu Senhor e meu Deus!" (João 20:27, 28 NTLH)

Mirra, porque Ele se fez humano e morreu por nós

"Depois disso, José, da cidade de Arimateia, pediu licença a Pilatos para levar o corpo de Jesus. (José era seguidor de Jesus, mas em segredo porque tinha medo dos líderes judeus.) Pilatos deu licença, e José foi e retirou o corpo de Jesus.  Nicodemos, aquele que tinha ido falar com Jesus à noite, foi com José, levando uns trinta e cinco quilos de uma mistura de aloés e mirra. Os dois homens pegaram o corpo de Jesus e o enrolaram em lençóis nos quais haviam espalhado essa mistura. Era assim que os judeus preparavam os corpos dos mortos para serem sepultados". (João 19:38-40 NTLH)

Esses sacerdotes nos ensinam o que é adoração

1. Determinação -- vieram do Oriente até Jerusalém. Da Pérsia, atual Irã, cerca de 1.800 km.

2. Generosidade -- deram do melhor.

"Entraram na casa e encontraram o menino com Maria, a sua mãe. Então se ajoelharam diante dele e o adoraram. Depois abriram os seus cofres e lhe ofereceram presentes: ouro, incenso e mirra". (Mateus 2:11 NTLH)

3. Obediência -- " em sonho Deus os avisou que não voltassem para falar com Herodes. Por isso, voltaram para a sua terra por outro caminho". Mateus 2.12.



mardi 5 novembre 2013

Tiago, o proto-Evangelho

A INFÂNCIA DE CRISTO SEGUNDO TIAGO

 

A Natividade de Maria

Segundo narram as memórias das doze tribos de Israel, havia um homem muito rico, de

nome Joaquim, que fazia suas oferendas em quantidade dobrada, dizendo:

— O que sobra, ofereça-o para todo o povoado e o devido na expiação de meus pecados

será para o Senhor, a fim de ganhar-lhe as boas graças.

Chegou a grande festa do Senhor, na qual os filhos de Israel devem oferecer seus

donativos. Rubem se pôs à frente de Joaquim, dizendo-lhe:

— Não te é lícito oferecer tuas dádivas, enquanto não tiveres gerado um rebento em

Israel.

Joaquim mortificou-se tanto que se dirigiu aos arquivos de Israel, com intenção de

consultar o censo genealógico e verificar se, porventura, teria sido ele o único que não

havia tido prosperidade em seu povoado.

Examinando os pergaminhos, constatou que todos os justos haviam gerado

descendentes. Lembrou-se, por exemplo, de como o Senhor deu Isaac ao patriarca Abraão,

em seus derradeiros anos de vida.

Joaquim ficou muito atormentado, não procurou sua mulher e se retirou para o deserto.

Ali armou sua tenda e jejuou por quarenta dias e quarenta noites, dizendo:

— Não sairei daqui nem sequer para comer ou beber, até que não me visite o Senhor

meu Deus. Que minhas preces me sirvam de comida e de bebida.

Ana lamentava-se e gemia dolorosamente, dizendo:

— Chorarei minha viuvez e minha esterilidade.

Chegou, porém, a grande festa do Senhor e disse-lhe Judite, sua criada:

— Até quando vais humilhar tua alma? Já é chegada a festa maior e não te é lícito

entristecer-te. Toma este lenço de cabeça, que me foi dado pela dona da tecelagem, já que

não posso cingir-me com ele por ser eu de condição servil e levar ele ao selo real.

Disse Ana:

— Afasta-te de mim, pois que não fiz tal coisa e, além do mais, o Senhor já me

humilhou em demasia para que eu o use. A não ser que algum malfeitor o haja dado e

tenhas vindo para fazer-me também cúmplice do pecado.

Replicou Judite:

— Que motivo tenho eu para maldizer-te, se o Senhor já te amaldiçoou não te dando

fruto de Israel?

Ana, ainda que profundamente triste, despiu suas vestes de luto, cingiu-se com um

toucado, vestiu suas roupas de bodas e desceu, na hora nona, ao jardim para passear. Ali viu

um loureiro, assentou-se à sua sombra e orou ao Senhor, dizendo:

— Ó Deus de nossos pais! Ouve-me e bendize-me da maneira que bendisseste o ventre

de Sara, dando-lhe como filho Isaac!

Tendo elevado seus olhos aos céus, viu um ninho de passarinhos no loureiro e

novamente lamentou-se dizendo:

— Ai de mim! Por que nasci e em que hora fui concebida? Vim ao mundo para ser

como terra maldita entre os filhos de Israel. Estes me cumularam de injúrias e me

escorraçaram do templo de Deus. Ai de mim! A quem me assemelho eu? Não às aves do

céu, pois elas são fecundas em tua presença, Senhor. Ai de mim! A quem me pareço eu?

Não às bestas da terra, pois que até esses animais irracionais são prolíficos ante teus olhos,

Senhor. Ai de mim! A quem me posso comparar? Nem sequer a estas águas, porque até elas

são férteis diante de ti, Senhor. Ai de mim! A quem me igualo eu? Nem sequer a esta terra,

porque ela também é fecundada, dando seus frutos na ocasião própria e te bendiz, Senhor.

Eis que se lhe apresentou o anjo de Deus, dizendo-lhe:

— Ana, Ana, o Senhor escutou teus rogos! Conceberás e darás à luz e de tua prole se

falará em todo o mundo.

Ana respondeu:

— Viva o Senhor meu Deus, que, se chegar a ter algum fruto de bênção, seja menino ou

menina, levá-lo-ei como oferenda ao Senhor e estará a seu serviço todos os dias de sua

vida.

Então vieram a ela dois mensageiros com este recado:

— Joaquim, teu marido, está de volta com seus rebanhos, pois que um anjo de Deus

desceu até ele e lhe disse que o Senhor escutou seus rogos e que Ana, sua mulher, vai

conceber em seu ventre.

Tendo saído Joaquim, mandou que seus pastores lhe trouxessem dez ovelhas sem

mancha.

Disse ele:

— Estas serão para o Senhor.

Mandou, então separar doze novilhas de leite, dizendo:

— Estas serão para os sacerdotes e para o sinédrio.

Finalmente, mandou apartar cem cabritos para todo o povoado.

Ao chegar Joaquim com seus rebanhos, estava Ana à porta e, ao vê-lo chegar, pôs-se a

correr e atirou-se ao seu pescoço dizendo:

— Agora vejo que Deus me bendisse copiosamente, pois, sendo viúva, deixo de sê-lo e,

sendo estéril, vou conceber em meu ventre.

Então Joaquim repousou naquele dia em sua casa.

No dia seguinte, ao ir oferecer sua dádivas ao Senhor, dizia para consigo mesmo:

— Saberei se Deus me vai ser favorável se eu chegar a ver o éfode do sacerdote.

Ao oferecer o sacrifício, observou o éfode do sacerdote, quando este se acercava do

altar de Deus, e, não encontrando pecado algum em sua consciência, disse:

— Agora vejo que o Senhor houve por bem perdoar todos os meus pecados.

Desceu Joaquim justificado do templo e foi para casa. O tempo de Ana cumpriu-se e no

nono mês deu à luz.

Perguntou à parteira:

— A quem dei à luz?

A parteira respondeu:

— Uma menina.

Então Ana exclamou:

— Minha alma foi enaltecida — e reclinou a menina no berço.

Ao fim do tempo marcado pela lei, Ana purificou-se, deu o peito à menina e pôs-lhe o

nome de Maria.

Dia a dia a menina ia robustecendo-se. Ao chegar aos seis meses, sua mãe deixou-a só

no chão, para ver se sustentava-se de pé. Ela, depois de andar sete passos, voltou ao regaço

de sua mãe. Esta levantou-se, dizendo:

— Salve o Senhor! Não andarás mais por este solo, até que te leve ao templo do

Senhor.

Fez-lhe um oratório em sua casa e não consentiu que nenhuma coisa vulgar ou impura

passasse por suas mãos. Chamou, além disso, umas donzelas hebréias, todas virgens, para

que a entretivessem.

Quando a menina completou um ano, Joaquim deu um grande banquete, para o qual

convidou os sacerdotes, os escribas, o sinédrio e todo o povo de Israel. Apresentou a

menina aos sacerdotes, que a abençoaram assim:

— Ó Deus de nossos pais, bendiz esta menina e dá-lhe um nome glorioso e eterno por

todas as gerações.

Ao que todo o povo respondeu:

— Assim seja, assim seja! Amém!

Apresentou-a também Joaquim aos príncipes e aos sacerdotes e estes a abençoaram

assim:

— Ó Deus Altíssimo, põe teus olhos nesta menina e outorga-lhe uma bênção perfeita,

dessas que excluem as ulteriores.

Sua mãe levou-a ao oratório de sua casa e deu-lhe o peito. Compôs, então, um hino ao

Senhor Deus, dizendo:

— Entoarei um cântico ao Senhor meu Deus, porque me visitaste, afastaste de mim o

opróbrio de meus inimigos e me deste um fruto santo, que é único e múltiplo a seus olhos.

Quem dará aos filhos de Rubem a notícia de que Ana está amamentando? Ouvi, ouvi, ó

Doze Tribos de Israel: Ana está amamentando!

Tendo deixado a menina para que repousasse na câmara onde havia o oratório, saiu e

pôs-se a servir os comensais. Estes, uma vez terminada a ceia, saíram regozijando-se e

louvando ao Deus de Israel.

Entretanto, os meses iam-se passando para a menina. Ao fazer dois anos, disse Joaquim

a Ana:

— Levemo-la ao templo do Senhor para cumprir a promessa que fizemos, para que

Senhor não a reclame e nossa oferenda se torne inaceitável a seus olhos.

Ana respondeu:

— Esperamos, todavia, até que complete três anos, para que a menina não tenha

saudades de nós.

Joaquim respondeu:

— Esperaremos.

Ao chegar aos três anos, disse Joaquim:

— Chama as donzelas hebréias que não têm mancha e que tomem, duas a duas, uma

candeia acesa e a acompanhem, para que a menina não olhe para trás e seu coração seja

cativado por alguma coisa fora do templo de Deus.

Assim fizeram enquanto iam subindo ao templo de Deus. Lá recebeu-a o sacerdote, o

qual, depois de tê-la beijado, abençoou-a e exclamou:

— O Senhor engrandeceu teu nome diante de todas as gerações, pois que, no final dos

tempos, manifestará em ti sua redenção aos filhos de Israel.

Fê-la sentar-se no terceiro degrau do altar. O Senhor derramou graças sobre a menina,

que dançou cativando toda a casa de Israel.

Saíram, então, seus pais, cheios de admiração, louvando ao Senhor Deus porque a

menina não havia olhado para trás. Maria permaneceu no templo como uma pombinha,

recebendo alimento pelas mãos de um anjo.

Ao completar doze anos, os sacerdotes reuniram-se para deliberar, dizendo:

— Eis que Maria cumpriu doze anos no templo do Senhor. Que faremos para que ela

não chegue a manchar o santuário?

Disseram ao sumo sacerdote:

— Tu que tens o altar ao teu cargo, entra e ora por ela. O que o Senhor te disser, isso

será o que haveremos de fazer.

O sumo sacerdote, cingindo-se com o manto das doze sinetas, entrou no Santo dos

Santos e orou por ela. Eis que um anjo do Senhor apareceu, dizendo-lhe:

— Zacarias, Zacarias, sai e reúne a todos os viúvos do povoado. Que cada um venha

com um bastão e o daquele em que o Senhor fizer um sinal singular, deste será ela a esposa.

Saíram os arautos por toda a região da Judéia e, ao soar a trombeta do Senhor, todos

acudiram.

José, deixando de lado sua acha, uniu-se a eles. Uma vez que se juntaram todos,

tomaram cada qual seu bastão e puseram-se a caminho, à procura do sumo sacerdote. Este

tomou todos os bastões, entrou no templo e pôs-se a orar. Terminadas as suas preces,

tomou de novo os bastões e os entregou, mas em nenhum deles apareceu sinal algum.

Porém, ao pegar José o último, eis que uma pomba saiu dele e se pôs a voar sobre sua

cabeça. Então o sacerdote disse:

— A ti coube a sorte de receber sob tua custódia a Virgem do Senhor.

José replicou:

— Tenho filhos e sou velho, enquanto que ela é uma menina. Não gostaria de ser objeto

de zombaria por parte dos filhos de Israel.

Então tornou o sacerdote:

— Teme ao Senhor teu Deus e tem presente o que fez Ele com Datan, Abiron e Corê,

de como abriu-se a terra e foram sepultados por sua rebelião. Teme agora tu também, José,

para que não aconteça o mesmo a tua casa.

Ele, cheio de temor, recebeu-a sob proteção. Depois, disse-lhe:

— Tomei-te do templo. Deixo-te agora em minha casa e vou continuar minhas

construções. Logo voltarei. O Senhor te guardará.

Os sacerdotes, então, reuniram-se e concordaram em fazer um véu para o templo do

Senhor.

O sumo sacerdote disse:

— Chama algumas donzelas sem mancha, da tribo de Davi.

Os ministros se foram e, depois de terem procurado, encontraram sete virgens. Então o

sacerdote lembrou-se de Maria, a jovenzinha que, sendo de estirpe davídica, se conservava

imaculada aos olhos de Deus. Os emissários foram buscá-la.

Depois de as terem introduzido no templo, disse o sacerdote:

— Vejamos qual há de bordar o ouro, o amianto, o linho, a seda, o zircão, o escarlate e

a verdadeira púrpura.

O escarlate e a verdadeira púrpura couberam a Maria que, tomando-as, foi para casa.

Naquela época, Zacarias ficou mudo, sendo substituído por Samuel, até quando pôde

falar novamente. Maria tomou em suas mãos o escarlate e pôs-se a tecê-lo.

Certo dia, pegou Maria um cântaro e foi enchê-lo de água. Eis que ouviu uma voz que

lhe dizia:

— Deus te salve, cheia de graça! O Senhor está contigo, bendita és entre as mulheres!

Ela olhou a sua volta, à direita, à esquerda, para ver de onde vinha aquela voz.

Tremendo, voltou para casa, deixou a ânfora, pegou a púrpura, sentou-se no divã e pôs-se a

tecê-la. Logo um anjo do Senhor apresentou-se diante dela, dizendo:

— Não temas, Maria, pois alcançaste graça ante o Senhor onipotente e vais conceber

por Sua palavra!

Ela, ao ouví-lo, ficou perplexa e disse consigo mesma:

— Deverei eu conceber por virtude de Deus vivo e haverei de dar à luz como as demais

mulheres?

Ao que lhe respondeu o anjo:

— Não será assim, Maria, pois que a virtude do Senhor te cobrirá com sua sombra.

Depois, o fruto santo que deverá nascer de ti será chamado de Filho do Altíssimo. Chamarlhe-

ás Jesus, pois Ele salvará seu povo de suas iniqüidades. Então, disse Maria:

— Eis aqui a escrava do Senhor em Sua presença. Que isto aconteça a mim conforme

Sua palavra.

Concluído seu trabalho com a púrpura e o escarlate, levou-o ao sacerdote. Este a

abençoou dizendo:

— Maria, o Senhor enaltecer seu nome e serás bendita entre todas as gerações da terra.

Cheia de alegria, Maria foi à casa de sua parente Isabel. Chamou-a da porta e, ao ouvíla,

Isabel largou o escarlate, correu para a porta, abriu-a e, vendo Maria, louvou-a dizendo:

— Que fiz eu para que a mãe do meu Senhor venha a minha casa? Pois saiba que o

fruto que carrego em meu ventre se pôs a pular dentro de mim, como que para bendizer-se.

Maria havia se esquecido dos mistérios que o anjo Gabriel lhe comunicara, elevou os

olhos aos céus e disse:

— Quem sou eu, Senhor, para que todas as gerações me bendigam?

Passou três meses em casa de Isabel. Dia a dia seu ventre aumentava e, cheia de temor,

pôs-se a caminho de casa e escondia-se dos filhos de Israel. Quando sucederam essas

coisas, ela contava dezesseis anos.

Ao chegar Maria ao sexto mês de gravidez, voltou José de suas construções e, ao entrar

em casa, deu-se conta de que ela estava grávida. Então, feriu seu próprio rosto, jogou-se no

chão sobre uma manta e chorou amargamente, dizendo:

— Como é que me vou apresentar agora diante do meu Senhor? E que oração direi eu

agora por esta donzela, pois que a recebi virgem do templo do Senhor e não a soube

guardar? Será que a história de Adão se repetiu comigo? Assim como no instante em que

ela estava glorificando a Deus veio a serpente e, ao encontrar Eva sozinha, a enganou, o

mesmo me aconteceu.

Levantando-se, José chamou Maria e disse-lhe:

— Predileta como eras de Deus, como foste capaz de fazer isso? Acaso te esqueceste do

Senhor teu Deus? Com pudeste vilipendiar tua alma, tu que te criaste no Santo dos Santos e

recebeste alimento das mãos de um anjo?

Ela chorou amargamente dizendo:

— Sou pura e não conheço varão algum.

Replicou José:

— De onde, pois, provém o que carregas no seio?

Ao que Maria respondeu:

— Pelo Senhor, meu Deus, eu juro que não sei como aconteceu.

José encheu-se de temor, retirou-se da presença de Maria e pôs-se a pensar sobre o que

faria com ela. Dizia consigo próprio:

— Se escondo seu erro, contrario a lei do Senhor. Se a denuncio ao povo de Israel, temo

que o que acontecer a ela se deva a uma intervenção dos anjos e venha a entregar à morte

uma inocente. Como deverei proceder, pois? Mandá-la embora às escondidas.

Enquanto isso, caiu a noite. Eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos,

dizendo-lhe:

— Não temas por esta donzela, pois o que ela carrega em suas entranhas é fruto do

Espírito Santo. Dará à luz um filho e lhe porás o nome de Jesus, pois que ele há de salvar

seu povo dos pecados.

Ao despertar, José levantou-se, glorificou a Deus de Israel por haver-lhe concedido tal

graça e continuou guardando Maria.

Por essa ocasião, veio à casa de José um escriba chamado Anás, que lhe disse:

— Por que não compareceste à nossa reunião?

Respondeu-lhe José:

— Estava cansado da caminhada e decidi repousar este primeiro dia.

Ao voltar-se, Anás deu-se conta da gravidez de Maria.

Então, correu ao sacerdote, dizendo-lhe:

— Esse José, por quem respondes, cometeu uma falta grave.

— Que queres dizer com isso? — perguntou o sacerdote. Ao que respondeu Anás:

— Pois violou aquela virgem que recebeu do templo de Deus, com fraude de seu

casamento e sem manifestá-lo ao povo de Israel.

Disse o sacerdote:

— Estás certo de que foi José que fez tal coisa?

Replicou Anás:

— Envia uma comissão e te certificarás de que a donzela está realmente grávida.

Saíram os emissário e encontraram-na tal qual havia dito Anás. Por isso levaram-na,

juntamente com José, ante o tribunal.

O sacerdote iniciou, dizendo:

— Maria, como fizeste tal coisa? Que te levou a vilipendiar tua alma e esquecer-te do

Senhor teu Deus? Tu que te criaste no Santo dos Santos, que recebias alimento das mãos de

um anjo, que escutaste os hinos e que dançavas na presença de Deus? Como fizeste isso?

Ela se pôs a chorar amargamente, dizendo:

— Juro pelo Senhor meu Deus que estou pura em sua presença e que não conheci

varão.

Então o sacerdote dirigiu-se a José, perguntando-lhe:

— Por que fizeste isso?

Replicou José:

— Juro pelo Senhor meu Deus, que me encontro puro com relação a ela.

Acrescentou o sacerdote:

— Não jures em falso! Dize a verdade! Usaste fraudulentamente o matrimônio e não o

deste a conhecer ao povo de Israel. Não abaixaste tua cabeça sob a mão poderosa de Deus,

por quem sua descendência havia sido bendita.

José guardou silêncio.

— Devolve, pois — continuou o sacerdote, — a virgem que recebeste do templo do

Senhor.

José ficou com os olhos marejados em lágrimas. Acrescentou ainda o sacerdote:

— Farei com que bebais da água da prova do Senhor e ela vos mostrará, diante de

vossos próprios olhos, vossos pecados.

Tomando da água, fez José bebê-la, enviando-o em seguida à montanha, de onde voltou

são e salvo. Fez o mesmo com Maria, enviando-a também à montanha, mas ela voltou sã e

salva.

Toda a cidade encheu-se de admiração ao ver que não havia pecado neles.

Disse o sacerdote:

— Posto que o Senhor não declarou vosso pecado, tampouco irei condenar-vos.

Então despediu-os. Tomando Maria, José voltou para casa cheio de alegria e louvado ao

Deus de Israel.

Veio uma ordem do imperador Augusto para que se fizesse o censo de todos os

habitantes de Belém da Judéia.

Disse José:

— A meus filhos posso recensear, mas que farei desta donzela? Como vou incluí-la no

censo? Como minha esposa? Envergonhou-me. Como minha filha? Mas já sabem todos os

filhos de Israel que não é! Este é o dia do Senhor, que se faça a sua vontade.

Selando sua asna, fez com que Maria se acomodasse sobre ela. Enquanto um de seus

filhos ia à frente, puxando o animal pelo cabresto, José os acompanhava. Quando estavam a

três milhas de distância de Belém, José virou-se para Maria e viu que ela estava triste.

Disse consigo mesmo:

— Deve ser a gravidez que lhe causa incômodo.

Ao voltar-se novamente, encontrou-a sorrindo e indagou-lhe:

— Maria, que acontece, pois que algumas vezes te vejo sorridente e outras triste?

Ela lhe disse:

— É que se apresentam dois povos diante de meus olhos: um que chora e se aflige e

outro que se alegra e se regozija.

Ao chegar à metade do caminho, disse Maria a José:

— Desça-me, porque o fruto de minhas entranhas luta por vir à luz.

Ele a ajudou a apear da asna, dizendo-lhe:

— Aonde poderia eu levar-te para resguardar teu pudor, já que estamos em campo

aberto?

Encontrando uma caverna, levou-a para dentro e, havendo deixado seus filhos com ela,

foi buscar uma parteira na região de Belém.

Eis que José encontrou-se andando, mas não podia avançar. Ao levantar seus olhos para

o espaço, pareceu lhe ver como se o ar estivesse estremecido de assombro.

Quando fixou vista no firmamento, encontrou-o estático e os pássaros do céu, imóveis.

Ao dirigir seu olhar à terra, viu um recipiente no solo e uns trabalhadores sentados em

atitude de comer, com suas mãos na vasilha.

Os que pareciam comer, na realidade não mastigavam, e os que estavam em atitude de

pegar a comida, tampouco a tiravam do prato. Finalmente, os que pareciam levar os

manjares à boca, não o faziam, ao contrário, tinham seus rostos voltados para cima.

Também havia umas ovelhas que estavam sendo tangidas, mas não davam um passo.

Estavam paradas. O pastor levantou sua destra para bater-lhes com um cajado, mas parou

sua mão no ar.

Ao dirigir seu olhar à corrente do rio, viu como uns cabritinhos punham nela seus

focinhos, mas não bebiam. Em uma palavra, todas as coisas estavam afastadas, por uns

instantes, de seu curso normal.

Então uma mulher que descia da montanha disse-lhe:

— Aonde vais?

Ao que ele respondeu:

— Ando procurando uma parteira hebréia.

Ela replicou:

— Mas és de Israel?

Ele respondeu:

— Sim.

— E quem é a que está dando à luz na caverna?

— É minha esposa.

— Então, não é tua mulher?

Ele respondeu:

— É Maria, a que se criou no templo do Senhor, e ainda que me tivesse sido dada por

mulher, não o é, pois que concebeu por virtude do Espírito Santo.

Insistiu a parteira:

— Isso é verdade?

José respondeu:

— Vem e verás.

Então a parteira se pôs a caminho junto com ele. Ao chegar à gruta, pararam, e eis que

esta estava sombreada por uma nuvem luminosa.

Exclamou a parteira:

— Minha alma foi engrandecida, porque meus olhos viram coisas incríveis, pois que

nasceu a salvação para Israel. De repente, a nuvem começou a sair da gruta e dentro

brilhou uma luz tão grande que seus olhos não podiam resistir. Esta, por um momento,

começou a diminuir tanto que deu para ver o menino que estava tomando o peito da mãe,

Maria. A parteira então deu um grito, dizendo:

— Grande é para mim o dia de hoje, já que pude ver com meus próprios olhos um novo

milagre.

Ao sair a parteira da gruta, veio ao seu encontro Salomé.

— Salomé, Salomé! — exclamou. — Tenho de te contar uma maravilha nunca vista.

Uma virgem deu à luz; coisa que, como sabes, não permite a natureza humana.

Salomé replicou:

— Pelo Senhor, meus Deus, não acreditarei em tal coisa, se não me for dado tocar com

os dedos e examinar sua natureza.

Havendo entrado a parteira, disse a Maria:

— Prepara-te, porque há entre nós uma grande querela em relação a ti.

Salomé, pois, introduziu seu dedo em sua natureza, mas, de repente, deu um grito,

dizendo:

— Ai de mim! Minha maldade e minha incredulidade é que têm a culpa! Por descrer do

Deus vivo, desprende-se de meu corpo minha mão carbonizada.

Dobrou os joelhos diante do Senhor, dizendo:

— Ó Deus de nossos pais! Lembra-te de mim, porque sou descendente de Abraão, Isaac

e Jacó! Não faças de mim um exemplo para os filhos de Israel! Devolve-me curada, porém,

aos pobres, pois que tu sabes, Senhor, que em teu nome exercia minhas curas, recebendo de

ti meu salário!

Apareceu um anjo do céu, dizendo-lhe:

— Salomé, Salomé, Deus escutou-te. Aproxima tua mão do menino, toma-o e haverá

para ti alegria e prazer.

Acercou-se Salomé e o tomou, dizendo:

— Adorar-te-ei, porque nasceste para ser o grande Rei de Israel.

De repente, sentiu-se curada e saiu em paz da gruta. Nisso ouviu uma voz que dizia:

— Salomé, Salomé, não contes as maravilhas que viste até estar o menino em

Jerusalém.

José dispôs-se a partir para Judéia. Por essa ocasião, sobreveio um grande tumulto em

Belém, pois vieram um magos dizendo:

— Aonde está o recém-nascido Rei dos Judeus, pois vimos sua estrela no Oriente e

viemos para adorá-lo?

Herodes, ao ouvir isso, perturbou-se. Enviou seus emissários aos magos e convocou os

príncipes e os sacerdotes, fazendo-lhes esta pergunta:

— Que está escrito em relação ao Messias? Aonde ele vai nascer?

Eles responderam:

— Em Belém da Judéia, segundo rezam as escrituras. Com isso, despachou-os e

interrogou os magos com estas palavras:

— Qual é o sinal que vistes em relação ao nascimento desse rei?

Responderam-lhes os magos:

— Vimos um astro muito grande, que brilhava entre as demais estrelas e as eclipsava,

fazendo-as desaparecer. Nisso soubemos que a Israel havia nascido um rei e viemos com a

intenção de adorá-lo.

Replicou Herodes:

— Ide e buscai-o, para que também possa eu ir adorá-lo!

Naquele instante, a estrela que haviam visto no Oriente voltou novamente a guiá-los,

até que chegaram à caverna e pousou sobre a entrada dela. Vieram, então, os magos a ter

com o Menino e Sua mãe, Maria, e tiraram oferendas de seus cofres: ouro, incenso e mirra.

Depois, avisados por um anjo para que não entrassem na Judéia, voltaram a suas terras

por outro caminho.

Ao dar-se conta Herodes de que havia sido enganado, encolerizou-se e enviou seus

sicários, dando-lhes a missão de assassinar todos os meninos de menos de dois anos.

Quando chegou até Maria a notícia da matança das crianças, encheu-se de temor e,

envolvendo seu filho em fraldas, colocou-o numa manjedoura.

Quando Isabel inteirou-se de que também buscavam a seu filho João, pegou-o e levou-o

a uma montanha. Pôs-se a ver onde haveria de escondê-lo, mas não havia um lugar bom

para isso. Entre soluços, exclamou em voz alta:

— Ó Montanha de Deus, recebe em teu seio a mãe com seu filho, pois que não posso

subir mais alto.

Nesse instante, abriu a montanha suas entranhas para recebê-los. Acompanhou-os uma

grande luz, pois estava com ele um anjo de Deus para guardá-los.

Herodes prosseguia na busca de João e enviou seus emissários a Zacarias para que lhe

dissessem:

— Aonde escondeste teu filho?

Ele respondeu desta maneira:

— Eu me ocupo do serviço de Deus e me encontro sempre no templo. Não sei onde está

meu filho.

Os emissários informaram a Herodes tudo o que se passara e ele encolerizou-se muito,

dizendo consigo mesmo:

— Deve ser seu filho que vai reinar em Israel.

Enviou, então, um outro recado, dizendo-lhe:

— Diga-nos a verdade sobre onde está teu filho, porque do contrário bem sabes que teu

sangue está sob minhas mãos.

Zacarias respondeu:

— Serei mártir do Senhor, se te atreveres a derramar meu sangue, porque minha alma

será recolhida pelo Senhor, ao ser segada uma vida inocente no vestíbulo do santuário. Ao

romper da aurora, foi assassinado Zacarias, sem que os filhos de Israel se dessem conta

desse crime.

Os sacerdotes se reuniram à hora da saudação, mas Zacarias não saiu a seu encontro,

como de costume, para abençoá-los. Puseram-se a esperá-lo para saudá-lo na oração e para

glorificar o Altíssimo.

Ante sua demora, começaram a ter medo. Tomando ânimo, um deles entrou, viu ao lado

do altar sangue coagulado e ouviu uma voz que dizia:

— Zacarias foi morto e não se limpará o seu sangue até que chegue o vingador.

Ao ouvir a voz, encheu-se de temor e saiu para informar os sacerdotes que, tomando

coragem, entraram e testemunharam o ocorrido. Então, os frisos do templo rangeram e eles

rasgaram suas vestes de alto a baixo.

Não encontraram o corpo, somente a poça de sangue coagulado. Cheios de temor,

saíram para informar a todo o povo que Zacarias havia sido assassinado. A notícia correu

em todas as tribos de Israel, que o choraram e guardaram luto por três dias e três noites.

Concluído esse tempo, reuniram-se os sacerdotes para deliberar sobre quem iriam pôr

em seu lugar. Recaiu a sorte sobre Simeão, pois, pelo Espírito Santo, havia sido assegurado

de que não veria a morte até que lhe fosse dado contemplar o Messias Encarnado.

Eu, Tiago, escrevi esta história. Ao levantar-se um grande tumulto em Jerusalém, por

ocasião da morte de Herodes, retirei-me ao deserto até que cessasse o motim, glorificando

ao Senhor meu Deus, que me concedeu a graça e a sabedoria necessárias para compor esta

narração.

Que a graça esteja com todos aqueles que temem a Nosso Senhor Jesus Cristo, para

quem deve ser a glória por todos os séculos dos séculos.

Amém.

Confraria As Três Graças (um jantar para seis pessoas)



samedi 2 novembre 2013

Reforma Radical, uma herança de sangue e fé

Esta é uma história que todos nós,
herdeiros da Reforma radical, deveríamos conhecer!

A Reforma de Lutero, Zwinglio e Calvino, quando surgiu, foi certamente uma revolução, mas foi uma revolução inserida na sociedade, na cultura dominante, e no processo geral da história da civilização ocidental. A Reforma dissolveu a natureza hierárquica do feudalismo e quebrou sua capacidade de interligar direitos e deveres. Liberou os ativos congelados sob a propriedade eclesiástica — mais da metade das terras férteis da Europa Ocidental e provavelmente a maior parte de seu ativo. Aboliu a alfândega e todas as sanções legais e a alfândega que mantinham a economia estática. Sancionou a usura e permitiu ao agiota exigir o juro que quisesse. Anulou a supressão ou o controle da competição entre os sócios das agremiações.

Na Idade Média, os camponeses tinham claramente definidos os seus direitos e deveres, sancionados por um costume imemorial e por leis. As pessoas comuns estavam subordinadas ao senhor local que, por seu turno, tinham responsabilidades e privilégios em relação ao seu superior. E assim por diante até chegar ao imperador ou papa. Com a Reforma, o camponês que no princípio esperava ganhar uma vaga, mas maravilhosa liberdade a partir da nova moralidade social pregada pelo jovem Lutero, acabou mesmo reduzido ao estado de servo, sem quaisquer direitos e, em vez de deveres, era obrigado a trabalhos forçados. 

Ao final da Idade Média, a sociedade estava abarrotada de organizações de caridade de todos os tipos que cuidavam de desempregados crônicos ou pessoas fora do mercado de trabalho. Com a concentração de riqueza da Igreja, apenas uma pequena fração destas instituições eram alimentadas pelos auspícios privados ou estatais e pela absorção da mais valia necessária para manter-se diante de uma economia estática. Desde aquela época até os dias presentes os legisladores tornaram-se ferozes perseguidores dos "desocupados" e “vagabundos”. 

As leis da Europa pós-Reforma, que dizem respeito aos pobres, não importa o país, todas tem um ponto em comum — a pobreza é culpa do próprio pobre e a indigência é um vício. Teoricamente os velhos tratos da Idade Média foram substituídos por uma estrutura de contratos entre indivíduos, homem a homem, "pessoa jurídica" ou instituições legais; mas devido ao tamanho da população não comportar contratos de qualquer espécie, isso acabou resultando em uma progressiva atomização. O homem medieval era salvo como um membro do corpo de Cristo, a Igreja, que literalmente incorporava seus membros. O cristão luterano salvava-se sozinho, por um ato individual de fé, e a sua relação com a deidade era um momento atômico totalmente contingente e destituído de auto-suficiência diante da absoluta onipotência e auto-suficiência de Deus. 

O calvinismo introduz apenas uma mudança de ênfase. Se Deus predestina um eleito à salvação, e todos os outros homens à danação desde o começo dos tempos, esse eleito não faria parte de uma comunidade, porque sua sociedade era desconhecida e irreconhecível. Alguém poderia pensar que isto conduziria a um completo antinomianismo, o abandono de toda moralidade. Totalmente o contrário, tudo aquilo que o homem poderia fazer era se comportar como eleito e esperar o melhor. Assim, o extremo ascetismo de Calvino circunscrevia o comportamento do homem de tal forma que ele não poderia fazer outra coisa senão trabalhar duro, acumular dinheiro, e investi-lo. Lutero era a religião do livre empreendimento, Calvino da acumulação de capital. Em tal sistema, com as teocracias calvinistas de Genebra, França, Escócia, ou Nova Inglaterra, o pobre estava condenado a priori pela sua própria condição. Nem todo sócio da elite poderia ser um sócio do eleito, mas o pobre, e especialmente o indigente pobre, obviamente não o era. O incompetente, o antigo defeituoso, o bêbado, e todos aqueles que apenas viveram para o prazer em vez do lucro eram por si só evidentemente malditos. 

Embora os três grandes reformadores enfatizassem a Bíblia -- “apenas pela fé, apenas pela Bíblia”, disse Lutero -- a era apostólica, e os pais da Igreja, sua teologia na realidade foi derivada diretamente de Santo Agostinho e dos escolásticos medievais. Sua insistência na salvação pela fé e predestinação representa apenas leves mudanças de ênfase, comparados com os ensinamentos dos escolásticos mais ortodoxos. Não foi assim no começo do século dezessete na Inglaterra onde a Igreja Anglicana iniciou uma séria tentativa para construir uma teologia baseada nos Pais e no testemunho de uma Igreja unida por conselhos ecumênicos. 

Para os reformadores a Igreja era coligada ao Estado, da mesma maneira que para os teólogos católicos, a Igreja e o Estado exerciam apenas papéis diferentes no exercício do poder. A diferença era que a Igreja não tinha mais a autoridade final -- personificada no papa. Em princípio a principal apelo foi o próprio Lutero. Os outros líderes da Reforma alemã sempre adiaram decisões concludentes -- como no caso da doutrina da Eucaristia de Zwinglio; na questão das relações com a igreja de Utraquisto da Boêmia, dos remanescentes Taborites, e dos primeiros irmãos suíços; foi no bojo desses problemas disciplinares que surgiu Thomas Münzer; e, naturalmente, a notória condenação da Revolta dos Camponeses por parte de Lutero. 

A maioria dos problemas religiosos eram conhecidos pelo Estado secular, pelos conselhos da cidade, pelos senhores locais, e até mesmo pelos príncipes e duques dos conglomerados de estados insignificantes e de reinos pequenos que compunham o Império alemão, a velha comunidade política começava a desmoronar sob o sopro do conflito universal gerado pela Reforma. Assim foi estabelecido o princípio cujus regio, ejus religio, “como o governo, assim a religião”, sem o qual a Europa Central se esfacelaria em uma guerra de todos contra todos, já que a autoridade espiritual na realidade não estava mais centrada em um imperador ou em algum poder secular abstrato, mas circunstancialmente nas insignificantes cortes da Alemanha. 

A religião dos anabatistas e a reforma radical, em termos gerais, se opunham diametralmente à Reforma de Lutero. Thomas Münzer em Mühlhausen e Frankenhausen, da mesma forma que a comuna apocalíptica anabatista de Münster, pretendiam estabelecer o reino milenário na forma de um Império secular, mas apesar de toda sua notoriedade eles eram atípicos. Em termos relativos, poucas pessoas estavam envolvidas nos grupos anabatistas. Recentes historiadores americanos menonitas e batistas têm ligado as antigas raízes anabatistas e os reformadores radicais do século dezesseis com seitas similares ao longo da Idade Média que vêm desde o tempo dos apóstolos. Eles estão essencialmente certos. 

A Reforma aparenta, de forma bem superficial, advogar a liberdade de expressão, libertar e tornar pública a dissidência radical, que estava lá todo o tempo, e brevemente permitiu que o proselitismo se espalhasse através de pastores cujas doutrinas eram subversivas à própria Reforma, até mesmo mais do que ao catolicismo romano. Há registros que indicam que até a Reforma a Igreja romana vinha provavelmente ignorando a maioria dos cultos estranhos que floresciam na Idade Média, a menos que dessem algum escândalo ou fizessem questão de aparecer, algo semelhante à concubinagem clerical. Nos anos posteriores os extremistas sectários e os católicos romanos freqüentemente formavam uma frente unida contra a igreja protestante e o estado, conforme testemunha a estreita amizade entre William Penn e James II. 

Os sectários radicais não apenas apelaram às tradições da Igreja, antes de serem cooptados por Constantino, eles se esforçavam em restabelecê-la totalmente em fé e prática, como um remanescente salvo em um mundo condenado. Eles eram indiferentes ao conflito de poder entre o imperador e o papa, entre Lutero e o príncipe, porque eles não acreditavam no poder mundano como tal. Eles eram indiferentes a leis que regulam competição e tomada de interesse porque eles não acreditavam nessa coisa que mais tarde foi denominada "economia política". 

Eles se esforçavam por alcançar a economia auto-suficiente de uma subcultura fechada, um comunismo de produção e consumo. Na maioria dos casos as circunstancias não permitiam isso, mas eles sempre defendiam uma comunidade apostólica de bens coletivos, a responsabilidade compartilhada para o bem-estar físico de todos os sócios; e desde os primeiros dias eles freqüentemente praticaram um comunismo de consumo enquanto ganhavam seu pão e trabalhavam no mundo. 

Profundamente influenciados por Eckhart, Tauler, e Suso, que segundo a maioria dos seus leitores teólogos, eles olhavam o processo de salvação como uma progressiva deificação do homem em comunidade em vez da forense "justificação" do indivíduo diante do julgamento de Deus pela fé no sacrifício de Cristo — eles acreditavam em com-ação não em compensação, no Cristo vivo não em seu sacrifício, na comunhão não na Missa. Assim, os anabatistas (duas-vezes-batizados) se opunham ao batismo de crianças inconscientes ou de crianças imaturas. Para eles o batismo era o selo divino na alma desperta na comunidade do eleito, um ato consciente pelo qual o indivíduo dá as costas para o mundo e embarca na peregrinação espiritual pela divinização em companhia de sua amada comunidade. 

Embora praticamente todos os anabatistas sejam milenaristas no sentido de que eles esperam a vinda do reino em um futuro indefinido, eles não concebem a si mesmos como o exército do apocalipse para o qual foi dada a função de condutor nos últimos dias, eles concebem a si mesmo como aqueles que aguardam o advento divino. Os dois episódios mais famosos da história dos anabatistas primitivos não surgiu fora do corpo principal do movimento mas germinou de uma forma independente. 

Thomas Münzer não foi um anabatista, ou pelo menos não dava qualquer importância a questões sobre quando e por que batizar, várias vezes em sua carreira ele deu respostas contraditórias sobre esse assunto. Nem mesmo em seus últimos dias ele pregou comunidade de bens coletivos, e sua única declaração definida no assunto foi feita em sua confissão final após tortura e antes da execução. 

Münzer nasceu em Stolberg de uma família próspera nas montanhas de Harz e foi educado em Leipzig e Frankfurt. Parece que ele se encontrou com Lutero por volta de 1519, passou seus anos de escola estudando seriamente a procura de respostas, profundamente aborrecido pela apostasia da Igreja estabelecida. Naquele mesmo ano tornou-se padre confessor em um convento em Beuditz e com a segurança e o lazer proporcionados por sua posição, gastou mais de um ano em um intensivo estudo lendo Josephus, a história da igreja de Eusebius, St. Augustine, os atos dos conselhos gerais, os atos de Constance e Basel, e os escritos místicos de Suso e Tauler. Ele começou a se corresponder com os principais reformadores, a maioria dos quais eram de cinco a dez anos mais velhos do que ele. No próximo ano lhe recomendaram como pastor na Igreja de Santa Maria em Zwickau para substituir temporariamente o pastor João Egranus. No princípio ele parecia ser mais um dos jovens apóstolos de Lutero -- cuja fama se espalhava por toda a Alemanha -- até que se envolveu em uma violenta controvérsia com os franciscanos locais. 

Zwickau por aqueles dias era uma das maiores cidades da Alemanha, três vezes maior do que Dresden. Fora um próspero centro têxtil mas com o desenvolvimento das minas de prata nas montanhas vizinhas, abandonou o comércio de tecelagens gerando desemprego entre os tecelões. A cidade assumiu uma característica de boom econômico com uma grave inflação dos preços locais, típico das cidades mineradoras, a polarização radical das classes, com uma grande riqueza ao topo e pobreza e desemprego em massa na base. Zwickau fazia fronteira com a Boêmia e fora o pivô da agitação de Tamborite no século anterior. Nicholas Storch -- o descendente de uma família anteriormente rica e poderosa, mas que foi levada à falência pelos proprietários das minas -- juntou e organizou pequenos grupos clandestinos de Picardos remanescentes formando um movimento aberto conhecido como os Profetas de Zwickau. Quando se encontrou com Münzer, Storch já era um líder pentencostal extremista, de uma seita quiliástica de religiosos revolucionários, freqüentemente bem ao gosto dos tecelões desempregados. 

A violência dos sermões de Münzer contra os franciscanos resultou em problemas com a assembléia municipal, a congregação de Santa Maria, e com João Egranus, ao qual devolveu o púlpito, ele se viu cada vez mais lançado em direção a Storch. Eventualmente ele deixou a classe alta de Santa Maria tornando-se o pastor de Santa Catarina, uma grande congregação composta por mineiros, tecelões pobres, e desempregados. Em Santa Catarina, Münzer tornou-se conscientemente um pastor de pobres. Ele abandonou sua postura de luterano ortodoxo tornando-se um apocalíptico como Storch, dedicando cada vez mais tempo em reuniões com os Profetas. A assembléia municipal assumiu um crescente antagonismo. Na primavera de 1521 Münzer recebeu ordem para sair de Zwickau. Lutero retirara seu apoio. 

Münzer foi a Praga onde recebeu entusiásticas boas-vindas como um dos novos luteranos, sendo convidado a pregar nas igrejas. Mas seus sermões não eram luteranos; ele não apenas se tornara um chiliasta desenvolvido, como também sua linguagem se tornara extraordinariamente violenta, abusiva, e grosseira, ao mesmo tempo que reivindicava-se escolhido por Deus para recrutar os eleitos para a luta armada final antes do milênio, devido às condições ultrajantes daqueles dias. Os sofisticados cidadãos de Praga ouviram tudo isso cem anos antes e não se impressionaram. 

Münzer partiu, desiludido com os bohemios. Antes de partir, imitando Lutero, ele pregou um manifesto nas portas das principais igrejas, resumindo suas principais idéias que o guiariam até o fim de sua vida, mas com a violência e a incoerência de sua linguagem configurando sua característica mais notável. Durante 1522 ele vagou quase que sem uma ocupação regular. Ele visitou Lutero em Wittenberg, com o qual aparentemente se aborreceu, mas que parece ter usado de sua influência tanto que Münzer obteve uma posição como pastor da Igreja de São João na pequena cidade de Alstedt na Saxony. Lá ele deu seu primeiro sermão no dia de Páscoa em 1523. 

Os dezesseis meses que Münzer permaneceu em Alstedt foram os mais quietos e os mais produtivos de sua breve carreira. Ele se casou com uma ex-freira, Ottilie von Gersen. Na Páscoa do ano seguinte ela o presenteou com um filho. Münzer, que tinha iniciado, de uma forma muito tranqüila para ele, como um porta-voz da Reforma ortodoxa, embora emocional e excêntrico; decidiu-se mover cautelosamente e com uma certa dose de duplicidade, mas seus tempestuosos sermões logo fizeram dele o pastor mais popular de todo distrito. As pessoas vinham dos arredores para ouvi-lo. Ele escreveu e celebrou a primeira Eucaristia no idioma alemão e depois publicou um missal completo com liturgias para comunhão, batismo, matrimônio, comunhão do doente e funerais, inclusive confissão pública de pecado antes da comunhão. Sua liturgia prometia ser amplamente adotada, mas seu envolvimento com a Revolta dos Camponeses trouxe a condenação por parte de Lutero que, porém, não teve escrúpulos em copiá-la três anos depois. A coisa mais impressionante sobre a liturgia de Münzer é a completa ausência de sua habitual grosseria e violência. Pelo contrário elas mostram uma excepcional sensibilidade poética e devocional. 

Com o tempo Münzer revelou cada vez mais sua mensagem apocalíptica, apresentando-se abertamente como um homem escolhido de Deus. Ao mesmo tempo ele começou a organização secreta de um exército revolucionário. A Liga dos Eleitos começou a invadir, pilhar, e incendiar conventos e monastérios na zona rural aos arredores da cidade. Em pouco tempo ele recrutara para sua liga um vasto círculo de comunidades da Thuringia. Com sua fama chegando até o estrangeiro, suas atividades começaram a preocupar Frederick, o eleitor da Saxônia, seu irmão Duque João, que eram partidários da Reforma, e Lutero, com o qual sua relação tornava-se cada vez mais atribulada e divergente. Münzer também entrou em uma violenta disputa com o senhor local, o Conde de Mansfeld. Enquanto isso ele constantemente emitia panfletos, cada um mais radical que o outro. Frederick decidiu investigar e enviou o Duque João, seu filho João Frederick, seu chanceler, e vários outros oficiais para Alstedt. Eles convidaram Münzer para que pregasse para eles no castelo e em 13 de julho ele formulou aquilo que foi considerado a expressão vocal pública mais extraordinária da era da Reforma. 

Seu sermão baseou-se em visões apocalípticas do livro de Daniel, Münzer anunciou uma guerra iminente entre as forças do Diabo e a Liga dos Eleitos que conduziria ao milênio, e apelou aos príncipes visitantes para que se juntassem ao exército de santos. Ele visava uma nova reforma tendo como sua capital a pequena cidade de Alstedt, dali a palavra se esparramaria, primeiro pela Saxônia, depois por toda a Alemanha, e finalmente por todo o mundo. Seria um reino exclusivo de eleitos, alcançado por um método simples -- matar todos os opositores. Ele terminou ameaçando exterminar seus nobres ouvintes se não se juntassem a ele. Nada revelou melhor a turbulência intelectual da época do que o Duque João confiando em Münzer e aceitando suas idéias.

O sermão foi impresso e distribuído. Duque João retornou para consultar o Eleitor Frederico, que no princípio estava preparado para tolerar o fanatismo de Münzer, desde que seu fanatismo não se convertesse em ações. Münzer persistiu acossando tanto Lutero como os governantes. Ele foi chamado até Weimar, onde proclamou ser o líder do final dos tempos, e onde sua linguagem sanguinária tornou-se ainda mais extremada. Ele voltou a Alstedt, ainda confiante da vitória sobre a corte saxônica. Frederick, Duque João, e Lutero começaram a exercer pressão no conselho de Alstedt para que o expulsassem da cidade. Repentinamente, na noite de 7 de agosto de 1524, ele saiu de Alstedt, deixando para trás sua esposa, seus filhos e todas suas posses. 

Münzer passou o outono e o inverno viajando, primeiro para Mulhausen, onde o militante anabatista Henry Pfeiffer organizara sua Liga dos Eleitos visando assumir a cidade. Münzer imediatamente assumiu a liderança de Pfeiffer, sobrepôs seu próprio programa apocalíptico, organizou uma manifestação, e tentaram tomar a prefeitura e o conselho da cidade. Os nobres, juntamente com uma companhia de soldados mercenários, dispersaram a multidão e expulsaram Münzer e Pfeiffer. 

Münzer foi até Nuremberg visitar seu amigo João Hut, que publicou o panfleto mais violento, incoerente, e abusivo de Münzer contra Lutero, uma expressão de ódio histérico e contínuo. As autoridades de Nuremberg confiscaram e destruíram quase todas as cópias, apreenderam a impressora, e expulsaram Münzer e Pfeiffer. Münzer foi para a Suíça em busca de aliados entre os Irmãos Suíços, nessa oportunidade visitou João Oecolampadius, um reformador ortodoxo zwingliano. Ele também visitou Balthasar Hübmaier em Waldshut na fronteira com a Alemanha, um líder anabatista ligeiramente menos militante do que Münzer, tudo isso na busca de aliados, em toda parte, na tentativa de levantar as pessoas para a sua revolução. Todavia ele não conseguiu impressionar nem os líderes nem as pessoas, o máximo que conseguiu foi chocar profundamente os pacíficos Irmãos Suíços. Münzer retornou a Mühlhausen. Pfeiffer já retornara e os radicais controlavam a cidade. Münzer revitalizou e armou sua liga, expeliu os oponentes, e estabeleceu oficialmente um novo conselho no qual tanto ele como Pfeiffer recusaram pertencer. Nesse meio tempo a Revolta dos Camponeses já havia alcançado a Thuringia, e Münzer estava pronto, não apenas para juntar-se a ela, mas também para assumi-la. 

Embora Münzer fosse muitas vezes chamado de herói das Revoltas Camponesas, devemos entender que, na verdade, ele nada teve a ver com elas. A revolta em Mühlhausen foi uma ação completamente separada e com objetivos bastante diferentes. Como a Reforma procedeu destruindo relações econômicas e sociais do feudalismo, os camponeses da Alemanha assumiram a postura de Lutero como favorável à liberdade econômica, uma sociedade de fazendeiros independentes e de trabalhadores livres. A velha relação social começava a despencar — desde o topo — de tal forma que os nobres e magnatas iniciaram uma servidão forçada aos camponeses, uma condição bem diferente dos camponeses medievais que tinham direitos e deveres. A servidão pós-Reforma em muito se assemelha à versão Russa, uma condição servil muito próxima à escravidão. 

Na medida em que as classes dominantes fechavam o cerco, os camponeses de todo o sul da Alemanha começaram a se rebelar. Desde o princípio do século dezesseis todos os anos em algum lugar eclodiram revoltas esporádicas, normalmente sob a liderança do soldado Joss Fritz, e pela difusão de uma organização secreta chamada no princípio de Bundschuh e depois de Pobre Konrad. Estas não foram pequenas revoltas, mas batalhas que envolviam algo em torno de cinco mil camponeses armados. Em 1525 as ações locais e revoltas se fundiram em uma completa guerra no Tirol, Áustria e sudoeste da Alemanha. 

Antes desse tempo, Lutero, que tinha permanecido originalmente neutro, culpando tanto camponeses como governantes, passou a denunciar os camponeses e incitar a nobreza para a matança, em uma linguagem tão desenfreada quanto a de Thomas Münzer. “Só há uma maneira do sr. povinho fazer sua obrigação", disse Lutero, "constrangendo-o pela lei e pela espada, prendendo-o em cadeias e gaiolas, da mesma forma que se faz com bestas selvagens . . . melhor a morte de todos os camponeses do que a morte dos príncipes . . . estrangulem os rebeldes como fariam com cães raivosos”. E quando a rebelião foi suprimida através de um massacre total, Lutero disse "que todo seu sangue recaia sobre mim", procedendo uma justificação teológica à nova servidão. 

As demandas dos camponeses eram simples, consistentes, longe de milenarismos, raramente religiosas, e certamente não comunistas. Eles reivindicavam a abolição do que restara do feudalismo e das novas medidas que os lançava na servidão, o desestabelecimento da Igreja, uma drástica redução de taxas, o restabelecimento de direitos comuns nos pastos, bosques, e liberdade de caça e pesca. Não havia nada de subversivo na nova ordem social inaugurada pela Reforma. Pelo contrário, era o retorno a um capitalismo semi-feudal, o esmagamento da Revolta dos Camponeses, o que assegurou o desenvolvimento alemão por trezentos anos. 

Thomas Münzer não estava interessado nos problemas práticos dos camponeses e proletários. Em todos os seus escritos ele não mostra nem mesmo qualquer evidência de estar atento a eles. Seu interesse estava apenas no milênio, e em seu retorno a Mulhausen ele dedicou-se febrilmente a essa idéia. Münzer enviou mensageiros em todas as direções para juntar forças onde quer que a Liga dos Eleitos tivesse membros, ou onde Münzer formasse grupos de discípulos. Alstedt, Zwickau, Mansfeld, foram chamadas para compor as tropas. Da mesma forma que Tabor, um século antes, os revolucionários puseram-se a caminho quando chegaram as notícias de Mulhausen. Nicholas Storch chegou encabeçando seu próprio pequeno exército. Naquele momento Münzer, Pfeiffer, e Storch podem ter apresentado a comunidade de bens coletivos, entretanto é impossível determinar se isso ocorreu na forma de um comunismo de assédio, ou simplesmente na forma de comunismo de cidade sitiada. Esse assunto apenas é mencionado na passagem da confissão final de Münzer. 

Durante a primeira semana de maio o exército camponês, entre oito e dez mil, se reuniu em Frankenhausen, que tinha sido tomada por revolucionários de Mulhausen. Em onze de maio Münzer chegou ao acampamento camponês e começou a organizar o exército do apocalipse. É importante destacar que ele trouxe apenas trezentos de seus próprios seguidores de Mulhausen e que Pfeiffer tenha ficado para traz, opondo-se à aliança da cidade do apocalipse com o exército de camponeses. Enquanto isso o Duque João, que havia se tornado eleitor pela morte de seu irmão em quatro de maio, e outros príncipes das vizinhanças levantaram um exército sob o comando de Filipe, proprietário de terras em Hesse, que imediatamente marchou para Mulhausen. 

No dia 15 Filipe atacou com cerca de cinco mil artilheiros e dois mil cavaleiros, os camponeses não tinham nada disso. Filipe propôs paz se entregassem Münzer; mas após uma resposta emotiva do próprio Münzer -- dizendo que pegaria as balas de canhão com seu capote, que aqueles que tivessem fé completa seriam imunes às balas, que apareceria um arco-íris (símbolo de sua bandeira) no céu -- os camponeses recusaram. Enquanto o exército camponês cantava "Veni Sancte Spiritus" a artilharia de Filipe abriu fogo forçando os camponeses a recuar abrindo o flanco à cavalaria enquanto que a infantaria atacava pelos outros dois lados. Completamente cercados, os camponeses foram feitos em pedaços. Foram mortos cinco mil no campo de batalha, seiscentos capturados, o restante fugiu para as florestas da Thuringian. O exército de Filipe perdeu seis homens. 

No momento em que o ataque começou Münzer correu para longe escondendo-se em um sótão em Frankenhausen. Os soldados o descobriram deitado em uma cama com a cabeça coberta. Ele dizia ser um homem doente e que não tinha nada a ver com a revolta; como recusava mostrar seus documentos foi descoberto. Ele foi levado à presença de Filipe e depois ao seu inimigo, o Conde Ernesto de Mansfeld, que o torturou a maior parte da noite. Pela manhã Münzer assinou uma confissão onde nomeava todos seus confederados e proclamava ter iniciado sua carreira revolucionária num grupo secreto em Halle quando era garoto. 

Em 24 de maio um exército do Duque capturou Mühlhausen que implorando clemência não ofereceu nenhuma resistência. Em 26 de maio Pfeiffer e a maioria dos membros do "conselho eterno" foram decapitados, Münzer foi decapitado em praça pública. Münzer retratou-se e recebeu comunhão de acordo com o rito católico mas não conseguiu se lembrar do Credo de Niceia. Pfeiffer recusou e morreu desafiante. A cidade de Mühlhausen foi multada em quarenta mil gulden (mais de meio milhão de dólares). Seu estatus de cidade livre foi abolido e nunca mais recuperou sua prosperidade. 

A batalha de Frankenhausen marcou o fim da Revolta dos Camponeses, embora os anos seguintes tenham sido dedicados a operações de rescaldo, julgamentos, execuções, e massacres secundários de camponeses desmoralizados por toda parte do sul da Alemanha e da Áustria. Lutero publicou um panfleto exultante, A Terrivel História e o Julgamento de Deus para com Thomas Münzer. Os documentos de Münzer ficaram em poder de Filipe de Hesse e de George da Saxonia que depositou-os nos arquivos de Marburg, Dresden, e Weimar. 

Quatro diferentes Thomas Münzers sobreviveram na história. Para os protestantes ortodoxos suas conclusões lógicas foram que ele seria um típico anabatista que não fez outra coisa senão empurrar suas doutrinas de sectarismo radical. Mas para os anabatistas cuja maioria sempre foi pacifista, seu pacifismo foi ainda mais intensificado devido a Münzer e a comuna de Münster alguns anos depois. Assim eles o repudiaram como um completo e lunático fanático sem nenhuma real conexão com o corpo principal do movimento. Para os historiadores católicos romanos Münzer simplesmente operou dentro das inevitáveis consequencias do individualismo protestante, e Mulhausen foi apenas mais um exemplo ligeiramente mais extremo da Reforma atacando a lei e a ordem. Em 1850 Friedrich Engels publicou The Peasants' War in Germany e Münzer tornou-se um santo revolucionário, uma posição que ele nunca abandonou. Os historiadores marxistas o qualificam de ideólogo da Guerra dos Camponeses, o primeiro político cosmopolita. Engels disse que a filosofia religiosa de Münzer tocava o ateísmo e que seu programa político tocava o comunismo. Karl Kautsky em sua obra Communism in Central Europe at the Time on the Reformation e Ernst Bloch em Thomas Müntzer als Theologe der Revolution, ambos retratam Münzer como um plenamente desenvolvido, embora primitivo, ideólogo do comunismo revolucionário. Ele é um herói popular na Alemanha Oriental. Muitos livros foram escritos sobre ele, ruas e praças receberam seu nome. A versão de Engels da história de Münzer é ensinada para educar as crianças, e foram impressos selos onde aparece seu rosto. Em recentes anos pesquisas em fontes que Engels desconhecia tornaram possível desenhar um quadro bastante preciso do real Thomas Münzer. 

Münster 

Embora seja bem provável que a maioria dos primitivos líderes da Reforma radical se opusessem ao batismo infantil, apenas após 21 de janeiro de 1525, que o primeiro rebatismo de um adulto foi executado no círculo dos Irmãos Suíços em Zurique, quando seu líder, Konrad Grebel, batizou Georg Blaurock, um exato contemporâneo do começo da revolução em Mühlhausen. Em alguns anos todos que tomaram parte disso seriam martirizados, mas os Irmãos Suíços permaneceram pacifistas comunitários, sobrevivendo e provendo a primeira imigração menonita para a América. Desde os primeiros anos eles pregaram uma comunidade apostólica de bens coletivos. Na prática, em parte porque tratava-se de um movimento urbano de pessoas empregadas, tal comunalismo usualmente tomava a forma de pobreza voluntária e de um fundo comum. Eles eram milenaristas, mas não como Lutero, Zwinglio, ou Calvino. O fim do mundo estava próximo, mas sua chegada não era tão eminente; e seu milenarismo tomava a forma de uma escatologia ética — “Viva como se o mundo fosse terminar amanhã, procedendo como membro da raça humana”, que é na realidade a moralidade do Sermão do Monte. 

Depois da queda de Frankenhausen, o violento milenarismo de Thomas Münzer se espalhou de norte a oeste dos Países Baixos e pelas regiões da Alemanha onde se falava o dialeto plattdeutsch. O livreiro e impressor itinerante Hans Hut escapou da batalha e esparramou o evangelho da revolta pelo sul da Alemanha, mas acabou sendo pego e imediatamente executado. Pequenos grupos comunais milenários se levantaram em algumas partes no sul da Alemanha mas logo foram suprimidos. Muitos deles, como os conduzidos por Augustine Bader, rejeitaram todos os ritos e sacramentos, possuindo todas as coisas em comum, e vivendo de acordo com a orientação do grupo religioso Luz Eterna, aguardando o fim do mundo. O líder mais importante foi Melchior Hoffmann, um sócio de Münzer em seus primeiros dias. Ele tornou Strassburg sua sede, mas a influencia de seu ensino se esparramou como uma atividade de missão organizada, tanto ele como seus discípulos exerceram forte influência por toda a Alemanha. Ele era principalmente milenarista, e os melchioritas apenas adotaram o batismo de adultos como um símbolo para marcar o corpo do eleito. Embora ele não acreditasse pessoalmente em implantar o reino pela violência, seus seguidores tornaram-se mais e mais revolucionários. Simultaneamente as medidas repressivas tornaram-se ainda mais severas. O fervor escatológico de Hoffmann desafiava o risco de prisão ou morte, não excluindo uma violenta revolução. Mas em 1533 às vésperas do estabelecimento da Nova Jerusalém em Münster, Hoffmann foi aprisionado em Strassburg passando 10 anos de sua vida na prisão. 

Münster era um dos muitos pequenos estados eclesiásticos no noroeste da Alemanha sob o governo dos príncipes bispos, que na realidade freqüentemente eram leigos. Uma cidade com um importante comércio, sofrendo uma grave e crônica tensão entre os desejos dos príncipes bispos e o conselho de comerciantes e líderes de agremiações. Münster tinha recentemente passado por uma época de inundações, pestes, escassez local, e conflito de classes resultante da Revolta dos Camponeses no sul; mas apesar destes problemas, emergira uma quantia considerável de civismo democrático, com o poder nas mãos do conselho da cidade. 

O líder religioso mais influente da cidade foi Bernt Rothmann. De 1531 até 1533 ele constantemente se movia do catolicismo evangélico para o luteranismo, da doutrina de Zwinglio do repúdio à real presença de Cristo no pão e no vinho, para a simpatia com os melchioritas e os apóstolos do grupo Luz Eterna. Até o último momento ele teve o apoio do conselho da cidade, e a cidade tornou-se oficialmente protestante com a Igreja Católica limitada à catedral, monastérios, e conventos. 

Mas quando Rothmann e seus seguidores recusaram batizar as crianças que eram apresentadas na igreja, o conselho se rebelou e exilou-os da cidade, substituindo-os por luteranos ortodoxos. Porém, enquanto isso, a cidade estava sendo invadida por pregadores melchioritas dos Países Baixos, discípulos vagantes de Thomas Münzer e outros militantes sectários. Rothmann recusou partir e um mês depois — em janeiro de 1534 — ele reassumiu o controle, com os católicos da catedral e os luteranos permitindo-o pregar na igreja de São Lambert. 

A cidade tinha sido visitada no outono anterior por Jan Bockelson (João de Leyden), que retornou à Holanda com excitantes notícias de que o reino dos eleitos estava próximo de ser estabelecido em Münster. Jan Mattys, o líder melchiorita em Amsterdam, teve uma revelação — de que Melchior Hoffmann tinha compreendido mal suas próprias visões, e que Münster, não Strassburg, fora destinada a ser a Nova Jerusalém. No início de janeiro de 1534 dois apóstolos de Amsterdam, enviados por Mattys, foram até Münster e imediatamente rebatizaram Rothmann, o sócio de Henry Rol, e vários outros clérigos. Nos próximos oito dias Rothmann e outros batizaram mil e quatrocentos cidadãos em cerimônias privadas em suas casas. Pouco tempo depois, chegaram o próprio Mattys e Bockelson, pregando o mais militante chiliasmo e exigindo uma completa reorganização da comunidade; eles converteram Rothmann e seus seguidores, inclusive o prefeito, Bernard Knipperdolling. 

O conselho da cidade tentou resistir. O bispo juntou uma força de mercenários da vizinhança e ofereceu ajuda, que o conselho rejeitou, mas os cidadãos em massa publicamente forçaram o conselho a renunciar. Uma nova eleição foi feita e Knipperdolling, um rico comerciante de tecidos foi eleito como prefeito. Knipperdolling fora discípulo de Sebastian Franck e, mesmo antes do levante anabatista, ele fora, por ordem direta do rei, proibido de pregar a Reforma radical. Logo Bockelson se casou com Klara, a filha de Knipperdolling, e tanto ele como Mattys assumiram o completo controle da cidade. Dali em diante Rothmann dedicou-se a trabalhar principalmente como teólogo e apologista do movimento. Aparentemente, ele teve uma premonição de um futuro apocalíptico pois advertiu um amigo seu para aceitar um compromisso em outro lugar fora de Münster, pois, disse ele, "as coisas não irão bem por aqui". 

Mattys começou a instituir uma comunidade de bens coletivos e solicitou todas as riquezas em dinheiro, jóias, e metais preciosos para serem trazidas para um fundo comum. O conselho lutou resistindo e aprovou por estreita maioria uma ordem de expulsar os pregadores radicais da cidade. Os radicais foram escoltados a um portão da cidade e foram despejados, eles rodearam o muro, e entraram por outro portão, onde foram recebidos e colocados de volta a suas igrejas por uma multidão solidária; de cima do púlpito passaram a denunciar as hordas do Anticristo. Católicos, Luteranos, e pessoas neutras que desejavam evitar problemas começaram a fugir da cidade. Os habitantes, metade da população original, foram substituídos por santos entrantes. Mattys tinha enviado pregadores por toda parte dos Países Baixos e Baixa Alemanha para recrutar cidadãos para sua Nova Jerusalém, proclamando para que viessem rapidamente, desembaraçando-se de suas posses, pois lá havia suficiente para todos os eleitos. Os monastérios e as igrejas já haviam sido pilhadas quando Mattys, prevendo futuras pilhagens, confiscou toda propriedade privada daqueles que haviam fugido da cidade. Os depósitos de alimento foram declarados propriedade pública, todas as lojas particulares foram confiscadas e posteriormente transformadas em postos de livre distribuição. As casas também foram declaradas propriedade pública, mas foi permitido às famílias permanecer nelas contanto que as portas fossem mantidas abertas de dia e de noite. 

Como resultado de toda essa agitação, o príncipe bispo ficou completamente desprovido de dinheiro, pois a riqueza da Igreja era extraída da própria cidade. Ele perdeu todo seu crédito. A nobreza protestante não estava interessada em restabelecer um senhor católico e a nobreza católica era principalmente imperialista e o Império durante anos tentara tomar o controle de Münster. Na realidade desde os primeiros dias o imperador tinha enviado uma oferta de apoio à comuna de Münster. Com o fato da revolução social, o príncipe bispo pode angariar alguns empréstimos de alguns governantes e nobres da vizinhança para contratar mercenários e, embora temeroso no princípio, tentou investir sobre a cidade. A perspectiva de vida relativamente longa na comuna de Münster deveu-se principalmente ao acaso, por causa de suas ligações com a Revolta dos Camponeses. O Império entrara em colapso e não havia nenhuma entidade política como a Alemanha, relegada a uma imensa quantidade de querelas jurídicas. As velhas coletas feudais eram impossíveis de ser feitas e os príncipes só poderiam confiar em exércitos de mercenários e em estruturas tiradas do meio da nobreza que se sentia diretamente ameaçada. Os conflitos imperiais e religiosos tornaram as alianças difíceis de serem formadas e impossíveis de serem mantidas. Estados bem organizados como a França e a Inglaterra daquela época, teriam sido capazes de mobilizar forças necessárias para controlar rapidamente cidades como Münster restabelecendo a ordem dominante e esmagando a revolta. 

Embora a ajuda do Príncipe Bispo Franz von Waldek demorasse a chegar, os governantes foram bem rápidos em suprimir os anabatistas em seu próprio território através da mais completa brutalidade. Em Amsterdam todos os participantes de uma tentativa para tomar a prefeitura foram executados, da mesma forma revoltas semelhantes foram contidas em outros lugares. Depois que Bernt Rothmann chamou todos os anabatistas para vir até Münster, grandes multidões começaram a se dirigir à cidade. Eles foram caçados nas estradas, assassinados, ou aprisionados. Três mil homens, mulheres e crianças que tentavam vir pelo mar foram capturados e devolvidos aos Países Baixos. A matança indiscriminada teve que ser interrompida pelo temor de despovoar o país. A despeito dos contínuos ataques aos anabatistas, eles constituíam um número surpreendente. A população da cidade foi completamente alterada. Depois que aqueles que recusavam o batismo de adultos se retiraram, os novos habitantes se tornaram maioria. Outra maioria igualmente significante foi a população feminina que possivelmente chegou a compor dois terços da população, transformando as ruas e praças durante o dia e durante a noite em um contínuo reavivamento pentecostal, gritando, dançando, cantando, esvoaçando seus cabelos soltos, e caindo em transes pelas ruas. 

Mattys teve uma súbita visão de um banquete cerimonial que havia se tornado uma parte essencial no culto de Münster, no outro dia enviou um punhado de voluntários para atacar o exército do príncipe bispo. Jan Bockelson imediatamente tomou o poder executivo. Ele dissolveu o novo conselho por haver sido escolhido por homens em vez de por Deus que agia através dele; e designou um gabinete subordinado a Bockelson, simbolizando os doze anciãos das tribos de Israel. Em seu nome ele emitiu um novo código de leis que abrangia praticamente todos os crimes, contravenções, faltas, defeitos de caráter de gravidade capital, desde a traição e adultério até responsabilidades que atingiam os pais da pessoa. Uma vez estabelecida a lei também foi estabelecida uma política para obrigar seu cumprimento, Bockelson introduziu a poligamia, sem ouvir nem mesmo as recomendações contrárias de seu próprio gabinete. Quarenta e oito dos principais cidadãos se revoltaram e o prenderam, mas a população libertou Bockelson e os quarenta e oito foram mortos. Após algumas outras execuções, a poligamia foi estabelecida. Eventualmente Bockelson adquiriu quinze esposas e Rothmann nove. 

Nesta época Bockelson, com uma extraordinária ingenuidade, abriu negociações com Filipe de Hesse e com o Imperador Carlos V. Este último respondeu enviando um emissário para que se encontrasse com Rothmann. As negociações fracassaram. Depois de uma drástica derrota das forças sitiantes quando tentaram invadir a cidade, em um triunfal banquete massivo, Bockelson coroou-se a si mesmo como Rei do Povo de Deus e Governador da Nova Sião. Daí para a frente ele sempre aparecia em estado cerimonial, em roupões reais feitos dos vestuários religiosos mais suntuosos, segurando uma maçã dourada perfurada por duas espadas, e ostentando uma coroa que simbolizava seu governo no mundo, sempre precedido e seguido por espadachins. Knipperdolling sugeriu a si mesmo como líder espiritual enquanto que Bockelson agiria como rei nos assuntos mundanos — os messias sacerdotais e reais depois de David e Melchizedek do apocalipse judaico. Bockelson não recebeu bem essa sugestão e aprisionou Knipperdolling, como isso repercutiu mal ele logo o libertou designando-o como mestre de cerimônias, na realidade um sub-comandante.

Em 13 de outubro Bockelson convocou toda população para uma assembléia na praça da catedral, para que depois marchasse para fora para subjugar os sitiadores e desse boas vindas ao imaginário exército de anabatistas que estava vindo dos Países Baixos. Quanto todos se concentraram ele anunciou que se tratava de um teste de lealdade e convidou-os todos para um grande banquete messiânico. Foram fixadas mesas pela praça e toda população alegrou-se, dançou e cantou enquanto o rei, a rainha e os conselheiros os serviam, ao final foi distribuído pão e vinho santificado em sagrada comunhão. Quando Bockelson anunciou sua abdicação, Jan Dousentschuer, o profeta de plantão, imediatamente teve uma comunicação com a deidade que proibia a abdicação, e cerimonialmente ungiram e coroaram Bockelson novamente, enquanto o povo reunido festejava. 

Antes que se tornasse um líder religioso, Jan Bockelson tinha sido escritor de concursos e peças religiosas, e ele disse que havia planejado e organizado a comuna de Münster como um melodrama religioso. Certamente ele proporcionou às pessoas bastante esplendor nas cerimônias de sua corte: encontros religiosos ao ar livre, comunhão, banquetes messiânicos, e jogos, trata-se de uma situação revolucionária mesmo baseada no misticismo medieval e em milagres. Um de seus atos mais importantes foi difundir a distribuição de bens e de comida, e o mais importante, introduzir o comunismo de produção. Os membros da guilda cujo trabalho era essencial à vida da comunidade foram ordenados para trabalhar sem salário e contribuir com seus produtos ao depósito de bens os quais todos poderiam dispor livremente de acordo com a necessidade. Todo esse programa parece ter funcionado com pouca resistência. Algumas pessoas foram executadas por acúmulo e algumas mulheres por se oporem às práticas poligâmicas — ele próprio decapitou uma de suas esposas — mas sobretudo por se objetarem às suas medidas comunizantes. Muitas de suas execuções parecem ter sido incentivadas pelo seu gosto pela decapitação. Ele possuía uma concepção folclórica de realeza — um rei deve constantemente gritar "arranquem a cabeça dele!". Esta atitude naturalmente foi compartilhada pela maioria da população. Na realidade toda a ideologia de Münster que emerge dos documentos é carregada de folclore, uma combinação de lendas apócrifas do judaísmo, contos camponeses dos irmãos Grimm, e lendas da Idade Média, tudo sob o pano de fundo da teologia anabatista que não exerce um papel exclusivo. Durante o outono e o inverno lentamente von Waldek juntou dinheiro, aliados, e mercenários, apertando o assédio e aumentando ainda mais o cerco. Foram despachados emissários para pedir ajuda mas todos eram pegos e executados, exceto um, Henry Graess, que virou traidor e revelou o plano de mobilização efetuado para obter suporte de forças anabatistas. Poucos responderam. O próprio Graess que já havia retornado a Münster foi julgado e decapitado. 

Antes da primavera a cidade passava fome. Em junho de 1535 começou a escassez. As mulheres e crianças, com exceção da Rainha Divara e alguns outros, e os homens mais velhos, foram enviados para fora da cidade. Von Waldek recusou que atravessassem suas linhas e permaneceram cercados entre os muros e o exército sitiante até que a maioria morresse. Este ato de extraordinária crueldade foi executado sob as ordens específicas do arcebispo de Colônia que von Waldek tinha convidado para seu conselho. 

Parecia que Münster iria se render durante o verão quando de repente dois homens, Hans Eck e Henry Gresbeck, escaparam da cidade e atravessaram as fileiras do príncipe bispo. Depois de uma batalha de intensidade diabólica que durou todo o dia a cidade caiu e o exército invasor arrasou a cidade matando a maioria de seus habitantes. Bockelson, Knipperdolling, e Bernard Krechting, principais conselheiros do rei, foram capturados. Rothmann desapareceu e nunca foi encontrado, nem vivo, nem morto. Durante seis meses os três líderes desfilaram pelo país afora dentro de gaiolas. Até que foram devolvidos a Münster, julgados, condenados, e literalmente torturados até a morte. Depois seus corpos foram colocados em gaiolas e dependurados na torre da igreja de Santo Lambert, onde permaneceram até o fim do século dezenove, quando a torre foi reconstruída e as gaiolas substituídas. Assim terminou a única comunidade comunista a ser estabelecida em um estado regular até a Revolução Russa — pelo menos na civilização Ocidental. 

Thomas Münzer permanecera apenas alguns dias em Mühlhausen, e é duvidoso se qualquer uma das medidas comunizantes propostas por ele e Pfeiffer tivessem resultado efetivas, além do mais tais medidas eram centralizadas em sua política milenarista. A resistência incrivelmente longa de Münzer deveu-se a vários fatores. Tanto Burgomaster Knipperdolling como João de Leyden foram notáveis políticos qualificados e organizadores, com toda sua fantástica linguagem e cerimoniais, Rothmann foi um apologista de uma inteligência incomum. Eles não tiveram escrúpulos de fazer uso do mais extremo terror. Não apenas mantendo os rebeldes fora de circulação, como unificando e convencendo a maioria da população a consentir isso. 

O comunismo não foi um incidente no milenarismo de Bockelson, nem foi um mero "comunismo de assédio”. O comunismo de Bockelson foi central. O batismo em massa de adultos propiciava nos membros uma convenção e a comunhão em massa mantinha-os juntos. Os sacramentos não eram o principal. O principal estava na comunidade onde as coisas eram compartilhadas. Cada esforço era feito para intensificar este senso de comunidade. A vida ela melodramatizada. Concursos, execuções, grandes banquetes messiânicos, até mesmo o próprio assédio contribuiu à exultação. Se a vida em Tabor foi exaltada, a vida em Münster por mais que seus participantes fossem estáticos e encantados, havia um contínuo ágape. Havia pouca chance para pausar e lembrar de si mesmo. Até mesmo o anabatista mais convicto necessitaria apenas de alguns dias de pausa para suspeitar que não estava em nenhuma Jerusalém divina mas que se tratava de uma armadilha em que foi pego. A poucos foi permitido um tempo para reflexão. Eles foram varridos por um tremendo fervor revolucionário aumentado pelo mito. 

Houve ganhos positivos a serem considerados a partir da experiência de Münster, mas poucos deles foram percebidos. O mais importante foi precisamente a manifestação da comuna revolucionária através de um culto dramático, cerimonial. Algo que os revolucionários do futuro raramente estariam preparados para admitir. Apenas Robespierre na plenitude de seu poder e os bolcheviques nos primeiros anos da Revolução e da Guerra Civil conscientemente adotaram tal conceito ou prática. Indubitavelmente haveria coisas a serem aprendidas da economia política real de Münster mas nada sabemos sobre esse assunto. Porém, um número surpreendente de pessoas escapou para retornar posteriormente na forma de grupos comunais pacifistas provavelmente trazendo consigo alguns benefícios práticos de sua experiência. 

O anabatismo jamais seria capaz de sobreviver em Münster. Desde o começo as perseguições foram grandemente intensificadas. A descoberta de um grupo anabatista, não importa o quão pequeno fosse, era recebido com horror pelas autoridades e os sócios eram freqüentemente executados sem as mãos. Não obstante o movimento foi suficientemente grande em seu início, considerando o grande número que fugiu de Münster para voltar depois; nos anos posteriores se espalhou pelo estrangeiro crescendo de forma espantosa. Essa histeria política se assemelhou um pouco à histeria macartista que varreu o século XX em toda a Europa. As autoridades viam anabatistas em toda parte e qualquer encontro ortodoxo não católico, luterano ou calvinista era imediatamente rotulado de anabatista. Os eclesiásticos ingleses estavam convictos de que todo o sul e oeste da Inglaterra estava enxameado de anabatistas. A verdade é que se havia alguns eram bem escassos, quando descobriam um punhado de imigrantes alemães e holandeses estes eram presos, exilados ou executados. Como ocorreu com o próprio movimento anabatista, Münster tornou-se rigorosamente pacifista -- na realidade a maioria dos grupos organizados sempre foram pacifistas. 

Anabatistas, Huteritas 

Durante os quatro anos que se sucederam após a queda de Münster, os anabatistas passaram a ser caçados como nunca. Eles já eram perseguidos anteriormente. Agora, protestantes, católicos, e quase todos os estados da Europa Central se uniram para extermina-los. E isto não era uma tarefa pequena. Havia um número significante de anabatistas na Suíça, onde o movimento nascera apenas dez anos atrás; no Tirol austríaco, no lado italiano dos Alpes, na Moravia, Silésia, Danzig, Polônia, sudoeste da Alemanha e a Baixa Renânia, o Vale do Rhone, e Picardia na França; e na Bélgica e Países Baixos onde, até a chegada do calvinismo e a luta pela libertação do Império, o anabatismo era adotado como a principal vertente da Reforma. 

A despeito do grande número de pessoas vindas dos Países Baixos tentando chegar até Münster, a militância quialista nunca caracterizou o anabatismo alemão. A maioria era composta por pacifistas que, mesmo supondo serem milenaristas, já havia iniciado um processo de eterealização desse item de sua fé. A maioria deles foi profundamente influenciada pelo movimento paralelo dos espiritualizadores, que colocaram pouca ênfase no batismo e na sagrada comunhão ou tinham abandonado completamente os sacramentos. Nos anos em que chegaram os espiritualizadores, Sebastian Franck, Caspar Schwenkfeld, Hans Denk, Valentin Weigel, e outros, inclusive Jakob Boehme, eles se tornaram leitura favorita dos anabatistas reorganizados e reformados — que passaram a ser chamados de menonitas. Sob a égide de uma implacável e inexorável perseguição o movimento dividiu-se em três partes: os pacifistas, que recusavam juramentos, o serviço militar, e cargo público, mas que rejeitavam o comunismo; os pacifistas e comunistas; e os militantes chialistas remanescentes que literalmente desapareceriam sob perseguição.

Menno Simons nasceu em Friesland, filho de camponeses, foi treinado para o sacerdócio romano e ordenado em 1524. Desde o princípio pareceu ser um católico evangélico mas logo rejeitou a doutrina da transubstanciação. Seu irmão Peter morreu lutando juntamente com um bando que tentava libertar Münster. Menno ficou profundamente chocado com a violência praticada por ambos os lados em Münster. Na plenitude das perseguições subsequentes ele abandonou seu sacerdócio. Passou a atuar secretamente e gastou o resto de sua vida como um pregador vagante, com a cabeça a prêmio, caçado pelas autoridades, mas sempre protegido pelos crentes. No devido tempo ele transformou o que tinha sido um movimento independente e freqüentemente antagônico em uma igreja ligeiramente organizada -- que incluía tanto comunistas como não comunistas -- mas disciplinada pela excomunhão congregacional -- a "proibição”. 

Menno recolheu e sistematizou a teologia anabatista e embora suas idéias não tenham sido universalmente aceitas elas proveram um núcleo normativo, um núcleo central. Em dez anos os anabatistas em geral passaram a ser chamados de menonitas. Por séculos a proibição foi utilizada, originalmente como um princípio unificador. Os cismas e divisões surgiam na medida da rigidez ou da flexibilidade dessas proibições, divisões bem visíveis hoje por toda a América, que separa as várias tendências. Porém, estas divisões não impediram os menonitas de se apresentarem enquanto frente unida em todo o mundo. 

Em 1577 na medida em que o protestantismo dos Países Baixos ficava mais calvinista e o país batalhava por libertar-se do Império, William de Orange conseguiu, sob sua liderança, imprimir nos Estados Gerais uma garantia de liberdade religiosa ao longo dos Países Baixos, pelo menos lá não houve mais perseguição. Com o passar do tempo os menonitas holandeses tornaram-se ricos, concordaram com parte do establishment, e finalmente permitiram seus sócios aceitar empregos públicos, e em alguns casos, participar na guerra. A tradição comunitária original estritamente pacifista, embora não propriamente comunista, sobreviveria entre os menonitas americanos. 

Mas imediatamente após a queda de Münster não foi fácil aos anabatistas praticarem o comunismo ao mesmo tempo em que eram caçados. Os militantes, sob a liderança de João de Battenberg, um dos líderes que tinham escapado de Münster, atuavam secretamente. Eles não praticavam nenhuma cerimônia pública de batismo, comunhão, ou o ágape mas escrupulosamente compareciam à Igreja Católica. Eles praticavam poligamia da melhor maneira que podiam, compartilhavam em comum os seus bens e aumentavam seu fundo comum pilhando igrejas e monastérios. Battenberg foi capturado e executado em 1538 mas o movimento sobreviveu nos Países Baixos durante outros cinco anos. Aqueles que rejeitavam a poligamia, violência, roubo, e nudismo foram mais ou menos unidos por David Joris, um artista, poeta, e compositor de hinos. O mais estudioso da maioria dos sobreviventes münsteritas, ele foi profundamente influenciado pelas profecias apocalípticas dos "três reinos" de Joachim de Fiore, pelo misticismo de Meister Eckhart, e pelos espiritualistas contemporâneos. Os seguidores de Joris desencadearam uma ativa propaganda no sudeste da Inglaterra. Suas idéias tiveram muito a ver com a determinação do caráter da Reforma radical inglesa dali em diante. Porém, a principal influência foi exercida pelo movimento puramente espiritualista fundado por Henry Nicholas — a Família do Amor. David Joris refugiou-se em Basel e conduziu o seu movimento através de cartas e missionários. Ele foi um dos poucos anabatistas a morrer pacificamente em cima de uma cama, em 1556. Depois de sua morte alguns dos seus seguidores que o acusaram de manter um harém e praticar as mais completas imoralidades, desenterraram e queimaram seu corpo. Pequenos grupos comunistas sobreviveram em alguns países como a Suíça e Países Baixos durante mais uma geração, mas a maioria imigrou por questões de segurança. 

Desde 1528 um santuário comunista estava sendo preparado na Moravia. Em 1526 Jacob Hutter chegou na colônia de Nicolsburg, que estava sob o patrocínio do duas vezes batizado Lord de Liechtenstein. Hutter era um milenarista e comunitarista violento, mas ele também era um "violento pacifista". Ele provocou grandes divisões na comunidade anabatista, um dos seus mais típicos seguidores, Balthasar Hübmaier, no transcorrer destas disputas foi capturado e condenado à morte em Viena em 1528. O próprio Hutter foi testemunhar o martírio, foi quando seu grupo pacifista, comunista, sob a liderança de Jacob Wiedemann e Filipe Yaeger, montou sua própria comunidade. Após uma longa e pacífica discussão, Lord Liechtenstein pediu que partissem. Eles decidiram se mudar para Austerlitz na Moravia, e nas palavras das Crônicas Huteritas: 

Então eles buscaram vender suas posses. Alguns venderam, mas outros permaneceram com o que tinham, e dividiram entre si o que possuíam. O que sobrou de suas posses o Lord de Liechtenstein enviou-lhes posteriormente. Assim Nicolsburg, Bergen, juntaram aproximadamente duzentas pessoas, sem [contar] as crianças diante da cidade [de Nicolsburg]. Algumas pessoas saíram... tomadas de grande compaixão, mas outros discutiram... Então eles se levantaram, saíram, e ocuparam... uma aldeia desolada durante um dia e uma noite, formando um conselho para negociar com o Lord com relação à sua presente necessidade, ordenaram [geordnet] ministros para suas necessidades temporais [dienner in der Zeitlichenn Notdurfft]... Então os homens estenderam uma manta diante das pessoas, e os homens deram sua contribuição, com o coração aberto e sem constrangimento, para o sustento dos necessitados, de acordo com a doutrina dos profetas e dos apóstolos [Isaías 23.18; Atos 5.4-5]. 

Naquela manta, na primavera de 1528, foram colocadas as bases da sociedade comunista de mais longa vida que o mundo já viu. Leonhardt von Liechtenstein escoltou-os até a fronteira do seu principado e lhes implorou para que ficassem. Ele prometera defender seu refúgio anabatista com seus punhos contra Viena, ao que os líderes responderam, “Mesmo que você prometa recorrer à espada para nos proteger, não podemos permanecer”. Eles enviaram mensageiros para os irmãos von Kaunitz e para os Lordes de Austerlitz, que responderam que o huteritas seriam vem-vindos, mesmo que fossem aos milhares. Depois de três meses de estrada eles foram entusiasticamente recebidos — já havia uma colônia de membros radicais dos Irmãos Boêmios por lá. Em pouco tempo eles construíram casas e começaram a trabalhar seus ofícios e cultivar a terra. Eles trouxeram consigo um programa de doze pontos para um comunismo religioso prático que havia sido desenvolvido por um grupo de anabatistas em Rattenburg, este documento sobrevive nas Crônicas Huterites e em sua primeira constituição. Em pouco tempo os refugiados começaram a chegar da Suíça, dos Países Baixos e especialmente do Tirol. A maioria chegou mais tarde, tanto que hoje o cerimonial é feito em um velho dialeto tirolês, o familiar "pequeno idioma", embora os huteritas tivessem sido forçados a vagar ao longo dos dois hemisférios. 

Durante os próximos cinco anos em toda parte os comunistas anabatistas se envolveram em divisões sectárias e expulsões muito complicadas para serem descritas brevemente; mas em 1533 Jacob Hutter, que tinha sido convidado por vários grupos, inclusive de Austerlitz, como mediador, trouxe seus próprios seguidores do Tirol e inauguraram um movimento de reunião e federação que durante os próximos dois anos congregaram todos ou a maior parte dos anabatistas. No início das perseguições que se abateram sobre a comuna de Münster ele e sua esposa foram capturados e repetidamente torturados. Hutter não sucumbiu, mesmo diante das mais fantásticas crueldades, à tentação de todos os revolucionários de negociar suas doutrinas com seus captores, muito menos de revelar os nomes de seus camaradas, ou qualquer segredo do movimento. Ele permaneceu calado diante daqueles [que julgava ser] agentes do diabo. As autoridades desejaram decapitá-lo em segredo; mas Ferdinando, que era o Arquiduque da Áustria, Rei da Boêmia, e Santo Imperador Romano, recusou. Hutter foi capturado na cidade de Klausen no Tirol, e queimado publicamente em 25 de fevereiro de 1536. 

Depois dos eventos que envolveram Münster, Ferdinando exigiu que todos os anabatistas fossem expulsos dos territórios subordinados ao trono austríaco. Eles foram expulsos de muitos lugares, muitos fugiram para as montanhas e florestas até que a tempestade da perseguição passasse; mas parece que os nobres moravianos lhes deram proteção, e tão logo Ferdinando se distraiu eles restabeleceram suas antigas colônias. Durante estes anos, sob a liderança de João Ammon, os huteritas iniciaram uma atividade missionária na Europa Central. Eles enviaram apóstolos, dos quais quatro quintos foram martirizados, para Danzig, para a Lituânia, para Veneza, e para a Bélgica. 

Um dos mais ativos missionários foi Peter Riedemann, que, tanto dentro como fora da prisão, iniciou o desenvolvimento de uma teologia sistemática e uma ordem social para os huteritas. Com a morte de Ammon em 1542 ele foi eleito líder, embora preso, muito livremente na verdade, por Filipe de Hesse. Incidentalmente, pouco antes disso, os huteritas haviam chamado seus líderes bispos, embora eles tivessem pouca semelhança com os membros do episcopado católico. Leonard Lanzenstiel tinha sido designado por Ammon como seu sucessor e tanto Riedemann como Lanzenstiel compartilharam a liderança até o ano de 1556 quando Riedemann morreu em uma nova colônia em Protzko na Eslováquia, seu lugar foi ocupado por Peter Waldpot, um dos maiores líderes huteritas, que morreu em 1578. 

Uma geração inteira havia se passado, e o comunismo anabatista tornara-se uma política bem sucedida, próspera, com raras turbulências, exceto por uma ou outra contingência sectária, expandindo colônias periféricas na Eslováquia e Boêmia. O núcleo do movimento, diretamente administrado por Waldpot, contava com algo em torno de trinta mil adultos. Desde o princípio em Austerlitz eles tinham percebido que um comunismo de consumo não era bastante e passaram a organizar seminários, pequenas fábricas de artesãos, e passaram a trabalhar com brigadas e fazendas comunais, com manuais detalhados para os diferentes ramos. Eles estabeleceram suas próprias escolas (as primeiras escolas maternais e jardins da infância) com graduações além da adolescência. O ensino superior foi rejeitado, como é até hoje, como desnecessário ao bem-estar da comunidade, por distrair do amor de Deus e do amor ao próximo. Mas suas escolas elementares foram as melhores na Europa de seu tempo. O cuidado das crianças foi socializado. As crianças normalmente moravam nas próprias escolas e eram visitadas pelos seus pais. Cada colônia huterita tinha um programa ativo e cuidadoso de saúde pública. As aldeias não apenas estavam constantemente limpas como sua higiene e serviço de saúde pública eram inigualáveis. Os matrimônios aparentemente eram organizados com a colaboração dos anciões, da comunidade, e dos indivíduos em geral, e geralmente tinham muito êxito. De todos os grupos anabatistas, não importa se fossem comunistas ou pacifistas, a história dos huteritas é singularmente livre de escândalos sexuais.

Com um sistema de produção e distribuição muitas vezes melhor organizado do que qualquer outra coisa na ocasião, as colônias cresceram ricas. Embora acreditassem individualmente em viver uma "pobreza decente" eles logo acumularam consideráveis excessos na produção, particularmente depois que as colônias permitiram vender seus produtos aos gentios. Estes excessos foram investidos em importantes melhorias e para subsidiar novas colônias, uma necessidade, como ainda é hoje, por causa da alta taxa de natalidade, e baixa taxa de mortalidade, naqueles dias devido à sua exemplar saúde pública. Os huteritas haviam descoberto uma dinâmica, contínua e expansiva economia do tipo que Marx mais tarde diagnosticaria como a essência do capitalismo, tratava-se de uma economia capitalista mas estava baseada em um nível muito alto de prosperidade para o camponês, a fonte de sua acumulação de capital. Em outras palavras, os huteritas em sua pequena sociedade fechada resolvia a contradição na acumulação do capital e da circulação que de formas diferentes maltratam os russos e os americanos hoje. 

A idade de ouro dos huteritas durou até 1622, quando os nobres da Morávia, que haviam sido seus protetores, foram forçados pela Igreja e pelo Império a expulsá-los de suas propriedades. Eles se espalharam, encontrando refúgio na Eslováquia, Transilvânia, e Hungria. Este molestamento aumentou durante a Guerra dos Trinta Anos quando os imperialistas conseguiram obliterar a Igreja Utraquista da Boêmia e dirigir secretamente os Irmãos Tchecos. Pelo século XVIII o comunismo de produção necessariamente tinha sido abandonado e a comunidade de bens coletivos só foi praticada na forma de um fundo de bem-estar comum, mas os huteritas preservaram seus costumes tradicionais e sua forma de adoração.

Em 1767 foi emitido um decreto, sob a égide dos Jesuítas, que implicava na captura de todas as crianças huterites na Hungria, inclusive a Transilvania; as crianças seriam tomadas de seus pais e internadas em orfanatos. Os huteritas fugiram para a Romênia e viram-se a si mesmos bem no meio da Guerra Russo-turca. Em 1770 a Imperatriz Catarina convidou os Pietistas Alemães e anabatistas a se instalarem na Ucrânia para que ficassem lá o tempo que quizessem. Eles se desenvolveram, degradaram, reavivaram, até que emigraram para os Estados Unidos e finalmente Canadá, onde floresceram como nunca antes. Retornaremos a eles quando voltarmos a discutir o comunalismo moderno, dos quais eles são incomparavelmente os mais bem sucedidos praticantes.

Durante a última metade do século XVI houveram sobreviventes isolados e esporádicos reavivamentos comunistas entre grupos de anabatistas e espiritualistas. A comunidade de bens coletivos permaneceu como um ideal apostólico entre os Irmãos Suiços e os Irmãos Tchecos cuja prática ressurgiu temporariamente quando alguns deles migraram para a América. Houveram colônias comunistas na poderosa Igreja Unitária da Transilvânia.

A única comunidade que pode ser comparada com as comunidades huteritas foi a de Rakow em Little Poland a noroeste de Cracóvia. Fundada em 1569 por Gregory Paul, atraíu anabatistas, espiritualistas, e líderes unitários de toda parte da Polônia, Prússia, Lituânia, Silesia, e Galícia, toda a região nordeste da Europa Central daqueles dias, antes da Contra-Reforma, parecia estar aderindo à Reforma radical. Uma das características mais notáveis da Reforma radical nesse território foi o grande número de nobres que se converteram, libertando seus servos, vendendo suas terras, distribuindo seus bens aos pobres, e tomando parte como iguais no comunismo de Rakow — nessa ordem de frequencia. Quer dizer, muitos apenas libertaram seus servos, e apenas alguns vieram a Rakow, entretanto um bom número dos nobres mais poderosos foram simpáticos ao anabatismo. 

Os rakovianos enviaram uma delegação aos huteritas da Morávia,propondo se afiliar com eles e aprender seus métodos. Os rakovianos ficaram impressionados pela eficiência e prosperidade huterite, mas rejeitaram seu trinitarianismo, e ficaram ofendidos pela suposta arrogância, intolerância e vaidade que viram neles. Neste momento, a julgar pelo testemunho polonês, os huteritas acreditavam que “aquele que possui uma casa, terra, ou dinheiro, e não entrega essas coisas à comunidade, não é um cristão, mas um pagão, e não pode ser salvo”. O comunismo rakoviano não era uma condição de salvação, mas simplesmente a deliberação de uma vida apostólica mais perfeita.

Os huteritas por seu turno objetaram, naturalmente, o unitarianismo polonês, mas surpreendentemente, não muito fortemente. Sem dúvida o mais importante eram práticas que a nós pareceriam triviais. Os huteritas batizavam por asperção e os poloneses por imersão. Mas mais importante ainda foi a diferença de classe. Os huteritas foram camponeses e trabalhadores cuja educação, por mais estranho que pareça, foi limitada à Bíblia e alguns escritores espirituais. Eles ficaram ofendidos pelos modos aristocráticos dos poloneses, pela sua "frieza de coração", pelo seu conhecimento de idiomas, seus nomes latinizados, e sua recusa em se submeter completamente à autoridade huterite. Peter Waldpot foi tão longe em suas demandas com os poloneses que propôs que eles fossem rebatizados pelos huteritas. Durante dois anos houveram cartas e visitas até que finalmente os rakovianos deixaram uma esperança de se afiliarem aos huteritas. As negociações caminhavam bem até que os poloneses quebraram alguns protocolos quando visitaram as colônias huterites. Não há registro de nenhum huterite visitando Rakow. 

Além do anabatismo radical polonês destacou-se Faustus Socinus, um dos principais teólogos do período da Reforma, que havia migrado da Itália para a Polônia. Ele elaborou um sistema completamente desenvolvido em que unitarianismo, pacifismo, comunidade de bens coletivos, batismo por imersão, e todas as principais doutrinas do anabatismo polones e espiritualista foram racionalmente relacionadas em uma filosofia sistemática que era ao mesmo tempo consistentemente evangélica. Quando os Irmãos poloneses foram expulsos da Polônia e acharam refúgio na Holanda eles revelaram tanto na doutrina como na prática uma considerável influência dos menonitas holandeses mais radicais, mantendo-a no desenvolvimento do movimento na Inglaterra e América. Na Polônia, a Contra-Reforma conduzida pelos jesuítas fez seu trabalho completo, e os Irmãos Poloneses comunalistas foram extintos.

Como uma nota de rodapé deveria ser mostrado que a diferença básica entre os huteritas e quase todas as outras seitas cristãs, ortodoxas ou heterodoxas, é que a sociedade das colônias huteritas foram o que os teóricos modernos chamariam de uma "cultura da vergonha", fundamentalmente não assimilável pela "cultura da culpa" do cristianismo e do judaísmo rabínico (diferente do hasídico).

Fonte: Kenneth Rexroth, Comunalismo, das origens ao século XX, pp. 93-132. Trad. Coletivo Periferia. Web: geocities.com/projetoperiferia Copyright 1974. Versão inglesa reproduzida com permissão de Kenneth Rexroth Trust.