vendredi 1 mars 2013

A ideologia do ficar rico com Jesus (II)

Segunda parte
A liberdade radical

O programa de Jesus em Lucas 4 destaca duas idéias: a de anunciar a boa notícia e a de libertar os dominados pelo não-estar existencial.

A idéia de anunciar estava presente na antiga tradição judaica, já que a tarefa profética era, sobretudo, proclamatória. De Samuel a Jeremias – incluídos nesse período homens como Samuel, Natã, Gade, Azarias, Elias, Eliseu, Joel, Miquéias, Micaías, Isaías e Jeremias -- esses anunciadores da palavra do Eterno falaram aos reis e ao povo. Advertiam e encorajavam. Falavam de juízos e promessas espetaculares. E assim também foi o último período da profecia hebraica, de Ezequiel a Malaquias. No período helênico, graças às reuniões nas casas de oração, sinagogas, a proclamação se generalizou. Os textos antigos eram lidos e comentados.

João, o batista, foi um anunciador da chegada do reino. E Jesus, ali na sinagoga de Nazaré, colocou em seu programa a tarefa do anunciar.

E o que significa libertar? O conceito de libertação na antiga tradição judaica partiu da idéia de livramento e de segurança. A pessoa de um libertador traduzia a imagem do rei-herói, alguém que arrancava o povo da destruição (Jz 18.28). E no testamento cristão, o salvador é aquele que liberta os escravos do não-estar (At 7.35) e que arranca a nação do estado da não-vida (Rm 11.26).

Para o judeu, no momento de Jesus, o ato característico de liberdade ocorrera sob a liderança de Moisés, quando o Eterno salvou seu povo do estado de escravidão sob os egípcios e o pousou no deserto do Sinai (Ex 12.31—14. 31).

É fundamental entender que a libertação do domínio egípcio definiu para os judeus do período helênico o paradigma da liberdade como ato do Eterno, que não visava apenas o alívio de uma situação desastrosa, mas estar em abundância. Aí estava a chave do conceito de aliança, livres pora adorar. Essa idéia fundamentou o conceito de aliança e da espiritualidade judaica até o primeiro século.

A partir do programa de Jesus entendemos o estar existencial como sentido pleno de vida, liberdade no Espírito, gerador de alegria, justiça e paz, pessoal e comunitária. E não-estar existencial como exclusão de bens e possibilidades, escravidão sob as suas mais diferentes formas e cegueira espiritual, que geram perda do sentido de vida.

O uso que o homem de Nazaré fez de termos políticos, como reino e evangelho, mostram que tinha o objetivo de falar de uma promessa existencial de intervenção alternativa àquelas dos poderes presentes na época. Quando lemos o texto apresentado por Jesus, numa perspectiva rabínica, estamos diante de uma recorrência às promessas do jubileu, quando a não-vida deveria ser banida. A fala daquele homem de identidade questionada não afirmava que a Palestina seria resgatada de imediato na escala da geografia e do tempo, mas que deveria entrar no estar palestino o impacto solidário do ano sabático.

Da mesma maneira, o reino surgiria enquanto compreensão do ano sabático. Nesse sentido, o sábado da semana ampliava-se no sábado dos anos, onde o sétimo deveria ser de alegria, justiça e paz, já que restauraria o que fora exaurido, natureza e pessoas. Essa coleção de propostas radicais presente em Levítico 25.1-26.2 concernia ao direito de propriedade da posse da terra e de pessoas, que constituíam a base da riqueza. O objetivo era fixar limites ao direito de posse, já que toda propriedade, natureza e pessoas, pertenceria a Deus. Assim, ninguém poderia possuir a natureza e as pessoas, pois tal direito pertencia a Deus. E o ciclo de sete anos sabáticos desagüava no qüinquagésimo ano, o jubileu messiânico (Levítico 25.8-24), que aparecer também em Números 36.4. Também Jeremias, 34.8-17, falou de uma reforma social na Jerusalém sitiada, quando Zedequias proclamou a liberdade dos escravos hebreus. Da mesma maneira, em Isaías 58.6-12 a liberdade radical como parte da visão profética. Mas, existem outros textos sobre o ano sabático, como Êxodo 23.10 e Neemias 10.32. Nesse sentido, o jubileu apontava para a reestruturação do estar pleno nas relações entre os povos da Palestina.

Flávio Josefo afirmou, depois da presença de Jesus em Nazaré, que não existe um único hebreu que, mesmo hoje em dia, não obedeça à legislação referente ao ano sabático como se Moisés estivesse presente para puni-lo por infrações, e isso mesmo em casos que uma violação passaria despercerbida.
[1]

Apesar da afirmação de Josefo, sabemos que o enquadramento do estra pleno a partir das disposições de Levítico 25, que incluía inclusive a reforma agrária, nunca foi de fato vivido entre os judeus. Por isso, coube a um sem-terra-santa levantar o discurso do ano da liberdade frente à escravidão do não-estar.

O jubileu, dessa maneira, se insere na antiga tradição dos judeus. E através da tradição rabínica, essa tradição foi adaptada às novas situações enfrentadas pelos judeus na diáspora. Mas, esses novos aspectos do jubileu e seu desenvolvimento na tradição judaica partem do texto de Levítico 25.10.

A teologia da vida, em Lucas, subentendida a partir do discurso de Jesus em Nazaré, está ligada, como vimos, ao sábado e ao ano sabático, que se situa em Levítico 25.2, no leque dos sete anos, assim como o dia de sábado se situa na semana. Para os rabinos da diáspora existe um sábado desde o começo e um sábado da terra, da mesma forma como na sexta-feira à tarde o trabalho cotidiano era interrompido pela adoração ao Eterno. Assim em Israel, e acreditavam que apenas em Israel, o povo judeu tinha a obrigação de restituir a terra ao Eterno, já que em Israel a terra pertencia ao Eterno.

Daí, o tríplice imperativo do estar cotidiano, da existência no jubileu: a liberdade da terra, a liberdade das dívidas e a liberdade dos excluídos. Na teologia da vida, presente no evangelho de Lucas, implícita nas palavras de Jesus, o jubileu concentra uma temática existencial que repousava sobre a expansão do estar.

Uma primeira constatação era a impossibilidade de que qualquer escravidão da terra fosse permanente. Ao cumprir o sábado, o proprietário estava impedido de possuir a natureza além de um certo tempo. O sábado do jubileu levava o proprietário a uma relação de submissão, que o impedia de reduzir a natureza a objeto de dominação. A soberania do eterno era, então, compreendida como a afirmação de que Ele era o senhor e criador da natureza. Donde se deduz que o ser humano não pode se colocar na posição de dono, como esclarece Levítico 25.23. Ou seja, na terra onde o Eterno é proprietário, o ser humano é hóspede. A gratuidade leva, então, à afirmação de que o ser humano vive em terra que não é sua propriedade, onde é objeto da gratuidade, conforme Levítico 25.19-21.

E a justiça para com os semelhantes, que devem usufruir das benesses, mostrava que a natureza era presente do Eterno para suprir as necessidades humanas. E apresentava a natureza como de todos e para todos. Assim, o monopólio que impossibilita este destino universal é um erro de alvo diante do Eterno do próximo. Dessa maneira, a justiça, tão presente na teologia da vida em Lucas, nasce da mensagem profética, presente no discurso de Jesus, e consiste em reconhecer o amor gratuito do Eterno na Palestina, e, posteriormente, no mundo. Por isso, o discurso de Jesus é o discurso da alegria e da justiça, destas duas ações que remetem à paz.

Mas, se o discurso da alegria e da justiça é a afirmação de que a natureza pertence ao Eterno e que o domínio sobre o próximo deve desaparecer, outra constatação teológica do jubileu é a remissão da culpa, que parte da reforma radical da existência em direção à reconciliação de pessoas e povos, no caso do discurso de Jesus, palestinos. Assim, o jubileu possibilita um novo começo, pois não rompe apenas com o não-estar existencial, mas elimina a culpa.

Se o discurso de Jesus apresentou um alcance palestino imediato, a partir da própria realidade vivida pelo nazareno, tal discurso remete à globalidade da esperança de restauração do mundo. Ou seja, tal discurso, visto sob a ótica teológica, fala do fim dos sofrimentos e da violência.

Assim, a teologia da vida reconhece o jubileu judaico e sua realização nas palavras e atos de Jesus na Galiléia, mas remete às ações jubilares da igreja cristã na reforma do mundo. Podemos, dessa maneira, falar numa volta à espiritualidade do jubileu, como forma de enfrentar a secularização escravizante, a apropriação injusta de recursos e a generalização da violência. E preconizar os direitos das minorias e o respeito pela vida.

E a partir da teologia da vida, lida neste discurso de Jesus em Nazaré, podemos compreender que os bens naturais foram confiados pelo Eterno aos seres humanos e que a salvação é liberdade no estar existencial, mas também alegria, justiça e paz.

O jubileu é reforma radical e a proposta do Jesus marginal foi a anunciação da possibilidade de uma era nova, caso os ouvintes aceitassem a notícia. Não estava a se referir a um evento imediato, histórico, mas reafirmava uma esperança conhecida de seus ouvintes: a da reforma existencial que deveria mudar as relações entre os povos.

E aquele homem de genealogia desconhecida e geografia marginal colocou a centralidade da reforma sobre ele próprio ao afirmar que naquele momento, na sinagoga de Nazaré, a esperança se cumpria. E é isso que Lucas vai mostrar na sequência do seu evangelho da vida: o reformador marginal era o Cristo universalmente prometido.

As caras do não-estar
Ao partir da compreensão de que o programa de Jesus estava dirigido às pessoas que enfrentavam a ameaça do não-estar, começamos a pensar o destino existencial dessa humanidade brasileira. E vimos que o não-estar existencial tem muitas faces, que pode ser cultural, social, mas também espiritual.


Hoje entendemos que a não-vida não acontece por acaso, mas é fruto das lógicas culturais, sociais e, por isso, também religiosas. Esta primeira compreensão do não-estar, do repousar sobre a morte, que não é fruto apenas de opções individuais separadas da comunidade e da história, nos levou à teologia da vida, que consiste em ver a necessidade de uma ação radical, que atue de conjunto sobre os diferentes fatores que alienam e matam a fé, a esperança e o amor. Por isso, dizemos, que o não-estar existencial é um fenômeno de massa gerado por fatores culturais e sociais, entre os quais estão as igrejas que servem a Mamon.

Por isso, a teologia da vida confronta a realidade cultural, econômica, política, social e religiosa. Vimos, numa leitura contextualizada do programa de Jesus, que a morte é parte integrante de um sistema de não-vida e que, embora seja apresentado como gerador de felicidade e riqueza, de fato, é gerador de vítimas lançadas fora da estrada.

Os problemas humanos, focados pelo sábio do Eclesiastes, reproduzem padrões que repousam sobre o não-estar existencial. Hoje, um quinto da humanidade não têm condições mínimas de estar com plenitude: não têm onde morar, não têm água limpa, não têm cuidados médicos, não têm oportunidades na área de educação e emprego e estão condenadas à não-existência, sem qualquer possibilidade de promoção pessoal para si próprias e para suas famílias. Todas essas situações têm suas raízes no errar o alvo e exige uma radical resposta de amor. Somente o evangelho pode transformar o coração humano. Mas não podemos nos restringir à proclamação. É necessário criar as condições para que a liberdade gere alegria, justiça e paz.

Embora a reconciliação do humano com o humano, de um povo com outro povo, não seja reconciliação com o Eterno, nem a ação social evangelização, nem a libertação política salvação, boas notícias de vida plena e envolvimento existencial são parte da reforma radical proposta pelo homem de Nazaré.

A mensagem de liberdade é também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça. Quando alguém recebe a Cristo, nasce de novo no seu reino e, conseqüentemente, buscará não somente divulgar como também manifestar a justiça. A liberdade que temos deve transformar responsabilidades pessoais e sociais.

Por isso, o protestantismo evangélico deve viver uma mudança radical: não se perder na ideologia do enriquecer com Jesus, nem adorar a Mamon, mas fluir para o exercício da alegria, justiça e paz.

Isto porque o não-estar, denunciado pelo sábio no Eclesiastes, existe como cultura da morte. E o que agrava a questão é o distanciamento das igrejas evangélicas do programa da vida proposto por Jesus, que leva à omissão e à insensibilidade. O não-estar da população brasileira não é visto, então, como problema, quando muito como objeto de caridade.

Essa não-existência imersa no sem-sentido deveria catalisar os diálogos entre as confissões do protestantismo evangélico. Qualquer crise do evangelicalismo pode ser superada na medida em que assumamos os problemas da humanidade brasileira como objeto de proclamação e salvação.

A insensibilidade evangélica não pode ser explicada apenas pela decadência religiosa. Pois esta insensibilidade não é exclusividade das pessoas que, momentaneamente, estão fora da geografia da salvação. Mesmo pessoas sensíveis, piedosas, compartilham a atmosfera da insensibilidade em relação aos problemas existenciais dos que não conhecem as possibilidades da vida em abrndância.

Para uma aproximação a este problema, vamos focar a ideologia do enriquecer com Jesus. Tal ideologia, conceito aqui entendido como consciência alienada, surgiu como idéia evangélica de emancipação da pobreza e da promessa de retribuição do Eterno. Mas a ideologia do enriquecer com Jesus não escapou aos paradoxos culturais. Como foi baseada numa leitura primitiva da seleção dos escolhidos por seus desempenhos pessoais, esta ideologia funcional se converteu em idolatria do enriquecimento.

Tal ideologia, aumentada pela presença do neoliberalismo, é um engodo porque afirma para milhões de pessoas que o evangelho de Cristo descarta a lei da alternância. Por essa lógica, o fracasso ou o sucesso das pessoas são vistos como diretamente proporcionais às habilidades, aos talentos e à fé-esforço de cada um, independentemente do contexto.

Assim, não há razão para a proclamação e a liberdade dos que estão caídos. A ideologia do enriquecer com Jesus é expressão dessa leitura primitiva da retribuição do Eterno, que tem como fim fazer de cada fiel uma pessoa rica. O dinheiro e a quantidade dele passam a ser o padrão para a avaliação da própria espiritualidade.

Nesta versão neoliberal da retribuição, o Eterno distribui as rendas das pessoas conforme suas capacidades e fé-esforço. Mas, quando o poder econômico se torna critério da dignidade humana, a busca pelo dinheiro torna-se finalidade última da vida. Estamos então idolatrando um dos príncipes do inferno: Mamon.

E o mais interessante é que os que conquistam o poder e dinheiro não necessariamente sabem o que fazer com isso, donde Mamon leva o cativo do não-estar a outro demônio –ao ídolo do consumo. Dessa maneira, a obsessão pelo dinheiro tem um espelhismo com a obsessão pelo consumo como fim em si, independente da utilidade da mercadoria.

Ora, se o consumo se transformou em medida, nenhuma quantidade de aquisições tem a possibilidade de trazer satisfação real, pois não há padrões a se manter: as metas permanecem distantes, mesmo quando se corre para alcançá-las. E o nome certo para isso, conforme nos diz Jesus, é ganância, pois o seu olho se fez mau, e toda sua vida está imersa na malignidade.

Servir a Mamon, um dos príncipes do inferno presente nas igrejas evangélicas e adorado publicamente, é correr sem destino, buscar objetos de desejo que mudam rapidamente. Consome-se para sentir-se vivo, mas a vida é um permanente não-estar. Os objetos de desejo deixam rapidamente de ser portadores de reconhecimento. A busca recomeça quando se consegue adquirir o objeto do desejo. A utilidade dos produtos e o usufruir as suas qualidades não são importantes. O importante é consumir mercadorias, bens materiais ou simbólicos, que causem inveja nos outros.

A ideologia do enriquecer com Jesus leva as pessoas a não verem o não-estar como problema existencial, não deixa as pessoas enxergarem que o não-estar existe, é morte.

 
Citação
[1] Josefo, Flávio, História dos Hebreus, Antigüidades Judaicas III, 15, 3.