dimanche 13 décembre 2020

Minhas caminhadas filosóficas

De Kant à leitura social do Reino de Deus


Vinha fazendo o percurso de minhas caminhadas filosóficas na cultura ocidental cristã, quando trombo com um grande amigo, filósofo. E como disse para alguns amigos, ele escreve bem, com elegância, mas sabe picar o animal. Resolvi, então, continuar à caminhada, mas dar um passo atrás nas reflexões sobre minhas origens filosóficas para de forma transversal dialogar com este amigo. Por isso, vou voltar a Kant. E se o texto parecer pedagógico vocês me perdoem, afinal o jeitão de professor é difícil de jogar fora.

Nosso amigo Immanuel Kant, filho de pais pietistas, transformou os avanços da astronomia de Copérnico em teoria do conhecimento. A partir de Kant, o conhecimento não está preso aos objetos, mas os objetos acontecem dentro do processo de conhecimento. Na sua época, a filosofia estava dividida entre racionalistas, cuja única fonte de conhecimento é a razão (Descartes), e empiristas, cuja fonte de conhecimento é a experiência -- os ingleses que desencadearam a revolução industrial. A palavra chave na filosofia de Kant será transcendental. Ele disse:

“Chamo transcendental a todo o conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que de nosso modo de os conhecer, enquanto este deve ser a priori”. 

Transcendente é todo o conhecimento que se ocupa pouco do objeto. O objeto não é a fonte do conhecimento humano, mas está dentro dele. O conhecimento é transcendente em relação ao objeto. Transcendente refere-se aquilo que foi descoberto. Kant vai trabalhar com lógica, matemática e analítica. Traduzindo Mané Kant para o papo do dia-a-dia, podemos dizer que pensar transcendentemente significa mostrar como os objetos percebidos pelos sentidos são transformados mediante a razão em objetos do conhecimento. Por exemplo, ao falarmos mesa, não estamos falando de uma mesa específica, mas de um conhecimento transcendente que inclui todas as mesas. Ou seja, mesa não é apenas uma representação ou reprodução mental de algo que está no exterior, mas uma produção da razão humana. Há uma produção racional na atividade criadora do humano que transforma mesa em conhecimento universal. Quando se fala mesa, nessa transcendência, são mesas de todos os tipos, formas e modelos.

Para Kant, o fundamento do conhecimento humano é a relação sujeito/objeto. Caminha-se através de juízos e imprimem-se categorias aos objetos. Sua abordagem é crítica porque questiona as perspectivas racionalistas e empiristas existentes até aquele momento. Sua teoria do conhecimento parte de quatro perguntas: O que posso conhecer? O que devo fazer? O que posso esperar? Quem é o ser humano?

O que podemos conhecer? Podemos conhecer tudo? Deus? O juízo pode ser analítico ou sintético. É analítico quando o predicado parte do sujeito. Por exemplo: o triângulo tem três ângulos. Diante de qualquer análise está implícito no sujeito, o predicado. O predicado é ângulo e é impossível falar triângulo sem este predicado. É sintético quando o predicado não está implícito. Por exemplo: o calor dilata os corpos. Temos aqui uma síntese. Podemos ter calor e corpos, mas quando dizemos, o calor dilata os corpos, unimos os dois através do conceito de dilatação.

Kant está descobrindo como a cabeça do ser humano funciona, fornecendo maneiras de chegar ao conhecimento comprovável. Ele descarta o racional porque trabalha somente com a razão, esquecendo a realidade da existência de objetos. Descarta o empírico porque só produzindo experiência não se transcende. Qual a importância desses conceitos e dessa epistemologia para a vida humana? 

Em primeiro lugar, Kant nos mostra, sempre partindo da razão, que os juízos analíticos não têm por base a experiência, são independentes e por isso só podem ser pensados. Faz uma crítica aos racionalistas, no sentido que Descartes despreza os objetos. O homem pensa e existe, mas mesmo que não existisse, o mundo existe. O mundo não existe porque o homem pensa. 

Em segundo lugar, os juízos sintéticos baseiam-se na percepção sensível, na experiência. Ou seja, o calor dilata os corpos, mas foi necessário uma experiência para chegar à essa conclusão. Daí, Kant conclui: é impossível fazer ciência a partir de juízos analíticos (a priori). A ciência não pode ser apriorística. Trabalhar apenas com os elementos que a razão pode fornecer produz uma estagnação. Os juízos sintéticos não levam ao conhecimento porque são particulares e contingentes. Não é possível fazer ciência usando só juízos analíticos ou só juízos sintéticos. A ciência, na verdade, é constituída por juízos sintéticos a priori. Kant está tentando resolver o grande problema medieval.

Os juízos sintéticos a priori são aqueles que têm por base a experiência, só que esta é a priori. Ou seja, são universais e necessários aos quais se chega pela intuição evidente. Um exemplo matemático: a linha reta é distância mais curta entre dois pontos. Kant está dizendo que o cientista chega a experiência porque já teve uma intuição antes. Assim, o conhecimento não é fruto nem do sujeito, nem do objeto, mas é a síntese da ação combinada entre os dois. O sujeito dá a forma e o objeto dá a matéria. O conhecimento é resultado de um elemento a priori, o sujeito, e outro a posteriori, o objeto. Ou seja, o conhecimento é uma relação entre sujeito e objeto. 

Para Kant, é impossível haver uma ciência de Deus ou uma ciência das realidades metafísicas. Ele traça como caminho alternativo a razão prática que leva à consciência moral. Ele tira Deus do objeto do conhecimento. Pela razão pura conhece-se o que é, e pela razão prática o que deve ser. Moralmente, é necessário aceitar a existência de Deus. Assim, o que não se pode provar pela razão pura torna-se um postulado da razão prática. Depois de eliminar Deus da ordem do pensamento e da realidade, postula a existência de um Deus justo que fundamenta a relação entre a virtude e a felicidade. A verdadeira religião é a moral. A religião revelada é imposta e servil. Deus é a razão da moral prática. O cristianismo para Kant identifica-se com a consciência, sem necessidade do conceito de Deus. Kant aprofunda o ceticismo aberto por Descartes, que marcará o pensamento moderno e, por extensão a teologia moderna.

Durante a modernidade, a ciência se desenvolveu e produziu frutos impressionantes, mas a teologia do século dezoito ficou estagnada. No século dezenove, os teólogos mergulharam no estudo dos filósofos modernos e foram pesquisar a história antiga de Israel, a arqueologia e a geografia das terras bíblicas, assim como os idiomas originais da bíblia a fim de produzir uma teologia a partir de objetos comprováveis. 

O caminho da História

Ora, não haveria Hegel sem Kant. Foram o cartesianismo e as teorias kantianas, entre as quais seu conceito de transcendência e sua moral, que possibilitaram mais tarde a revolução hegeliana. Hegel, como já vimos, apresentou a história enquanto fenomenologia do Espírito, o que gerou hermenêuticas e novas compreensões da razão de ser do cristianismo. 

Dentro desse processo, podemos citar dois pensadores, que por destacarem o papel da história na construção do cristianismo marcaram a modernidade da filosofia cristã. São eles Albrecht Ritschl (1822-1889) e Ernst Troeltsch (1865-1923). E a partir deles, já no século vinte, Jürgen Moltmann e Wolfhart Pannenberg. Em caminho distinto, mas fundamental para a pesquisa, estão Friedrich Schleiermacher (1768-1834) e Sören Kierkegaard (1813-1855), por destacarem a questão afetiva e existencial na construção da fé. No campo da moderna filosofia batista, dois nomes, por suas expressões práticas na compreensão das questões histórico/sociais e afetivo/existenciais, devem ser citados, Walter Rauschenbush (1861-1918) e Martin Luther King Jr. (1929-1968). 

Fath nos fala da influência do pensamento de Rauschenbush nas comunidades de fé batistas francesas. Segundo ele, estas comunidades, o segundo maior grupo do protestantismo depois da Igreja Reformada, tiveram uma ampla influência sobre o pensamento social cristão francês. E cita exemplos como o do semanário “Solidariedade Social”, dirigido nos anos 1920 e 1930 por Philemon Vincent e Robert Farelly, assim como as iniciativas de Paul Passy, da Universidade de Paris.

“Toda esta atividade permitiu aos batistas franceses imprimir uma marca discreta na vida nacional. Muitos batistas, especialmente na Federação Protestante francesa, estiveram envolvidos nas dificuldades sociais do país e prejudicados pela Primeira Guerra Mundial e pela crise econômica de 1930. Alguns deles, Robert Farelly, Henri Vincent, foram influenciados diretamente por Walter Rauschenbusch, pai do Evangelho social, durante seus estudos no seminário de Rochester, antes da Primeira Guerra Mundial. Como Rauschenbusch e alguns protestantes franceses, Charles Gide, Elie Gounelle, Tommy Fallot, lutaram pelo socialismo cristão. Sua aproximação ao socialismo foi definida por Ernst Troeltsch em seu Soziallehren como uma rejeição da atitude pietista de retirada do mundo”.

E Troeltsch, também citado por Fath, afirma que o movimento dos batistas sociais foi um esforço protestante de volta às características familiares da tendência cristã primitiva. Estas características foram marcadas pela opinião de que as comunidades de fé deveriam promover o Reino de Deus na terra.

Outro teólogo, alemão, Paul Tillich, também fez parte dessa leitura na contramão das dogmáticas oficiais, sem descartar as suas riquezas teológicas. Foi socialista na sua fase alemã. Mas aqui vamos destacar os dois primeiros citados, Ritschl e Troeltsch, por apresentarem as bases para a discussão da questão histórica em relação às teologias da revelação e do Reino de Deus.

Ritschl foi um estudioso do Novo Testamento, da história do cristianismo e da dogmática, em especial de Lutero. Seu argumento de fundo contra os teólogos ortodoxos era de que confundiram a teologia cristã com a metafísica. Rejeitou tanto a base platônica de Agostinho, como as pressuposições aristotélicas de Tomás de Aquino. Por considerar que a ortodoxia protestante tinha abandonado os fundamentos da Reforma e restaurado a metafísica, construiu uma filosofia cristã sem a metafísica. Levantou-se também contra misticismo cristão que, segundo ele, naquele momento se expressava como pietismo. 

Para Ritschl, a religião é fruto da necessidade social que o ser humano tem de Deus. E foi a partir de seu interesse científico pela história que construiu seu pensamento filosófico. Entre 1870 e 1874, publicou sua principal obra, em três volumes: A doutrina cristã da justificação e reconciliação.

“Em toda a religião o que se busca, com a ajuda do poder espiritual sobre-humano ao qual o homem rende culto, é uma solução da condição na qual o homem se encontra por ser por um lado parte da natureza e por outro uma personalidade espiritual que pretende dominar a natureza”.

Assim, a partir de Ritschl há uma concentração da filosofia cristã na pesquisa histórica, o que será importante para o próprio desenvolvimento do conhecimento dos textos escriturísticos. Ou como afirma Mackintosh:

“Devemos concluir, portanto, que Ritschl apenas começara a lutar com o problema sumamente difícil – e especificamente cristão – da revelação e da história em suas relações mútuas. É o problema que mais preocupa a teologia contemporânea”.

Tais pesquisas levaram a constatação de que havia uma religião construída sobre um Jesus ideológico e uma religião de Jesus, que teria como base seu ideal ético, que remetia à questão do Reino de Deus. Este seria o cerne da mensagem cristã, mensagem ética e de vivência do amor. Mas, a dificuldade de Ritschl em ver as reivindicações da justiça como universais, cobrou um preço à política e à teologia em termos da própria integridade da igreja. Talvez este tenha sido seu erro maior, ao contrapor poder sem amor e amor sem poder. Fazendo assim, contrastou o Deus de poder do Antigo Testamento ao Deus de amor do Novo Testamento e no processo descartou o conceito do julgamento de Deus e retribuição. De todas as maneiras, seu aporte à construção de uma filosofia do Reino de Deus foi relevante. 

Ernst Peter Wilhelm Troeltsch seguiu seu mestre, Ritschl, mas podemos dizer que foi mais longe. Trabalhou com um grupo de pesquisa que ficou conhecido como Escola da História das Religiões. Estudou os textos escriturísticos a partir do contexto histórico da época em que foram escritos e não apenas de uma perspectiva dogmática. O cristianismo passava assim, para Troeltsch, a ser uma religiosidade e para compreendê-la era necessário empregar o método histórico.

Em 1897, em Freiburg, fez amizade com Max Weber (1864-1920) e entrou para o seu círculo de amigos e pesquisadores. E as famílias de Troeltsch e Weber tornaram-se tão íntimas, que dividiram a mesma casa. Em 1906, Troeltsch escreveu seu primeiro ensaio histórico, que foi transformado em livro: O significado do protestantismo para a formação do mundo moderno. Nele trabalhou os conceitos de seita e igreja. Disse que as seitas eram grupos informais na organização, igualitários na estrutura e heterodoxos nas crenças. Disse ainda que as seitas tinham tendência a se converterem em igrejas, com suas próprias ortodoxias que, por sua vez, seriam substituídas por novas seitas. Já as igrejas eram organizações conservadoras, adaptadas à estrutura do poder secular. Essas classificações continuaram a ser trabalhadas por Max Weber e Reinhold Niebuhr (1892/1971). 

Assim, através de uma leitura evangélico-social, com fundamentação na análise histórica, Troeltsch pensou os problemas sociais de sua época. E como resultado escreveu As doutrinas sociais das igrejas e grupos cristãos (1912), uma pesquisa de mais de mil páginas em que construiu sua teoria das relações entre o pensamento religioso e o meio político-social. Neste trabalho dialogou criticamente com o marxismo, mas admitiu que Marx colocara uma questão fundamental: será que a formação e dinâmica histórica do cristianismo não fora sociologicamente determinada? Em 1992, escreveu O historismo e seus problemas, onde propôs uma concepção histórica das coisas humanas. 

Para a pesquisa e a construção de uma filosofia hermenêutica que possibilite a compreensão do Reino de Deus e suas correlações com as brasilidades, os filósofos que estamos vendo têm marcada importância. Em especial Troeltsch que trabalhou a relação entre cristianismo e cultura, revelação e história, liberdade e condicionamentos sociais. Para ele, toda produção humana estava submetida ao condicionamento histórico. Nada é atemporal. Tais leituras, aplicadas à filosofia cristã levam a questionamentos de valores. Um deles é que o cristianismo não poderia manter a reivindicação de única universalidade, pois as culturas são a origem das religiões. O cristianismo seria, então, nos dois últimos milênios de paixão, o rosto de Deus na cultura ocidental. 

“Esta experiência é sem dúvida alguma a medida de sua validez, porém, não se esqueça, apenas de sua validez para nós. É o rosto de Deus tal como se revela a nós; é o modo como, sendo como somos, recebemos e reagimos à revelação de Deus. É válida para nós e nos redime. É final e incondicional para nós, visto que não temos outra coisa... Todavia, isso não exclui a possibilidade de que outros grupos raciais, que vivam sob condições culturais totalmente diferentes, possam experimentar seu contato com a vida divina de um modo distinto”.

Por isso, é necessário, para Troeltsch, refazer a pergunta sobre o significado do cristianismo. A filosofia cristã deveria examinar as instâncias levantadas sobre a pretensão do cristianismo à verdade no campo das ciências e da história natural. E buscar uma compreensão do problema referente à essência do cristianismo, à sua posição na história das religiões e o seu lugar na própria existência humana. 

Comentando Troeltsch, meu amigo Mendonça, já falecido, afirmava que o protestantismo de hoje não é mais o de Lutero e Calvino, pois a cultura eclesiástica medieval deu lugar à moderna cultura européia/ americana, conforme conceito utilizado por Troeltsch. O novo protestantismo perdera de vista a idéia de uma total cultura eclesiástica e

“reconheceu como se fossem princípios genuinamente protestantes o fenômeno da crítica histórico-filosófica, a formação de comunidades eclesiásticas livres do estado e a doutrina da revelação baseada na iluminação e convicção pessoal íntima. O velho protestantismo condenava tudo isto como naturalismo, fanatismo ou entusiasmo sectarista”.

As rupturas com a metafísica da ortodoxia protestante, aliadas ao processo de secularização do mundo ocidental, consolidaram a leitura social do cristianismo, que confrontava a fé com o seu ambiente social, econômico e político. Esse cristianismo procurou compreender os desafios da contemporaneidade, e propôs o combate pela realização do Reino de Deus, a reflexão filosófica cristã voltada às questões sociais e a luta contra as injustiças. Assim, quando se fala de Reino de Deus fala-se de leituras filosóficas que procuram analisar a influência do meio social sobre o universo religioso e a formação espiritual do ser humano. E que consideram a espiritualidade afetivo/ existencial e a espiritualidade histórico/ social faces de um mesmo Reino de Deus. As filosofias do Reino de Deus inscrevem-se, dessa maneira, numa perspectiva de correlação e possibilitam uma reflexão que fornece instrumentos teóricos para alimentar as lutas contra a injustiça, para criar novas formas de relações existenciais e sociais e para dar dignidade às pessoas ali onde são excluídos e segregados.