mardi 29 novembre 2022

La teologia dell'essere umano ...

Come viene elaborata la relazione tra significato e significante, sia nel caso isolato di
interazione tra esseri umani e realtà, sia nel caso dell'intero processo di costruzione
di testi antichi? Se dentro la conoscenza della costruzione del testo c'è l'essere umano
un essere significativo possiamo allora vedere che la scala di valori del sistema etico,
offerto da questa costruzione alla comunità, diventa parte integrante del significato
dato al mondo dalla costruzione stessa. Pertanto, all'interno di un'interazione
significante/significato ci sono elementi dinamici di trasformazione. l'universo è
mondo dell'essere umano, in cui costruisce il suo habitat. Attraverso il significato dato
dall'essere umano alla natura, nell'accezione d'uso che la presta,
agisce su di essa producendo cultura e trasformazione.
La costruzione dei testi antichi, come relazione tra significante e significato, lo è
dialettica. Perché se rende significative la persona e la comunità, le consente entrambe
trasferendo al mondo che li circonda la cosmovisione che utilizza questo stesso significato.
Rendendo significativa la sua realtà, l'essere umano dà luogo a trasformazioni,
genera cause e comincia a costruire il futuro, non più come sogno, ma come
realtà. Per rendere possibili tali trasformazioni, è necessario trasferire, mentre
comunità, nuovi significati ai processi storici e sociali. attraverso la relazione
stabilite tra significante e significato troveremo le cause delle connotazioni.
Uno degli esempi di questo processo si trova nel libro delle Origini, quando il
la divinità comanda la circoncisione del clan di Abramo. La circoncisione, precedentemente una consuetudine
presente in alcune tribù della Palestina, ha la connotazione di alleanza. E la circoncisione,
come alleanza, diventa il segno di una comunità speciale e separata, lo è
comandamento dell'Eterno. Ma questo accade solo storicamente, quando le persone e
comunità vivere una tale ordinanza. È, quindi, che la circoncisione fa ogni uomo
ebraico significativo di questa costruzione, dando significato culturale, storico e teologico
all'atto di tagliare il prepuzio.
In questo senso, la rivelazione traduce il processo di costruzione degli antichi testi ebraico-cristiani, come spiegato sopra, e, pertanto, in questo lavoro diamo la dovuta importanza a
alla linguistica e all'antropologia, per costruire una teologia dell'essere umano,
mentre imago Dei. Pertanto, consideriamo che quando smettiamo di posizionare il file
sfide di Cristo, l'umano e l'interpretazione in dialogo con l'imago Dei
comprendiamo le questioni fondamentali sul destino umano in modo frammentato. Per
così, così definiamo il nostro cammino nella costruzione di questa teologia dell'essere umano,
costruito con tre momenti: quello metodologico, la lettura dei testi antichi e il
contestuale-contemporaneo, quando la teologia dell'essere umano invade le nostre vite, come
sfida dell'azione e della trasformazione.
Pertanto, vogliamo che il lettore comprenda questo processo di costruzione dei testi
tempi antichi, come una sfida etica, e può camminare in questa teologia dell'essere umano, che
sfide all'azione e alla trasformazione.

A teologia do ser humano: uma introdução necessária

Como se processa a relação entre significado e significante quer no caso isolado da
interação entre ser humano e realidade, quer no caso de todo o processo da construção
dos textos antigos? Se dentro do conhecimento da construção do texto o ser humano é
um ser significante podemos, então, ver que a escala de valores do sistema ético,
oferecido por esta construção à comunidade, torna-se parte integrante do significado
dado ao mundo pela própria construção. Portanto, dentro de uma interação
significante/significado existem elementos dinâmicos de transformação. O universo é o
mundo do ser humano, em que ele constrói seu habitat. Através do significado dado
pelo ser humano à natureza, dentro de um significado de utilização que lhe empresta,
ele atua sobre ela produzindo cultura e transformação.
A construção dos textos antigos, enquanto relação entre significante e significado é
dialética. Pois se ela faz da pessoa e da comunidade ser significante, permite a ambas
transferir ao mundo que as cercam a cosmovisão que utiliza essa mesma significação.
Ao fazer significante a sua realidade, o ser humano dá origem a transformações,
engendra causas e passa à construção do futuro, já não como sonho, mas como
realidade. Para viabilizar tais transformações é necessário que transfira, enquanto
comunidade, novos significados aos processos históricos e sociais. Através da relação
estabelecida entre significante e significado encontraremos as causas de conotações.
Um dos exemplos desse processo encontramos no livro das Origens, quando a
divindade ordena a circuncisão do clã de Abraão. A circuncisão, antes um costume
presente em algumas tribos da Palestina, recebe a conotação de aliança. E a circuncisão,
enquanto aliança, passa a ser marca de uma comunidade especial, separada, é
mandamento do Eterno. Mas isso só acontece historicamente, quando pessoas e
comunidade vivem tal ordenança. É, então, que a circuncisão faz de cada homem
hebreu significante dessa construção, dando significado cultural, histórico e teológico
ao ato de corte do prepúcio.
Nesse sentido, revelação traduz o processo de construção dos textos antigos judaico￾cristãos, conforme exposto acima, e, por isso neste trabalho damos a devida importância
à linguística e à antropologia, para podemos construir uma teologia do ser humano,
enquanto imago Dei. Por isso, consideramos que quando deixamos de colocar os
desafios do Cristo, do humano e da interpretação em diálogo com a imago Dei
compreendemos de forma fraturada questões fundantes quanto ao destino humano. Por
isso, assim definimos nosso caminhar na construção dessa teologia do ser humano,
construída com três momentos: o metodológico, o da leitura dos textos antigos, e o
contextual-contemporâneo, quando a teologia do ser humano invade nossa vida, como
desafio de ação e transformação.
Assim, desejamos que o leitor compreenda este processo de construção dos textos
antigos, enquanto desafio ético, e possa caminhar nesta teologia do ser humano, que
desafia à ação e transformação.

jeudi 24 novembre 2022

Novela de memórias

Jorge Pinheiro 



NOVELA DE MEMÓRIAS



Já que (...) não posso infundir a fé no coração de ninguém, não posso, nem devo obrigar ou coagir ninguém a isso, pois Deus opera isso sozinho e vem habitar anteriormente no coração. Por isso, se deve deixar a palavra livre e não querer juntar nossa obra a ela: nós certamente temos o ius verbi, mas não a executionem. Cabe-nos pregar a palavra, mas as conseqüências pertencem unicamente ao agrado de Deus”. 

Lutero, reformador do século XVI. 







Introdução 


Capítulo 1 – Indo... 


Capítulo 2 – Um sonho pesado 


Capítulo 3 – Memórias em fuga 


Capítulo 4 – Bombero loco, loco, loco... 


Capítulo 5 – A verdade 


Capítulo 6 - O mundo de Nebo 


Capítulo 7 – O bailarino 


Capítulo 8 – A taverna 


Capítulo 9 - Anabella 


Capítulo 10 – A revelação 


Capítulo 11 – Comando León Trotsky 


Capítulo 12 – Justiça e graça 


Capítulo 13 - O ódio de Astarote 


Capítulo 14 – A vida 


Capítulo 15 – Ahumada com Huérfanos 


Capítulo 16 – A Deus, as armas... 


O autor e sua obra 




Introdução 



A memória é afetiva e seletiva. Na verdade, ela vai apresentando os fatos vividos a partir de um processo muito peculiar: dá primeiro as dores maiores, os momentos, onde vivemos situações-limite. Mas não pára aí. A memória sempre faz uma leitura épica, onde, por pior que tenha sido o momento, nos coloca como heróis. 


É por isso que os velhos são bons contadores de história e são olhados pelos netos como cavaleiros andantes de um tempo mítico. 


Mas nem por isso a memória deixa de ser história. Principalmente quando ela discorre sobre acontecimentos sociais amplamente conhecidos. E quando isso acontece, ambas se complementam e se enriquecem. A memória, ao apoiar-se nos fatos, deixa de ser o relato de algo particular, vive um processo indutivo, que lhe dá grandeza. E a história, inversamente, ao recorrer à memória traz emoção e vida ao fato documental. 


Mas nossas memórias não se entrecruzam apenas com fatos sociais, nossos pesadelos, assim como nossos sonhos, transportam nossas memórias a um mundo mágico, um mundo onde o imaginário, às vezes, é tão real quanto à história vivida. 


Nessas primeiras memórias apresento ao leitor, minha dor maior, meu primeiro exílio e a caminhada em direção ao paredón. Esses acontecimentos pertencem à história recente do Brasil e da América Latina. Muita gente viveu dores semelhantes e por isso fazem parte dessa história. Alguns estiveram ao meu lado e exerceram uma profunda influência em minha vida. Outros foram passantes.


Aqueles que já morreram e, por isso, mais do que nunca são personagens de nossa história latino-americana, aparecem aqui com seus nomes verdadeiros. Os que ainda estão vivos, construindo histórias, deixo que a memória os trate como imagens e por isso aparecem com pseudônimos.


Não há nesta atitude da memória nenhuma intenção de esconder a verdade, mas, ao contrário, o reconhecimento de que ainda não são histórias acabadas. Nesse sentido, a memória segue a tradição de muitas tribos indígenas brasileiras, onde os nomes mudam conforme o índio cresce. O nome definitivo não traduzirá a fugacidade do momento, mas será a marca de uma vida.


Quanto aos pesadelos, estão todos presentes. É o inconsciente revelando sua visão do mundo vivido pelo escritor. É difícil dizer qual é maior: o pesadelo ou a realidade da dor. Ambos são terríveis e por isso se complementam. E fica mais fácil entender um, no debruçar-se sobre o outro. É, inclusive, difícil dizer qual vem primeiro, já que o pesadelo pode ser sentido como futuro que se faz presente. E aqui ambos, pesadelo e dor, se fazem texto, esquizofrênico, estilhaçado, em pedaços, como a minha alma.


Ou como cantou Chico: 


“Oh, pedaço de mim, 

oh, metade adorada de mim,

leva os olhos meus, 

que a saudade é o pior castigo 

e eu não quero levar comigo 

a mortalha do amor”. 


E, assim, tudo chega através da memória, que afetivamente vai selecionando o que lhe parece mais verdadeiro, a fim de construir o mundo mítico de nosso heroísmo fugaz. 

Jorge Pinheiro 



Capítulo 1



Pálido, cor de cera



Rebeca tirou o pé do acelerador. O carro deslizou de lado e bateu forte no barranco. Por alguns momentos, nenhum de nós entendeu o que estava acontecendo. Filemón estava com o rosto sangrando, o corpo amolecido pelo impacto. No banco de trás, Yasmin e eunos recuperamos rápido do susto e saltamos do carro. Juntos, os três, agarramos Filemón pelos braços e o puxamos para fora. Estava pálido demais, cor de cera, a não ser pelo vermelho que continuava a lhe escorrer pela cara. 


- Está morto, disse Rebeca. 


- Não, não está, respondeu Yasmin. 


E cada uma olhou para a outra, numa disputa de olhares que todo mundo conhecia muito bem. Elas se odiavam e nunca perdiam a oportunidade de demonstrar isso. Absurdo, essas duas vão começar a brigar aqui, quem sabe vão se engalfinhar, se morder, xingar a mãe, sei lá, enquanto o Filemón se esvai em sangue. 


- Ele está com a cabeça machucada. Se for alguma coisa muito grave, a gente só vai saber depois. Não dá para chamar o médico, agora, falou Rebeca. 


As duas olharam para mim como se estivessem diante de um extraterrestre. Pegamos uma estopa velha e suja de óleo, a única que havia na hora, limpamos a cabeça de Filemón e fizemos uma bandagem com uns trapos que estavam jogados no fundo do carro, um Dolphine que era pau pra toda obra. 


Encostamos o rapaz no barranco e, então, voltamos ao mundo real. Eram duas e trinta da madrugada. Ali estávamos quatro militantes do Movimento Nacionalista Revolucionário com um carro cheio de armas, tombado junto a um barranco da Rua Almirante Alexandrino, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. 


Na verdade, eu tinha avisado a Rebeca que tomasse cuidado porque esses trilhos escorregavam. Cuidado com essa curva perto do hospital alemão, cuidado. Mas, quem disse que Rebeca escutava. Ela sempre se considerava uma Mata Hari. Só não usava piteira. Mas será mesmo que Mata Hari usava piteira ou isso era mais uma criação de Hollywood? 


- Estamos perto de casa. Uns cinqüenta metros. O problema é se passa alguém. Voltou a falar Rebeca. 


Recomposta da ira inoportuna, Yasmin ajeitou a blusa e a mini-saia, que tinha subido até o alto da coxa. Ela sempre combinava a cor da mini-saia com a cor da calcinha. E para ser verdadeiro, as mini de Yasmin eram micros. Tinha uma dúzia delas. Sacudiu a cabeça, passou a mão pelo cabelo, como se, de repente, estivesse acordando para a vida. 


- Vamos à luta, antes que alguém nos veja. 


E mais uma vez os três voltamos a trabalhar juntos. Destombamos o carro, abracei Filemón o melhor que pude, agarrando-o como se fosse um bêbado e o arrastei até o prédio. As duas mulheres, cheias de pacotes, tentavam andar rápido na minha frente. Não corriam. As metralhadoras, mesmo desmontadas, formavam volumes pesados. Era só o que faltava, sermos presos agora, depois de uma viagem tão longa. 


Eu sabia que este era um trabalho de formiga. Cansativo, suado e longo. A medida era a história. Sorte nossa que a história marchava a nosso favor. Rua Almirante Alexandrino, 1190 apto. 202S. Um apartamento de dois quartos e sala ampla, com rede, o grande charme da casa, uma estante de tijolos, com os cinqüenta livros mais lidos por nós revolucionários. Desde o pequeno Régis Debray até O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx. Sem dúvida, uma biblioteca pequena, uns cem livros ao todo, mas que carinho tenho por eles ! 


Deitei Filemón na rede. Ele gemeu. A testa e a cara dele estavam roxas. É, não é desta vez que ele vai empacotar. Que bom. Se ele morresse agora ia ser um deus nos sacuda. 


Yasmin passou de calcinha em direção à cozinha. Calcinha e camiseta cavada. Ela sempre gostava de andar assim, por isso detestava visita. Os pacotes estavam arrumadinhos ao lado do oratório barroco que eu trouxera de Congonhas do Campo. Metralhadoras e barroco mineiro. Eis ali um bom símbolo para a revolução brasileira. O futuro encontraria suas bases no sonho do Aleijadinho. Que loucura, um escultor de mãos podres. Se ao menos fosse poeta, poderia ditar os seus sonhos, em invés dede cinzelá-los em pedra, sabão não há dúvida, mas pedra é pedra. 


Rebeca era gente fina. De Recife, mas criada no Rio. Antes de ser aeromoça, estagiara no Caderno B do Jornal do Brasil. Andava empinadinha, olhava de cima, falava professoralmente e queria casar com um escritor famoso. Não ia dormir em casa, mas essa hora não ia encontrar táxi, nem bonde. Ônibus muito menos. 


- Onde eu durmo? No dos hóspedes? Perguntou Rebeca. 


- Não quer comer alguma coisa antes? Tem salada de batata com maionese na geladeira, cerveja e uma torta de maçã da Colombo. Vem também, Yasmin, levanta dessa cama e vamos fazer um lanche porque o dia foi duro. 


- Torta eu quero. Salada não. É muito pesado a essa hora, disse Rebeca, encaminhando-se para a cozinha. 


E Yasmin, toda alegre, veio cantarolando Noel. "Quando o apito, da fábrica de tecidos..." Ela tinha o maior orgulho de sua origem proletária. A bisavó era escrava e de tão pobre, quando recebeu alforria, vendeu um dos filhos como grumete para um navio de bandeira chinesa. Sempre que contava essa estória caía na gargalhada e dizia que devia ter uma porção de tios na China. O pai era sapateiro. Morreu tuberculoso. 


E a mãe... Ah! a mãe! Ninguém em todo o Rio de Janeiro fazia uma feijoada como ela. Quando Yasmin cantava Noel, tinha a nítida impressão que ele tinha nascido na Penha. É como se ela estivesse falando de um conhecido, de um desses vizinhos que freqüentava o mesmo bar e dividia com a gente um sambinha que tinha acabado de sair do forno. Eu gostava de Yasmin. Tinha um gênio danado. Era desconfiada, briguenta e sarcástica. É, esta é a palavra exata para defini-la: sarcástica. Desprezava solenemente ricos e intelectuais. 


Não sei porque estava comigo. Éramos antípodas. Claro que não era rico, fiquei apenas com os defeitos de quem foi criado como se fosse. Intelectual? Era, mas isso só produzia grandes brigas com Yasmin. Achava Glauber, o protestante, um gênio. Já tinha trocado umas idéias com ele no Paissandu e gostava mesmo dos filmes dele. Yasmin dizia que um governo de trabalhadores não ia gastar um tostão com um cara que fazia filmes que ninguém entendia. E ía por aí. 


Guimarães Rosa, dizia Yasmin, a vermelha, é um católico reacionário, e Nélson Rodrigues, machista. Mas gostava do Tenório. E quando ela gostava, ela ria. Na verdade, gargalhava. Dava o maior tesão, quando vejo Yasmin rindo. Os olhos dela se fechavam, mostrava os dentes super brancos. E o corpo todo ria junto. Quem estivesse perto ficava eletricamente contagiado. Era uma alegria carioca, de subúrbio, que rimava com samba, cerveja gelada, empadinha da Praça Quinze e gol do Flamengo. 


- Antenor, larga o Filemón aí nessa rede e vem comer. Afinal foi você quem deu a idéia.


Antenor era o meu nome político. Quem tinha me dado fora o poeta. Era um visionário, mas desses que o país precisa. Sabia combinar política e sonho. É amigo do Fidel, mas também do Negrão de Lima. Às vezes, ficava pensando de quem ele não é amigo? Conhece todo mundo. Até a queda de Jango freqüentava todas as altas rodas, e dormia em lençóis de linho, com a fina flor da aristocracia, como ele mesmo dizia. Agora, clandestino, mas elegante, ele vinha aqui para casa, deitava na rede da sala, folhiava a minha trilogia do camarada Mao Tsétung, em francês, e contava suas estórias. Tem um sotaque forte de homem do Amazonas. Era um herói. 


Aliás, com ele tivera um diálogo inesquecível sobre nossa organização e nossas células. E para falar dos nossos sonhos, ele começou assim: 


- Nós aprendemos com os cristãos, Antenor. Na verdade, mais do que aprender com os cristãos, somos filhos. Filhos rebelados, é verdade. Vou contar um pouco da história para você, embora saiba que faz PUC aqui no Rio e conhece teologia e história. O socialismo surgiu com os anabatistas, no início do século dezesseis. Eles foram cristãos que se levantaram contra a dominação dos príncipes alemães e do poder eclesiástico. Eles tomaram ao pé da letra uma frase de Marcos, apóstolo: quem crer e for batizado será salvo. A partir dessa afirmação, deduziram que quem não crê de nada serviu o batismo quando criança. Então, negaram todo valor ao batismo infantil, afirmando que esse sacramento deveria ser recebido quando a pessoa tivesse plena consciência do que estava a fazer. E aqueles que tinham sido batizados antes da idade da razão deveriam ser batizados de novo. Pregavam isso, rebatizavam pessoas e começaram a crescer. Mas, o crescimento dos anabatistas na Alemanha e na Europa central se tornou um problema para as autoridades eclesiásticas, porque diziam para as pessoas não batizarem seus filhos. Logicamente, o poder eclesiástico, fosse católico ou reformado, se colocou em oposição direta a essa idéia, e como o poder eclesiástico estava intimamente ligado aos príncipes feudais na Alemanha e também na Europa central, as forças do feudalismo se lançaram ao extermínio dos anabatistas. 


Tiago ainda dizia: 


- Nessa conjuntura de choque, em Zurique, em meio ao pessoal que seguia o reformador Zwinglio, surgiu um grupo de anabatistas que rejeitou o poder eclesiástico exigindo a autonomia dos novos agrupamentos cristãos. Eles próprios passaram a escolher seus pastores e a construir comunidades separadas do estado. E ao redor da confissão de Schleitheim reagruparam várias comunidades. Essa confissão, que ficou conhecida como as teses de Schaffhouse, é a primeira formulação da teologia anabatista, e dizia que (1) o batismo estava reservado aqueles que aceitavam a fé, aos adultos seguros da redenção, que desejavam viver fielmente a mensagem do Cristo; que (2) a ceia do Senhor não era simbólica, era uma cerimônia de lembrança feita com pão e vinho, mas nela não havia nem consubstanciação, nem transubstanciação; que (3) o pastor devia ser eleito livremente pela comunidade e não estava investido do sacerdócio, que (4) estavam excluídos da ceia do Senhor todos os fiéis que tivessem cometido erros ou pecados; que (5) a separação do mundo devia ser total, tanto eclesiástica como civil e que era necessário separar-se de todas as instituições que não viviam o Evangelho; que (6) um anabatista não podia exercer funções civis ou servir às forças militares do mundo; e que (7) jamais deviam fazer juramento. 


Mas, sem dúvida, quem mais nos interessa nessa abordagem socialista da revolução camponesa é o pastor luterano Thomas Müntzer. Em 1521, ele liderou um grupo de anabatistas que se somaram aos camponeses sublevados ao redor da reivindicação de terra e liberdade. Müntzer criou assim, pela primeira vez na história um movimento de libertação camponês anabatista. 


Müntzer não foi apenas um teólogo, mas um militante que praticava sua fé. Acreditava ser um profeta de Deus, chamado para implantar o Reino de Deus. Seu dever era denunciar e executar as sentenças contra os governantes que exploravam o povo. Suas pregações estavam impregnadas de conteúdo social e político: o fim da velha Igreja deveria marcar o início de uma nova ordem social. 


Continuava Tiago: 


- Engels, colaborador de Marx, disse que nas guerras camponesas lideradas pelos anabatistas se travaram lutas de classe. E apesar de terem uma cara religiosa, suas reivindicações iam além da expressão religiosa que apresentavam. Para Engels, a política de Müntzer nasceu de seu pensamento revolucionário, que caminhava adiante da situação social e política de sua época da mesma maneira que sua teologia. Seu programa exigia o estabelecimento imediato do Reino de Deus, com o milênio de felicidade, anunciado como retorno da Igreja à sua origem, com a supressão de todas as instituições que estavam na contramão do mandamento de Cristo. 


Para Müntzer, o céu estava aqui no chão. E por isso o militante cristão deveria construí-lo na vida. A esse militante cabia a missão de estabelecer o Reino de Deus sobre a terra. Assim, depois da morte não haveria céu, nem inferno. Da mesma maneira, não existia diabo, mas a cobiça dos senhores feudais. Seus sermões se mesclavam ao clamor político, que deveria instaurar uma ordem social. Assim, a partir de Müntzer, os anabatistas fizeram dos sermões proféticos, elaborados a partir da realidade social em que estavam inseridos, manifestos revolucionários, cujas propostas atemorizavam príncipes e governantes eclesiásticos em toda a Europa. A compreensão que os anabatistas tiveram através do cristianismo da condição social em que se encontravam os camponeses e excluídos, sem dúvida, quebra o estereótipo da fé como fator de alienação social e política. E nós estamos, aos poucos, entendendo isso. 


Tiago ainda dizia: 


- Mais tarde, em combate, seu exército foi derrotado e ele foi preso e executado. Mas a guerra camponesa na Alemanha se estendeu até 1525, quando os anabatistas revolucionários foram afogados em sangue. 


O sonho anabatista, porém, não morreu aí, subsistiu no coração de muitos. Sete anos depois da morte de Thomas Müntzer, em 1532, uma insurreição tomou conta da cidade de Müntzer. Ela foi iniciada por um ex-padre da Catedral de Müntzer, que se tornou luterano, Bernard Rothmann. Mas este foi expulso da cidade e na seqüência, em 1534, o pastor anabatista Jan Matthys, junto com outros líderes, entre os quais Jan van Leiden e Gert Tom Kloster, declarou a cidade livre do domínio dos príncipes e do poder eclesiástico. 


Matthys iniciou uma revolução social: os proprietários de terras foram expropriados e suas terras e bens distribuídos entre os camponeses. Dando seqüência à revolução, ele e um grupo de anabatistas atacaram a guarnição liderada pelo príncipe Franz von Waldeck, que era também bispo de Münster e chefe do exército. No confronto Matthys foi morto. Foi, então, sucedido por Jan van Leiden. Após um ano de resistência, Waldeck liderou um exército bem equipado e assaltou a cidade. Jan van Leiden e seus oficiais foram torturados e executados. Os combatentes anabatistas foram lançados às prisões e, posteriormente, deportados para outras regiões da Alemanha e Suíça. 


A partir desse momento, expliou Tiago, as pequenas comunidades anabatistas, que reuniam crentes conscientes de sua fé, passaram a viver umas isoladas das outras, de forma clandestina. Seus líderes eram leigos que pregavam em roupas civis. Adotavam uma disciplina e uma ética rígidas a fim de sobreviverem na clandestinidade. Essas pequenas igrejas se refugiaram no interior da Europa e se estruturaram de forma autônoma. Cada igreja vivia do compromisso de cada crente. 


Essa é a nossa origem histórica, Antenor. Se a Reforma protestante está ligada ao capitalismo que surgia, as comunidades anabatistas, revolucionárias, apontavam o caminho do socialismo. E como elas, cada uma das nossas células tem autonomia e vive do compromisso voluntário e consciente de nossos militantes. E como elas, sonhamos com a liberdade, a justiça e a paz. Talvez, por isso, em nossos corações ainda pulse a força da utopia, como a dos evangélicos revolucionários, que afirmavam ter Deus falado no passado, mas que ainda fala hoje: fala nos corações. A partir de Thomas Müntzer, podemos dizer que os ideais de liberdade, justiça e paz repousam no coração daqueles que, explorados e perseguidos, têm consciência de sua situação. 


Fiquei boquiaberto com a exposição do poeta. E fiz, então, uma pequena declaração de minha fé socialista. 


- Tenho plena consciência do caráter permanente e universal da revolução, já que está ligada à própria vida. E creio que os movimentos libertários da história humana traduzem esse anseio inerente à alma humana. Por isso, como disse um camarada, o Conde de Monções, "cada revolução fala a língua da sua época, radicalizada. É natural que os anabatistas e tantos outros nos séculos pré e peri-renascentistas adotassem a da face mais humana da religião. Mas, no fundo, é sempre a mesma velha toupeira que cava os seus túneis sob os palácios do poder. Nós todos vamos chegar à luz um dia. E vamos refazer a história, dando razão aos anabatistas, tirando Espártaco da cruz, trazendo à Terra o nosso reino".


Continuei dizendo:


Essa é a força do reino: é utopia humana que baliza sonhos e esperanças, em tempos e lugares diferentes. Por isso, amigo poeta, também resgato o pensamento libertário das comunidades cristãs anticlericais que pontuaram a Idade Média e que culminaram com o messianismo revolucionário anabatista de Thomas Müntzer, que, como você disse, propôs uma revolução social, sem a qual não poderia haver revolução cristã, já que para ele o Reino de Deus estava presente no cotidiano. Ele quis instaurar a dignidade de homens e mulheres, um Reino de Deus no aqui e agora. É esse caminho que me permite dialogar fraternalmente com as comunidades cristãs. Na verdade, esse socialismo em construção permanente não estabelece doutrinas e dogmas, mas contextualiza as reflexões e práticas cristãs e revolucionárias. Concordo com você, caro poeta, por isso nado pela orla da Reforma protestante, mergulho na ação revolucionária dos cristãos anabatistas e chego a Marx a braçadas. E, agora, cá estou eu, um socialista em diálogo com este mundo sempre desafiador. Valeu poeta, valeu mesmo.


- Rebeca, você sabia que salada de maionese é a especialidade de Yasmin? 


- Diz logo que aprendi faz um ano. Imagina, com minha mãe em casa quem se atrevia a entrar na cozinha. Faz um ano que Antenor está comendo salada de maionese. Sorte que ele gosta. 


- Vocês não acham que seria bom colocar uma compressa quente na testa do Filemón? E dar um chá de camomila com uma aspirina para ele? O companheiro vai despertar com uma dor de cabeça do cão. 


- Boa idéia, Antenor. Mas enquanto eu fervo a água para o chá, me conta como é que você e Yasmin se conheceram. Se é que pode? 


- Que é isso, Rebeca? Mais do que você conhece a gente! Não há como quebrar a segurança. Você sabe o Sol, o jornal do Imperador e da Joana, lá no Jornal dos Sports? Bem, tudo começou ali. Yasmin estava no primeiro ano de jornalismo da Federal e eu na PUC. Soube na Manchete que iam lançar um jornal novo, e quando vi que só tinha cobra, resolvi fazer os testes. Coisa fina, melhor jornal não existia. Se tivesse só o Carpeaux já valeria a pena. Ele corrigia meus textos, com gagueira e tudo, dava dicas e comentava as coisas que escrevíamos. Um monstro. Tinha o Cony, que ensinou a moçada a cobrir polícia e vai por aí. E muita gente bonita. Aliás, como diz o Ajuricaba, que anda meio caído por você, era só dar uma volta pela arte, para se ficar apaixonado. E como arte lembra cartum, não dá para esquecer o Henfil. Pena que durou pouco. 


- Ajuricaba caído por mim? Se está, nunca falou. 


- Mas é lógico, ele é super tímido. Aliás, o Antenor morre de ciúmes dele, quando ele vem aqui em casa. É um tímido charmoso. 


- Tímido, charmoso, sonhador, poeta. Só falta ir para a Sorbonne pela Air France. 


- Deixa de indiretas. A Rebeca já disse que ele nunca a cantou, fica você aí falando em Air France e outras bobagens. Disse Yamin. 


- Espera ai, não quero comprar briga. Só acho que ele sonha com a Rebeca porque ela é aeromoça. Aliás, faz parte dos sonhos eróticos masculinos. Normalista, freira, aeromoça... afirmei.


- Deixa de machismo, Antenor, e conta logo como foi que você conheceu Yasmin. 


- É melhor deixar para outra hora. A água está fervendo e depois do chá do Filemón a gente tem que dormir, cortou sabiamente a companheira Yasmin. 


Filemón tomou o chá, com muito vagar e gemidos, fez cara feia na hora da aspirina e recostou a cabeça no travesseiro que Rebeca ajeitou com cuidado na rede. 


Rapaz corajoso era esse. Brizolista, gaúcho. O meu amigo guerrilheiro mais chegado. Fez Caparaó. Ele, Bayard, Amadeu e mais onze companheiros ficaram na serra durante 150 dias. Montaram acampamentos, esconderam uma tonelada de armamentos e víveres, mas foram cercados em março de 67 por seis mil homens da PM de Minas Gerais, do Exército e da FAB. Do grupo, sete eram militares punidos pela ditadura por serem leais ao governo de Jango, entre eles Filemón. Rebeldes, jovens. Cercados na altura de Manhuaçu. A guerrilha não estava implantada. A população das cidadezinhas da região nem sabia o que estava acontecendo. No dia 4 de abril de 1967, o Estado de S. Paulo noticiou: 


“Oito guerrilheiros que estavam acampados na serra de Caparaó (...) foram presos pelo 11o Batalhão de Infantaria da Polícia Militar de Minas Gerais. O grupo era formado de sete militares cassados e um civil”.


Prisão de segurança não segurava quem só tinha um objetivo, fugir. Ficava na prisão na prisão quem se acomodava, quem aceitava cumprir pena. Quem dormia e acordava preparando a fuga, fogia. E aqui estava o meu amigo, comandante Filemón, em minha casa, aparelho do Movimento Nacionalista Revolucionário, tonto de dor de cabeça, por causa da derrapada de uma aeromoça empinadinha, que não ouve a voz da experiência. As duas já tinham ido dormir. Fui me aninhar no regaço quente de Yasmin. Poetar não era meu forte. Vou mesmo agarrar aquela moça e tirar o maior ronco. No dia seguinte, cedo tinha que entrar em contato com o médico da organização, antes de ir para a Manchete. 


Lembrando de minha infância, esse pedaço da cidade tinha um charme especial. Gostava de mato. Aqueles sabiás, as mangueiras ali no fundo do prédio, lembravam a Santa Teresa dos anos 50. Tinha macumba num terreno baldio perto do nosso edifício. Todo sábado de manhã, ia lá recolher as moedinhas que colocavam para o santo, era a minha mina particular, nunca contei para ninguém, tinha guerra de barro molhado, depois da chuva, num pedaço de morro desabado, com direito a cabeça quebrada e muito choro, tinha enterro de gato vivo, estilingue, muita queimada e, sublime, pudim de chocolate de merenda na escola pública. 


Tinha meu pai, grande, gordo e bravo, me ensinando judô, torcendo pelo América, revisando no JB, apoiando os socialistas, fazendo campanha contra a palavra judiar, negando-se a ser candidato a vereador. Tinha minha mãe, pequenininha, delicada, que comprava as roupas do menino no Príncipe, lia romances franceses, se possível católicos, e tinham os dois, pelados, fazendo guerra de água na banheira, nas tardes dos finais de semana. 


Amynthas, cento e dez quilos de carinho. Li e reli, até decorar, uma carta que escreveu de Vitória, onde nasceu, para minha mãe em 1951. 


Marcaria com o companheiro Marcos, para que ele desse um pulinho ali na hora do almoço. Aí ele daria uma olhada no Filemón. O carro não tinha problema, o Artur da oficina passaria com o guincho em instantes. Praia do Russel. Nunca conseguia chegar antes das dez. Ainda bem que o Giudicelli sempre chegava depois. Também ele não dormia. Estava com uma matéria ótima, os doze homens de ouro. Eram os capi da polícia carioca. Gente da Scuderie Le Cocq, que garantia de pés juntos que não tinha nada a ver com o esquadrão da morte. Garantia de pés juntos, só não dizia de quem eram os pés. Trocadilho infame, mas iria usar no meu texto. Se o Ney tirasse, tudo bem. 


Carta Amynthas..(inserir imagem) 


Tentaria umas fotos de morro, tudo muito violento. Afinal, o gostoso da reportagem policial era o arrepio. Aliás, sempre dava uma dica para quem vai escrever sua primeira matéria policial: lesse X-9 antes. 


Tenho pesadelos, me enrosco numa dessas esculturas, aqui na entrada. A minha vingança era que a Manchetinha, a cadela do Adolfo Bloch, já tinha dado umas mijadas no pé daquela árvore. Aliás, aquela era a sina da escultura. Era uma arte exposta. Preferia escrever, porque o único jeito era queimar. E se não queimasse tudo, viraria fragmentos. Aí é o momento maior da glória, tese de doutorado em literatura, fragmentos da obra do escritor rebelde... 


- Ei, Luís, o fotógrafo e o motorista estão te esperando na frente do prédio. 


Puxa, que dia! Tinham levado Filemón para outra casa, onde pode ser mais bem cuidado. E também as armas. Mas à tarde, José Paulo me deu uma notícia terrível. Yasmin estava muito ferida. Tinha ido fazer uma reportagem, e o carro do jornal capotou na Avenida Brasil. Saí feito um louco. Na avenida, cruzei com o carro, que ainda estava com as rodas para cima e os vidros quebrados. Puxa, como é que ele (motorista da reportagem?)conseguiu isso? Será que vinha a 180 por hora? Entrei no hospital furioso, com um ódio da morte, das paredes brancas e do cheiro de éter. Detesto hospital. 


Agora, porém, estava dormindo. Sedada. Ali em casa, na nossa cama. Eles tinham medo que ela tivesse sofrido traumatismo craniano. Para minha felicidade, alarme falso. 


Dois acidentes com carros em menos de 24 horas. A bruxa estava solta. Coitada da Yasmin tinha uma resistência muito baixa à dor. Se doesse, um pouco que fosse, ela logo desmaiaria. Ah! Aquela casa ficava tão triste quando ela não estava cantando. Se estivesse boa, já estaria ali na rede me provocando. 


- Chega pra lá, cara. Puxa, você fica com a rede toda para você. – reclamava Yasmin. 


Então, empurrava-me, ameaçava-me derrubar, depois se enroscava e dormia. Sempre levantava para ela poder dormir direito. Lia, dava voltas pela casa, ficava olhando as luzes da cidade. Depois, a pegava no colo e levava para a cama. Cobria só com a colcha fininha. Mas hoje não tem nada disso. Um dia antes, no mesmo horário, apesar do acidente e dos ferimentos do Filemón, a casa estava agitada. Naquele momento me sentia solitário. Acho que gosto dela, mesmo. 


Conheci Yasmin no jornal O Sol. Na época não dei muita bola para ela. Estava apaixonado por uma pianista negra, que tocava com Maria Betânia. Eu ficava ouvindo, ouvindo, ouvindo ela tocar, embasbacado. Mas Yasmin fazia uma marcação cerrada. Eu morava no Solar da Fossa, hotel ocupado por artistas jovens, ali em Botafogo, quase na boca do túnel. Por lá andavam Caetano Velloso, Dedé Gadelha, o pessoal do MPB 4, e um amigo fora dos padrões, Wagner Tadeu Horta. Ele tinha chegado de Caratinga, com muita genialidade e uma inocência de anjo barroco. 


Quando desceu na rodoviária Novo Rio, levou um susto de ver tanta gente e confusão. Chegou para um sujeito, perguntou se ele podia cuidar da mala dele, enquanto ia tentar apanhar um táxi. Conseguiu o táxi, mas a mala e o sujeito desapareceram. Seu destino era a casa de um amigo e guru, o Ziraldo, que nessa época morava em Copacabana. Quando o táxi estava no meio do caminho, no Aterro do Flamengo, Wagner apavorado com o taxímetro que não parava de saltar, tirou todo o dinheiro do bolso e disse para o motorista: 


- Moço, eu só tenho isso, será que vai dar? 


- Não se preocupe, meu filho, eu te levo até lá. 


Wagner agradeceu emocionado, à boa vontade do taxista. E assim se foi, além da mala, com roupas, goiabada cascão e queijo minas, o dinheiro de todo um mês. 


Essas histórias aconteciam às dúzias com ele. Estava totalmente despreparado para enfrentar a voracidade do Rio de Janeiro. Mas como desenhava! Era um gênio. Ele e seus jacarés que se devoravam.x Certa vez,x chegou ao Solar da Fossa chorando. Tinha levado um cartum para o Correio da Manhã, onde colaborava, e o Paulo Francis disse que o trabalho não prestava, amassou e jogou fora. Wagner ficou doente. 


Tinha uma namorada linda. Também de Caratinga. Não sabia bem das atividades políticas dela, mas sei que foi presa. Levaram o Wagner junto. Torturaram os dois. Humilharam os dois, um diante do outro. Quando Wagner foi solto, era outro. Havia uma tristeza em seu olhar... Era como se tivessem arrancado seu coração, sua alegria, aquela capacidade inocente de sonhar acordado. Foi internado no Dr. Eiras, uma clínica psiquiátrica em Botafogo. Conseguiu sair uma vez. Veio direto para a Manchete. Almoçamos juntos, ele fez piadas macabras sobre a vida de interno, falou de um bispo homossexual que tinha terríveis alucinações. Contou de gente que morria por excesso de medicação. Estava destroçado. Não entendia o porque de tanta violência e eu sabia que ele não conseguia esquecer o que tinham feito com a namorada na frente dele. Voltou para o hospital. Tempos depois morreu. 


Yasmin e eu ainda temos um cartão belíssimo que Wagner desenhou para nós. Uma história em quadrinhos sobre nós dois. Mandávamos imprimir e distribuímos para os mais chegados. Tiago caia na gargalhada quando via, Ajuricaba ficava encantado. Mas nossas mães eram taxativas: 


- Que coisa mais escandalosa! 


A solidão era má conselheira, não dava para ficar pensado no Wagner, agora. Era só o que me faltava, entrar em depressão. 


Adorava quando Yasmin punha aquele vestido de seda, que Rebeca trouxe de Paris para ela. Ficava coladinho no corpo. Ela parecia uma bonequinha. Lembra-me quando a gente saía para namorar, passeando pelo Flamengo, olhando vitrines e trocando idéias sobre como montar o apartamento. 


É, fui dormir. No dia seguinte a mãe dela chegaria ali cedo. Ficaria com ela, porque eu já tinha uma entrevista marcada com o Mariel para as dez da manhã. A matéria sobre os dez homens de ouro iria ficar boa. Só não sabia se eles iriam gostar. 


Meio-dia. Tinha recebido um telefonema da Joana. Ela queria falar comigo agora, na hora do almoço. Coisa corrida assim, já sabia que não é boa notícia. Tínhamos marcado um papo na Praça XV, fomos comer peixe no Albamar, olhar aquele dia lindo, azul, azul, o marzão besta dominando a baía, e conversamos sobre a organização, apelido político para MNR. Gosto do Rio dos dias claros. Era quando me sinto plenamente filho dessa terra. Sol na cabeça e calor me irritavam, mas a claridade do dia me deixa animado. Acordava cantando, tomava banho cantando e saía gingando pelas ruas. Era todo carioca, só faltava a camisa listrada, porque o resto tinha e fazia. 


Como a Joana tinha marcado um ponto -- outra expressão cifrada, significava reunião, encontro, geralmente na rua --, fui de ônibus, para não dar bandeira. Táxi era um perigo. Quase todos os taxistas eram informantes da polícia. E carro, que não tinha, seria bandeira maior ainda. Adorava aquele vento, aquele cheiro de mar. Não sabia porque, mas sempre me sentia mais livre, quando ando assim, sem lenço e sem documento, como soava dizer Caetano, o Velloso. Aquele dia estava todo pra cima, apesar da barra que tinha segurado naqueles dois últimos dias. 


Joana jornalista. Joana pernambucana. Joana em flor. Ela tinha o maior carinho por Yasmin. E vice-versa. Só que Joana tinha uns dez anos a mais. De experiência, de sonhos, de sorrisos. Ela também era uma mulher sorridente. Translúcida. Se fosse um pouquinho mais extrovertida, seria uma típica carioca, apesar do leve sotaque recifense. Todos gostavam dela, homens e mulheres. Mas, já tinha definido quem seria seu marido. Só não sabia se ele soubera disso. Mas quer sabia ou não, Joana era bastante sagaz para agarrá-lo no momento certo. Era uma líder suave, democrata, socialista. 


Sentamos. Ela foi direta e precisa. 


-- O poeta e eu fomos informados de que corremos o risco de sofrer baixas nos próximos meses. Muita gente tem sido presa em São Paulo. Através dessas prisões, os serviços de segurança podem chegar até nós muito rapidamente. Principalmente daqueles que não estão clandestinos, como eu, você, Yasmin e outros. Tomamos uma decisão, depois de consultar nossas lideranças fora do país. Você e Yasmin devem sair do Brasil nas próximas semanas. Estamos sugerindo que vão para o Chile, assim não perdem o contato com o Brasil. 


- E se entrássemos para a clandestinidade? 


- Estamos muito debilitados. Não temos estrutura para absorver novos companheiros clandestinos. Isso exige casa, documentação, dinheiro. É um risco muito grande, eu diria uma irresponsabilidade. É o momento de recuarmos, acumular forças. 


- O poeta vai deixar o Brasil esta semana. Talvez vocês ainda tenham uma reunião para se despedir. 


A proposta da direção do MNR me deixou atordoado. Senti que não era dono da minha vida, que decisões que não sabia muito bem de onde vinham estavam definindo o meu futuro. Senti uma enorme frustração. Ia deixar meu trabalho, meus amigos, minha cidade, porque algumas pessoas estavam com medo de morrer. Olhei para Joana com tristeza e perguntei: 


- E você? Vai ou fica? 


- Fico. Não tenho condições de ir. Fico e tento segurar a barra, mas gostaria que você e Yasmin saíssem o mais rápido possível. Não descarto que eu possa ser presa a qualquer momento. 


Naqueles dias aprendi que as desgraças não acontecem de uma em uma. Desabam como temporal. Yasmin foi informada da situação e começamos, rapidamente, a preparar nossa saída do país. Tínhamos que negociar nos empregos, explicar aos amigos e parentes que íamos para o Chile. Por mais que tentássemos fazer a situação parecer natural, jornalistas deixando suas atividades rotineiras chamam a atenção. 


Na noite anterior ao nosso embarque, fomos informados de que haveria uma operação pente fino em Santa Teresa. Pegamos nossos livros, aqueles que poderiam ser considerados subversivos e colocamos na mala do carro de um amigo, estacionado na rua. Depois, sem que ninguém nos visse, pulamos um muro, ao lado do prédio, com documentos e malas, e fomos dormir na casa desse amigo. Nessa mesma noite, nossa casa foi invadida. Na manhã seguinte, partimos de ônibus para a Argentina. Destino: Santiago do Chile.



Capítulo 2 



Estávamos no passado, não muito distante, mas no passado. O lugar, uma terra arrasada. Um paraíso devastado pela guerra e pelo abandono. Um demônio, chamado Shedu comeu e refastelou-se: atum grelhado na brasa, com repolho vermelho e vinho branco. Tomou um café com pouco açúcar e acendeu o cachimbo. Esticou-se embaixo da velha figueira. A tarde era pesada e excessivamente quente, como só aquela terra sabia ser. Virou-se para um outro demônio, de nome Nebo, e comentou: 


- Ah! Como é bom ser um sátiro, querido mestre da loucura e das palavras mortas. 


Deu uma risadinha e terminou a frase, meio melancólico. 


- Como eu gosto de trabalhar com Astarote. 


O demônio Nebo, mimetizado no verde, de barriga para cima, gostava de ouvir seu parceiro. Gostava de passar as tardes nos campos estorricados, infernizando a vida de quantos homens e animais, perdidos de suas rotas, aparecessem por ali. E entendia perfeitamente aquele ódio demoníaco que Shedu nutria por Astarote. 


Astarote era um demônio sexual. Os humanos tinham vários nomes para ele: Ásera, Astarte, Attart, Ihstar, Afrodite, conforme o país e o rito de adoração que lhe ofereciam. O próprio Salomão, rei de Israel, prestou-lhe culto e chegou a edificar um templo em sua honra, perto de Jerusalém. Descaracterizado, Astarote tinha uma pele esverdeada, num tom escuro, um hálito sulfuroso e uma mente totalmente degenerada. Usava uma cabeça de touro como símbolo de soberania. Sempre passava voando por cima das videiras calcinadas, despertando no demônio Shedu um ódio especial, uma ira assassina, um desejo de parceria que ele há muito tempo não tinha. 


Shedu deu mais uma baforada e colocou o cachimbo de lado. Tirou uma cebola do bolso e deu uma boa mordida. Depois disse para o demônio que o ouvia: 


- Nebo, meu desgraçado amigo, há anos atrás, fui dono de um homem alucinado. Foi uma experiência inesquecível. Viajemos no tempo e quem sabe talvez você entenda a lógica de meus ódios. 


Tudo começou numa linda primavera terrestre. Havia um sujeito duro de coração. Perverso para nenhum demônio colocar defeitos. Nós nos conhecíamos, conversávamos pelas madrugadas e ele sempre me ouvia. Uma noite ele se entregou a mim. Queria a minha maldade e eu não lhe neguei. Mais tarde, deu o seguinte depoimento aos soldados que o interrogavam: 


Havia um sonhador, um doido, sei lá. Já tinha estrangulado várias pessoas. Uma coisa feia. Sempre igual. As moças eram atacadas de madrugada, mordidas, esganadas e tinham seus olhos arrancados. Sim. Era exatamente assim. Mordidas nos ombros, no pescoço, no rosto, estranguladas. Os olhos estipardos. E tudo em apenas um mês. Foi pelo pânico que resolveram evacuar o hospital. Eu, porque não tinha para onde ir, fiquei. E comigo ficou a frase do jovem Gramsci: “Velhos, porque o destino nos fez nascer numa idade velha”. 


Dez da manhã. A moça, jovem, usava uma saia justa e blusa de malha. Insinuante, lembrava o vermelho. Convidei-a para conhecer o hospital. Ela riu, nervosa, e entramos. Sem proferir palavras, eu cantava. 


- Amelita, querida Amelita... si yo pudiera, como ayer, querer sin presentir. 


Sempre gostei de tangos. É a nostalgia, ela me agarrava e não me soltava mais. Atravessamos o salão de entrada do hospital. Ela na frente e eu atrás. Começamos a subir as escadas. 


- Si yo tuviera el corazón, el mismo que perdi... 


Só minha respiração quebrava o silêncio. Chegamos ao primeiro andar. Continuamos. Íamos para o segundo. 


-... es posible que a tus ojos, que me gritan su cariño, los cerrara com mis besos. 


Ela parou. Segurei seus quadris. Sentia a carne rija sob a saia justa. Devagar, bem devagar. 


-... me abrazaria a tu ilusión.... 


Num salto ela se voltou. Senti uma dor profunda no rosto e gosto de sangue. Ela deu-me duas, três mordidas. Todas no rosto. Suas mãos me apertaram o pescoço. Caímos. Senti a dor de minhas costelas na batida com os degraus. Ela por cima. 


Interessante, não senti medo. O gosto de sangue, a dor, a luta. Era um mergulho, apenas isso. Suas mãos foram largando o meu pescoço. Ficamos quietos não sei quanto tempo. Shedu sempre dizia que não havia lugar tranqüilo na cidade dos homens, mas estávamos silentes, eu e meu monstro. Essa era a paz que Shedu tinha me prometido. Eu e meu monstro, um sentindo o hálito do outro, a gente se rasgando, xingando, lutando, sentindo o rosa e o vermelho, dançando nas cores. Sem uma palavra. 


Quietos, ouvimos passos. Alguém subia as escadas. De maneira calma, como se tateasse os degraus com os pés. Terminou os dois primeiros lances, chegou bem à nossa frente e perguntou: 


- Quem está aí? 


Segurava o corrimão. Cega. O que estaria fazendo ali, essa cega e seus fantasmas? 


Estendi a mão direita. Ela a tocou e subiu alguns degraus. Eu e a moça bonita não nos mexíamos. A cega subiu e sentou-se quase à altura da minha cabeça, ao meu lado. Brinquei de dedos com os dedos. Ela quieta, parecia estar presa no tato. Que sensação pode ser tão profunda? Sei que sentia formigas e espelhos pelo corpo. Eu sentia dor, o peso de meu monstro, o sangue, a respiração quase parada. 


Diziam que eu era louco. Não era, não. Lembro-me perfeitamente. O hospital foi se enchendo de gente, que brotava das paredes, do chão ou deslizava do teto. Primeiro, apareceram dois soldados doentes, que subiram as escadas e queriam ir para o segundo andar. Mas como nos encontraram no caminho, desistiram. Ficaram no primeiro andar mesmo. Uma mulher grande e forte desceu do lustre e eu já não sabia se era a chefe das enfermeiras ou oficial. Também não nos incomodou. 


A vida voltou ao velho hospital. Havia burburinho, gente arrastando doentes, enfermeiras, a mulher grande e risos. Mas ninguém nos importunava. E nós três ali, quietos, sentindo aquela paz de formigas. 


O soldado doente, que tinha ficado no quarto bem em frente à nossa escada, abriu a porta devagarzinho e fez um gesto para mim. Chamava a moça bonita. Ela virou o rosto para a porta, sorriu como uma fada e saiu de cima de mim. Como um gato, sem fazer ruído. 


A partir desse momento, eu e a cega não nos separamos mais. No meio da dor, andávamos tropeçando pelos campos, eu em minha velhice, ela em sua cegueira. 


O comando militar da cidade já havia informado que haveria novos bombardeios. Na segunda semana de abril foi lindo e triste. Bem de manhã, uma névoa cobria o campo e a casa dos oficiais, que não ficava muito distante do hospital. Todos gritavam. Junto com a garoa fina caiam as bombas. De uma das rampas da casa, por entre o verde, corriam meus irmãos, vivos e mortos, com estrelas no coração. 


Fogos de artifício de carne e sangue desenhavam flores no céu. Eu e a cega, de mãos dadas, víamos e ouvíamos o dum-dum dos tambores e a festa vermelha do fim dos dias. De repente, veio a ordem de debandar. Saíram os carros negros, limpos, fugindo para não sei onde. Os soldados corriam e desapareciam, como se fossem névoa, apenas névoa. E aqui no hospital, eu e a cega caminhávamos no vazio. Mais uma vez estávamos sós. 


Fomos caminhando devagar para longe do prédio. Era melhor deixá-lo morrer sozinho, comido pelo mato, vendo suas paredes caírem de cansaço e de velhice. Igual a mim, eu acho. 


Não, valorosos soldados, não sabia o nome de ninguém. Nunca me preocupei com nomes. Nunca me lembrei de guardá-los. Do general sabia que era imponente, mas triste. Gostava de ouvir os pássaros de manhã e à tarde escutava uma ninfa tocar cítara. Era triste e só. 


Ah! O meu monstro. Foi meu apenas durante algumas horas. Também não sabia dos meus irmãos. Ouvi dizer que os piedosos subiram aos céus, mas disso Shedu nunca falava. Não sabia. Era muito difícil saber dessas coisas. E eu não era um homem sábio. 


- E a cega? 


Fiquei com medo. Sei que o general de vocês era diferente, que acreditava no que fazia e no que dizia e pretendia fazer com que o país voltasse às normas da legalidade absoluta, com a supressão do arbítrio e dos sonhos. E eu fiquei com medo. 


Chovia. Era difícil andar. Eu por causa da velhice e ela porque tropeçava nas raízes. O mergulho, era isso que eu tinha na cabeça. Nem mais, nem menos. Paramos ao lado de uma poça. O longe roncava como fera. Não sabia se o futuro começava ou se o passado cochilava. Devagar, segurei sua cabeça e enfiei na lama. Ela deixou. Seu corpo se contorceu um pouco, com arrancos. Meu medo foi passando. Levantei seu rosto. Éramos iguais os dois, mortos, com máscaras de lama. 


Segui sozinho, sentindo uma paz esquisita. Acho que é a mesma paz que sentia o velho hospital depois do bombardeio. Não sei. Sinceramente, valorosos soldados, não sei mais nada. O seu nome... Não me lembro bem, mas parece que era Dolores. É, só poderia ser Dolores. 


E assim, caro Nebo, o corpo que eu consegui a duras penas, e que me deu tantos prazeres, foi fuzilado numa tarde de setembro. E como você pode ver, esse súcubo infernal só apareceu para bagunçar o coreto. Com o fim da guerra e sem corpo em que me agarrar, resolvi mudar de ares. Cheguei aqui como ave de arribação, sem eira, nem beira, agarrado num mestre de artes marciais, mas logo encontrei quem eu procurava. 


Uau! Que sonho estranho. É isso que dava brigar com a Yasmin. Sentia uma culpa danada e depois ficava sonhando essas loucuras. E é tão fora de propósito que não dá para contar para ninguém. E para quem haveria de contar? Estávamos num ônibus leito, atravessando os pampas uruguaios. Era chão que não acabava mais. 


Eu dizendo que queria curtir um pouco de Argentina, ver uns tangos em Buenos Aires e ela querendo, porque querendo, chegar logo em Santiago. Parecia até que estávamos fazendo uma viagem de trabalho. Desde quando o exílio impediria a gente de curtir uns tangos? Brigamos. Ela virou para um lado e eu para o outro. Ela dorme como um anjo, mas eu ficava lutando com demônios a noite toda. Êta briga besta. 




Capítulo 3 




Parece que foi ontem. Janeiro de 69 estava quase terminando e ainda estávamos sob o choque do AI-5. Recebi um telefonema, na própria redação da Manchete, informando que teria uma reunião com Ricardo, jornalista do JB que fazia Direito na Cândido Mendes. Ele era a nossa ponte com um pessoal que atuava dentro da embaixada dos Estados Unidos. E lá fui eu almoçar no Lamas, ali no Largo do Machado. Aliás, o bom desses pontos é que a gente acabava comendo bem. 


Entramos silentes. Sentamos numa mesa do fundo. E seguindo um velho ritual dos freqüentadores do Lamas, pedimos filé com fritas e chope. Por um momento meus pensamentos voaram e fiquei lembrando quando ia ali com meus pais, ainda menino. Gostava de ficar olhando para aqueles espelhos e ver minha imagem se multiplicar infinitamente. 


- Acho que a situação vai feder. Já informamos ao poeta e a Joana. O pessoal em Cuba está atento a possíveis novidades. 


A infância ficou longe. Voltei ao presente, mas continuei calado. Conhecia Ricardo e sabia que podia contar com uma boa história de suspense. Ele nunca entrava direto no assunto. Dava voltas, montava um nariz de cera, e só então ia soltando as novidades. Em pílulas. 


- John Tuthill mandou para Washington um relatório baixando o cacete no AI-5. Li trechos. Parece que os americanos continuam achando o Golbery o máximo, mas consideram o Costa e Silva um banana. 


Manolo passou sério, me cumprimentou, e fez sua média: 


- O seu é ao ponto? 


- Como sempre... 


Ricardo fingiu que não viu nem ouviu. 


- Golbery conta com o fracionamento da esquerda. Já o pessoal da linha dura, como os generais Muricy, Aragão, Castilho, Frota e Ramiro querem partir pras cabeças. Os americanos dizem que o temperamentalismo deles é um perigo, que foram eles que pressionaram o Costa e Silva a baixar o AI-5. Acham que esse pessoal pode fazer mais bobagens e levar a situação a ficar insustentável. 


- Você acha que os americanos vão tirar o apoio que dão ao Costa e Silva? 


- Acho difícil dizer isso agora. Mas, parece que a assistência econômica dos EUA foi suspensa logo depois do AI-5. Soube que o governo americano congelou o programa de empréstimos bilaterais para o desenvolvimento, adiou a venda de caças A-4 Douglas para a FAB e o fornecimento de equipamentos bélicos. 


- Se essa informação não foi plantada, a crise está instaurada. 


- Mas o relatório é cauteloso. Diz que a linha dura está num túnel e acabará saindo do outro lado, se não ficar bloqueada lá dentro. E nisso há um consenso: as passeatas estudantis, greves, manifestações, ação guerrilheira e pressões internacionais podem bloquear os militares dentro do túnel. 


- É, com mobilização e luta armada, a polarização vai aumentar. Os militares vão cerrar fileiras ao lado do Muricy e do seu pessoal, mas a sociedade não vai embarcar nessa. 


Não era necessário falar mais. Tinha chegado o momento de responder à altura. Quando Costa e Silva tomou posse muitos acreditaram que ia levar a frente uma política reformista. Mas se esses planos existiram, foram para a caixa do chapéu. O governo não tem nenhuma orientação clara e, aliado a gente incompetente, criou novos problemas. Que ninguém me ouça, mas o Golbery tem razão. 


O movimento estudantil protesta porque o governo é incapaz de realizar uma reforma digna na Educação. Tarso Dutra é um sorvete na testa, mas ficou no cargo. O caso do Márcio Moreira Alves é outra burrada. Se Gama e Silva não fosse tão grosso e a linha dura tivesse deixado à própria Câmara resolver o problema, a situação não teria chegado aonde chegou. Mas do jeito que a coisa foi feita, os deputados não podiam votar a suspensão da imunidade do Márcio. Azar o deles. Enfim, o vento sopra a nosso favor. 


Almoçamos com vagar. A conversa ficou descontraída e o clima conspiratório foi diluído em chopes gelados de colarinho alto. Mas nomes como Frank Carlucci, o odiado conselheiro político da embaixada americana, John Kubisch, o diretor da divisão Brasil no Departamento de Estado, e outros agentes da central de inteligência pontuaram nossa conversa. 


Ricardo era muito inteligente, tinha o inglês como segundo idioma e se vestia com elegância. Conhecia pessoalmente muitos dos nossos inimigos. "Ossos do ofício", dizia meio a contragosto. A organização confiava nele por um simples motivo - os companheiros cubanos também confiavam nele. Várias vezes, ele e Carlucci almoçaram juntos. Era presença obrigatória nas festas da embaixada. 


Mas conversa de jornalista sempre terminava em jornal. 


Ricardo contou da raiva que o noticiário sobre o AI-5, de 14 de dezembro de 68, no Jornal do Brasil produziu no meio militar. 


“Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38o em Brasília. Mín.: 3o nas Laranjeiras”. Dines, espertamente, colocara no alto da primeira página do JB de 14 de dezembro de 68, o clima criado pelo AI-5. No outro extremo, chamada para uma matéria interna: Ontem foi o Dia dos Cegos. O resto era noticiário sobre o AI-5, mas tinha ainda uma foto ridícula de Costa e Silva. 


- Eles babaram de ódio, quando perceberam o que o JB fez. A partir daí a censura vai checar tudo, até horóscopo. 


- É, mas gosto da postura do Estadão. 


- É, parece que o Mesquita peitou os caras. Mas, não sei bem como foi... 


- O jornal foi apreendido antes do AI-5. 


- Antes do AI-5? 


- É, Costa e Silva tinha ido a Belo Horizonte para uma formatura e para inaugurar um computador, mas o pessoal da redação sabia que uma tempestade estava se formando... Estavam de olhos e ouvidos em Brasília, onde o clima era tenso. Os deputados votavam o pedido de licença para que o Marcito fosse processado, sob a acusação de ter ofendido as Forças Armadas... 


- Bem, até aí nada, porque todo mundo estava acompanhando a votação. 


- O velho Mesquita, na verdade Júlio Mesquita Filho, ao saber que a Câmara não daria a licença para que o Marcito fosse processado, redigiu um editorial para a página três: Instituições em Frangalhos. Falava do impasse e dos atos institucionais. O cenário era sombrio. 


- Acertou em cheio... 


- Previu o tiro no peito da democracia. 


- É, mas não acaba aí... 


- O texto desceu para as oficinas e a produção do jornal seguiu seu ritmo. No começo da noite daquela quinta-feira ligaram da Polícia Federal para perguntar ao secretário de redação, Oliveiros Ferreira, quais seriam as manchetes da primeira página no dia seguinte. Ele falou, o censor não disse nada e a impressão do jornal continuou. 


- Na madrugada daquela sexta-feira, que por incrível era 13, o chefe da Polícia Federal em São Paulo, general da reserva Sílvio Corrêa Andrade, apareceu nas oficinas do Estado e pediu para ver o jornal. Leu o editorial e não gostou. Mandou parar a impressão e apreender os exemplares prontos. Mais de 100 mil jornais já estavam a caminho do interior de São Paulo. Foi o maior pepino... 


- E isso aconteceu umas 20 horas antes de Costa e Silva assinar o AI-5. O Mesquita, então, avisou ao chefe da Polícia Federal e ao Abreu Sodré que não ia aceitar autocensura. Era problema do regime. Então, à noite, os homens chegaram para ficar... 


- É isso aí, quem lamber botas hoje no futuro vai cair com eles. 


- Um dia esse regime vai despencar. A censura é a violência visível da ditadura. O resto a gente mal vê e não sabe. Mas a censura não. Por isso, o Correio da Manhã, o Jornal do Brasil e o Estadão estão fazendo história... 


Rua Santa Clara. Posto 4. O sol estava de derreter asfalto. Dava para fritar ovos na Atlântica. Walter jogava peteca com os amigos. Lolita, de maiô cavado nas costas, lembrava Nabukov, ao menos na minha cabeça de menino.


- Luís, passa Dagelle nas minhas costas. 


Obediente, gostava dessa mistura do cheiro do bronzeador com a maresia, cumpria à risca, devagar, a ordem recebida. 


Marcus e Júlio, à beira d’água, faziam seus castelos de areia, que a arrebentação, feroz realidade, desfazia um a um. Como formigas insistem, gritam e dançam, quando uma onda maior alisa a areia. 


Maria fez para mim um calção que é uma bandeira. Pegou uma blusa estampada de rosas grandes e como costurava muito bem fez um calção lindo, o mais colorido de toda a praia. Mas caiu bem. 


E a turma, uma gang atribulada, quase todos do Externato Duque de Caxias, elogiou. Minha pequena, Jussara, cujo pai trabalhava na Souza Cruz, dera-me de presente um pacote do recém-lançado Minister, agarrou-me pelo braço e saímos... Eu com ela, ela com o rebelde dela. 


Jussara tinha 14 anos, fazia balé e mora na Serzedelo Correia. Eu tinha 16 e fui aluno de latim do Pompílio da Hora no Atheneu São Luís, no Catete. O velho Pompílio me adorava, eu era o melhor aluno de latim que ele tinha. Certa vez, me expulsou da sala. E me fez sair pela janela, aos gritos: 


- Você não é digno de sair pela porta. 


Pulei. E quando já estava fora, me fez voltar à sala, com um ensinamento estranho, mas sábio: 


- Nunca viva de tal maneira, que possam dizer para você: “Puxa Luís, nunca imaginei que você fizesse isso”. 


Pompílio, primeiro negro brasileiro a ser nomeado embaixador na África, dando lições de transgressão a seu pupilo. 


Jussara me agarrara pela cintura, rindo, apontava para o mar. A gang, de calções abaixados, brincava de boto furando as ondas... 


Morena de olhos azuis, ela não era bonita, era linda. A vida toda se resumia nisso: futebol de areia todas as tardes depois das quatro, toda televisão que dava para ver, muito livro e Jussara para me levar ao cinema. E saímos na maior pinta. Eu de rancheira e camisa de ban-lon branca e ela de vestido de fustão rodado. Depois do cinema, comíamos waffles ali na N. S. de Copacabana. 


Os anos 60 começaram a desabrochar. Lá em casa, Walter e Lolita deram adeus ao JK, um pouco preocupados com os ares que sopravam. Walter prefere o Lott, mas o povo vai de Jânio. O jeitão do magrela não me agradava. Era o homem da caspa de talco, do sanduíche de mortadela e da Vila Maria, em São Paulo. 


Toda minha família sempre foi juscelinista, até o tio Walter que era austríaco e viera para cá no meio da guerra”segunda grande guerra?”. Magro, um metro e noventa, cabelos lisos e negros, fora atleta do Flamengo. Remava. Fora capataz de fazenda. Levara um tiro de um peão, na barriga. Casou-se com minha tia Iracema, que era estilista e dona de loja no centro. Depois da morte de Iracema viera Lolita, filha de mãe espanhola e pai italiano. Bailarina. Era vinte anos mais nova que o Walter. E doze anos mais velha do que eu. Era amiga, confidente, tia e, às vezes, mãe. Esta última função era a que menos gostava. 


Alguns anos depois da morte do Amynthas, Walter e Lolita me adotaram. Os dois filhos, Marcus e Júlio, vieram mais tarde. 


Hoje, tio Walter tem loja de moda, um Jaguar 53, usa tanga na praia, um escândalo que Lolita aprova, e joga religiosamente peteca com os amigos domingo de manhã na praia. 


- No que você está pensando? Está tão calado. Quem estão falando nesse diálogo em amarelo? 


- O azul dos teus olhos é mais bonito que o azulão besta do mar. 


- Bobo! 


- É verdade. Prefiro esse azul aqui àquele lá. 


- Bobo duas vezes. Aquele lá é maior. Olha, nem fim tem... 


- É, mais o teu eu posso levar comigo. 


- Só se eu deixar... 


- E você deixa? 


- Depende... 


- De que? 


- Ué, para onde?... 


- Quero o azul dos teus olhos como farol, que baila, na ilha, no meio do mar... 


- Puxa, então eu deixo. 




Capítulo 4 



Serginho e Maria Cristina estavam sorridentes como sempre. Moravam em Santiago, numa casa grande, de dois andares, com jardim, lareira e muito conforto. Para nós que chegávamos, era uma mansão. Mas em dois dias, Yasmin e eu descobrimos que ter uma casa confortável, em Santiago, não era nenhuma coisa do outro mundo. 


Serginho e Maria Cristina eram exilados especiais. Amigos no Rio de Janeiro, trabalháramos juntos no jornal O Sol e na TV Continental. Aliás, na TV Continental chegáramos a fazer um programa louquíssimo, Blow Up, que deu muito trabalho para a censura. Serginho, fotógrafo, ficara amigo de Mário, o trotskista, um intelectual que tinha marcado nossas vidas naqueles anos chilenos. 


Logo na nossa primeira noite, fomos apresentados à comissão de frente do trotsquismo emergente: João, Jaime e Túlio. Não foi uma noite agradável. Jaime, com a grossura posadista que lhe era peculiar, perguntou se eu era stalinista. Diante da provocação ouviu um sim desafiador, acompanhado de uma retumbante declaração de que todos os que faziam autocrítica da luta armada não passavam de uns desbundados. Foi o que bastou. Tivemos uma violenta discussão, devidamente aplacada por nossos anfitriões. 


Serginho, um gentleman, entregou-me, quando já ia para o quarto, um exemplar da Revolução Traída, de Trotski. Mas, antes de dormir, como se não bastasse, ainda briguei com Yasmin, que concordou com a exposição de Jaime sobre o trágico papel de Stálin na União Soviética. Dormi com ciúmes, com o ego massacrado, achando que saíra de um inferno para cair em outro. 


Lílian era minha grande amiga chilena. Era uma graça, una chilenita de cabelos negros, olhos negros e quase gordinha. Uma doçura de pessoa. Morria de rir de minhas gafes com o espanhol e com sua pronúncia. 


A anedota que mais gostava e que contava para todo mundo, era da confusão que fiz entre duas palavras cuello e culo. Eu tinha que comprar uma coleira para o meu cachorro, o Putz, e fui a uma loja de ferragens. Uma moça muito simpática me atendeu e eu nem pensei duas vezes: 


- Señorita, necesito un collar para el culo de mi perro. 


A moça me olhou horrorizada e foi chamar um homem, que já veio me olhando feio. 


- O que o senhor quer mesmo? 


E de novo, muito sério, reafirmei meu pedido: 


- Un collar para el culo de mi perro. 


O homem não sabia se pulava no meu pescoço ou se caía na gargalhada, mas corrigiu: 


- No es culo de mi perro, es cuello de mi perro. 


E foi buscar a coleira para o Putz. 


Demorou alguns segundos para cair a ficha. Só então entendi que culo não é uma palavra elegante. Pedi desculpas. Contei para os amigos e comecei, então, a estudar espanhol seriamente. 


Lílian era muito amiga de Yasmin. E nos ajudava nas coisas do dia-a-dia nesta cidade grande e desconhecida. Nos ajudou a encontrar uma casinha linda, ali na Villa Santa Carolina. As casas da Villa eram todas pré-fabricadas, com as paredes internas de aglomerado. Eram à prova de terremoto. Se o tremor fosse muito forte, o telhado escorreria para fora, não desabando sobre os moradores. 


A casa tinha um jardim, quintal enorme, três quartos, sala ampla, cozinha e banheiro. Yasmin e eu amamos. Decoramos com móveis rústicos, bem à maneira chilena, colocamos rede na sala, compramos uma linda casa de cachorro para o Putz e num dos quartos fizemos nosso escritório e adega. Logicamente, nossos vinhos eram comprados ali mesmo na vinícola Santa Carolina. Era o maior charme. 


Yasmin e eu estávamos estudando na Universidade do Chile, revalidando o curso de jornalismo que fizéramos s no Brasil. Eu tinha feito PUC,e ela, Federal. Eu tinha sido desligado da universidade e ela fora cortada pelo 477, uma famigerada lei que impedia ativistas políticos de estudarem. E nisso tudo, Lílian, que era do Partido Socialista, vivia nos dando uma força. 


Não estávamos longe da Universidade, do Pedagógico, onde estudávamos. Dava até para ir a pé, mas normalmente tomamos um micro-ônibus, uma liebre, como os chilenos diziam. 


Nós três, Yasmin e Lílian e eu, às vezes, no final das aulas, íamos para um bar em frente à universidade e ficávamos conversando. Nós brasileiros somos, comparados com os chilenos, muito agitados. Lílian parecia ser calma, reflexiva e muito alegre. Estava sempre rindo. Não tinha as angústias e problemas existenciais que caracterizavam os exilados brasileiros. 


- Você está errado, Luís. Não somos nem tão pacíficos, nem tão alienados... 


- Duvido, acho que aqui não tem nem suicídio. 


- Errou. Os suicídios se dão no inverno. As famílias pobres não têm como comprar carvão para a estufa. E diante da fome, do frio e do desemprego, muitos pais de família matam toda a família e se suicidam. Às vezes, são encontrados congelados dentro de casa. 


Yasmin fez uma careta. Ela sempre fazia uma careta quando ouvia algo chocante. E pergunta: 


- E a Unidade Popular, o que está fazendo? 


- Nós estamos organizando as pessoas nas poblaciones, que são os bairros pobres da periferia. Através da organização e do cadastramento das famílias, sabemos quem está desempregado, qual é sua capacitação e como e onde podemos empregá-los. Temos também um programa de leite gratuito para as crianças e cestas básicas para os desempregados. Mas isso não resolve o problema... 


- É verdade, a meta tem que ser o pleno emprego, mas não acredito que vocês consigam isso tão facilmente, completa Yasmin. 


- Outro problema é que existe fuga de capital. Os empresários têm medo de Allende, do socialismo, e por isso muitos fecham suas fábricas e vão embora. 


- Hoje temos, por causa disso, um monte de fábricas que está sendo administrada pelos próprios trabalhadores. E na sua grande maioria a produção aumentou... 


- É, mas por quanto tempo? É possível um capitalismo sem empresários? Tenho minhas dúvidas sobre o modelo chileno... 


- Calma Luís. Estamos começando. O governo da Unidade Popular é um governo de transição, queremos o socialismo, esse é nosso objetivo, mas faremos tudo para evitar uma guerra civil. 


Yasmin deu a sua famosa risadinha. Sarcasmo puro. Ela era socialista, já estava no Partido Socialista, mas discordava da ala reformista. Yasmin é a nossa Rosa Luxemburgo. 


- A insurreição operária é o caminho. Essa história de transição pacífica leva à derrota. Mas o partido sem dúvida é o Socialista. É um partido de massas e não é burocrático. Ele tem tudo para dirigir a insurreição dos trabalhadores chilenos. 


Como não concordava com Yasmin nessa questão de partido – estava ligado ao Movimento de Esquerda Revolucionária, o MIR –, tinha chegado a hora de ser sarcástico: 


- Mira compañera, com estos huevones nadie va a lugar ningún... 


Pronto, tinha armado a barraca. De uma tacada só tinha agredido minhas duas amigas. Elas ficaram uma fera, me chamaram de mirista irresponsável, bombero loco, e pediram a conta. 


Yasmin já me conhecia bem e Lílian estava descobrindo a fera. As duas, de repente, pularam em cima de mim, agarraram minha barba, puxam meus cabelos e gritam para todo o bar ouvir: 


- Loco, loco, bombero loco... 


E caem na gargalhada. 


Coitada da Yasmin. Este primeiro ano de Chile estava sendo terrível. Mas ela guerreava por seus sonhos como uma Joana D'Arc. Tínhamos tudo para viver dignamente. A casa era bonita e charmosa, estamos construindo um agradável círculo de amizades e o dinheiro que trouxemos do Brasil dava para viver alguns anos. Além do mais, nunca tínhamos visto tanta liberdade em nossas vidas. Podíamos ser felizes. 


Mas eu estava enlouquecendo. Era um processo de violência que tinha iniciado lentamente, no início da juventude, quando comecei a praticar karatê. Tive grandes mestres, como o Lírton, mas o maior deles, sétimo dan, foi um ex-treinador da seleção japonesa. Depois de um ano de treinamentos intensivos, eu era uma máquina programada para espancar quem quer que fosse. Mas agora, em Santiago, sintia-me acuado, numa sociedade que nós exilados da luta armada, desprezávamos por considerar pacífica. 


Como liberaria essa vontade de violência, esse desejo de fazer justiça em nome do proletariado? Saída não havia. Quem sabe a solução fosse o suicídio? Yasmin, às vezes, tem que me carregar, bêbado de cair, até em casa. Numa dessas, quase morri de coma alcoólica. Ela cuidou de mim chorando. Outras vezes, saía de casa sem saber se ao voltar vai me encontrar pendurado pelo pescoço numa gravata, amarrado no cano do chuveiro, à moda Santos Dumont. 


Violência? Você sabe o que é violência? 


Um dia saí de casa e estava atravessando calmamente uma rua quase deserta da Villa Santa Carolina. Eram umas três da tarde. Sol a pino e muita poeira. De repente, uma bicicleta, que não sei de onde saiu, me atropelou pelas costas. Caindo, saltei no ar, me virei, dei um urro de guerra e pulei sobre o rapaz. Disparei uma seqüência de golpes sobre seu rosto. Sangrando, espumando, sujo de terra, atordoado, enquanto eu o esmurrava, ele tentava dizer alguma coisa. Até que uma frase, simplesmente desesperada, saiu de seus lábios em meio a golfadas de sangue. 


- Estou tendo um ataque epiléptico. 


Fui atravessado por uma dor profunda. Tão grande, tão grande, como se estivesse participando do assassinato de alguém muito querido. Coloquei o rapaz no colo, arrastei-o até o meio fio e amparei sua cabeça. Ele não falava. Seus olhos estavam esgazeados, distantes, seu rosto muito pálido, os lábios cortados, começavam a inchar. E a camisa branca coberta de sangue. Fiquei ali até ele se recuperar. Depois, saí tonto, andando pela rua com um vazio enorme no peito, e uma vontade de pedir socorro, de chorar. 


Essa mesma noite, depois de conversar longamente com Yasmin, visitei meus amigos João e Dulce. Eles estavam a mais tempo em Santiago e poderiam me sugerir algum psiquiatra. E lá fui eu falar com Hugo Alexandre, um mago da psiquiatria chilena que cuidava dos atormentados da colônia brasileira. Hugo Alexandre era um personagem. Dava plantão no hospital psiquiátrico da cidade, usando uma longa capa, negra por fora e vermelha por dentro, que lembrava as capas dos estudantes da Universidade de Coimbra. 


Às vezes, no saguão do hospital, rodopiava como Batman, a capa flanava, e ele saia correndo. Tratava os loucos com carinho. Certa vez, vi chegar um sujeito furioso, aos berros, amarrado em camisa de força. Hugo Alexandre mandou que o soltassem e, com medo, os enfermeiros obedeceram. Hugo abriu as asas, ou melhor, os braços e a capa e envolveu o homem num abraço negro. O sujeito ficou mansinho. Tinha encontrado alguém mais louco que ele. 


Não, Hugo Alexandre não mandou me internar. Mas me encheu de drogas. Um mogadon antes de dormir, e um valium dez depois de cada refeição. Efeito que era bom, não fazia nenhum. Parecia que eu me recarregava em fios de alta tensão. Algumas noites vagava pelas ruas, ia para o último andar de um dos prédios das torres de San Borja, as mais altas de Santiago, e corria pela mureta. Lá embaixo, o breu da noite. Por que será que eu não tinha medo de nada? 



Capítulo 5 



São Paulo, Vila Santa Isabel. Era noite de sexta-feira. Noite de festa em bairro da periferia. Bailes de São João em cada esquina. Uma senhora, em seu quarto, porta fechada a chave, de joelhos, abraçava a Bíblia, como se fosse um filho muito querido e ora: 


- Senhor, eu não sei do Luís. Não sei porque largou a Manchete, viajou para tão longe, o que está fazendo e como está vivendo. Ah! Senhor, ouve esta mãe. Acalma o coração dele, dê-lhe paz. Ajuda ele, Pai adorado. Eu gosto tanto dele, mas ele me escreve tão pouco. Ajuda também a Yasmin. É uma moça tão boa. Não permita que Luís a faça sofrer. 


Maria não via, mas alguns anjos acompanhavam com atenção e reverência aquela oração de fé. Ela estava conversando com o Deus Criador dela e deles. Suas asas, enormes, estavam abertas. O ambiente brilhava com intensidade. Ah! Se ela pudesse ver. Se pudesse... De memória, aquela simples e pequena mulher de fé, começa a orar o Salmo 91... 


- Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, a sombra do Onipotente, descansará... 


De olhos cerrados, colocou a Bíblia sobre a cama, juntou as mãos com força, como se estivesse esperando já, nesse momento, a resposta de Deus. E completou a oração. 


-... porque a mim se apegou com amor, eu o livrarei, pô-lo-ei a salvo, porque conhece o meu nome. Ele me invocará, e eu lhe responderei, na sua angústia eu estarei com ele, livrá-lo-ei, e o glorificarei. Saciá-lo-ei com longevidade e lhe mostrarei a minha salvação. 


As lágrimas escorriam por seu rosto. Rosto de mãe que recordava o filho ainda pequeno orando com ela o Pai Nosso. Sorri, como se o menino estivesse ali, do seu lado. Lembra-se dele, no colo do pai, ouvindo as histórias de um rapaz corajoso, que enfrentou sozinho um gigante chamado Golias. E o menino vibra, pula, quando o pai imita o barulho da queda do filisteu. 


Era um apartamento gostoso aquele de Santa Teresa, no Rio. Ela cheia de vida, moça ainda, não tinha muito do que reclamar. Era apaixonada pelo marido. Pena que a vida às vezes muda tão bruscamente. Amynthas morreu de complicação cardíaca. Foi tudo muito rápido. Perderam o apartamento. Tiveram que ir para Perdões. Ela e os dois filhos, um pequenino, com apenas três anos. Foram para a fazenda do tio Ari. Ela ficou lá uns meses e voltou para o Rio. Tinha que conseguir trabalho, alugar casa, cuidar das crianças. 


E aquela jovem mãe, criada em berço de ouro, que nunca tinha trabalhado na vida, mostrou-se tão valente como o garoto Davi. Foi massacrada pelas circunstâncias. Empobrecida, moravam num quarto alugado na rua Paissandu, ali no Flamengo. O menor, já tinha 12 anos, mas só andava em más companhias. O dia todo na praia. O Luís trabalhava e estudava. Lia a Bíblia, tinha amigos crentes. Deus, sem dúvida, haveria de ajudá-lo. 


Mas a vida era muito dura. Recebiam ajuda da igreja, além de pacotes de trigo e leite em pó doados pela Aliança para o Progresso. Num momento de desespero, cortou os pulsos. E em plena crise, foi internada em um hospital psiquiátrico em Jacarepaguá. 


De pé, Maria colocou a Bíblia sobre a mesa. E continua a lembrar-se das visitas que o Luís lhe fazia aos domingos. Ela sedada, estava inchada pelos medicamentos, quase não conseguia andar. Ria da situação, para não deixar o filho chorar de desespero. Mas ela sabia que um jovem não resolvia muito bem certos problemas. 


Meses depois, recebeu alta. Casou-se com um professor de São Paulo, dono de uma escola no bairro do Carrão. Mudou-se para a casa dele. Casa grande, de dois andares, que entre outros confortos tinha uma biblioteca. Levou o rapaz Alex. Luís afastou-se dela, da família, de todos. 


Passaram-se anos. Será que ele me odeia? Será que ele não vai me perdoar, nunca, pelos anos difíceis que vivemos? Pela fome? A esta mãe só restava a oração. E como crente que era, orava todos os dias pelos dois filhos, em especial pelo pródigo. 


Se ela pudesse ver a revoada de anjos ao redor da casa, naquelas noites de oração. Era um quartel-general de Deus no quarteirão. Mas ela sabia que não estava sozinha. No mínimo, uma dezena de pessoas orava diariamente pelo Luís. As tias Lucy e Alice, que temiam por sua vida, e vários irmãos de sua igreja, que tinham iniciado uma corrente de oração por ele. 


E foi assim, por misericórdia e amor, que Deus ordenou a seus anjos guardarem a vida do Luís. É certo que essa guarda só podia ir até certo ponto. Luís declarava-se ateu, e conscientemente tinha rompido todos os relacionamentos com a fé. Só confiava em si próprio. E não queria ajuda de ninguém. Mal sabia ele que a seu lado, como conselheiro chegado, havia um demônio. Shedu, o demônio das onze horas. E como Shedu não trabalhava sozinho, lá estavam em parceria permanente, Astarote e Nebo. O inferno particular de Luís era violento, degenerado e alucinado. Mas quem definia o rumo era Shedu. 


Os anjos do Senhor já haviam advertido aos demônios: eles não tinham permissão para tocar na vida do rapaz. Mas permaneciam à distância. Há uma lei que nem Deus viola. É o livre arbítrio que Ele próprio deu às pessoas. Assim, Luís tinha o direito inalienável de escolher seus conselheiros e amigos. Daí a cena, sem dúvida estranha, que acompanhava sua vida. Estava sempre rodeado dos três demônios, que o envolviam opressivamente, formando uma névoa negra e compacta. A certa distância, em revoada atenta, sempre havia três anjos. Eles não penetravam a névoa, mas sua presença era uma lembrança permanente para os demônios, da ordem que tinha vindo do trono de Deus: não toquem na vida do Luís. 


Maria não podia ver o mundo espiritual. Mas estava em seu coração a lembrança dos momentos em que a intervenção divina salvara a vida do menino. Quando ele tinha apenas um ano de idade, ela estava fazendo um mingau e por algum motivo afastou-se do fogão por momentos. A criança, andando desequilibradamente, apoiou-se com força no fogão e a panela de mingau fervendo entornou sobre ela. Desesperada, uma das tias, Iracema, pegou o menino e o colocou debaixo do chuveiro frio. A pele de todo o corpo escorreu e ficou no fundo da banheira. Durante dias, entre a vida e a morte, Luís ficou internado, nu, sobre folhas de bananeira. 


Maria orava insistentemente para que a criança não morresse. E fez um acordo com o Deus Criador. Prometeu que a criança seria dele, para Ele, conforme fosse o desejo dele. Deu seu primogênito como oferta ao Senhor. Nazireu de Deus. Sem dúvida, ela ficava lembrando... Deus tinha ouvido sua oração e aceitara sua oferta. A Segunda Guerra Mundial tinha terminado fazia um ano, e da Itália chegado uma pomada milagrosa: penicilina. Três vezes por dia, passavam a pomada em todo o seu corpo. Um mês depois teve alta. 


Que bom saber que Deus cumpre o que promete. Luís estava sob a guarda de Deus. Ela só tinha que ter paciência. Qualquer dia ele entraria por aquela porta e a saudade cederia lugar à alegria do reencontro. 


E eu com lágrimas teço à maneira antiga, muito antiga, essa paixão grande... 


Estes meus olhos nunca perderam, 

Maria, 

grande coisa, 

mesmo porque é ilusão. 

E, direi, 

minha formosa senhora, 

destes meus olhos a coisa que anseio: 

choram e cegam como alguém que vê. 

Mas os meus olhos, 

por alguém ver, 

choram e cegam, 

quando alguém não vem, 

e ora cegam por alguém que vê. 

E como a outra, 

a mãe não depende de um homem 

e o pai deixou de ser pai. 


Cuidado tem de nunca perder, meus olhos e meu coração, e estas coisas, Maria, são coisas minhas. E seu nome a outra envia, aquela que gerou o pai. A mocinha de Belém, théotokos. 


E como a outra, o pai não é pai, nem o filho é filho do pai. Gabriel anuncia a geração pelo vento santo. Acabou o sangue, o inter feces et urinas nascimur acabou também. A vulva, a madre aberta, tão consistente foi rompida. 


Vai nascer uma época, desejos virginais feminescentes. E nunca eu a poderei ver bem, pois este amor já não quer nem sequer Deus. Mas os cativos destes olhos meus, morrerão e cegarão, quando alguém não vem, e ora cegam por alguém que vê. 



Capítulo 6 



Noite alta, o demônio Nebo, mestre da loucura e palavras mortas, ficou pensando na viagem e na última coisa que seu parceiro Shedu, morador das ruínas de Edom, dissera antes de se retirar para o oco de sua figueira: “Demônio bem sucedido trabalha em equipe. Nós estamos incompletos. Astarote é a parte que falta para criarmos o inferno que desejamos”. Palavras difíceis, como poderia catalogá-las? 


Detesto essa terra, mas adoro essa hora da meia-noite. Pensou. Sem lua, sem aragem, esse silêncio de tudo. Essa é a hora dos meio-tons. Não está gelado, mas faz frio. Está escuro, mas não completamente. Existe o mais e o menos. É a hora mais difícil para os humanos. Eles ficam inseguros, procurando algo que se mova, que faça um ruído. Ao menos uma folha, mas nada. E eu também fico quieto, acompanhando a ordem natural do momento. É certo que o céu está cheio de nuvens, que brincam de fantasmas com as estrelas. Mas eles nem percebem. São seres medrosos. Quem está falando, Nebo, narrador? 


Às vezes, vem uma nuvem gorda, roliça de gula, e engole um punhado de estrelas. E fica mais escuro. É aí que as árvores e seus galhos secos começam a se espreguiçar. É o momento. Vem um vento frio, desses que saem do fundo do inferno. Sacudo a solidão eterna, espicho as pernas, vou até a cidade da desolação e começo a falar com os mortos. 


Sou filho de Merodach e Sarpanitu. Vivi e fui adorado em Borsipa, mas na primavera desse país, Shedu ia passando pela beira do grande rio do deus-morto, quando ouviu um soluço fino. Um lamento do fundo das trevas. Era eu. Tinha sido desterrado, exorcizado para os confins do inferno. Depois de muitas eras, vim para o cinturão de fogo. É aqui, a 2.660 metros, bem no alto, rodeado de neve, a minha casa, hueñunauca, há 12 mil anos acendo o Osorno. 


E lá em baixo, no Llanquihue, refletido no lago, vê-se a silhueta do vulcão que esquenta as minhas noites geladas. Sua presença imponente domina a paisagem. 


Quem olha para a maravilha, mal pode imaginar os estragos que eu orquestro. Na primavera, quando os loucos se apaixonam, derreto o gelo e formo um violento aluvião de barro, cinza, lava e troncos, que arrasta tudo que encontra pela frente. Depois da corrida do vulcão, deixo fluir a lava, que incendeia tudo por onde passa. Fiz isso em 1851 e foi um sucesso, mas agora tenho outros planos. 


Gosto do gelo das geleiras. Esta é a minha casa, a casa do demônio. E foi por esses vulcões que entrei no mundo da violência e da morte, pelas mãos do meu amigo Shedu, o demônio das onze horas. Quem está falando ? Shedu ou merodoch 


Posso estar velho e passar as noites aterrorizando os humanos que encontro, mas tenho bom ouvido. Gosto de colecionar as palavras, tirando delas todo sentido, misturando tudo num saco de gatos - que linda expressão -, e depois soprar nos ouvidos desatentos, convencendo salvos e perdidos de que tudo o que se ouve reflete apenas a loucura do mundo dos homens. 


Falar sobre a vida não é fácil, já que eu estou do outro lado. Mas é minha especialidade. A memória humana é uma colcha de sensações. Eles sempre se lembram da dor das pedras. O momento suave é fugidio, escorrega na lembrança, mas o chute fica grudado. Assim são eles. Suas lembranças estão escritas no corpo: a mentira dita casualmente, o roubo rápido e furtivo, o aborto que ninguém soube. Tudo fica escrito. Até as marcas da saudade não se apagam. E para eu soprar no ouvido deles, basta uma leitura lenta, quase uma tradução de cada cicatriz, de cada marca. 


Aprendi a caçar os fantasmas humanos. Mergulho no charco de suas vidas, farejo sentimentos escondidos, estraçalho lembranças esquecidas, ressuscito cadáveres antigos e mal cheirosos. Não há matagal ou pântano que eu não atravesse para chegar à uma boa história de desespero. 


Quem me ensinou esta especialidade demoníaca foi Shedu. No início ele me disse que o mundo das palavras mortas fica aqui, entre ruínas, e que, por isso, não havia razão para eu me afastar. Bastava aprender, com ele, a viajar na memória dos humanos. Sempre levo comigo uma bolsa. É a bolsa onde guardo as palavras que vou achando no meio do caminho. São palavras fáceis, como exatamente, que parece precisa, mas que transformo numa centopéia lânguida. Ou palavras difíceis, como formidável, que vira uma trilha de formigas incendiadas. São palavras de pobre, como guspe, frio e maleita. São palavras quatrocentonas, como treme-treme e sezão. Junto todas elas e à noite vou tirando-as do saco. 


Tenho o meu catálogo, que é infinito como as estrelas do azulão. E aí, sozinho, vou colocando cada uma delas na sua forma. E ficam todas sem alma: as más, as boas, as alegres, as tristes, as grandes, as pequenas, as gordas, as finas, as de morte. E vou formando frases, que classifico de furtivas, de paixão e destruidoras. O demônio é formidável é, logicamente, uma frase furtiva, pois compara o velho Nebo a uma centúria de formigas flamejantes. Na Semana Santa vou comungar é uma frase de paixão, pois se refere à morte de um deus. E a paixão e a morte são irmãs-gêmeas. Ninguém está vendo é uma das minhas frases prediletas, é destruidora. É a porta de entrada da minha casa. 


Ao contrário de nós demônios, na vida dos homens sempre ocorre um encontro de grande significado, encontro que modifica o prumo de seus sonhos. Lembro-me de um jornalista carioca, que na madrugada de 23 de abril, dia de Ogum, foi fazer uma reportagem na floresta da Tijuca. Ele trabalhava na revista Manchete. Era auto-suficiente e não tinha dúvidas quanto à sua capacidade profissional. Vivia com uma jovem, bisneta de escravos, e, no fundo do seu coração, queria ser o dono do mundo. Nessa época, eu, Shedu e Astarote trabalhávamos juntos. Tínhamos organizado uma grande festa. 


Era noite de lua cheia. Corpos endemoniados tinham montado gigantescos labirintos, que terminavam num círculo formado por toras de madeira. Representavam os mortos: os esquecidos e os lembrados. No meio do círculo, muita comida. Do fundo da terra e do oco das árvores saiam sons lindos e terríveis. Sons de cantar, dançar e de fazer sexo. Nunca me esqueço. O luar cobriu a floresta. Astarote vestida de teias e chorando a sinfonia quatorze de Shostakovitch penetrou no labirinto e depositou um feto, a pequena Gaia, numa cova rasa. Eu, cheio de palavras, resfolegando e soltando fumaça pelas narinas, recitava uma pequena carta de Artaud, poeta maldito: "... somos a força da vida, mas esta não é eterna, seja ou não o hálito de deus (...), o que respira não é eterno, e até o hálito-deus tem seu tempo contado". 


E como não fazíamos há muito tempo, utilizando corpos expropriados, comemos, bebemos, dançamos e fizemos o sexo dos malditos, loucos e suicidas. Foi então que apareceu o rapaz. Ele olhou, mas não viu. Nós vimos, lembramos velhas histórias e falamos. Astarote, toda sensual, chamou: 


- Luís, entra na roda. 


Ele levou um susto. Não entendeu como sabíamos o nome dele. Mas cheio de orgulho, aceitou conversar. 


- Quem é você? 


Astarote respondeu: 


- Você sabe, entra na roda e vem dançar comigo. 


Na verdade, o corpo de Astarote era lindo aos olhos humanos. Usava um vestido vermelho rodado, todo trabalhado em renda branca. Sorria para ele, dançava fazendo o vestido levantar. Sob a luz da lua, a cena era encantadora. Os atabaques batiam no ritmo do coração. O ar era de sensualidade e magia. Cuidadoso, mas cheio de autoconfiança, o rapaz respondeu: 


- Não posso entrar aí. Sou filho de Ogum. Meu orixá não permite, ele é o senhor da guerra. 


Era mentira, nós sabíamos. Ele não tinha nenhum acordo com nenhum dos nossos. Mas nós adoramos a mentira. Ah! Se ele pudesse ouvir nossas gargalhadas. Quisemos saltar dentro dele. Era uma casa nova, quase limpa, se comparada às que tínhamos. Partimos para o ataque, mas uma espada flamejante nos impediu. 


- Ele pertence ao Deus criador dos céus e da terra. Aceitou o Senhor e o Senhor o recebeu. Estão proibidos de fazer nele morada e de tocar na vida dele. Esta é uma ordem do Senhor dos senhores, diante do qual se dobrará todo o joelho, tanto no céu, na terra, como embaixo da terra. 


Aquela luz brilhava demais. Feriu nossos olhos, apavorou nossos corações, lembrou-nos da condenação eterna. Nossa festa tinha chegado ao fim. O ódio estremeceu os corpos que ocupávamos. Urramos, gritamos e fizemos com que se lançassem uns contra os outros. Depois, semimortos, os abandonamos ali. A partir daquele momento, resolvemos estraçalhar a vida daquele que nos perturbara. 


Nenhum encontro é casual. Há sempre aquele que busca. Só que nem sempre o que se encontra entra na forma da imaginação. Descobri que a carne sente o gosto da madeira e do metal, mas também do ódio e da mentira. 


No verão, quando sopra aquele vento quente da madrugada, saio pelos montes, atravessando paredes e casas. Transformo o calor no frio da morte, mato a esperança com uma palavra de medo, destruo a aliança com um sopro de adultério. Sobrevôo as árvores, matas e rios, envolvo tudo em trevas, tudo que vejo, imagino ou pressinto. As folhas que se mexeram sem minhas ordens, a mancha escura da nuvem que corre fugaz, o pensamento feito ladrão, que assalta e mata. E o tempo, para que serve? Eu o transformo na memória da solidão. Minhas palavras são punhais assassinos. Elas amedrontam a noite e congelam o dia. E eu fico encantado, como num conto de fadas. Afinal, sou Nebo, mestre da loucura, um demônio muito especial, cheio de malícia e de palavras mortas. 



Capítulo 7 



Aquele inverno está terrível. Yasmin e eu estávamos nos separando. Não tinha lógica nenhuma. Eu a amo, eu preciso dela, mas não agüentava ir ao Pedagógico, assistir aulas, vê-la alegre e cercada de amigos. 


Andava deprimido, não consiguia aceitar o Chile como minha nova morada, com a possibilidade de nunca mais voltar ao Brasil. O frio, as árvores desfolhadas, equlee sol efeminado que não esquentava nada, nem ninguém... 


Hoje resolvi andar sem destino. Peguei a Bernardo O’Higgins e caminhava como se carregasse um trem nas costas. O inverno de Santiago era cinza. E eu carregava o meu trem sob um céu cinza. Parei num bar, sentei e pedi um conhaque. Tirei um livro do bolso e comecei a ler. Era professor assistente da cadeira de psicologia social. Dava aulas de Reich. 


Análise do caráter e A revolução sexual estavam entre meus livros prediletos. Tinha nas mãos o livro de um autor que não era encontrado naquele Chile de Allende. Os comunistas não gostavam de Reich e pressionavam para eu desistir de meu projeto. 


A vida é tão simples (...). Apenas torna-se complicada pela estrutura humana caracterizada pelo temor à vida. A consecução geral teórica e prática da função vital e da segurança de sua produtividade chama-se revolução cultural. Sua base somente pode ser a democracia do trabalho natural. Amor, trabalho e saber são as fontes de nossa existência. Deverão regê-la também, afirmava o amigo Reich. Eu até achava que ele tinha razão, mas nunca tinha visto alguém viver isso. 


Irina, minha amiga e catedrática de Psicologia Social, me enturmou com um pessoal que está realizando uma experiência inédita aqui em Santiago, uma clínica de terapia de grupo ao ar livre, com jogos, pouca roupa e muito rock. É meio woodstock, mas eu gostava. Só não sabia se ia dar certo. Já tinha tido vários problemas. 


Vi minha terapeuta transando com um dos nossos. Vi por acaso, mas não gostei. Na verdade, morri de ciúme. Márcia era uma jovem belíssima. Do tipo loira esguia. Às vezes, tomávamos banhos juntos, todo mundo, debaixo de uma árvore centenária. Somos uns dez, mais ela e Rodolfo, outro terapeuta. 


Num daqules dias, estávamos sentados em roda, e Márcia pediu que eu expressasse o que sentia para um jovem que estava ao meu lado. Ele se levantou. Eu me levantei e dei-lhe um soco no meio da cara. Foi a maior confusão. Mas por que você fez isso? Quem está falando ? E o sujeito chorando. Chorando de soluçar. Imagina, chega na terapia e leva um soco na cara. 


-- Por que eu fiz? Porque queria. Você não disse para eu me expressar? Então quebrei a cara dele. Pressionaram e eu dei um abraço nele. Pedi desculpas. Ele aceitou. 


Outra vez saíamos da terapia, em grupo. Estávamos, não sei porque, na maior felicidade. Ríamos, brincávamos, quando saiu um sujeito de um bar e passou a mão, espalmada e vagarosamente, nas partes de Lílian. A menina deu o maior berro, de susto, imagino. 


Dei um grito, um salto e quebrei o nariz do sujeito. Ele correu para dentro do bar, com a mão no nariz. Os amigos pegaram tacos de sinuca e vieram contra mim. Parei no meio da rua e comecei a lutar contra uns cinco. Todo o esforço do Lírton, que nos dava treinamentos especiais para briga de rua, florava naturalmente. Eu era um bailarino, voando nos peitos daqueles coitados. 


Uma mulher, cambaleante de bêbada, com uma criança no colo começou a gritar desesperadamente. 


- Ele deu um murro no meu filhinho, deu um murro no meu filhinho. 


Perdi a concentração. O balé perdeu seu ritmo, pessoas começaram a me rodear e, de repente, uma multidão correu atrás de mim. Os dos tacos de sinuca, gente com paus e pedras. Uma multidão. Eu ia ser linchado... 


Lílian me salvou. Chamou a polícia, que de viatura e sirene aberta me agarrou e me levou para a delegacia. Mas a multidão não desistiu. Correu para a delegacia. Queriam me linchar de qualquer jeito. Eu era um perigo para a pacífica sociedade chilena. 


E uma outra história foi contada ao delegado. Eu, um carateca brasileiro, louco, havia esmurrado uma criancinha de colo e, por isso, aqueles pacatos jogadores de sinuca se sentiram na obrigação de defender a criança e sua mãe. 


Depois de umas duas horas de xilindró, a situação se acalmou e o delegado me chamou. Já tinha ouvido o depoimento de Lílian e do pessoal da terapia. Ouviu o meu, me deu alguns conselhos sobre não ficar usando meus conhecimentos de artes marciais por aí, me desejou boa sorte e me soltou. 


Irina e Márcia diagnosticaram machismo incurável. Lílian gostou, passou a dizer que era seguro andar comigo. 


O conhaque é espanhol. Reich continua a falar mal da família monogâmica, diz que a comuna é a nova família. Os comunistas nunca vão aceitar isso. 


A compulsão à destruição é obsessiva. Conheci uma jovem loura e tímida, que acaba de chegar de Brasília. Joguei Yasmin fora, sem ao menos me dar conta de que estava vivo graças aos cuidados dela. Mudei de casa e iniciei um longo mergulho de sensualidade e niilismo. Eu e Náiade fazemos sexo doze horas seguidas. E dormimos as outras doze horas. Conseguimos passar semanas inteiras sem sair de casa, sendo alimentados pelos amigos, que estarrecidos, deixam as refeições na porta do apartamento, para que não morramos de fome. Só depois de um mês de puro sexo saímos pela primeira vez. 


É impossível esquecer aquela noite. Era inverno, passamos pela casa de Gabriel, bebemos muito, e fomos assistir a uma peça de teatro na Universidade do Chile. Antes mesmo de terminar o espetáculo, eu aplaudia e gritava como um alucinado. Mal se fecharam as cortinas, pulei no palco e fui abraçar os atores. Minha euforia era contagiante. Noite gelada, céu estrelado e uma sensação de estranhos poderes. Náiade se enroscava em mim. Estava feliz. Todos meus amigos estavam felizes. Luís superou a crise, estava curtindo a vida, apaixonado. Não iria se suicidar. 


Aliás, já tinham realizado algumas reuniões de cúpula com Mário Pedrosa e Mary, sobre minha situação. E o velho Mário, muito sábio, declarou: "Não se preocupem, é uma crise epistemológica. Se ele superar, aprende com ela e vai em frente. Cresceu. Se não superar, se suicida. Não merece a vida que tem". Todos tinham um amor muito grande por mim. Muito grande mesmo. Eu era violento, assassino e suicida em potencial, mas meus amigos me amavam. Só que eu não tinha tempo para olhar para esses detalhes. O importante era guerrear a guerra da vida. O resto, ora que resto? 


Era noite de São João. Convidei um grupo de amigos para jantar em casa. Tínhamos feito um peixe assado, o vinho branco estava na geladeira, e íamos servir o jantar à luz de velas. Antes, porém, fui fazer uma visita ao João. Quando cheguei lá, vi um sujeito que não conhecia e que, coitado, acabava de chegar do Rio de Janeiro. Estava acompanhado de uma moça magra, elétrica, que vestia verde e usava uma boina, imaginem(comparar com os outros verbos que o autor dialoga com o leitor e verificar se estão no plural), verde também. Parecia um grilo. Olhei para o sujeito, gritei que não ia com a cara dele. Dei um urro horroroso e pulei com os dois pés do peito dele. O sujeito quase caiu morto: de susto, aterrorizado. Convenceram-me a ir embora e saí babando de ódio. Com Náiade do lado, mansa como se nada tivesse acontecido. Horas mais tarde, quando íamos dar início ao jantar, entre os convidados, quem chega? Os dois. Ele e ela. 


Todos se sentam à mesa. Levanto-me, dirijo-me à carioca recém-chegada e pergunto: 


- Vou tomar um banho de banheira, você quer vir comigo? 


Ela responde afirmativamente. Todo mundo está estatelado, principalmente Náiade. 


Eu pergunto: 


- Como é seu nome? 


- Anabella. 


Alex e eu fazíamos pesca submarina na praia Vermelha. A gente sai cedo de casa e levava toda a tralha em duas sacolas grandes: pés de pato, máscaras de mergulho, tubos de respiração, facas e arpões. Não usávamos acqualung. Mergulhávamos no fôlego. 


Leváramos também água potável, dois sanduíches e duas maçãs. 


Da praia Vermelha, ali ao lado do forte, nadávamos uns quinhentos metros, cada um com sua sacola, até a ponta da pedra. Ficávamos em frente ao mar aberto. 


Instalávamos nosso QG ali. Escolhemos uma área protegida para as sacolas e a comida e iniciamos a pesca. 


O mergulho. O sol atravessou às duras penas a transparência do mar. Só ali no fundo encontrava o verde que eu quero, verde. Os cardumes de peixes coloridos diante de meu nariz e as algas que docemente oscilam ao sabor da corrente dão a agradável sensação de vôo livre. 


O arpão estava armado, mas a primeira hora de mergulho era só de observação. Alex e eu sempre mergulhávamos ali, por isso, já conhecíamos aqueles amigos das profundezas. A gruta da lagosta, que sempre fugia à nossa chegada e que não nos preocupamos em caçar. Nem fisga para lagosta a gente traz. Bagre e peixe pequeno a gente também não pesca. Era a maior vergonha aparecer lá em cima com alguma coisa pequena. 


Caçonete era a meta. Mas não era fácil. Dependia da temperatura da água, da corrente e até mesmo da claridade do dia. Água fria, turva, e dia nublado favoreciam a caçada, mas, mesmo assim, não era fácil encontrar o cação. 


Depois do cação vinha a arraia e o polvo. Se o mar tivesse cação, tudo bem. Era uma questão de destreza e mira. Às vezes, ele passava diante da tua cara e quando você vai atirar, ele já saiu da linha de tiro. Você perseguia e ele mergulhava. Você ia até onde o fôlego dava. Pode ter sorte ou ter que subir rápido porque os pulmões ameaçavam explodir. 


Já a arraia eram outros quinhentos. Ela ficava lá em baixo, quietinha, mimetizada na areia. Se bobeasse, você passava por ela e nem via. Ela então dava uma deslizada rápida pelo fundo, em busca de outro esconderijo. 


Esse era o momento. Você estava em vôo livre, por cima, armado. Tchum... O arpão cortava a água e atravessava a arraia. Ela ficava grudada no fundo se contorcendo. Você tirava a faca e cortava o rabo dela. Segurava o arpão e a trazia para a superfície. 


--Peguei, peguei uma arraia... 


--Alex me ajuda, enrola em jornal e coloca numa das sacolas. 


Tinha ainda o polvo. O certo era pescá-lo com fisga. Ele se escondia nos buracos das pedras e acertá-lo com arpão não era fácil. O melhor era a fisga. Por isso, só levávamos polvo para casa, quando, num golpe de sorte, ele dava bobeira e a gente conseguia acertá-lo. 


Parada para o lanche. 


- Tia Lucy fez os sanduíches. Misto quente, frio.


- Tá bom. 


- Você está gostando de morar com o Walter? 


- Ele é gente fina. Está me ensinando boxe. 


Alex e eu sempre nos dávamos muito bem, mesmo quando brigávamos. Geralmente era eu quem brigava. Ele era muito inteligente. Aprendeu a ler aos três anos de idade, mas não gostava de estudar. Fugira da escola várias vezes. Era um típico menino do Rio. Passava o dia na praia. Magro, muito queimado de sol, olhos negros, sobrancelhas enormes, lembrava o Amynthas, dizia orgulhosa a pequena Maria. É um garoto lindo, saudável, um pequeno animal selvagem. Marinho. 


- Gostaria de ter conhecido o Amynthas, ou me lembrar dele. 


- Você era o nariz de batatinha. Ele gostava tanto de você, que você recebeu sua primeira surra aos três anos. 


- Pô, e isso é sinal de gostar? 


- Para ele sim. O Amynthas tinha um padrão de educação meio antigo. Quem ama, educa. 


- Você apanhou muito, não é? 


- Não mais que o necessário. Amynthas e Maria ficavam loucos comigo. Eu era um menino da pá virada. 


- Por falar nisso, acho que o tempo vai virar. Vamos mergulhar mais um pouco. Se o mar picar, adeus pesca. 


- Vamos lá. 


Já tínhamos uma arraia, mas sabia que Alex não queria voltar de mãos vazias. Quando não pescávamos nada, levávamos mariscos. Eles aqui são grandes e bonitos. 


Tia Lucy gostava. Transformava peixes em caldeiradas e frutos do mar, em paellas. Nas mãos dela tudo virava banquete. E na hora do jantar, sempre regado a suco de frutas brasileiríssimas, carambola, jabuticaba, tamarindo, fazia um elogio rasgado à nossa destreza de pescadores submarinos. Tio Waldemar, Daniel e Eduardo também comentavam e aprovavam. Alex e eu somos os heróis da noite. 


Waldemar é filho de alemães. Seu pai tinha uma metalúrgica em Joinville, onde Daniel e Eduardo nasceram. 


Ele e tia Lucy tinham se conhecido no Rio, quando ele fazia faculdade de medicina. Depois a fábrica pegou fogo, um dia depois do seguro vencer, o pai deixou de mandar dinheiro e ele passou a representar madeireiras do sul no Rio. 


Era um sujeito esperto, com muito tino para os negócios. Trabalhava sozinho, em casa. Usava telefone, a Western para seus telegramas, e toda a madeira vinha de navio, cif ou fob, a gosto do cliente. Fornecia madeira para a construção do Maracanã e estava ganhando muito dinheiro. 


O mar picou e Alex não pegou nada. Fiquei na minha. Para ele não ficar muito chateado, pegamos umas dúzias de mariscos, embrulhamos tudo em jornais, colocamos nas bolsas e nadamos devagar, de volta à praia.

O céu nublava, soprava um vento sul que devia trazer chuva. Era bom acelerar o passo... 



Capítulo 8 



Ontem tinha recebido uma carta do Rio de Janeiro. Uma carta de meu primo Daniel. Durante muitos anos morei com meus primos Daniel e Eduardo, ali na Glória. O sonho dos dois era serem pilotos da força aérea. Cursaram Agulhas Negras, mas Eduardo acabou indo para a intendência. Agora era coronel. E o Daniel fora desligado. Talvez tivesse feito uma barbeiragem num de seus treinamentos e quase enfiara o avião em cima de uma torre de alta tensão. 


Ficara na maior fossa. Todo mundo pensando que ele ia desistir de viver... Mas, deu a volta por cima. Começou a ler a Bíblia e a freqüentar as reuniões dos batistas numa igreja lá perto do Rio Comprido. Fez medicina e se tornou missionário. 


Daniel era um sujeito peculiar. Inteligente, culto, falava e escrevia bem. Digo peculiar, porque eu e ele crescemos no meio da malandragem da Glória. Conhecíamos todos os bandidos do pedaço. E curtíamos as noitadas ali na taverna. 


Quando éramos garotos, gostávamos de colocar umas bombas chamadas cabeça de negro no banheiro dos homens, que tinha uma portinha ao estilo de bar de farwest. Era uma loucura, os marinheiros que ficavam por ali agarrados às prostitutas, de vez em quando eram apanhados de surpresa por uma violenta explosão no mictório. 


Saíam às carreiras, com as calças no meio das pernas, gritando feitos loucos. E nós lá fora, rolando de rir do desespero alheio. 


Outras vezes, a situação engrossava. Uma vez nosso amigo Camões, um cara parrudão, um pouco pro violento, mas muito amigo nosso, teve uma briga feia, num beco ali perto. Um cara o pegou de jeito, deu-lhe uma banda, e começou a bater a cabeça do Camões no meio fio. Com a cabeça quebrada e sangue correndo por todo lado, Camões conseguiu pegar seu canivete automático e enfiar na barriga do cara. 


No desespero, correu para a taverna. Mas correu com o canivete na mão. Toda a turma estava lá bebendo. No desespero, Camões passou o canivete para o Alemão, que passou para o Lourenço, que passou para o Daniel, que sentou em cima. 


Não deu nem tempo do pessoal respirar e chegou a dona justa. Pularam em cima do Camões como gato em cima do rato. Todo mundo branco quase fazendo nas calças. Mas todos sentados. Os tiras se engalfinharam com o Camões. Todo mundo sentadinho, branco quase fazendo nas calças, mas sem sair do lugar(texto semelhante, talvez re-escrever). Como se nada estivesse acontecendo. Levaram o Camões. Chamaram o Alemão e o Lourenço para irem juntos. Meu primo ficou quieto. Bom moço, sentado em cima do canivete. 


Dá-lhe Luís. Estou com saudades. Espero que você e Yasmin estejam felizes com a vida nova aí em Santiago. Todo mundo está preocupado com vocês. Ninguém entendeu porque você deixou a Manchete e se mandou. Só quem está mais despreocupado é o Eduardo. Ele vivia dizendo “ainda vou ter que tirar o Luís da prisão”. Sei que você sabe se virar. Mas não se esqueça de Jesus, meu chapa, só ele é o Filho de Deus. Só ele é garantia de vida eterna. Tudo o mais, por importante que seja, é apenas vapor, vaidade humana. 


Lembra-se de quando conversávamos sobre a bíblia? A gente ficava de madrugada, na varanda do apartamento, tomando ovomaltine batido no liquidificador com leite e cubos de gelo, com açúcar e muita espuma, e falando sobre os heróis da fé. Lembra-se da coragem de Isaías, que foi cortado pelo meio. E do meu xará, que enfrentou leões, mas não afinou? 


E não deixe de ler a bíblia. O apóstolo Paulo, quando escreveu ao seu amigo Timóteo, disse que a escritura é a palavra de Deus, dada ao homem para guiá-lo na experiência da salvação. É livro único porque tem um único mentor, o próprio Deus, que soprou o seu hálito criativo sobre os homens que o escreveram. 


Além de um mentor único, as escrituras sagradas têm um personagem principal, Cristo. Ele próprio, quando esteve aqui, em carne e osso, disse que deveríamos examinar as escrituras, porque julgamos ter nelas a vida eterna e são elas mesmas que dão testemunho de sua filiação e de sua autoridade. 


A bíblia, primo de guerras e aventuras, conta uma única história, a tragédia da queda da humanidade nas trevas e sua salvação através de Cristo. Eu e você gostamos de escrever, por isso vou arriscar uma imagem que é comum à sua atividade literária: as escrituras têm um autor, que é Deus. Um argumento, só Cristo pode salvar o pecador. Um roteiro, a história da salvação. E centenas de capítulos, a história da salvação em cada época, em relação a cada povo e a cada homem. 


"Pois tudo quanto outrora foi escrito, para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança", disse o apóstolo Paulo quando escreveu aos cristãos em Roma. 


Aliás, no início dessa carta aos romanos, ele afirma que a causa da condenação de Deus ao mundo é a ignorância deliberada do homem. "Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a própria divindade, claramente se reconhecem, desde o começo do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas". 


Não se esqueça disso, a ação e a presença de Deus nunca estiveram escondidas do homem, pois a natureza revela o poder e a divindade do verdadeiro Deus a todos os homens. A ignorância deliberada, que tem por base raciocínios nulos, tornam o homem indesculpável perante Deus. 


Pode ser que essa conversa pareça distante da sua realidade atual. Mas quero que você recorde verdades que já conhece. Quero conversar sobre a bíblia, porque sei que o marxismo centra seus argumentos na impossibilidade de ser ela um livro inspirado. Você me desculpe, mas na próxima carta vou voltar ao assunto, com argumentos mais profundos. 


Aqui todo mundo está bem. Você sabe que não gostamos dessa ditadura. Mamãe torce pelo Juscelino, como mineira quatrocentona, eu e o Eduardo torcemos por você, mas achamos que você pode ser um grande político sem ser ateu. 


Manda um abração pro Allende


Dá-lhe Luís! 


Do primo Daniel. 


Carta maneira. Daniel sempre conseguia me fazer pensar, mesmo quando discordava dele. Talvez fosse essa sinceridade transparente com que ele dizia as coisas. Ele não precisava seguir esse caminho. Mas o fato de ter dinheiro nunca significou muito para ele. 


Estudava em colégio de menino rico, no Santo Inácio, ali na Rua do Catete, mas sempre teve amigos pobres e paupérrimos. Aliás, Camões talvez fosse o maior de todos. Juntos falsificavam carteirinhas do Flamengo para entrarem nos bailes de carnaval, davam o chapéu em trocador de bonde e se apaixonaram por duas gêmeas que moravam na rua Santo Amaro. 


Se ele escrevesse, leria e responderia. Mas sem grossura. Daniel merecia todo o respeito do mundo. 



Capítulo 9 



-- Escrevi para minha mãe. Contei que conheci um homem maravilhoso. Você. Disse que estou apaixonada. 


-- Será que ela vai acreditar? 


-- Claro, nunca falei de homem nenhum assim. 


-- Mas só tem um mês que estamos juntos! 


Anabella e eu estamos morando emprestado num apartamento de sala, banheiro e cozinha, mínimo, perto do rio Mapocho. O bairro é barra pesada. Nas primeiras noites não dormíamos direito por causa dos tiros. Nada político. É briga mesmo nos bares e inferninhos da rua em frente. Agora já acostumamos. Às vezes, antes de dormir fico tentando adivinhar o tipo da arma usada. Tiro de calibre 22, 32 e, vez ou outra, 45. 


- Acho aquele nosso café da manhã uma loucura. 


- É, os argentinos, não se arriscaram. Mas qualquer francês ia dizer que é muito sofisticado. 


Ostras com vinho branco gelado. Esse é o nosso café nas manhãs de sábado. Moramos ao lado do Mercado Municipal. As ostras são fresquíssimas, o vinho é servido em copo e tudo ao preço de uma média com pão e manteiga. Mas os companheiros argentinos do Partido Revolucionário dos Trabalhadores, PRT - La Verdad preferiram não arriscar. Um deles alegou gastrite. Vieram discutir a formação do partido no Brasil. Acham que as condições estão mudando e que o governo, dentro de alguns anos, terá que aceitar uma abertura política. Eu concordo. Anabella acha que estamos delirando. 


- A barra está pesadíssima. 


- Está, mas vai mudar. 


- Olha, eu estava namorando o Mariozinho, ali na praia do Leme, pertinho do forte. Eram umas dez da noite. Nós estávamos na areia. De repente, apareceu um soldado. Ele enfiou o fuzil na cara do Mariozinho, me xingou de tudo que era palavrão. Disse que ia nos prender, porque éramos subversivos. Foi uma loucura. Então, abriu a braguilha... 


Coloquei os dedos nos lábios de Anabella, pedindo silêncio. Seus olhos estavam marejados. Eu conhecia uma porção de histórias como essa. Histórias de humilhação. 


- Deixe para contar outra hora. Não vale a pena começar o sábado assim. 


Estou trabalhando numa metalúrgica no bairro operário de Vicuña Mackenna. Sou soldador. É uma fase nova e dura na vida. Acordo às cinco da manhã e entro na fábrica às 6h45. Trabalho até às cinco da tarde. Chego literalmente morto em casa, às sete da noite. Aí, só dá para tomar banho, comer alguma coisa e desmaiar. Passo o dia, não somente soldando, mas carregando ferro de um lado para o outro. Nem sexo faço mais durante a semana. 


Sábado e domingo são dias especiais e, por isso, devem ser muito bem aproveitados. 


- Vamos para Valparaíso. 


- Isso mesmo, almoçar à beira-mar. 


E lá vamos nós, num micro-ônibus, descendo a cordilheira em direção ao oceano Pacífico. Valparaíso é uma cidade histórica. Lembra-me a II Guerra Mundial e o Bismarck, encouraçado alemão que afundou em frente à cidade. Encontramos um restaurante que fica quase na areia, de frutos do mar. É um restaurante digno. Não muito limpo, mas não é sujo. A maresia é forte e fria. Na verdade, está ventando. Anabella está de calça verde, uma blusa de malha de manga comprida e um colete felpudo de cor vinho. Corre pela areia, enquanto pelicanos sobrevoam sua cabeça. Alguns, despreocupados, caminham ao seu lado. Aproveito a cena e tiro algumas fotografias. 


- Uma amiga minha, que trabalha na Gillete, vem passar as férias aqui no Chile. Quero que você a conheça. É louquíssima. É quase uma irmã. 


- Será que alguém com a cabeça no lugar viria passar as férias no Chile? 


- Você está exagerando. 


- Não estou. Só estou dizendo que chamar a sua amiga de louquíssima é pleonasmo. Se vem para o Chile de Allende e não é de esquerda, só pode ser louca mesmo. É isso que eu quero dizer. 


- Você complica tudo. Não se esqueça que está baratíssimo fazer turismo no Chile. 



- É, nisso você tem razão, mas ainda acho que ela é louca. Afinal, é sua amiga. 



- Estava pensando. Você toparia passar umas férias na Argentina? Eu tenho que ir ao Brasil. Você me esperaria em Buenos Aires, e voltaríamos a Santiago por Bariloche, passando pela região dos lagos, Osorno, Puerto Montt e Valdívia. 


- Tem a fábrica. Tenho que ver se é possível. 


Eu, de jornalista, tinha virado soldador. E Anabella fazia um curso de fresadora na Universidade Técnica. Estava se preparando para trabalhar em fábrica, no Brasil, quando voltássemos definitivamente. Apesar das dificuldades, acreditávamos que a formação de um partido socialista passaria inevitavelmente pelas novas cidades industriais que tinham surgido nos últimos anos. Apostávamos no ABC paulista. 


Assim, durante a semana, ambos vestíamos macacões, usávamos luvas grossas, óculos de segurança, e vivíamos uma vida nova, pesada e cansativa, mas cheia de esperança no futuro glorioso da humanidade. Aos sábados nos divertíamos, viajávamos, comíamos em restaurantes baratos e dançávamos à noite. Aos domingos, tínhamos reuniões políticas. 


Não gosto de praia, gosto de mar. 


Deitar na areia, torrar, nunca curti. Vou à praia aos domingos de manhã por obrigação social. Senão fico desenturmado. Jogo futebol de areia no final da tarde, porque o sol está fraco. A claridade e o calor da manhã me incomodam. Prefiro a noite. 


Do hospital da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, no alto da Tijuca, onde nasci, dando uma quebrada pela Mangueira, atravessando toda a zona sul até a Barra da Tijuca, conheço tudo. Esse é o meu Rio. Mas tenho os meus espaços: a taverna da Glória, a Prado Júnior e a galeria Alaska. 


Noite e juventude transviada. Lugar por onde andam os malditos. Meus amigos beatniks, de corrente no pescoço, meus amigos existencialistas, que lêem Sartre, Camus e cantam Boris Vian: 


“Je viens de recevoir/ 

mes papiers militaires/ 

pour partir à la guerre./ 

(...) Je ne veux pas la faire,/ 

je ne suis pas sur la terre/ 

pour tuer des pauvres gens./ 

(...) Je m’en vais déserter...” 


Tudo isso, mais o inferno sexual de alguns deles, que sofrem com seus romances proibidos, mergulhados em culpa, álcool e drogas. 


É o caso de Luciano. Ele é apaixonado por um garoto de 18 anos. Um menino caladão, que só de vez em quando sorri. Luciano morre de ciúmes e talvez por isso o garoto desaparece. Acho que ele tem uma vida dupla. Aliás, não acho que seja namorado de Luciano, acho que é michê. 


A viagem do amigo Luciano é alucinante. Começou com as prises de lança-perfume, depois partiu para as anfetaminas, agora compra um medicamente para otite, que ele destila e injeta na veia do braço. No lugar das veias tem manchas roxas e hematomas. 


Depois de injetar-se, Luciano fica com os olhos vidrados, olhando para o nada. Fica caído, num canto do quarto, como um trapo. 


Não sei qual é o barato, mas é algo ligado ao desespero da vida dele. Quando o garoto desaparece ou quando a vida pesa, ele se droga. E como a vida dele é uma droga, ele se droga sempre. 


Luciano é um sujeito culto, mas o que ele sabe não produz nada. Escreve um livro que nunca termina e tem projetos que nunca começou. 


Somos amigos, mas ele me odeia. Gosto da vida e acho que ela vale a pena. Ele tem um tropismo pela morte. 


Já foi internado duas vezes no Dr. Eiras para tratamento psiquiátrico, mas não adiantou. Sai de lá, inchado, de tanto medicamento, aparentemente manso, falando devagar. Um mês depois, já secou por inteiro, está falando rápido como locutor do jóquei e se drogando a mais não poder. Por isso, as pessoas o chamam de Luciano bolinha. 


Se fosse traduzir a personalidade de Luciano numa palavra diria agressividade. Às vezes, parece que vai babar como um cachorro louco e agredir quem está na frente. Como é muito magro, pele e osso, nesses momentos ele treme muito. 


Quando escreve um texto mostra para todo mundo, ri muito e fica na maior euforia. Gostamos desse pique de Luciano. Ele escreve bem e todos na Manchete sabemos disso, mas sua produção depende de tantos fatores e humores, que a maioria prefere não contar com ele. 


Não gosto de praia, gosto de mar. 


Mar é nadar, mar é pescar, mar é a imensidão besta, infinito verde, um mundo abaixo da linha da aparência. Passei grandes momentos no mar. 


Aprendi a nadar com a pequena Maria, em Icaraí, jogado no mar. Não afundei e depois tive aulas, com ela, de respiração, movimentos e técnicas. Em casa todos nadamos, mas o grande mestre era o Amynthas. 


Alex se afogou pela primeira vez aos cinco anos. Entrou na arrebentação de peito aberto. Maria nem notou. Foi resgatado por um salva-vidas. 


Só uma vez dei um vexame desses. No Flamengo, mar furioso de inverno, sob a bandeira vermelha. A bem da verdade, eu já tinha nadado e voltava para a praia quando fui golpeado na nuca por uma muralha de água. 


Rodopiei, comi areia e fui agarrado por dois salva-vidas que me pegaram pelos braços e me trouxeram até a praia. Eram umas seis da tarde. Alex deitou e rolou. Tirou o maior sarro. Fiz uma ficha de afogado na barraca dos salva-vidas, rodeado de curiosos, assinei o papel e saí na maior vergonha. Mas quem manda nadar em mar de ressaca? 


Gosto de nadar à noite. Entrar no mar ali em frente à Santa Clara e ir devagar, bem devagarzinho, em frente. Depois fico de papo pro ar, boiando, olhando pro céu. É o melhor lugar para você namorar estrelas. Depois, de novo, bem devagar, devagarzinho, nado em direção ao colar de luzes de Copacabana. 



Capítulo 10 



Dá-lhe Luís. 


Estou aqui de novo. Infelizmente, vou começar esta carta com uma notícia ruim. Lembra-se do seu amigo Luciano, aquele que trabalhava na Manchete. É, ele se matou. Estava na casa do primo, num estado depressivo lastimável. Depois de uma longa conversa e com aval de Luciano, o primo telefonou para uma clínica pedindo que mandassem uma ambulância. Nesse meio tempo, Luciano levantou-se da poltrona, correu em direção à janela e atirou-se. Espatifou-se oito andares abaixo. 


Foi a maior depressão, mas de certa forma um fim desse era esperado. Infelizmente. 


Texto revelado. Texto confiável? 


Eu disse na última carta que gostaria de conversar com você sobre a Bíblia. A questão é: será que ela merece confiança. É tudo uma baboseira ou posso confiar no que ela diz? 


Quando Moisés levava seu povo, que tinha sido escravo no Egito, em direção a uma terra prometida, Deus disse a ele: 


"Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os juízos que eu vos ensino, para os cumprirdes, para que vivais (...). Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do Senhor vosso Deus, que eu vos mando". 


Um milênio e meio depois, um discípulo de Jesus escrevia assim aos judeus que tinham aceitado o Messias: 


"(...) havendo Deus, outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo". 


Aqui vemos não somente um Deus de amor falando aos nossos antepassados, homens e mulheres de nossa espécie, de várias maneiras, através das Escrituras, mas ligando a revelação do antigo testamento a uma outra apresentada em Cristo. 


A revelação das escrituras no antigo testamento prepara o terreno para uma nova revelação: Cristo. Este Cristo é Deus feito carne e osso, que morre em lugar do homem rebelado, e cria as condições para um novo e eterno relacionamento entre Deus e cada um de nós. 


Mas Deus não parou aí. Hoje, além da natureza, das escrituras, da revelação que é Cristo, ele fala através do Espírito Santo, que é nosso advogado, aquele que apela, argumenta, fortalece e defende. Jesus, não nos deixou órfãos. Ele prometeu, que "o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito". 


Mas Deus não parou aí. Hoje, além da natureza, das escrituras, da revelação que é Cristo e nosso advogado perante o Pai, ele fala através do Espírito Santo, “o Consolador, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembra de tudo que vos tenho dito” (sugestão) 


Lembre-se, Luís, você não está sozinho, abandonado. Há alguém que fará você recordar-se daqueles ensinamentos essenciais à sua salvação.


Como você gosta de temas complicados e eu quero fazer uma defesa racional da fé, vou aprofundar um pouco mais minha exposição. Na verdade, o único conceito teológico que deixa claro que a revelação nas escrituras é cem por cento divina e cem por cento humana é o conceito plenário-verbal. 


Em primeiro lugar, Deus soprou. Há uma ação clara de Deus, de presença ativa e poder. Essa ação de soprar seu hálito divino é a inspiração. Em segundo lugar, este soprar não se dá apenas sobre um trecho ou outro das Escrituras, mas sobre ela toda, de conjunto. É uma inspiração plena. 


Mas é também uma inspiração verbal. Todas as palavras e relacionamentos verbais, nos manuscritos originais, são inspirados. O texto inteiro está sob inspiração. É Cristo quem diz isso. "Porque, digo com toda a certeza, até que o céu e a terra passem, nem um yod - a menor letra do alfabeto hebraico, que se parece um apóstrofo - ou um risquinho, jamais passará da lei, até que tudo se cumpra". Assim, referindo-se ao antigo testamento, Jesus deu a seus discípulos um conceito sublime de inspiração. 


Ora, se Jesus nega qualquer relativismo em relação à inspiração, por outro lado eu discordo das posições que sugerem a possibilidade de que os textos foram psicografados. Acredito, Luís, que o Espírito Santo apresentou as idéias, ajudou os escritores bíblicos a verbalizarem a revelação, respeitando a realidade cultural, de estilo e vocabulário de cada um, evitando, porém, erros em relação à mensagem. Não há entropia. O processo de revelação é indutivo, mas não viola a personalidade do escritor. 


Sei que você entendeu. A conclusão, então, é clara e coerente. Os manuscritos originais são cem por cento divinos e cem por cento humanos. Nesse contexto, quando todos os fatos descritos e previstos pelas Escrituras forem totalmente conhecidos, veremos que ela é plenamente verdadeira. Isso é a inerrância bíblica. 


Houve uma época, aos dezesseis anos, que você sonhava em ser pastor. Não sei por onde andam seus sonhos. Mas como conheço você, vou deixar a teologia um pouco de lado. Quero falar de arqueologia. Afinal, quando os homens se calam, as pedras clamam. 


Você concorda comigo que a Bíblia é um livro muito antigo, não é? Mas Deus, na sua bondade, criou as condições para que tivéssemos hoje um texto quase perfeito em relação aos manuscritos originais. Vejamos algumas evidências. Os rolos de manuscritos descobertos em 1947, nas cavernas de Qumran, no mar Morto, incluem fragmentos e livros do antigo testamento e do período helênico. Esta biblioteca foi escondida pelos essênios, um grupo de judeus piedosos, nas cavernas de Qumran no ano 68 d.C., prevendo ofensivas maiores dos romanos. Desde o ano 66, judeus e romanos estavam em guerra. 


No ano 70, Tito, general romano, destruiu Jerusalém. Mas a providência divina cuidou para que a biblioteca dos essênios fosse salva e quase dois mil anos depois chegasse até nós quase inteira. Aí estão importantes fragmentos de Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Samuel, Salmos, Eclesiastes, Isaías, Jeremias e Habacuque. 


Em relação ao antigo testamento, as descobertas arqueológicas de Qumran aproximam em centenas de anos esses manuscritos de seus originais. Discordando dos marxistas, que afirmam que os evangelhos, Atos dos Apóstolos e os textos de Paulo são posteriores ao período apostólico, alguns especialistas afirmam que fragmentos desses textos podem ser encontrados na biblioteca de Qumran. Se essas afirmações forem corretas, os evangelhos de Marcos e Lucas, Atos dos Apóstolos e as epístolas de Paulo foram escritas antes do ano 68, e considerados de tal importância a ponto de serem incluídos na biblioteca dos essênios. 


Ainda sobre o novo testamento é importante dizer que é o documento histórico antigo melhor confirmado pelo testemunho dos manuscritos. Temos hoje 24 mil cópias antigas de porções do novo testamento. Em todos esses textos, comparando um com outro, foram encontrados apenas cinco por cento de variação: erros de cópia e variações de ortografia. A crítica textual, através da reconstrução, reduziu esta percentagem para 0,05%. Ou seja, das cerca de oitenta mil palavras do novo testamento, só existem dúvidas em relação a quatrocentas palavras. Temos assim, o texto do novo testamento praticamente intacto. 


Agora vai uma novidade. Tenho quase certeza que você desconhece, porque está acontecendo agora e nos últimos anos você abandonou seus estudos teológicos. 


Em relação ao livro de Gênesis, há uma prova irrefutável de sua veracidade. Dois professores da Universidade de Roma, Paolo Mathiae e Giovanni Petinato, estão dirigindo escavações no sítio arqueológico de Tell Mardickh, desde 1964. Na região escavada, existiu a cidade de Ebla. A cidade, no auge de seu poderio comercial, 2.300 anos a.C., possuía uma população de 260 mil pessoas. Ebla foi destruída, em 2.250 a.C. por Naram-sin, neto de Sargão, o grande. 


O interessante, Luís, é que a equipe de arqueólogos já desenterrou aí dezessete mil tabletes, a grande maioria de relatórios comerciais entre Ebla e as cidades vizinhas. 


Sodoma, Gomorra e as três outras cidades da planície mesopotâmica, citadas em Gênesis 14, durante séculos foram consideradas lendas, pelos historiadores. Agora, no entanto, temos certeza de que essas cidades existiram, pois nos tabletes de Ebla, os nomes e as atividades comerciais de Sodoma, Gomorra, Admá, Zeboim e Zoar são relatadas em detalhes. 


Fantástico. A arqueologia e a história confirmam a veracidade do texto bíblico. 


A questão canônica. 


Outro problema: bíblia judaica, protestante, católica. Afinal, quantas bíblias existem? 


Essa discussão está ligada à questão de que livros da bíblia são inspirados e quais não são. Essa definição de que livro deve estar ou não na bíblia os teólogos chamam de cânon, palavra grega que quer dizer vara reta, régua, e que acabou sendo interpretada como medida. Assim, eu diria que temos uma bíblia e dois cânones.


Os judeus, que por tradição só aceitam o antigo testamento, consideram como inspirados vinte e quatro livros, que dividem em Lei, os cinco livros de Moisés, em Profetas, composto pelos livros proféticos, e em Escritos, formado pelos livros poéticos, os cinco rolos e os livros históricos. Esse cânon judaico foi aceito pelo uso geral antes mesmo de Jesus nascer. Mas, só foi oficialmente definido pelo rabinato como inspirado na reunião de Jâmnia, nos anos 90 d.C. 


Em relação ao antigo testamento, a igreja reformada, de Lutero, Calvino e Zwinglio, adotou o cânon judaico. A diferença está na ordem e no número de livros. A igreja reformada dividiu o livro de Reis em 1o e 2o Reis, o livro de Crônicas em 1o e 2o Crônicas, e o livro Esdras-Neemias também em dois, o livro de Esdras e o livro de Neemias. E os doze profetas menores, que para os judeus compõem um livro só, para a igreja reformada são doze livros separados. 


Embora o conteúdo seja um só, os judeus têm vinte e quatro livros no Tanach, mas os protestantes têm trinta e nove. Embora a seqüência de organização dos livros do antigo testamento seja basicamente por assunto, a igreja reformada tem razão em fazer estas divisões, pois cada escritor, no caso dos profetas menores, por exemplo, fala da ação de Deus em realidades e épocas diferentes. 


Já a igreja católica agregou oficialmente, no Concílio de Trento, em 1546, ao cânon judaico mais quatorze textos. Os livros de Judite, Tobias, 1o, 2o, 3o e 4o Macabeus, Livro da Sabedoria, Eclesiástico, Baruque, a Carta de Jeremias, adições em Ester e os capítulos 3.24-90, 13 e 14 em Daniel. 


Esses livros e adições, chamados apócrifos, termo grego que quer dizer "escondido", apareceram oficialmente, pela primeira vez, com a tradução grega do antigo testamento, realizada na cidade de Alexandria entre os anos 250 e 150 antes de Cristo. Esta tradução, conhecida por Septuaginta, apesar de sua importância histórica, já que transformou a bíblia num livro ocidental, combinou textos reconhecidos pelos judeus como inspirados com literatura religiosa não inspirada. Assim, os apócrifos nunca foram aceitos, quer pela igreja reformada, quer pelos judeus, como inspirados. 


E qual o critério utilizado por nós, protestantes, para definir que tal livro é inspirado ou não. Em primeiro lugar, a autoridade de Deus. Nos livros inspirados do antigo testamento sempre encontramos expressões como "assim diz o Senhor", afirmação inexistente nos apócrifos. 


Além disso, os livros inspirados afirmam taxativamente que foram escritos por servos de Deus, como Davi, Salomão, Isaías, Jeremias, etc. E foram comprovados como autênticos pela historiografia judaica e dos povos vizinhos. Já o texto apócrifo, Susana, por exemplo, acrescentado ao livro de Daniel, é classificado como ficção. Outro argumento muito forte, para nós, é que foram citados e avalizados por Jesus. Da mesma maneira, os apóstolos e os pais da igreja os usaram, citaram, e guardaram. E por último, a tradição judaica religiosa e intelectual, até o ano 100 de nossa era, os considerou inspirados. 


Quanto ao novo testamento não há diferenças entre a igreja católica e a igreja reformada. É muito importante, porém, esclarecer que a igreja cristã não criou um cânon. A igreja apenas reconheceu oficialmente os livros escritos por apóstolos de Jesus e discípulos dos apóstolos, que foram amplamente utilizados e guardados pelos pais da igreja. São vinte e sete livros. 


Os apócrifos do novo testamento foram rejeitados porque não faziam parte do cânon não-oficial dos pais da igreja, Policarpo, Justino Mártir, Irineu, entre outros, e porque não foram incluídos no cânon do sínodo de Hipona, realizado em 393 d.C. 


Dessa maneira, o cristianismo tem uma mesma Bíblia e dois cânones: o da igreja reformada, com 66 livros, e o da igreja católica, atualmente acrescido de sete livros: Judite, Tobias, 1o e 2o Macabeus, Livro da Sabedoria, Eclesiástico e Baruque, já que a Carta de Jeremias aparece como capítulo 6 de Baruque, e mais as adições nos livros de Ester e Daniel. 


Vou parar por aqui. Não jogue as cartas fora. Guarde-as, porque elas têm uma seqüência temática. Acredito que consigo expor o que desejo em mais uma. E não deixe de me responder. Gostaria muito de saber o que você anda pensando. 


Manda um abração pro Allende! 


Dá-lhe Luís! 


Do primo Daniel. 



Capítulo 11 



A situação estava ficando feia. Os enfrentamentos entre militantes da Unidade Popular e da direita tinham criado uma situação de instabilidade generalizada. Camponeses e agricultores tinham sido mortos nas ocupações das fazendas. Era bala, foiçada e pedrada. O pessoal brigava com o que tinha na mão. 


Depois que a Vanguarda Organizada do Povo, a VOP, foi indultada, seus militantes, esses sim legítimos bomberos locos, isso se não estivessem infiltrados pela CIA, já eram responsáveis por seis assassinatos, inclusive de um ex-ministro de Allende, o democrata cristão Edmundo Pérez. 


A crise econômica não estava fácil. A inflação já passara dos 300%, o déficit na balança comercial ia além dos 450 milhões de dólares. O que era muito, se levarmos em conta que quando Allende chegara ao governo havia um superávit de 175 milhões de dólares. 


A dívida externa naqueles últimos três anos tinha aumentado cerca de 60% e o déficit fiscal chegara a 45%. A produção industrial continuava caindo de forma absurda, o que afetava diretamente aos trabalhadores. Havia escassez de tudo, farinha de trigo, pão, carne, refrigerantes, detergentes, pasta de dente e até vinho. Essa situação estava criando um mercado negro sem paralelo na história chilena. 


Embora não tínhamos estatísticas confiáveis, a direita falava que a desnutrição e a mortalidade infantil estavam aumentando e que o nível de vida dos trabalhadores baixara para patamares inferiores ao de meados da década de 60. 


Logicamente, diante daquele quadro, todos estávamos nos preparando para o pior. A sociedade chilena estava dividida de alto a baixo. E essa situação não podia se manter por muito tempo. Isso iria estourar em pouco tempo. 


Tomávamos uma série de precauções. As células dos partidos receberam ordens de se armarem. Além das armas, que deveriam ser guardadas nos bairros operários de periferia, nas fábricas e nos acampamentos, os militantes deveriam ter em casa garrafas para a produção de bombas molotovs, lanternas, velas e até água potável. É claro que ninguém leva isso muito a sério, mas a ordem era essa. 


Alguns partidos da UP pretendiam lançar às ruas, para combate, milícias uniformizadas e armadas como se fossem carabineiros. A intenção era confundir as forças da direita. Não sabia se isso funcionaria... Às vezes não dava tempo para organizar tão bem. Era gente que não aparecia, outras eram presas. Uma guerra civil não é um desfile militar, por isso tinha lá minhas dúvidas, sobre aquelas idéias. 


Também havia uma ordem para que as milícias abandonassem logo no primeiro dia de combates, o bairro Alto, onde vivia o grosso da burguesia chilena. Eles acreditavam que setores da Aeronáutica apoiaram Allende e, por isso, não descartariam o bombardeio do bairro Alto. Estava torcendo para que fosse assim, mas aquela era outra incógnita. 


Se tudo desse certo, ou melhor, como fora planejado, comandos atacariam pontos estratégicos para os militares e mesmo alvos civis fundamentais para a direita. Não queríamos que eles tivessem tempo para mobilizar setores como os dos camioneiros.seria em espanhol? 


As fábricas seriam defendidas à custa da própria vida. E se isso não fosse possível, deviam ser dinamitadas. Por isso, em todas as fábricas controladas pelos trabalhadores queríamos estocar o material explosivo necessário para ações de defesa, de ataque, ou mesmo de autodestruição. 


De minha parte, o comando León Trotsky ia lutar junto com o MIR e devíamos nos reunir, em caso de golpe, em Indumet. Ali estávamos vários companheiros da Fração Bolchevique da 4a Internacional Trostsquista. Era gente séria, quase todos com experiência de clandestinidade e alguns de luta armada. Eu era um desses. Era especialista em bombas antitanques e tinha organizado, em junho, a mudança parcial da linha de produção de uma fábrica metalúrgica da Corvi. Antes, só fazíamos janelas e portas de metal, mas depois, também, granadas. 


Minha missão é ir para Indumet. O comando León Trotsky estava se reunindo dia sim, dia não. Estávamos fazendo treinamento de guerrilha urbana. Uso de armas curtas, operações noturnas, ataque a tanques, quais seus pontos vulneráveis, o perigo das lagartas e da infantaria, que lhe dava proteção, o uso correto das molotovs. 


Tudo isso eu conhecia, mas a força de um comando estava na ação em equipe. Por isso, o treinamento era fundamental. Um dos problemas mais complicados era o que fazer com o companheiro ferido. Em guerra aberta de rua, não havia muito como defender um companheiro ferido. A vida de um podia custar a vida de todos. Por isso, tínhamos um acordo entre nós. Tentaríamos sempre esconder o ferido e deixar com ele água e uma arma. 


No Brasil ganhara do poeta uma pistola que pertenceu ao guerrilheiro boliviano Inti Peredo. Fiquei muito alegre, mas um alerta do poeta tirou parte da alegria: 


-- Antenor, lembre-se: a última bala é para você. 


Esse era nosso acordo na época do MNR. E eu sei que ali podia ser igual. 



Capítulo 12 


Dá-lhe Luís. 


Sabe aquele general que jogava buraco aqui em casa com papai e mamãe, antes do papai ter o derrame? Você deve se lembrar, aquele que empastelou o Binômio, o jornal do José Maria Rabelo, em Belo Horizonte?Bem, deixa para lá... Vamos ao fato. Segundo John McCone, que foi diretor da CIA e hoje está no staff da ITT, as corporações norte-americanas estão derramando dinheiro grosso, para derrubar o Allende. Parte desse dinheiro já foi entregue à oposição liderada por Jorge Allessandri. O presidente da ITT, Harold Geneen, entrou com um milhão de dólares. 


As outras empresas que foram citadas são a Anaconda, a Kennecott, a Ralston Purina e a Northern Indiana Brass Company. Se a situação já estava feia com o boicote internacional dos bancos Chase Manhattan, Chemical, First National City, Manufacturers Hanover e Morgan Guaranty, agora parece que a Marinha chilena resolveu partir para o pau. Falta a adesão do Exército e da Aeronáutica. Acho que você deve se preparar para o pior. 


Mas, quero continuar minha carta anterior, quero falar de justiça e graça. 


Ao contrário do que pode parecer num primeiro momento, o Deus do antigo testamento é o mesmo Deus de hoje. Ele sempre foi um Deus de amor e compaixão, conforme vemos em Gênesis, quando fez as primeiras vestimentas de peles para o homem e a mulher, desnudos pelo pecado. Ou quando, Noé é agraciado com a salvação. 


Esse mesmo Deus, no novo testamento, diz através de seu Filho: "Jerusalém, Jerusalém! que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes!”. 


Mas se é um Deus de amor e misericórdia, é também um Deus de justiça. "Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra, e que era continuamente mau todo o desígnio do seu coração; então se entristeceu o Senhor por ter feito o homem na terra, e isso pesou no seu coração. Disse o Senhor: Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver feito". 


É claro que falar de Deus como um ser que se entristece e se arrepende é utilizar uma linguagem antropomórfica. Mas, apesar disso, o que o texto transmite é que este Deus é pessoal, não está passivo diante dos acontecimentos históricos e que tem atitudes reais para com a conduta humana. 


Assim, o arrependimento de Deus não deve ser entendido como uma mudança de seus propósitos, mas de atitude. Aliás, neste texto vemos duas atitudes bem definidas por parte de Deus. Uma é a da justiça, que se traduz em destruição do que se degenerou, e outra a da graça, diante de Noé. Essa graça reafirma o propósito da redenção. 


Temos na bíblia um único Deus. Acontece que a bíblia, como história de Deus em relação a sua criação, fala de experiências. Nós vamos progressivamente, através dos eventos em primeiro lugar e posteriormente por meio de revelação, crescendo no conhecimento de Deus. Esse crescimento durante o antigo testamento, que de Abraão até Jesus cobre um período de dois mil anos, foi lento e gradual. 


O homem engatinhava no conhecimento de Deus e este, cheio de amor, tinha que definir limites, para que o homem não morresse. É o pai usando da sua autoridade para não deixar o filho enfiar o dedo na tomada, beber água sanitária ou brincar com a faca que viu na cozinha. 


Os exemplos parecem simples demais. Mas foi exatamente isso que Deus fez no antigo testamento, definiu leis e mandamentos, para que seu povo não fosse destruído pela ignorância. Ele explica sua pedagogia: "Sabe, pois, no teu coração que, como um homem disciplina a seu filho, assim te disciplina o Senhor teu Deus". 


No antigo testamento, Deus nos mostrou a necessidade de um Salvador e no novo testamento nos deu esse Salvador. E como o apóstolo Paulo mostra, a graça, esse amor não merecido, precisa estar baseada na lei, ou seja, na autoridade paterna. Deus é o mesmo. No tempo certo, com o crescimento do conhecimento de seus filhos sobre Ele, adotou atitudes diferentes, condizentes com um momento novo na história da humanidade. 


Justiça e graça não se opõem. Antes, são atitudes divinas inseridas em seu propósito de redenção da espécie humana. Respostas à realidade criada pela aceitação ou não-aceitação desta salvação oferecida pelo Criador. 


O segundo livro de Samuel, dos capítulos 11 ao 20, fala da profunda depressão vivida por Davi em conseqüência de seu adultério, e como tal situação desencadeou um processo de desestruturação de sua família e do reino como um todo. 


Tudo começou quando Davi, apesar de ter oito esposas, cobiçou a mulher de Urias, um de seus homens mais corajosos. Cobiçou e realizou a sua cobiça, adulterando com ela no terraço da casa real. É interessante notar, que tempos depois, quando Bate-Seba manda informar-lhe que está grávida, o rei não denota nenhuma atitude de arrependimento, mas opta pelo caminho aparentemente mais fácil e sanguinolento: o assassinato de seu soldado. A fidelidade de um bravo é recompensada com a dissimulação, a hipocrisia, a ingratidão e o homicídio. 


Nem bem o cadáver de Urias esfriara, já que o luto de sete dias foi puramente formal, Bate-Seba recolhe-se à casa real e torna-se mulher de Davi. Passado um ano, o profeta Natã apresenta a Davi a parábola do homem rico que se apropria da ovelha do homem pobre. 


"Tu és este homem", vocifera Natã. Denunciado publicamente, Davi chora o seu pecado diante de Deus. Arrepende-se e é perdoado. Mas os frutos dos dois pecados cometidos, adultério e assassinato, ele haveria de colhê-los na sua própria família. 


Não somente o reino sofreu as conseqüências da transgressão, já que a confiança que o povo depositava no rei foi imediatamente quebrada. Da mesma maneira, sua família olhava com desconfiança esse pai que se mostrava fraco e evasivo diante de suas obrigações familiares. 


Temos, então, a morte do primeiro filho de Davi e Bate-Seba, o incesto de Amnom e Tamar, e o ódio crescente de Absalão pelo seu meio-irmão Amnom. É impressionante notar que passados dois anos, a única postura de Davi em relação ao filho incestuoso foi apenas de muita ira. Não há da parte do pai nenhuma atitude objetiva. Não há diálogo, crítica, punição...Nada. Apenas ira acumulada. Podemos imaginar como isso tocou o coração de Absalão, irmão de sangue de Tamar, ao ver dois anos passarem-se sem que o pai tomasse qualquer atitude. E Absalão fez justiça com as próprias mãos, assassinando o irmão. 


Tal situação fracionou mais ainda as relações familiares. Davi amava a Absalão, e este ansiava pelo perdão do pai. Mas nunca mais foram reatadas as relações de amor entre pai e filho. É verdade que depois de três anos de separação, Absalão consegue ver o pai, que o beija. Até que ponto este beijo foi o pedido de perdão, de um pai omisso a seu filho rebelado, não sabemos. O beijo como cumprimento era um costume oriental. O certo é que o ressentimento de Absalão não foi curado. 


Temos, então, mais uma seqüência de tragédias. Absalão lidera uma conspiração contra o próprio pai, toma o trono e obriga Davi a fugir com toda a sua família e soldados de confiança. O rei é apedrejado e amaldiçoado. Em fuga, "o rei Davi e todo o povo que ia com ele chegaram exaustos ao Jordão, e ali descansaram". 


Sem dúvida, esses últimos cinco anos tinham sido terríveis. Esse Davi, deprimido à beira do Jordão, estava longe de lembrar o pastor alegre e confiante no Senhor que derrotara Golias. A auto-suficiência do rei, sua insensibilidade e racionalização levaram-no ao pecado. Agora estava ali, às margens do rio, tendo dentro de si uma confusão de sentimentos acumulados: medo, ira, rejeição, culpa. 


Quando se arrependera, depois da exortação de Natã, Davi escreveu o salmo 51 e posteriormente o salmo 32. Dois textos belíssimos. O primeiro, sobre a confissão do pecado e o arrependimento. O segundo, sobre a felicidade daquele que recebe o perdão. Agora, no fundo do poço, com a família destroçada, suas concubinas sendo possuídas publicamente pelo próprio filho, destronado e amaldiçoado, só lhe restava descansar em Deus. 


O reinado de Absalão será curtíssimo. Ele é assassinado e o rei Davi vive um momento de profunda angústia. Recupera-se da dor da morte do filho rebelde, mas tão amado, e começa a reconquistar cada uma das tribos, em parte graças à participação diplomática e militar de seu amigo e braço direito durante todos esses anos: Joabe. 


A tempestade estava passando. Os anos de chumbo terminavam. E Davi recomposto emocional e espiritualmente poderá dizer no final de sua vida: 


"Disse o Deus de Israel, a Rocha de Israel me falou: aquele que domina com justiça sobre os homens, que domina no temor de Deus, é como a luz da manhã, quando sai o sol, como manhã sem nuvens, cujo esplendor, depois da chuva, faz brotar da terra a erva. Não está assim com Deus a minha casa? Pois estabeleceu comigo uma aliança eterna, em tudo definida e segura. Não fará ele prosperar toda a minha salvação e toda a minha esperança?”. 


O Senhor Deus restaurara a vida de Davi. 


Mas fica uma pergunta: será que o rei durante esses anos trágicos tinha consciência do processo que estava vivendo? Temos uma pista bastante interessante: os já citados salmos 51 e 32. Vejamos o que eles dizem. 


No salmo 51, salmo de confissão e arrependimento, logo no versículo três, Davi afirma: "(...) eu conheço as minhas transgressões e o meu pecado está sempre diante de mim". 


Davi, na verdade tinha consciência do erro cometido. Quando escreve o salmo, ele já parou de racionalizar o seu erro. Ele não se justifica mais. É interessante ver como essa compreensão que tem de si próprio é real. Davi, neste salmo, usa palavras como purificar, lavar, renovar, restituir, sustentar, livrar e abrir, para dizer o que Deus precisa fazer por ele. Aqui ele vê suas limitações, vê sua humanidade decaída e pede a Deus que seja Deus pleno em sua vida. 


Duas coisas ficam claras nessa oração do rei Davi. Por um lado, reconhece que está vivendo o momento mais terrível de usa vida: distante de seu Deus, esse Deus que transformou um menino desprezado pelo pai, pastor de ovelhas, sem perfil para nada mas heróico, em rei ungido de Israel. Mas, se tem esta autocompreensão de seu estado de pecador pusilânime e irremediavelmente perdido, por outro, tem consciência de que não é isso que Deus quer para ele. "Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova em mim um espírito reto". 


E no salmo 32, o rei canta a alegria do perdão recebido. Ele se diz feliz, bem-aventurado, e explica que esses sentimentos existem porque "não ocultei os meus pecados". 


Depois de reconhecer suas limitações, de ter seus pecados perdoados e de viver a alegria do perdão, Deus diz a Davi: "Instruir-te-ei e te ensinarei o caminho que deves seguir; e sob as minhas vistas, te darei conselho". 


Davi estava curado de seus pecados, mas Deus continuaria a lhe educar. Receberia ensinamentos e cresceria no conhecimento de seu Deus, de si próprio, e de seu próximo, enquanto estivesse vivo. Graças a esse crescimento permanente nós, as gerações futuras, fomos abençoados com os momentos de chumbo da vida do rei Davi, com seu arrependimento e com o conhecimento posterior que Deus lhe deu. 


No correr das escrituras, Deus mostra seu propósito de redenção do ser humano e da terra. Assim, o livro de Gênesis fala da criação do universo, do lugar do homem nesse universo, da entrada do pecado no mundo, da genealogia de Adão a Noé, da perversidade e do castigo do velho mundo e das antigas famílias da humanidade. 


É o livro dos princípios (bereshit, em hebraico), que mostra Deus como criador de todas as coisas. Deus é o criador pessoal, sábio, interessado nas coisas que faz e tem um propósito definido em toda a sua obra. Assim, o homem que ele cria é feito a sua imagem e semelhança, cheio de glória, com capacidade intelectual, moral e espiritual. "Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a, dominai sobre (...). Eis que vos tenho dado (...). Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom (...)". 


Nesses primeiros capítulos do livro de Gênesis encontramos uma teologia do ser humano e uma teologia da terra. Na primeira, vemos que esse homem criado a semelhança de Deus, com o propósito de governar, gerar e trabalhar, com responsabilidade moral sobre toda a criação e diante de Deus, desobedece. A desobediência, que também pode ser vista como rebelião diante da autoridade de Deus, gera o pecado e este a morte. "(...), mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás". 


Deus tinha avisado, a desobediência haveria de marcar o início do reino da morte na vida humana, como nos explica o apóstolo Paulo. "Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens porque todos pecaram". Espiritualmente morta, a humanidade é expulsa do paraíso e separada da presença de Deus. Essa situação leva a uma teologia da terra. O mundo deixa de ser "muito bom" e torna-se "maldito". 


Tal situação de morte e maldição tinha que ser quebrada. Mas a humanidade estava morta. Aquele que deveria dominar sobre a terra, tornou-se escravo. Só Deus poderia intervir. E é a esta intervenção planejada, programada e implementada pelo próprio Deus que chamamos de redenção. Assim, junto com a morte, vem o plano divino da redenção. E Deus fala a Satanás: "Porei inimizade entre você e a mulher, entre a sua descendência e o descendente dela. Ele lhe ferirá a cabeça e você lhe ferirá o calcanhar". 


A serpente mata ferindo o calcanhar, e o homem mata a serpente esmagando-lhe a cabeça. Esta imagem, Deus a transforma em realidade escatológica. A serpente é o próprio Satanás, que tem sua cabeça esmagada por Cristo. Esta é a primeira promessa de redenção feita pelo próprio Deus e assim entendida pela igreja cristã, como está escrito: "Aquele que pratica o pecado procede do diabo, porque o diabo vive pecando desde o princípio. Para isso se manifestou o Filho de Deus, para destruir as obras do diabo". 


Esse plano de redenção vai ser implementado através da formação, num longo processo histórico, do povo de Deus. A promessa de uma nação escolhida para servir e proclamar a redenção foi feita ao patriarca Abraão: "Olha para os céus e conta as estrelas, se é que o podes. E lhe disse: Assim será a tua posteridade. Ele creu no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça". E Deus firma um pacto como Abraão. Na verdade, mais que um pacto, é uma aliança de graça, que se confirmará no correr de anos, séculos e milênios através de novos pactos. 


Deus escolheu Abraão e sua família com a finalidade de abençoar todas as famílias da terra. Faz dele pai de uma multidão. "Ora, tendo a escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: em ti serão abençoados todos os povos", diria dois mil anos mais tarde o apóstolo Paulo. 


Essa aliança com Abraão não se restringiria a uma nação, embora tivesse como ponto de partida da promessa os descendentes físicos do patriarca. Essa nação, situada num lugar estratégico, encruzilhada para povos do Ocidente e Oriente, situada entre as grandes nações da terra, receberá o nome de Terra de Israel, neto de Abraão, que deixará de ser enganador para tornar-se, pela graça do Deus Altíssimo, vencedor. "Já não te chamarás Jacó e sim Israel: pois como príncipe lutaste com Deus e os homens, e prevaleceste". 


Com Moisés, a libertação da escravidão no Egito e a entrada na terra prometida, esse povo de Deus começa a viver sua fase teocrática, através de juízes que ministram as leis dadas por Deus no monte Sinai. São tempos difíceis, de aprendizado nas coisas de Deus, de erro e acerto, de afastamento e aproximação de Deus. 


Ainda no Sinai, Deus já havia alertado para a responsabilidade da aliança. "Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz, e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos, porque toda a terra é minha". Como qualquer pacto, este também tinha dois lados: a promessa de Deus e a responsabilidade dos escolhidos. Era um pacto condicional, porque implicava por parte de Israel, ser "reino de sacerdotes, nação santa". 


É importante notar, que com a criação da nação de Israel, Deus mostra que seu plano de redenção também está dirigido aos povos e nações. Egito, Moabe, Amom, Canaã, Fenícia, Assíria, Babilônia, Pérsia e todas as pequenas nações do mundo antigo deveriam ouvir a mensagem da redenção. Historicamente, vemos que isso acontece de forma marcante durante o reinado de Salomão, filho do rei Davi. 


"Deu também Deus a Salomão sabedoria, grandíssimo entendimento e larga inteligência como a areia que está na praia do mar. (...) De todos os povos vinha gente a ouvir a sabedoria de Salomão, e também enviados de todos os reis da terra, que tinham ouvido da sua sabedoria". 


Se olharmos para Israel, podemos achar que o plano de Deus fracassou. Afinal, o período de juízes foi profundamente atribulado, o período do reino unido foi curto e a nação dividida acabou invadida e desterrada. Mas, apesar do fracasso humano, Deus foi um sucesso durante todo o período. Desde o Egito do faraó Sesostris III, do qual José, filho de Jacó, foi primeiro-ministro, até Hirão, rei de Tiro, que comerciava madeira com Salomão, todos os povos vizinhos e mesmo distantes tomaram conhecimento da existência do Deus único, criador dos céus e da terra. 


Durante o reinado de Jeroboão II, rei de Israel, entre os anos 793-753 a.C., por exemplo, um profeta nacionalmente conhecido, oriundo de Gate-Hefer, povoado próximo a Nazaré, chamado Jonas ben Amitai, pregou na capital assíria, Nínive, durante o reinado de Assur-Dan. Tal pregação produziu um avivamento em direção ao monoteísmo como nunca se viu na história assíria. 


Da mesma maneira, já durante o exílio, Daniel foi estadista durante os reinados de Nabucodonosor, Dario e Ciro. Testemunhou e profetizou para esses reis com tal ousadia e determinação, que Dario fez editar um decreto para todo o império babilônico, afirmando: 


"Faço um decreto, pelo qual em todo o domínio do meu reino os homens tremam e temam perante o Deus de Daniel, porque ele é o Deus vivo e que permanece para sempre; o seu reino não será destruído e o seu domínio não terá fim. Ele livra e salva, e faz sinais e maravilhas no céu e na terra (...)". 


Mas o plano de redenção da humanidade não podia restringir-se ao exclusivismo judaico. No tempo certo, a promessa que Deus fizera a Adão e Eva no paraíso "se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai". 


A partir de agora, "é chegado o reino dos céus". O tão esperado reino messiânico começa a ser estabelecido. Com a chegada do Cristo tem início uma nova ordem. Essa nova ordem será traduzida em novo pacto, não mais com sangue de animais (sacrifícios rituais) ou mesmo de homens (circuncisão), pois "visto que a lei tem sombra dos bens vindouros, não a imagem real das coisas, nunca jamais pode tornar perfeitos os ofertantes (...). Jesus, porém, tendo oferecido para sempre um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à destra de Deus, aguardando daí em diante, até que seus inimigos sejam postos por estrado dos seus pés". 


Já não vivemos na sombra, estamos na luz, que é Cristo. 


Em cima do alicerce se constrói o prédio. E esse prédio é construído não em cima da tradição do antigo Israel, mas sobre "uma pedra angular, eleita e preciosa; e quem nela crer não será de modo algum envergonhado. (...) Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz. Vós, sim, que antes não éreis povo, mas, agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia". 


Agora, a redenção é plena para os gentios, sem a intermediação de Israel. Surgiu, com o novo pacto, uma nova nação, a Igreja de Cristo. Em Jesus se dá o cumprimento das antigas promessas feitas em Abraão. Quem são, então, os verdadeiros descendentes de Abraão, os verdadeiros beneficiados pelas promessas de Deus a ele? 


São os crentes em Cristo em todas as nações. Abraão não só recebeu a justificação pela fé, mas recebeu esta benção antes de ser circuncidado. Abraão é o pai de todos aqueles que, sejam circuncidados ou não, seguem o exemplo de sua fé. 


Os fiéis são chamados a assumir as responsabilidades de povo escolhido por Deus e de nação santa. Somos a semente de Abraão e as nações de toda a terra serão abençoadas por nossa definição missionária, apresentando a elas a redenção em Jesus Cristo, prometida ainda no Jardim do Éden. Pessoas de todas as nações são chamadas, como explicou Jesus: 


"Digo-vos que muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugar à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus. Ao passo que os filhos do reino serão lançados para fora, nas trevas". 


Deus é o Deus da história. Seu próposito de redimir a humanidade do pecado foi planejado na eternidade passada e está em franco desenvolvimento. Hoje em dia, o crescimento da Igreja aumenta, proporcionalmente, mais rápido do que a população mundial. Diariamente, mais de 70 mil pessoas aceitam a redenção do pecado oferecida em Cristo Jesus. 


"(...) vi e eis grande multidão que ninguém podia enumerar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro, vestidos de vestiduras brancas, com palmas nas mãos". 


Passada a fase da Igreja, aberta com o derramar do Espírito Santo, conforme descrito em Atos 2, teremos o cumprimento pleno da promessa, que começa com a volta de Jesus Cristo e a construção, por Deus, de um novo universo. 


"Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram (...)". 


Enfim, os inimigos que, sorrateiramente, lá no Éden roubaram ao homem a glória, a vida e a comunicação perfeita com Deus, estão debaixo dos pés de Cristo. Onde está ó morte a tua vitória! Satanás e seus demônios foram lançados no lago de fogo. Tudo se fez novo. Há um novo homem, uma nova família, uma nova raça, uma nova terra. E uma benção de proporções universais, eterna. Este é o plano de Deus. 


É isso, a redenção está ao alcance da tua mão. 


Manda um abração pro Allende! 


Dá-lhe Luís! 


Do primo Daniel. 



Capítulo 13 


Astarote transformara o útero de Yasmin numa caverna maldita. O demônio rompera as cadeias da forma e do espaço. Como fêmea, nua e sensual, abriu uma gaveta e olhou dentro. Enrugado e ressecado, um feto jazia inerte. Seus olhos grandes estavam espantados, como se tivessem sido cegados por trevas eternas. Seu rosto chupado e suas mãos estendidas pareciam pedir perdão por alguma coisa. Astarote, cheio de ódio pela vida, pegou o feto no colo, cantou uma cantiga de ninar e depois perguntou: 


- Como vai esse serzinho desprezível? 


Guardou o feto de novo no armário. Seu pensamento sobrevoou as antigas terras da Síria e Palestina. Viu homens e mulheres lhe prestando culto. Prostitutas cultuais oferecendo amor e fertilidade. Promessas de prosperidade e bom augúrio. Abriu uma segunda gaveta. Um tumor vermelho, do tamanho de um ovo de galinha, vivo e palpitante olhou para o demônio. Astarote riu e sibilou com raiva: 


- Os homens sabem que são frágeis diante da vida. Temem o desfecho. A morte, tumor querido, rasga a esperança. O meu prazer consiste em atapetar o caminho do inferno. 


E fechou a gaveta de um golpe. 


Abriu, então, uma terceira gaveta e tirou de lá as memórias vividas com os demônios Shedu e Nebo. 


Eu me lembro quando caiu a primeira bomba. Afinal, poucas vezes em toda a minha existência participamos de uma destruição tão organizada. Durante anos, planejamos cada detalhe, tomamos posse de homens e mulheres de partidos políticos, pensamentos e sonhos aparentemente diferentes. Demônios da guerra chegaram aos milhares, dominaram os ambientes e planejaram todas as ações. Nós auxiliamos. A meta era incrementar o ódio a todos os níveis. 


Eles eram quatro adultos e quatro crianças. Todos cobertos com chagas e doenças de pele, que produziam pus amarelo forte e cheiro de enxofre. Os cabelos tinham caído parcialmente, o que lhes dava uma aparência de bonecos maltratados. E todos tinham perdido os dentes. 


Empestiados, fedorentos, maltrapilhos. Estavam imersos na angústia. As dores e o sofrimento apontavam como única saída o suicídio. Mas um poder que, sem dúvida, não vinha deles, os empurrava para frente. E foi essa vontade de viver, que os levou a se ajudarem mutuamente. A cidade parecia uma escultura derretida, com formas infernais, um silêncio de túmulo e um cheiro de podre que nunca desapareceu. 


Toda a água de superfície estava contaminada e queimava como fogo, quando em contato com a pele ou os lábios. Havia uma pequena fonte subterrânea, um olho d’água. Eles se protegiam do sol e da chuva que queimava num galpão de madeira, sem janelas. Era a única sensação agradável que sobrara: a de estar na sombra. 


Era o inferno. Uma parceria perfeita entre demônios e homens. Nós o criamos com toda a força de nossa obstinação e o fizemos pior e mais terrível que todas as lendas e histórias que ouvíramos antes. Não havia uma única árvore viva em dezenas de quilômetros. Nenhum pássaro cruzava os ares. Até os insetos tinham desaparecido. De vez em quando, encontravam debaixo de alguma pedra um escorpião solitário. E ficavam olhando com um misto de desespero e dor. O escorpião, para eles, era o irmão na sobrevivência. Muitas vezes, olhavam e começavam a chorar. Era um diálogo patético. 


À noite, quando não fazia tanto calor, plantavam hortaliças e com cuidado regavam planta por planta. Cobriram a plantação com um telhado improvisado, para que não estorricasse sob o sol ou morresse com a chuva. 


Ter relações sexuais era horrível e doloroso. O contato das carnes queimadas pela radiatividade, o cheiro que exalavam, a penetração num organismo doente e quase podre inviabilizava o amor. Além do mais, tinham medo de ter filhos deformados. 


Eu, Shedu e Nebo realizávamos nosso ódio. Nós demônios odiamos a espécie humana. Se é impossível vencer quem os criou, ao menos resta-nos a possibilidade de destruir a criatura. Um ser feito do pó da terra, algo tão material, frágil e passageiro não merecia ter os privilégios que tem, nem mesmo a semelhança com aquele que os criou. Nós nos rebelamos sim. E somos movidos pelo ódio, nos movemos nas sombras, queremos a morte e em nós não há lugar para arrependimento. Nosso objetivo é roubar, matar e destruir. E naqueles dias conseguimos isso como nunca antes. Mas temos inimigos. Inimigos que se tornam poderosos porque se unem à fonte da vida, àquele que é senhor sobre todos, inclusive sobre nós. Esses inimigos são os que levam o nome de cristãos. É preciso destruir os humanos rapidamente. Caso contrário, em Cristo surgirá uma nova espécie e esta, sem dúvida, será superior e imortal. 


Em meio àquela destruição apareceu, não sei de onde, protegido por anjos, um missionário. E ele contou muitas histórias para aqueles homens e mulheres, de olhos rasgados, que desconheciam a Jesus, o Cristo, e o reino de Deus. 


- Havia um lugar além do Universo, um mundo de estrelas, habitado pelo Deus único, criador e eterno. Ele estava rodeado de seres criados de excepcionais poderes. Acontece que esses seres não tinham o privilégio da reprodução, nem o prazer do gozo do mundo material. Eram apenas seres de poderes excepcionais. 


Mas Deus decidiu criar uma nova espécie, com a qual pudesse se relacionar, manter parceria, que participasse de seus objetivos e metas. Mais do que criatura, filhos. Ligados ternamente ao Criador, que se recriando povoassem uma região sem fim destinada a eles: o Universo. Assim, em amor, Deus escolheu um mundo pequeno e, num jardim previamente plantado, criou um ser lindo, perfeito. 


Astarote parou de pensar na guerra. Olhou para as paredes do útero e urrou: Shedu, Nebo, Astarote! Demônios de um mundo vazio! Senhores isolados! Perdidos na solidão eterna! Quanto mais gritava, mais disforme e contraído ficava. Parecia agora não uma jovem sensual e lasciva, mas uma mancha de sangue, grudada nas entranhas invadidas. Teatralmente, perguntou-se: 


É possível apunhalar o amor? 

Qual é mais digno: 

O ódio de Medéia, a mãe, 

Ou o amor de Édipo? 

Qual é mais ódio? Qual é mais amor? 

O amor se esconde 

Sob os escombros da cidade, na galeria inundada do metrô, 

Atrás da máquina de Coca-Cola. 

O velho amor dos séculos, 

Repetido, gasto, se esconde, 

Ele é xingado, 

Virou merchandising, 

Foi despido 

E crucificado nu 

Numa esquina da 5th Avenue. 

É possível apunhalar o amor? 



Sua gargalhada ecoou através de cada milímetro daquele corpo doente. E pensou que, à maneira de Nebo, o demônio das palavras mortas, ele também sabia fazer poesias. 


Odeio. Odeio os ensinamentos do missionário. Mas, o que ele ensinou àqueles miseráveis, mortos-vivos do terror nuclear, fez deles seres novos. Salvos. Reconstruídos espiritualmente pela engenharia genética da vida eterna em Jesus, o Ungido de Deus. Em poucos anos, todos estavam mortos, adultos e crianças, mas ressuscitarão, livres e eternos. Belos. Novinhos em folha. E eu perdi. E me revolvo de ódio no sangue dessa desgraçada, só de pensar que perdi, que apodrecerei, eu também, fechado eternamente em trevas. 



Capítulo 14 



Allende no La Moneda



Onze de setembro de 1973. Dez horas da manhã. Acordo. A noite foi longa e insone. Ficamos em treinamento até de madrugada. Tememos que o golpe possa ser deflagrado a qualquer momento. Allende se mostra indeciso. Deveria sublevar os cordões industriais e distribuir armas para os trabalhadores. Mas não quer romper a legalidade. Se o golpe vier agora não sabemos o que pode acontecer. 


Muita gente da Unidade Popular confia na fidelidade das forças armadas ao governo. Mas parece que essa não é a experiência histórica... 


Peguei a rádio Corporación. É Allende. Ele está falando. 


- Certamente, esta é a última oportunidade em que posso dirigir-me a vocês. A Força Aérea bombardeou as antenas da rádio Magalhães. Minhas palavras não contêm amargura, mas decepção. Que elas sejam um castigo moral para aqueles que traíram seu juramento. Soldados do Chile, comandantes-em-chefe titulares, o almirante Merino, que se autodesignou comandante da Marinha, mais o senhor Mendonza, general rasteiro que até ontem manifestava sua fidelidade e lealdade ao governo, e que também se autodenominou diretor geral de Carabineiros... 


- Diante desses fatos, só me resta dizer aos trabalhadores: não vou renunciar! 


- Em meio ao trânsito histórico, pagarei com minha vida a lealdade ao povo. 


- Dirijo-me ao homem do Chile, ao operário, ao camponês, ao intelectual, e aqueles que serão perseguidos, porque no nosso país o fascismo já esteve muitas horas presente: nos atentados terroristas, voando pontes, cortando vias férreas, destruindo oleodutos e gasodutos, ante o silêncio daqueles que tinham a obrigação de cuidar. Estavam comprometidos. A história os julgará. Certamente, a rádio Magalhães será calada e o metal tranqüilo de minha voz já não chegará até vocês. Não importa. Continuarão a ouvi-la... 


- Sempre estarei junto a vocês. A lembrança que terão de mim será a de que fui um homem digno, fiel à pátria. O povo deve defender-se, mas não se sacrificar. O povo não deve deixar-se arrasar, nem acribillar, mas também não pode ser humilhado. Trabalhadores de minha pátria, tenho fé no Chile e em seu destino. Outros homens superarão este momento cinza e amargo quando a traição pretender se impor. Fiquem sabendo que, muito mais cedo do que imaginam, de novo se abrirão as grandes avenidas por passará onde o homem livre, para construir uma sociedade melhor. 


- Viva Chile! Viva el pueblo! Vivan los trabajadores! 


- Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a traição. 


-- Ele parou de falar. Fiquei pensando: 


-- Mas porque não chamou o povo a sair às ruas, a lutar. O que está acontecendo... Por que esse derrotismo? 


Giro o dial. Uma voz metálica ameaça. Estarrecido ouço o general Augusto Pinochet ordenar a rendição incondicional do companheiro Allende, caso contrário a Força Aérea bombardeará o palácio La Moneda. 


Corro até a janela e olho para o palácio. Imponente, de arquitetura espanhola, como será que ele tem coragem... Bombardear... Não, isso é impossível. Giro o dial de novo e pego o rádio-amador aqui ao lado, o da sede do partido socialista... Em meio a zumbidos, procuro uma melhor definição de onda. 


Será que um golpe contra Allende pode ser bem-sucedido? É impossível prever. E o povo, e as fábricas, e os cordões industriais? Não irão às ruas, não vão resistir? 


Peguei um diálogo... 


O Palácio de La Moneda está cercado por tropas do Exército. A polícia de Allende recebe uma proposta de rendição, transmitida por seus adidos militares. 


O presidente rechaça a renúncia, diz que prefere morrer. Ninguém sabe ao certo o que está acontecendo. Allende suicidou-se, foi fuzilado? 


- Creio que a história do suicídio é falsa. Acabei de falar com o adido naval... Eu o encarreguei de convencer o chefe dos carabineiros a render suas tropas, do contrário vão ser bombardeadas, afirma o vice-almirante Patrício Carvajal ao general Pinochet. 


- De acordo. Acaba de me chamar o subsecretário da Marinha, e concorda que a exigência é rendição incondicional. Esse cara é traiçoeiro. Se quiser se render, que vá ao ministério da Defesa para se entregar aos comandantes. 


Allende está acuado no palácio. Por telefone fala com o Ministério da Defesa. Só aceita dialogar no palácio presidencial. 


- O presidente da República só recebe em La Moneda, diz uma voz por telefone. 


- Esse cavalheiro está tentando ganhar tempo. Nós estamos nos mostrando débeis. Não aceito nenhum encontro. Encontro significa diálogo. A rendição é incondicional. É bem claro o que digo: rendição incondicional. Se quiser, ele que venha e se entregue. Se não, vamos bombardear o palácio o quanto antes. 


Pinochet está irado. Seus pares concordam com ele. 


- De acordo... Em dez minutos, vamos bombardear La Moneda, declara o vice-almirante Patrício Carvajal. 


Hawker Hunters, aviões de caça da Força Aérea chilena, surgem como pequenos pontos no horizonte. Vão crescendo e tomando forma como maldições que se materializam. E os mísseis, um, dois, três... Perco a conta, vão acertando o alvo. O centro da cidade é estremecido por um ruído rouco, que parece sair do próprio oco da terra. Um misto de terremoto e irrupção vulcânica, imagens tão dolorosas na vida desse povo que tanto se orgulha de sua democracia. 


Paredes internas do palácio desabam. 


- Pegue o ministério do Allende e vamos mandar todo mundo para fora do país. Já... De avião..., diz Carvajal. 


- Tem razão, se forem julgados ganham tempo..., concorda Pinochet. 


- Minha opinião é que esses senhores devem ser presos e mandados para qualquer lugar. No caminho, vão sendo eliminados... 


O general Gustavo Leigh, comandante da Força Aérea, descarta qualquer possibilidade de julgamento. Para ele, comunista bom é comunista morto. 


Os operadores de rádio, jovens cadetes, que estão transmitindo e sendo retransmitidos por todo o país por radioamadores, exclamam estarrecidos: 


- Esse sujeito é um facho. 


Os assessores de Allende estão abandonando o palácio, a pedido do próprio presidente. Agitam uma bandeira branca. Pinochet quer saber se Allende integra o grupo. 


- E Allende? Saiu ou não saiu? 


- Não saiu, diz que o ministro Flores está incumbido de pedir condições decorosas para a sua rendição. 


- Não há nenhuma condição decorosa. Esse imbecil, o que ele está pensando? A única coisa que desejo é respeitar sua vida e já fazemos muito. 


Pinochet aparentemente ainda trabalha com a idéia inicial de enviar Salvador Allende e seu círculo mais próximo para o exílio, num avião. Mas, a pressão de Leigh vai ganhando espaço entre os militares. Por volta do meio-dia, Pinochet concorda que seria preferível que o presidente morresse. 


- Mantemos a oferta de tirá-lo do país, mas o avião cai quando estiver voando. 


- De acordo... 


Sinistras gargalhadas ressoam na pequena sala de meu apartamento no Hotel London. Quantos estarão ouvindo a orquestração desse assassinato? 


Após a saída dos assessores, o presidente Allende, dentro de La Moneda, é fuzilado por um grupo de militares. Informado, o Ministério da Defesa retransmite a notícia aos futuros dirigentes do país, entre eles Pinochet. Mas não contam a verdade. 


- Leigh e Pinochet, Carvajal. Há uma informação de dentro do La Moneda. Pela possibilidade de interferência, vou transmitir em inglês. They say Allende comitted suicide and is dead now. Digam-me se me entendem. 


- Entendido. 


- Entendido. 


- Em relação ao avião para a família, a medida não tem mais urgência. 


- Que joguem o corpo de Allende num caixão e o embarquem junto com a família. Que o enterro seja feito em outra parte, em Cuba. Até para morrer esse cara nos causou problemas. 


São as últimas palavras de Pinochet. O zumbido aumenta, uma tristeza invade meu corpo. E eu começo a chorar. Convulsivamente. 


Nunca tinha visto nada igual. O céu ficou preto de fumaça e uma garoa fina começou a chorar sobre Santiago. Uma fuzilaria tomou conta de toda a cidade. 


Não conseguia sair do hotel. Chovia bala. Ao lado do hotel havia uma sede do Partido Socialista. De lá de dentro matraqueava uma metralhadora e tiros esparsos de fuzil. A sede socialista esta cercada por militares entrincheirados. 


Um helicóptero do Exército aparece, voa baixo, pára em frente ao prédio e abre fogo de metralhadora contra os resistentes. Fazem isso várias vezes. A impressão é que as balas vão arrebentar as paredes do hotel. É impossível por o pé na rua. 


Quando chegou a tarde, recebi um telefonema da Base Aérea de Cerrillos. Anabella falou comigo chorando: 


- Estou presa, você precisa vir me soltar. 


Passou pela minha cabeça que se eu não fosse soltá-la nunca mais iria vê-la. Mas eu tinha que ir para Indumet, tinha que juntar-me aos companheiros do comando León Trotsky, com os companheiros do MIR. Tinha que salvar Anabella... Ela ia ser fuzilada... 


No dia seguinte, a primeira coisa que fiz, numa atitude totalmente tresloucada, foi, esgueirando-me o melhor que podia, dirigi-me ao Quartel General do Exército. Cheguei lá e pedi para falar com a assessoria de imprensa, como resposta recebi ordem de prisão: 


- Você é brasileiro? Está preso. 


Não tinham onde me por: me deixaram no corredor, e aí fiquei de pé, de cara para a parede, desde o início da manhã até à tardinha, vigiado por um soldado. Era o segundo dia do golpe, estava uma confusão danada, e lá pela tarde o Quartel General começava a ser bombardeado por obuses. Os estilhaços caiam dentro do corredor. Soldados corriam para todos os lados. Trocavam o soldado que me vigiava e eu aproveitei a confusão e dei uma ordem: 


-- Leve-me imediatamente ao quinto andar, à assessoria de imprensa. 


O soldado reclamou, diz que não podia, mas diante de minha intransigência acabou concordando. Quando cheguei ao quinto andar, pedi ao assessor de imprensa que providenciasse um jipe militar, porque tinha que ir à Base Aérea de Cerrillos liberar minha companheira que estava presa, por engano. 


-- Nós não podemos fazer isto, estamos sendo atacados, é impossível te dar um jipe. Volta aqui amanhã, talvez seja possível... 


Concordei com ele e o soldado, ainda confuso, me deixou sair do quartel. Chegar ao hotel não seria fácil. Havia trincheiras ao longo da avenida e nas esquinas das ruas. Até um ponto do trajeto, trincheiras dos militares, e daí em diante trincheiras da resistência. Então eu levantei minha carteira de jornalista, e gritei: 


-- Sou jornalista. 


Corria e pulava na trincheira. Conversava um pouco, explicava que tinha que seguir em frente e ouvi: 


-- Se você for em frente, vai morrer, vão atirar em você. 


Quando estava quase chegando à outra trincheira, voltei a gritar: 


-- Sou jornalista... 


E assim à noite, por puro milagre, cheguei inteiro, são e salvo, ao hotel. 


-- Hoje tenho que ir direto à Base Aérea de Cerrillos. 


Ela que ficava num bairro distante do centro da cidade. E eu passei o dia todo tentando encontrar algum transporte, mas não havia condução. Houve o toque de recolher, que proibia às pessoas de transitarem pelas ruas. Tudo estava parado. Às quase cinco da tarde passou um táxi, o único táxi que eu vira nesses dois dias. Quando o táxi chegou próximo, lancei-me à frente dele e comecei a gritar para que parasse. Ele parou. O taxista disse que estava indo para casa, que ficava longe, na cidade de Valparaíso. Então, ousadamente, dei-lhe voz de prisão: 


-- Leve-me à Base Aérea de Cerrillos ou está preso. 


Ele olhou para mim, estupefato, e pergunta: 


-- O senhor é da embaixada brasileira? 


Eu sabia que o governo brasileiro estava apoiando o golpe militar, por isso não hesitei: 


-- Sou. 


Então ele me levou até a base aérea. Quando chegamos, a base aérea estava sendo bombardeada com morteiros. O táxi passou pelo portão principal, ouvimos os morteiros zumbindo sobre nossas cabeças e explodindo lá na frente. Rapidamente, os militares da Aeronáutica nos cercaram. Caía uma garoa forte. 


Ordenaram que eu descesse do carro. Fiquei no meio de um gramado, nas guaritas havia soldados armados com fuzis e metralhadoras. Deram uma segunda ordem: 


-- Tira a roupa, toda a roupa. 


Debaixo da garoa fina, tirei a roupa e mergulhei numa imagem ancestral: a do judeu nu, massacrado, prestes a ser fuzilado. 


Um oficial saiu de uma das guaritas e pediu o meu passaporte. Expliquei que tinha ido buscar minha companheira. Debaixo da chuva fina, ele abriu o passaporte, que era falsificado, olhou-o rapidamente e me devolveu. Mandou chamar Anabella. Ela veio chorando, em prantos. Caminhamos para o táxi, mas o motorista, que também chorava de raiva, por ter sido enganado, negou-se a nos levar de volta. Dirigi-me ao oficial e disse: 


-- Este homem não quer nos levar de volta. 


O oficial respondeu: 


-- Tem que levar, vocês não podem ficar aqui. 


E como entramos, assim saímos da base aérea, debaixo de explosões e do matraquear de metralhadoras. 


Quando chegamos ao hotel, Anabella contou que na manhã do dia 11 de setembro, a fábrica onde trabalhava resistiu ao golpe até acabar toda a munição. Então, os militares da Aeronáutica, que tinham cercado a fábrica, invadiram as instalações, prenderam todos, encostaram os dirigentes na parede da rua e os fuzilaram na frente dos companheiros. Ela por ser loura e brasileira foi poupada. Afinal, não sabiam de quem se tratava. Foi levada para a Base Aérea e presa. No breve interrogatório, disse que era mulher de um jornalista brasileiro, correspondente da agência Dispatch News Service, de Washington. Teve, então, o direito de dar um telefone, aquele que eu atendi no hotel. 


No hotel, o ambiente estava alvoroçado. A televisão apresentava uma lista de pessoas procuradas, exortando à população a denunciar todos os estrangeiros. Os militares deram dois dias para todos os estrangeiros se entregarem. Eu, logicamente, não vou me entregar. 


Anabella e eu sabíamos que podíamos ser denunciados, mas não tínhamos escolha. Íamos passar aquela noite rasgando e jogando pela janela nossos textos e manuais de guerrilha urbana. 


Acordei sobressaltado. 


-- Estão esmurrando a porta. Vou abrir. Levei uma coronhada na cara. Foi tudo muito rápido. Abri os olhos, em meio ao sangue que escorria pelo meu rosto, e levei outra coronhada. A cada coronhada eu desmaiava e quando voltava a mim, era golpeado de novo. Levaram tudo o que puderam levar, roupas, máquina de escrever, livros. Presos, fomos obrigados a caminhar pelas ruas, com as mãos na nuca, numa estranha procissão. Depois nos jogaram num ônibus, deitados. Começaram então a maltratar Anabella. Chutando-na e pisoteando-na. Eu gritei: 


-- Não façam isso, ela está grávida. 


Era mentira, mas eles pararam. 


Não sabíamos para onde estavam nos levando. Uma hora depois, com o ônibus cheio de presos, fomos obrigados a descer diante de um quartel: Era o regimento Tacna. Vemos muita gente machucada, uns segurando seus braços, quebrados, outros se arrastando, todos sujos de sangue, assim como eu. Minha cabeça doía terrivelmente. Sinti o rosto inchado e quente. Minha camisa estava empapada de sangue, já meio endurecido. A sensação era muito desagradável. Parece que estava vivendo um pesadelo. O sentido de realidade se perdeu no meio desse cenário de morte. 


Largaram-nos numa espécie de cozinha. Eu caí no chão e apesar de muito machucado, tinha uma sensação de alívio. O chão de ladrilho era frio e transmitia uma sensação agradável ao meu corpo. Estava vivo. Isso era o que importava. 


Anabella e eu estávamos quietos. Quebrei o silêncio e arrisquei uma frase de humor: 


-- Não se preocupe. Eles não têm nada contra você. Na semana que vem você já estará em Copacabana, no maior bronze. 


Sabia que iria morrer. Iriam me meter uma bala na cabeça e iriam me jogar numa vala qualquer. Estava calmo. Minha intimidade com Deus estava ainda precária, por isso não orava, nem pedia nada. Mas gostaria que Anabella não fosse morta, gostaria muito que ela pudesse voltar para o Rio de Janeiro, ali para o Posto 4, para curtir a praia que ela tanto gostava. 


O que pensa um homem antes de morrer? Sempre tive essa curiosidade. E agora estava tendo a oportunidade de matá-la. Não pensava em nada. Era como se o meu cérebro estivesse vazio e os pensamentos passassem como se fossem nuvens rápidas antes da tempestade. Nem mesmo podia dizer que estava plenamente consciente. 


Mais do que pensar, eu sentia. Sentia os ladrilhos frios no meu rosto inchado. E isso era agradável. Sentia o meu corpo imóvel, pesado, como se estivesse pressionando o chão. Tão pesado que parecia que ia entrar chão adentro. E isso também era agradável. 


Talvez essas sejam as sensações de um feto. Ele não pensa, sente. E o tempo já não existe. Estava ali fazia minutos ou horas? Não sabia... 


Chegou um coronel e nos informou: 


- Vocês vão ser fuzilados no início da tarde. 


O tempo era um redemoinho e eu estava mergulhando nele. Num momento estávamos cansados, machucados, tontos, noutro, fomos agarrados, levantados, levados. Colocaram-nos no início de uma fila, umas oito pessoas caminhando para o paredón. 


De repente, um tenente me chamou. Eu estava na fila, caminhando, e ele me chamou. Saí da fila, fiz um sinal para Anabella me acompanhar. E o oficial me perguntou: 


-- Você foi preso com muito material subversivo, é verdade? 


Disse que era verdade, que era jornalista, e que tudo foi comprado. Ele disse que também tinha muitos daqueles livros em casa. Senti uma empatia profunda com aquele jovem. Estou diante de um oficial de esquerda. Apenas nos olhamos. Olhares cúmplices de companheiros que viram seus sonhos queimarem nas chamas do La Moneda. 


Enquanto isso, os três ouvimos atrás de nós os tiros que abateram os outros companheiros. 


Fomos então mandados para interrogatório. Combinei rapidamente com Anabella que apenas eu falaria para que não entrássemos em contradição. Expliquei aos militares que estava estudando na Universidade do Chile, que amava esse país e que nunca me passara pela cabeça sair do Chile. Era um interrogatório leve. Viram que era correspondente estrangeiro, e me entregaram um salvo-conduto para que tivesse livre trânsito. 


Estávamos apenas com a roupa do corpo. Não tínhamos nada. Mas a vida era o bem maior, mesmo quando temos apenas a roupa do corpo. Andarillhamos pelo centro de Santiago, até que descobrimos um hotel perto da Plaza de Armas. O hotel estava cheio de conhecidos, velhos companheiros, exilados brasileiros. Dudu, filho do Zé Maria, era um deles. 


-- Será que esse é o melhor lugar para um brasileiro se esconder? 


Do hotel telefonei para Nova Iorque, para um grande amigo meu, Peter, que pertencia ao Socialist Workers Party. Não consegui falar com ele, pedi então a uma amiga que trabalhava no consulado brasileiro em Nova Iorque para entrar em contato com Peter. Expliquei a situação e pedi para me mandassem duas passagens de avião Santiago/Buenos Aires e dinheiro via ordem de pagamento. Ficamos no hotel. Dois dias depois, o dinheiro chegou. Compramos roupas. Quando os aeroportos abrissem, chegariam também as passagens. 



Capítulo 15 



Desgrenhados, ensangüentados, mutilados



O centro de Santiago se transformou num parlamento. Não podíamos ouvir claramente as vozes porque estavam amordaçadas, podíamos ouvir os pensamentos que se debatiam em meio aos clamores de justiça e liberdade. 


Cada homem e mulher da Unidade Popular, não importava o matiz político, tinha o coração partido e sentia-se abandonado pelo destino. Ninguém falava, cada um olhava para o outro como se vivesse o momento maior da traição. O terror foi tomando conta dos corpos e mentes. 


Ali, no minicentro formado por Ahumada com Huérfanos, convertido nos últimos dias na tribuna pública do medo e do silêncio, podíamos ouvir os pensamentos da gente que lutara e morrera na tragédia dos últimos dias. 


O cenário de todos esses dias era parecido. Jovens, homens adultos, velhos, desgrenhados, ensangüentados, rasgados, mutilados vagueavam como cadáveres, procurando não chamar a atenção. Ninguém falava alto, ninguém repartia panfletos ou jornais. Não se viam grupos ou círculos. Ninguém escutava argumentos, ninguém polemizava. 


Ninguém era partidário. Éramos todos apolíticos, sombras que vagueavam pelo centro.


A poucos metros de cada um de nós, sempre em grupos, piquetes de Carabineiros sob comando de oficiais observava se alguém traspassava a fronteira do bom senso e abria a boca. 


Pensamos. Olhamos o companheiro que passava e pensamos. Ele entendia e nos respondia. Todos falávamos, a comunicação era plena e solidária, apesar do medo. Sem som, sem voz, nos comunicávamos. 


Eis o espelho do Chile, medo e esperança, dialogavam sem pedir permissão a ninguém, e nós nos aproximamos de um desses grupos e escutamos com atenção. 


Preste você também a máxima atenção a esses corações e ouvirá o clamor que não é audível para os assassinos da liberdade. Simplesmente preste atenção. 


Ligue seu gravador, de forma dissimulada, para evitar inibições. Venha para esse parlamento de rua, o lugar natural da democracia. 


Não se preocupe com os nomes. Aqui ninguém tem títulos, somos todos peatones o que é peatones? 




Cena Um 


Diálogo Um 



Jovem triste, sujo de sangue, tem as mãos quebradas. Fala pausado como se estivesse no meio de um sonho. 


- No dia 11 de setembro eu cumpria minhas funções como membro do dispositivo da segurança do presidente Salvador Allende. Esse dia era muito importante para mim, porque era o dia do meu casamento. 


Homem baleado no peito à queima roupa. Tem a camisa e a parca verde oliva queimadas. 


- Nossos planos em caso de golpe sempre levaram em conta duas variáveis: uma ruim e outra péssima. A péssima era de que o grosso das forças armadas apoiasse o golpe. A ruim era de que o povo tivesse armas e alguns regimentos permanecessem leais ao governo. 


Senhora de 55 anos chora o filho desaparecido. 


-Digam aos militares que o povo não vive só de pão, queremos nossos filhos... 


Moça desgrenhada, enlameada, vestida de noiva, com um buquê na mão... 


- Pão nós temos... Eles não vieram para nos dar, mas para tirar o que temos... 



Cena Um 


Diálogo Dois 


Jovem triste... 


- Estive de guarda do lado de fora do quarto do Dr. Allende até as duas da manhã. Depois chegou alguém para me render. Lembro-me, ao me deitar, que vi garrafas de Coca-Cola e sanduíches guardados por meus companheiros para a minha despedida de solteiro. 


Operário, veste um macacão manchado de graxa e arrasta com dificuldade uma das pernas. 


- Eles estão falando em mudanças. Que tipo de mudanças? As poblaciones foram invadidas, estão entrando em tudo que é casa. Prendendo pessoas, desaparecendo com elas. Essa mudança nós não queremos. 


Velho, de óculos, é o único que esboça algo parecido com um sorriso. 


- Não percam a esperança, a coisa está começando. Muita água ainda vai rolar. 


Partidários da Unidade Popular em coro. 


- É isso mesmo. Está havendo resistência em tudo que é lado, principalmente nas poblaciones... O que eles dizem não interessa, não podemos fazer o jogo deles. 


Homem baleado no peito... 


- Faço parte da direção do Grupo de Amigos do Presidente - GAP e sempre defendi a idéia de que em caso de golpe, o presidente deveria criar uma zona liberada, num dos subúrbios operários da cidade. A partir daí, com uma equipe de rádio portátil, organizar a resistência... 



Cena Um 


Diálogo Três 


Um homem destoa do ambiente, está bem vestido e porta com elegância uma bengala trabalhada. 


- E se as mudanças forem boas? E se houver mais empregos? 


Velho, de óculos... 


- Os milicos darem trabalho? Você está louco. Eles vão dar chumbo... 


Jovem triste... 


- A situação política e militar estava se complicando e eu sabia que meu casamento tinha que acontecer rápido, no máximo em meia hora... 


Um homem destoa do ambiente... 


- Mas porque o desemprego estava aumentando? Porque ninguém queria investir aqui? Porque não tinha estabilidade. Quem sabe agora, pode haver alguma mudança e o dinheiro de fora começa a entrar? 


Velho, de óculos... 


- Diga-me senhor, com toda a sinceridade. Quem produz o desemprego nesse país? É o governo ou los momios, que fecharam fábricas, mandaram suas fortunas para a Suíça e para Miami? A estabilidade que eles querem vai ser construída em cima do seu cadáver. 


Velho, de óculos... 


- O setor privado chileno está de braço dado com os militares. 


Homem baleado no peito... 


- Allende preferiu ir para o palácio La Moneda. Isso condicionou nossos planos. 


Velho, de óculos... 


- E há mais um detalhe. O investimento estrangeiro procura é mão de obra barata, não quer fazer a felicidade de ninguém. 



Cena Dois 


Diálogo Um 


Jovem triste... 


- Fui despertado às cinco e meia da manhã. Falam que a Marinha, em Valparaíso, estava rebelada. Preparei-me para o combate e fomos para o Palácio La Moneda. A comitiva especial do GAP, que normalmente era composta por quatro carros foi reforçada, com mais duas camionetas de cabine dupla. Não havia nenhum movimento no centro da cidade. Eram sete da manhã. 


Velho, de óculos... 


- Minha pergunta é, você é ou não é de esquerda?... 


Um homem destoa do ambiente... 


- Vou responder com toda a honestidade: não posso dizer que sou dessa esquerda que está aí. Sempre votei nulo. 


Velho, de óculos... 


- Então, colega, chegou a hora de fazer alguma coisa... 


Moça desgrenhada 


- As armas falam mais alto que as urnas... 


Homem baleado no peito... 


- Temos 140 fuzis, com 120 tiros por fuzil. E algumas bazucas, com seis projéteis por bazuca. Não dá para mais de um combate. 



Cena Dois 


Diálogo Dois 


Índio mapuche, forte, troncudo. 


- Os militares vão repetir a truculência de Custer e sua tropa. Vão exterminar os mapuches. Para nós não há alternativa. É lutar ou ser escravizado. 


Operário, veste um macacão manchado de graxa... 


- É, os mapuches não têm opção. 


Senhora de 55 anos... 


- Temos que pensar em função de nossas crianças. O que elas vão herdar. 


Jovem triste... 


- Eu e Isabel íamos nos encontrar no cartório às nove e trinta. 


Moça desgrenhada... 


- Mas o que podemos herdar se anos de democracia, uma tradição chilena, foram queimados com o La Moneda? 


Um homem destoa do ambiente... 


- E de que valeu votar na Unidade Popular? 


Velho, de óculos... 


- Valeu votar e eleger Allende. Era a exigência do momento. Não foi errado. Agora, é o momento de usarmos outras armas... 


Homem baleado no peito... 


- Os trabalhadores estão na periferia da cidade, nos cordões industriais e nas poblaciones. Temos que cobrir Vicuña Mackenna, San Joaquín, Cerrillos, Pan-americana Norte... Conseguir mais munição e avançar sobre o La Moneda. 


Operário, veste um macacão manchado de graxa... 


- Concordo, só não sei como... Está todo mundo preso. Quem vai liderar a oposição? 


Um homem destoa do ambiente... 


- Pior ainda, tem gente fugindo como rato. As embaixadas estão cheias. Todos os estrangeiros que estavam aqui para nos ajudar estão fugindo. Inclusive, muita gente da UP... 


Operário, veste um macacão manchado de graxa... 


- Se ficarmos parados vai ser pior ainda. Eles vão atacar os mapuches, proibir os partidos, fechar os sindicatos, os jornais. Só vai ficar quem disser sim. 


Cena Dois 


Diálogo Três 


Homem baleado no peito... 


- São seis e meia. Nossa central de rádio informa que está havendo um levante militar. 


Um homem destoa do ambiente... 


- Tudo começou no governo de Frei. A democracia cristã fez o papel de Pilatos, lavou as mãos e entregou a Unidade Popular aos seus algozes. 


Índio mapuche, forte, troncudo. 


- Companheiro, a luta de classes não começou com Frei. Allende fez o que pode. 


Moça desgrenhada... 


- Os governos democráticos sempre reprimiram os trabalhadores, mas esses militares nem democráticos são... 


Um homem destoa do ambiente... 


- É, mas, em agosto a própria Câmara dos Deputados começou a sinalizar a favor de um golpe de estado. 


Índio mapuche, forte, troncudo. 


- Concordo em parte. Não que a Câmara fosse confiável, mas o que ela estava dizendo é que Allende estava implodindo o estado de direito... 


Um homem destoa do ambiente... 


- É, a Câmara dizia que Allende violou a garantia constitucional do direito de propriedade, amparou invasões de fazendas, de indústrias, de comércios, e que por essa via pretendia construir a nova área estatal da economia. 


Operário, veste um macacão manchado de graxa... 


- Que isso aconteceu é verdade, agora se foi da vontade de Allende eu não sei. 


Senhora de 55 anos... 


- Estou de acordo. A esquerda tentou construir um Chile socialista. Ao menos tentou. Mas e a direita, o que fez em toda a história da República? 


Moça desgrenhada... 


- Não me interessa o que fez a direita. Ela tem sido minha inimiga. A Unidade Popular pode ser uma mierda, mas é o meu governo. 


Homem baleado no peito... 


- Eu estava em casa dormindo. Dei um longo abraço em minha mulher. Ela foi para seu posto de combate, na central de comunicações do partido socialista e eu para o meu. 


Jovem triste... 


- Tenho 23 anos e hoje é o dia do meu casamento. Deveria ser o dia mais feliz e importante de minha vida. Estou todo molhado, tive que ajudar a apagar o incêndio do palácio, depois do bombardeio. 



Cena Três 


Diálogo Um 


Jovem triste... 


- O primeiro som de combate foi impressionante. O martelar de uma metralhadora pesada. Eu estava na rua Morandé, 80. Minha missão era cuidar da porta. Quebramos os vidros e respondemos ao fogo. Vimos um tanque e a tropa atrás. Os soldados não queriam avançar, mas os oficiais os obrigavam, sob a ameaça das armas. 


Moça desgrenhada... 


- Estão falando em milhares de mortos. Em gente boiando no Mapocho? 


Senhora de 55 anos... 


- Será que pode haver gente tão desalmada assim, a ponto de matar trabalhadores indefesos? 


Moça desgrenhada... 


- Matam sim e com apoio de gente de fora, com a participação descarada dos Estados Unidos, do financiamento que deram aos camioneiros, aos comerciantes e agora aos militares... 


Homem baleado no peito... 


- Recebi ordens de acompanhar o responsável pelo armamento, para tirar e distribuir as armas que estavam num depósito perto do parque Cormo. 


Moça desgrenhada... 


- A senhora tem alguma esperança em Pinochet? 


Senhora de 55 anos... 


- Não falei de Pinochet, falei de gente desalmada... 


Moça desgrenhada... 


- Mas e Pinochet? Gosta ou não gosta? 


Senhora de 55 anos... 


- Você está me provocando... Claro que não gosto. 


Moça desgrenhada... 


- Senhora, não estou lhe acusando. Mas ele assassinou meus sonhos... 


Senhora de 55 anos... 


- E os meus também... 


Jovem triste... 


- Só às duas e meia da tarde tomei consciência de que estava vivendo um absurdo. Estava no meio de um combate aberto com os militares, era bala para tudo quanto é lado, e foi aí que resolvi telefonar para Isabel e dizer que nosso casamento deveria ser adiado. Mas que nos veríamos à noite. Eu estava embaixo de uma escrivaninha, com um telefone de um lado e o fuzil de outro. 


Operário, veste um macacão manchado de graxa... 


- O que você acha de Allende? 


Um homem destoa do ambiente... 


- Eu que pergunto: em que deu seu governo? 


Operário, veste um macacão manchado de graxa... 


- Mas por que vocês se juntaram à oposição e à direita? 


Um homem destoa do ambiente... 


- Eu não me juntei à direita, por isso tenho direito de perguntar: quem derrubou a Unidade Popular? A intolerância dos militares ou Allende e a fome? 


Operário, veste um macacão manchado de graxa... 


- Allende ia colocar seu cargo a disposição do povo, ia chamar a um plebiscito e por isso as forças armadas deram o golpe de Estado. Essa é a verdade. 


Um homem destoa do ambiente... 


- Então foram os militares, e eu não tenho nada com isso... 


Operário, veste um macacão manchado de graxa... 


- Vocês se aliaram à direita civil... 


Um homem destoa do ambiente... 


- De acordo com sua lógica quem não apóia a UP é de direita. Eu não apoiei a UP e não sou de direita. 


Operário, veste um macacão manchado de graxa... 


- O único que a democracia cristã fez foi confundir as pessoas. E agora, com quem a democracia cristã pretende governar? Ou vocês ficam com a democracia ou ficam com a ditadura. Não dá para ser Pilatos a vida inteira. 


Um homem destoa do ambiente... 


- Sabe de uma coisa, o que passou, passou. Temos que construir um novo Chile. 


Partidários da Unidade Popular em coro. 


-¡Se siente, se siente, Allende está presente! 


Jovem triste... 


- Isabel mora perto dos Correios, em Puente, e escutou as rajadas de metralhadoras. Sua primeira reação foi dizer que eu ia morrer. Pedi então para falar com seu irmão, um companheiro, um amigo extraordinário. 


“Olha, estamos no meio do golpe”. 


“Então estamos indo para o La Moneda, com reforços”. 


“Não sejam loucos. É impossível, estamos isolados”. 


Homem baleado no peito... 


- Além das armas do parque Cormo, temos outros depósitos, o mais importante deles está na rua Chile-Espanha, perto de Irarrázaval. 



Cena Três 


Diálogo Dois 



O jovem triste e o homem baleado contam suas histórias. Todos ouvem em silêncio. 


- Ele entendeu. Era uma despedida. Senti novamente o sentido de missão que me levara ao GAP. O combate é uma situação de violência física extrema, todos os sentidos estão dirigidos à luta, você pode morrer a qualquer momento. Não há tempo para pensar no que foi sua vida. Não há tempo. 


- Estou no depósito da rua Chile-Espanha faz meia hora. Algo está errado, ainda não chegou a unidade que deveria pegar as armas. 


- Às quatro da tarde, subimos para o segundo andar do palácio, porque o primeiro estava em chamas. Aí caímos todos. Quando eu ia ser morto, um sargento disse que ia usar-me como escudo, porque dos prédios muitos companheiros estavam resistindo. 


- Resolvo eu mesmo carregar uma camioneta. Deixo a casa e vou para Irarrázaval com o responsável pelo depósito. O trânsito está pesado, todo mundo parece querer chegar em casa o mais rápido possível. Vejo uma camioneta parada. Jogo o carro em cima dela, desço, ponho a mauser na cabeça do condutor e dou ordem para que saia da camioneta. 


- Eu e os companheiros, usados como escudos, fomos obrigados a deitar na Morandé. Pensei que fossem nos esmagar com o tanque. Mas, de repente, aparece um jovem oficial, de porte senhoril, de luvas de couro e nos diz: “Senhores, vocês têm feridos? Mandei buscar uma ambulância para retirar seus feridos”. 


- Meu colega pegou a camioneta e saiu cantando pneus. 


- Logo chegou a ambulância. E também um ônibus da Marinha, que nos levou ao regimento Tacna. 


- Eu fiquei, no meio daquele trânsito congestionado. Enfiei a mão no carro, peguei uma metralhadora AKA e gritei: “Todo mundo no chão”. As pessoas obedeceram. Lançaram-se de cara no chão. Eu estava louco. Usava uma parca verde oliva e estava completamente despenteado. 


- Quando desci do ônibus, um oficial me apoiou, segurando meu braço. Depois pegou uma bandagem e vedou o sangramento à bala no braço de um companheiro. Foi o único oficial que nos permitiu ir ao banheiro à noite. Todos os outros nos torturaram. 


- Depois de carregar a camioneta, fomos para o segundo depósito, na avenida La Feria, perto de San Miguel. Eu de carro, fazendo a escolta da camioneta. 


- Fomos colocados em galpões e cavalariças, junto com os membros da presidência da República. Nos deixaram de pernas abertas, mãos na nuca e nos disseram que íamos ser fuzilados à meia-noite. Depois às cinco da manhã. 


- Às dez e meia, voltei para nosso QG, com todas as armas de quatro depósitos. 


- Havia mudança de guarda a cada duas horas. E a cada duas horas éramos surrados. 


- A comissão política ordenou que déssemos início aos combates. São onze horas e somos 130 pessoas. Estamos diante da alternativa péssima: todas as forças armadas apoiaram o golpe. 


Um homem de quarenta anos entra na conversa. Tem as mãos sujas de pólvora. Seu olhar está fixo, em alguma coisa que a gente não vê. 


- Eu também combati no palácio La Moneda. Sou do GAP da Regional Santiago Centro. 


Jovem triste... 


- Eu não queria morrer aos 23 anos. E o que mais me incomodava era que eu não tinha filhos. Nem um menino, nem uma menina, que pudesse contar a minha história... 


Partidários da Unidade Popular em coro. 


- Pinochet assassino! Pinochet assassino! 


Homem baleado no peito... 


- Fomos para Indumet. Juntos com a direção MIR começamos a programar um ataque conjunto. Chega, então, outro companheiro da direção do GAP e informa que o La Moneda está pedindo ajuda. Temos que romper o cerco do palácio. 


Homem de quarenta anos... 


- O presidente foi morto por sete homens, um capitão, um tenente e cinco soldados. Recebeu seis tiros, dois no pescoço e quatro no tórax. Tiros de metralhadora CIC 7.62, norte-americana. Eram quase duas da tarde. 


Homem baleado no peito... 


- Carabineiros começam a cercar Indumet. Rubém sai e atira nos carabineiros. Começa o tiroteio. 


Homem de quarenta anos... 


- Discutimos se devíamos nos render ou não. Eu fiquei e com outros companheiros, pegamos o corpo do presidente, colocamos a faixa presidencial, e ao lado do corpo deixamos o seu fuzil AKM 7.62, presenteado por Fidel Castro. 


Partidários da Unidade Popular em coro. 


- Pinochet assassino! Pinochet assassino! 



Cena Três 


Diálogo Três 



O homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, continua sua história. Todos ouvem em silêncio. 


A rua é sem saída e um ônibus de carabineiros bloqueia a rua. Começam a chegar tanques. Vou tentar romper o cerco pela retaguarda. Explodimos uma parede e saímos por trás. Estamos em San Joaquín, em frente à Coca-Cola. 


León é metralhado. Companheiros o levam de volta para Indumet. Os carabineiros invadem Indumet e fuzilam León e mais dois operários. 


Cruzamos San Joaquín e nos enfiamos por uma rua ao lado da Coca-Cola. 


Nosso comando chegou a La Légua. Um caminhão de carabineiros tentou nos interceptar, mas respondemos com tiros de bazuca. O caminhão incendiou. Pegamos todas as armas deles e fizemos um pequeno discurso exortando a que lutassem ao lado do povo e não contra ele. 


Ocupamos a praça de La Légua. Tomamos um caminhão de bombeiros, ligamos a sirene e passamos de población em población chamando a população a resistir e a defender o governo. 


Em La Légua deixamos uma companheira que estava ferida no tornozelo. Ficou com alguns moradores de uma población e se salvou. 


Chegamos a Sumar, que era um dos locais de concentração, segundo nosso plano de resistência. Vários companheiros estavam chegando de Tomás Moro. Um deles com uma camioneta cheia de armas. 


O companheiro Lozada, da comissão política, dirigiu nossa reorganização. Tínhamos 200 homens armados. 


Somos então atacados por um helicóptero Puma do Exército. Ele desce à altura das copas das árvores e começa a nos metralhar. Uns cem companheiros respondem de imediato. O Puma é atingido e afasta-se rapidamente, mortalmente ferido. 


Tentei derrubá-lo com um tiro de bazuca ou de M60, mas já não tínhamos essas armas à mão. No meio dessa confusão, pensei na frase do Che: “Se a revolução é verdadeira, ou se vence ou se morre”. 


Para não sermos um alvo fácil e concentrado, criamos um comando para juntar-se aos trabalhadores de Mademsa—Madeco. Eu fui com esse comando. 


No caminho, por La Légua, fomos atacados por unidades de carabineiros. Como a ordem era chegar a Mademsa—Madeco, um grupo ficou combatendo, enquanto outro, cerca de 50 companheiros, rompeu o cerco e seguiu seu caminho. 


Chegamos a nosso destino e aí criamos nossa segunda defesa perimetral, com carros, rádio e o controle de vários quarteirões. 


Às três da tarde tive uma reunião com o interventor da fábrica, um companheiro socialista. Conseguimos pão e víveres para os combatentes. Fui então informado pela central de rádio que até aquele momento não havia nenhuma comunicação das regionais. 


Os militares tinham ocupado todas as rádios. 


O homem de quarenta anos, que tem as mãos sujas de pólvora e o olhar fixo em alguma coisa que a gente não vê, interrompe: 


- Às quatro e vinte fugimos pela rua Teatinos. 


O operário, que veste um macacão manchado de graxa e arrasta com dificuldade uma das pernas, completa: 


- Eis um homem digno. 


O homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, termina sua história. Volta-se a fazer silêncio. 


Às seis da tarde chega minha mulher. Que alegria vê-la viva. Nos abraçamos, nos beijamos, e a coloco para combater ao meu lado. 


Saímos com duas camionetas cheia de companheiros para romper o cerco que havia em La Légua e também para aliviar a guerra que acontecia dentro de meu peito. Nesse instante, aviões de reconhecimento voavam baixo sobre La Légua. Fomos metralhados. Não havia como seguir. 


Esperamos que chegasse a noite para saber o que acontecia em Santiago e no resto do país. Fomos informados que Allende morrera no La Moneda. Não acreditamos. Nossas informações vinham através das rádios controladas pelos militares e não acreditávamos nessas informações. 


Falamos por telefone com diferentes regiões de Santiago para ver o que estava acontecendo. Soubemos que os companheiros de La Légua enterraram suas armas e tentam voltar às suas casas. Vão para o sul de Santiago sem armas... 


Está confirmada a morte de Allende. Do comando que partiu de Sumar restam poucos homens... 


Partidários da Unidade Popular em coro.


- Pinochet assassino! Pinochet assassino! 


A curta distância, mas sem entrar no debate, um casal de jovens de Vitacura comenta em voz baixa: “Deixa que gritem. Durante muito tempo fomos a maioria silenciosa, mas o passado não voltará, caminhamos para o futuro”. 


Meu olhar passeia triste pelo microcentro de Santiago. Nem uma viva alma. É um espaço vazio habitado por fantasmas... 




Capítulo 16 




Tudo ficou colado em minha alma



A meu Senhor e meu Deus, como estou triste, como é profundo este abismo. Os anos vão passar, mas esses dias não descolarão de minha retina. Tudo isso ficou colado em minha alma. Estou morto. 


Ontem, Anabella e eu vimos carabineiros retirando corpos que flutuavam no rio Mapocho. Pessoas olhavam, mas logo aceleravam o passo. Havia um medo generalizado. Ninguém acreditava no que estava acontecendo. Todos queríamos acordar desse pesadelo. 


Anabella olhou pela janela do quarto. Acendeu um cigarro e continuava olhando. Suas mãos finas tremiam. Fora dois detalhes, que traduziam a angústia e o desespero, parecia uma estátua diante da janela. As mãos tremiam e umas poucas lágrimas rolavam em seu rosto. 


Não sabia o que dizer. 


Os pensamentos revoavam. Distantes passavam voando e vão embora. Meu pai, minha mãe... Era como se minha alma procurasse pousar em algum lugar mais não encontrava terra firma. Tudo o que era sólido se desmanchava no ar. Nunca algo foi tão verdadeiro. 


Senhor Deus perdoa minha auto-suficiência. Não sou o dono do mundo, embora maus conselheiros me digam o contrário. Não sou o senhor da guerra, nem sei manejar as palavras com a habilidade com que um samurai maneja sua espada. 


Levantei-me, fui até a janela. Fiquei ao lado de Anabella. Pus a mão no seu ombro, num pequeno gesto de carinho. Sabia que não tinha o direito de quebrar esses momentos de reflexão. Eram os primeiros em muitos dias. Não tivéramos tempo, não parávamos para pensar, apenas fugíamos da morte. Estávamos mortos. 


Lá fora alguns operários com britadeiras faziam um buraco no meio da rua. Que cena terrível. Homens de cera cavando sepulturas no asfalto. O ruído atravessava nossos sentidos e esmagava nossos sentimentos. Não existia realidade, não existia sonho, tudo era pesadelo. Sinto uma dor forte no estômago. Tiro a mão do ombro de Anabella e me sento de novo. 


-- Senhor Deus, o passado pesa como uma bigorna presa aos meus pés. Nada sei do meu presente e nem imagino qual será meu futuro, mas reconheço que sou pó, um grão de areia em meio a uma vastidão que não criei. Perdoa minha luxúria. Perdoa o sofrimento que causei a Yasmin. 


Olhei para a janela e Anabella continua paralisada. Meus olhos estavam mareados pelas lágrimas. Anabella parecia Yasmin. Sabia que eram diferentes, mas o foco se perdia e Yasmin está diante da janela olhando os operários de cera, que cavavam sepulturas no asfalto. 


- Luís, a guerra não acabou. Allende está morto, parte da liderança da Unidade Popular está presa, mas a guerra não acabou. 


- Yasmin, querida Yasmin, ainda que você tenha razão, ainda que a vitória seja tão certa como o sol que brilha lá fora, estou morto. Vejo um pôr-do-sol de chumbo e dias de vales de ossos secos, como a sepultura que os operários estão cavando lá fora. 


- Não seja pequeno-burguês. Você está vivo e tem muita coisa a fazer. A realidade é maior que o seu pesadelo. 


Ah! Onde estará Yasmin, Túlio, Luiz Carlos, Nélson, Vânio... 


Senhor Deus, se Yasmin está certa, levanta-me. Aceito a guerra se for a tua guerra. Talvez seja essa a oração de minha mãe. Liberta-me da violência e livra-me do mal. 


Oh! Senhor Deus cuida também dos amigos e parentes de presos e desaparecidos no Chile. Em nome do filho, que também foi preso, torturado e assassinado, que foi levantado pelo pai... Em nome dele eu imploro por justiça e paz. Amém. 





O autor e sua obra 


Jorge é jornalista, é teólogo e cientista da religião. Cursou Jornalismo na PUC do Rio de Janeiro, mas só terminou o curso na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do Chile. Nos anos 1990 fez sua graduação em Teologia na Faculdade Teológica Batista de São Paulo. É Doutor e é Mestre em Ciências da Religião pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. 


Desde a época de secundarista, no Rio de Janeiro, gosta de política. Foi exilado entre 1971 e 1974 no Chile e Argentina e, posteriormente, em 1977, na Espanha e Portugal. Em dezembro de 1979 foi anistiado. Nos anos 1990, passou a focar a questão social a partir da teologia da libertação, o que, ele acredita, aumentou e não diminuiu seu compromisso com os deserdados da terra. 


É professor de Teologia e Estudos da Realidade Brasileira na Faculdade Teológica Batista de São Paulo, e desde 1997 também é pastor batista. 


Palavras e palavras 


Quanto aos anjos e demônios, tão presentes na novela, Jorge lembra que na mística judaica, são palavras, palavras de Deus, palavras humanas que constroem e destroçam. É uma leitura antiga da magia das palavras, que vem possivelmente dos sumérios. E proferida a palavra, ela abre as asas, tornando-se mensageira, que se desloca entre os deuses e os humanos. As palavras podem, assim, voar para lugares e épocas que as pessoas não podem chegar e, nesse sentido, são intermediárias do bem ou do mal, ligando o mundo humano a outros mundos. 


Os sumérios acreditavam que cada pessoa tinha uma palavra, companhia inseparável na vida. Quando os semitas conquistaram a Suméria, cerca de dois mil anos antes de Cristo, entraram em contato com essas angelologia e demonologia matriciais. 


Para a mística judaica, existem palavras que cantam e dançam ao redor do trono de Deus: chayot ha kadesh, ophanim, erelim, hashmallim, elohim, bene elohim, cherubim, ishim, metatron, raziel, tzaphkiel, tzadkiel, khamael, raphael, haniel, gabriel, sandalphon. Essas devem ser proferidas com muito cuidado pelos humanos, pois Deus as separou para si. 


Sobre os demônios, em especial três, Jorge já contou deles na novela. Mas, quero citar, ainda, o profeta Isaías (34.14), quando fala da terra de Edom e a apresenta como amaldiçoada e deserta: “As feras do deserto e as hienas morarão ali: demônios chamarão uns aos outros, e ali Lilith (súcubo noturno) encontrará um lugar para descansar”. 


Ora, se as palavras são anjos e demônios, que vagam pelos desertos, que voam, constroem e destroçam, fica o conselho do homem de Nazaré: “Seja, porém, a tua palavra: sim, sim, não, não. O que passar disso é de procedência maligna”. E é por isso que eu digo devemos cortar as asas das palavras mal ditas. 


Jorge faz mais ou menos isso, quando apresenta os relatórios do Serviço Nacional de Informações / SNI sobre sua atuação política, mas diz que corta categoricamente as asas das apreciações e opiniões maldosas levantadas sobre suas atividades e artigos publicados. 



SNI 


“Em conformidade com a portaria no 008 de 16 de janeiro de 1996, da Subsecretaria de Inteligência da Casa Militar da Presidência da República, e em atendimento a requerimento de Jorge Pinheiro dos Santos, protocolado no dia 21 de julho de 1998, informo que nos arquivos em poder desta Subsecretaria há registros sobre fatos e situações com as seguintes indicações a respeito do requerente: 


Jorge Pinheiro dos Santos, brasileiro, casado, jornalista, filho de Amynthas Jorge dos Santos e Maria José Pinheiro, nascido no dia 05 de março de 1945, no Rio de Janeiro/RJ, (...) foi editor do jornal Versus, diretor do jornal Ponto de Partida e diretor do jornal Convergência Socialista, todos em São Paulo/SP. 


Do relatório da Operação Lótus, realizada em 1977/78, pelos DOPS/SP, para apurar atividades do Partido Socialista dos trabalhadores (PST), extrai-se o seguinte sobre o requerente: ‘integrou o grupo denominado Ponto de Partida que criou, no Chile, a Liga Operária (LO); colaborou diretamente na feitura do jornal Independência Operária, órgão da Liga Operária, no Brasil, sendo que em fins de 1976 alugou uma casa em Atibaia/ SP, destinada a aparelho de imprensa, passando a ser responsável pelo setor; em março/abril de 1978, participou de um congresso da Liga Operária em Ubatuba/SP, ocasião em que a referida organização passou a denominar-se PST, passando a integrar o Comitê Central (CC), a Comissão Executiva e o Secretariado do Partido, e a compor a Coordenação Nacional da Convergência Socialista (CS), bem como o núcleo da CS no jornal Versus, em São Paulo/SP; em julho de 1978, participou de um congresso da Tendência Bolchevique (TB), em Bogotá/ Colômbia, ocasião em que a TB passou à Fração Bolchevique (FB), sendo que o mesmo passou a compor o Comitê Central e o Secretariado da FB; foi convidado para fazer parte da Comissão de Coordenação da FB, mas não aceitou, pois para isso teria que se radicar na Colômbia; e ainda, em julho de 1978, fez entrega à FB da importância de Cr$180.000,00, como contribuição do PST brasileiro’. 


Integrou a mesa diretora dos trabalhos da 1a Reunião Estadual da CS, realizada na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul no dia 02 de julho de 1978, a qual objetivou o lançamento das bases para a constituição de um Partido Socialista Brasileiro, 


Compareceu à 1a Convenção Nacional da CS, realizada no Ginásio de Esportes, no Cambuci, em São Paulo/SP, em 20 de agosto de 1978. 


Foi indiciado no Inquérito Policial no 051/78, instaurado pelo DOPS/SP, para apurar as atividades de elementos ligados a antiga organização subversiva denominada Liga Operária, desmantelada em 1977 e reestruturada com a denominação de PST, e que continuou as suas ações subversivas através de seus membros. No relatório do encarregado do inquérito, datado de 17 de outubro de 1978, foram registrados os seguintes dados sobre o requerente: vulgo Luís, professor, foragido, qualificado indiretamente, elemento do CC do PST, respondendo pela Secretaria Internacional, com intensa atividade subversiva desde o início da década de 70, um dos fundadores, no Chile, do grupo Ponto de Partida, participou de um congresso Trotskista em Bogotá/ Colômbia; integrou também o CC da CS; em seu veículo estacionado na rua Tavares Bastos, defronte ao no 679, foram encontrados documentos de cunho subversivo, inclusive o documento tratando sobre ‘O caminho que o PST deve tomar nesses próximos meses’; a farta documentação contra Jorge Pinheiro dos Santos fez com que ele se mantivesse em local incerto e não sabido. Por fim, o encarregado do inquérito concluiu que os indiciados cometeram infrações capituladas na Lei de Segurança Nacional (LSN) e determinou a remessa dos autos à 2a Auditoria Militar da 2a Circunscrição Judiciária Militar (2a CJM), para os devidos fins. 


Em 30 de outubro de 1978, o juiz auditor da 2a Auditoria do Exército da 2a CJM expediu o mandato de prisão no 15/78, contra o requerente, em virtude de ter sido decretada, naquela data, por aquele Juízo, a prisão preventiva do mesmo, nos termos do artigo 60 do Decreto-Lei no 898/69 (LSN) e artigos 254, 255 letras ‘a’ e ‘b’ do Código de Processo Penal Militar (CPPM), nos autos do Processo no 29/78. Na mesma data, o juiz auditor dirigiu ofício ao General Comandante do II Exército, encaminhando em anexo o referido mandato de prisão contra o requerente, solicitando daquela autoridade determinar providências (artigo 8 letra ‘c’ do CPPM) no sentido do cumprimento do mesmo, com o recolhimento do preso ao Presídio da Justiça Militar Federal, em São Paulo/SP. 


O jornal Folha da Tarde, de São Paulo/SP, em sua edição de 31 de outubro de 1978, publicou que havia sido decretada a prisão preventiva de onze elementos do PST, entre os quais o requerente, o qual encontrava-se foragido. 


O Diário Popular, em sua edição de 2 de fevereiro de 1979, sob o título ‘Jorge Pinheiro comparece à 2a CJM para interrogatório’, publicou matéria divulgando que o requerente, editor-chefe do jornal Versus, único revel no processo sobre o clandestino PST, havia comparecido no dia anterior, à 2a Auditoria da 2a CJM, espontaneamente, para prestar depoimento no referido processo. Segundo o artigo, depois do interrogatório, o Conselho Permanente de Justiça considerou cessada sua revelia e revogou a prisão preventiva contra ele decretada. 


Foi um dos autores de um documento intitulado ‘Um Primeiro Borrador’, datado de 27 de junho de 1979, o qual pautou-se por uma proposta para discussão para todos os militantes da CS, a fim de que pudessem elaborar um documento final a ser levado a Convenção Nacional da CS, propondo a linha política a ser seguida pela mesma, visando a construção de um Partido dos Trabalhadores. 


Em 12 de julho de 1979, integrou a mesa coordenadora de um debate sobre o tema ‘Constituinte – As liberdades democráticas e o Socialismo’, promovido pelo Setor Jovem Metropolitano do MDB de Porto Alegre/RS, no Plenário da Assembléia Legislativa/RS e que teve como conferencistas convidados os deputados peruanos Enrique Fernandez Chacón e Hugo Blanco Galdóz. No dia seguinte ao evento, o requerente, os referidos peruanos e outros, se reuniram no edifício Santa Crus, na rua dos Andradas, no 1234, apartamento 2803, em Porto Alegre/RS. 


O jornal O Trabalho, em sua edição no 40, de 26 de novembro de 1979, publicou matéria sob o título ‘Nicarágua em debate’, referindo-se a um debate realizado na Universidade de Campinas (Unicamp), em 22 de novembro de 1979, entre militantes da Organização Socialista Internacional (OSI) e CS, para o qual o requerente havia sido convidado. 


Em dezembro de 1979, a 2a Auditoria da 2a CJM declarou extinta a sua punibilidade pela Anistia, com fundamento no artigo 1o da Lei no 6.683/79, c/c o artigo 123 II do Código Penal Militar (CPM). 


Em janeiro de 1980, foi relacionado entre os dirigentes da CS que participaram da Conferência Internacional do Comitê de Organização e da Reconstrução da IV Internacional, que seria realizado na Colômbia. 


Também em janeiro de 1980, foi relacionado entre os integrantes da ‘Tendência pela Defesa do Partido e pela Legalidade’ da Convergência Socialista. 


Juntamente com outros membros da Comissão Nacional da CS, participou de uma reunião extraordinária ampliada do ‘Comitê Paritário pela Reconstrução da IV Internacional’, realizada em Bogotá/ Colômbia, no período de 19 a 23 de fevereiro de 1980. 


O jornal O trabalho, no 53 de 15/31 de março de 1980, publicou artigo sob o título ‘Convergência: Queremos um PT sem patrões’, assinado pelo requerente, no qual expõe a proposta da CS com relação à articulação do Partido dos Trabalhadores. 


Foi autor do editorial intitulado ‘O sonho acabou, mesmo!’ publicado no jornal Convergência Socialista no 11, da segunda quinzena de abril de 1980, no qual a CS tornou público a sua versão sobre as reivindicações salariais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. 


O jornal Convergência Socialista no 12, da primeira quinzena de maio de 1980, publicou artigo sob o título ‘Os trabalhadores nada têm a perder... a não ser suas cadeias!’, de autoria do requerente, no qual faz ‘proselitismo do apoio, manutenção e solidariedade à greve dos metalúrgicos do ABC, da derrubada do regime militar, da construção de um governo dos trabalhadores e de um Brasil socialista’. 


O jornal Convergência Socialista no 14, da primeira quinzena de junho de 1980, publicou artigo intitulado ‘Uma visita ao Sr. Ministro’, de autoria do requerente, fazendo entrevista a uma audiência com o ministro da Justiça, concluindo com considerações depreciativas ao regime e ao governo da época. 


Em 29 de agosto de 1980, participou de um ato realizado no Sindicato dos Químicos, em São Paulo/ SP, em homenagem ao 40o aniversário da morte de Trotsky. 


O jornal Convergência Socialista no 20, da primeira quinzena de setembro de 1980, sob o título ‘Chile sete anos depois. O fracasso da Frente Popular’, de autoria do requerente, refere-se depreciativamente à Unidade Popular chilena, que reunia socialistas e comunistas, faz proselitismo do trotskismo e relata fases de sua militância naquele país, quando exilado. 


Em março de 1981, foi relacionado entre os líderes da IV Internacional. 


Em janeiro de 1984, integrou relação de militantes da Alicerce da Juventude Socialista, em São Paulo/ SP. 


É o que se contém arquivado neste Órgão até a presente data. Brasília/DF, 31 de dezembro de 1998. David Bernardes de Assis, assessor”. 





Liberdade e justiça 


Jorge é um utópico. Acredita que como cristão deve se posicionar a partir de uma ética da responsabilidade social, o que implica em entender o paradoxo da multicultura relacional brasileira, de que vivemos num país onde impera a moral autoritária do senhor, da casa grande e da senzala, e a moral libertária da contracultura, a moral do “não existe pecado do lado de baixo do Equador, vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor”. 


Por isso, costuma dizer que qualquer atuação no campo social implica em compreender esta realidade. Mas, consciente de que as sociedades devem se organizar através de relações democráticas, afirma que a igreja na América Latina tem como desafio embasar seu compromisso no imperativo protestante: liberdade, conhecimento e justiça. 


Fala de um processo que crescerá conforme cresça a consciência de que os cristãos têm a tarefa de transformar o Brasil num país onde todos possam acessar condições dignas de vida e justiça social. E, logicamente, todo o continente. 


Assim, Jorge lembra a seus leitores e leitoras certas palavras ditas num morro distante: “Felizes os que têm misericórdia, porque Deus também terá misericórdia deles”. E eu assino embaixo: soli Deo, gloria! 


Antenor da Conceição