dimanche 31 juillet 2022

A vida como desafio

 A vida como desafio


A construção de uma economia social e solidária

 

Jorge Pinheiro

 

Este é um tempo de pensar o futuro, por isso vamos visitar uma interessante experiência econômica, construída na França, com muita força a partir do pós-guerra. E vamos falar de economia, pensando o futuro que deve e pode se abrir após a pandemia do Covid 19.

 

Foi Charles Gide (1847-1932), economista do século dezenove, quem criou o conceito de solidariedade, que depois deu origem a um outro conceito, o de economia social e solidária / ESS. A economia social e solidária -- segundo dados apresentados por Frédéric Rognon, professor de filosofia da religião na Universidade de Estrasburgo -- hoje na França é responsável por cerca de 12% dos empregos assalariados. Está presente em quase todos os setores de atividade.

 

As origens da economia social solidária remontam à idéia de solidariedade, desenvolvida por Gide, a partir de sua compreensão de textos do Novo Testamento. Normalmente, quando falamos de economia e protestantismo, frequentemente nos referimos ao sociólogo Max Weber. Mas Frédéric Rognon, autor de "Charles Gide - Ética Protestante e Solidariedade Econômica" (Olivetan ed., 2016), prefere nos falar de Gide, porque este intelectual é o pai de um caminho econômico cujo legado é a economia social e solidária.

Foi por volta de 1870 que surgiu a ideia de que todos estamos relacionados, uns com outros, do ponto de vista econômico, quando Gide e outros pensadores foram inspirados pelos textos neotestamentários, em especial, do apóstolo Paulo, que disse: Se um membro sofre, todos os membros compartilham seu sofrimento, se um membro é honrado, todos compartilham sua alegria".

 

O solidarismo criou o sentido sociopolítico de solidariedade, e recorreu ao termo latino "in solidum", que se refere à ideia de um todo coerente. Implica na idéia de que se uma pessoa sofre uma agressão ou por algum motivo tem uma dívida, todos os demais estão envolvidos. O termo solidariedade é também usado na biologia, para descrever o modo como todo o corpo é tocado quando um órgão é afetado.

 

Assim, de acordo com Gide, estamos ligados uns aos outros, ou seja, quando pessoas sofrem é importante que todos ajudem aqueles menos afortunados. Hoje, segundo o departamento de Economia e Finanças francês, a economia social e solidária gera de 6% a 10% do PIB e emprega mais de 2,3 milhões de franceses: cerca de 13% do emprego privado.

 

Uma economia de libertação se esforça em apresentar um princípio universal: o dever da produção e reprodução da vida de cada ser humano. Princípio este que é objetiva e subjetivamente negado pelo sistema-mundo e pela economia capitalista liberal.

 

Donde, o desenvolvimento sustentável, a produção orgânica e o comércio justo são objetivos fáceis de entender, mas teoricamente podemos dizer que há um objetivo fundador, tornar a economia significativa, reunindo empresas que conciliam atividade econômica e função social, dando primazia às pessoas e não exclusivamente aos lucros.

 

Uma das características desta economia é de que ela não é um setor econômico, mas sim um modo de conciliar exigências de solidariedade e desempenho econômico, utilidade social e eficiência. Tal característica exige paciência dos investidores e envolvimento das partes interessadas: membros voluntários, funcionários, mas também fornecedores e clientes, conforme relatório do Ministério da Economia francês, em 2014.

 

Este modo de gerar empresas e realizar negócios está fundado sobre cinco princípios:

 

1. Não à lucratividade individual

 

Este princípio não proíbe ou elimina a realização de lucros, mas a apropriação individual deles. Pode ser absoluta: é o caso de associações, onde qualquer pagamento de dividendos, remuneração paga aos acionistas de uma empresa em troca de seu investimento no capital da empresa, é proibido. Pode ser parcial, em cooperativas, onde os funcionários podem receber até metade dos lucros obtidos, de diferentes formas. Na mesma linha, escalas de pagamento são controladas dentro da economia solidária, e qualquer aumento no capital resultante da atividade da estrutura é, prioritariamente, atribuído ao desenvolvimento de seus projetos.

 

2. Gestão democrática

 

Toda decisão tomada dentro de uma estrutura governada pela economia social e solidária responde ao princípio de uma pessoa = um voto. Assim, qualquer que seja o capital investido ou o tempo gasto dentro da estrutura, cada um de seus membros tem o mesmo peso.

 

3. Utilidade coletiva ou social do projeto

 

O interesse coletivo do projeto é um princípio comum às estruturas da economia social e solidária, mas esse princípio é vasto. Pode ser manter empregos de qualidade, montar um projeto que respeite os três pilares do desenvolvimento sustentável (social, econômico e ambiental), pensar em montar uma organização mútua que tenha suas próprias características.

 

A utilidade social, desde que esteja sujeita a uma gestão solidária, é garantida quando os conselheiros desempenhem suas funções de forma voluntária, e não realizem qualquer distribuição direta ou indireta de lucros. E deve ser aprovada se a atividade satisfaz uma necessidade não levada em conta pelo mercado ou insuficientemente; se a atividade é realizada em benefício de pessoas que justifiquem a concessão de vantagens especiais em vista de sua situação econômica e social; se os preços dos produtos estão abaixo dos custos de mercado; e se a publicidade em torno deste projeto destina-se apenas a coletar doações ou a informar sobre as ações realizadas pela estrutura.

 

4. Recursos mistos

 

Os projetos das estruturas da ESS são financiados graças ao rendimento das atividades de mercado, aos subsídios públicos e às contribuições voluntárias.

 

5. Livre adesão

 

Ninguém deve ser obrigado a participar de um projeto de economia social e solidária. Nesse sentido, um membro de uma cooperativa pode vender livremente suas ações se não desejar embarcar em um projeto da ESS ou se desejar sair de tal estrutura.

 

Assim, a economia social e solidária agrupa organizações definidas primeiro por seu status, administração sem fins lucrativos e democrática, e pelo que fazem, finalidade social, reivindicando uma utilidade social específica em domínio econômico, social ou ambiental.

 

Tais organizações traduzem o fato de que a empresa privada capitalista não é a única forma de organização capaz de produzir bens e serviços e que o enriquecimento pessoal não é o único motivo que pode fazer uma pessoa empreender. Esta economia é, portanto, uma forma de empreender, e tais estruturas podem aparecer em todos os setores de atividades, desde que os princípios acima mencionados sejam respeitados.

 

A experiência francesa

 

O sistema-mundo nesta alta-modernidade, ao impossibilitar a produção e reprodução da vida caminha no sentido de aprofundar seu próprio caos e crise ao semear doenças, fome, terror e morte. As vítimas são esses bilhões de seres humanos, cujas dignidades e vidas são permanentemente destruídas. A alta-modernidade e sua globalidade levam a um assassinato em massa. São os cavalos do apocalipse. É o fetichismo do capital, que se apresenta como sistema formal performático, onde dinheiro produz dinheiro. 

 

Por isso, em parte na contra-mão deste sistema-mundo, nos interessa a experiência francesa, onde  as organizações e empresas de economia social e solidária são as primeiras empregadoras do setor social, 62% dos empregos, e na áreas de esporte e recreação representam 55% dos empregos no setor. É também o segundo maior empregador nas atividades financeiras, bancárias e de seguros, 30% dos empregos no setor, e tem peso significativo nas artes, 27% dos empregos no setor, e na educação, 19%.

 

Assim, 90% dos serviços prestados às pessoas são gerenciados por uma estrutura da ESS, enquanto mais de 85% das instalações para pessoas com deficiências são gerenciadas por um modo associativo. Para dar exemplos concretos destas estruturas, o crédito cooperativo é o banco histórico da economia social e solidária. E a maioria dos profissionais que trabalham em associações esportivas estão vinculados a esta economia, enquanto as associações de ensino, complementares à escola pública, assim como as federações de educação popular, que atuam em tempo extracurricular, também são administradas sob os princípios da economia social e solidária.

 

Longe de ser um setor à margem, a economia social e solidária na França administra 30% das instalações de saúde: nove de cada dez pessoas com deficiência são cuidadas por instituições da economia social, e 68% dos serviços de cuidados a domicílio. Dentro da mesma perspectiva, pessoas dependentes são apoiadas por empresas da economia social.

 

E o uso da etiqueta solidariedade corporativa, permitido a organizações que não estão listadas nos mercados financeiros, possibilita que elas se beneficiem de certos subsídios. A obtenção desta etiqueta está sujeita a algumas condições específicas. De maneira simples, uma empresa que deseja obter esta etiqueta deve cumprir pelo menos uma das duas condições: (1) pelo menos 30% de sua força de trabalho contrata jovens, deficientes, e beneficiários de condições sociais mínimas; (2) a empresa cumpre duas condições relacionadas tanto com a natureza jurídica da empresa como com o nível de remuneração.

 

A natureza jurídica da empresa -- associação, mutualidade, cooperativa, instituição de previdência – deve estar sob estes parâmetros da economia social e solidária. O nível de remuneração é controlado: para empresas com um a dezenove empregados ou membros, o executivo não deve receber remuneração superior a quatro vezes o salário mínimo. Para empresas com vinte ou mais funcionários ou membros, a condição acima deve ser atendida por dezenove funcionários ou membros e nenhuma remuneração deve exceder oito vezes o salário mínimo. Além disso, a faixa de salários não deve exceder a proporção de um para sete.

 

A distribuição de empresas e organizações da ESS estão presentes em todo o território, mas concentram-se no grande oeste de França, nas regiões da Bretanha e do Loire. Nessas regiões, o peso dos estabelecimentos de empregadores da economia social e solidária em todos os estabelecimentos patronais no território excede 11,5%.

 

O desafio é a vida

 

Para que uma economia social liberte é necessário descobrir o sentido do presente histórico. E esse desvelar o sentido do presente histórico nós entendemos como o falar diante. Mas falar diante de quem? Na modernidade, este falar diante nos levou a leitura formal do ir: deveríamos ir para falar diante. Ora, falar do sentido dos acontecimentos presentes através da vida, nesta alta-modernidade de caos e crise, significa que não somos chamados a ir, mas a receber. Vivemos a localidade global, não somos chamados a ir, mas a receber, porque os excluídos e expropriados de bens e possibilidades estão entre nós, conosco. Assim, contra a lógica que não aceita a exterioridade da pessoa, a solidariedade na alta-modernidade é receber, construir e viver a realidade no chão da vida. 

 

Eu sei que você, caro leitor e leitora, levou um susto e talvez diga, isso é impossível aqui. Mas se começarmos a pensar em solidariedade e em economia social vamos encontrar os nossos próprios caminhos.

 

Sim, a solidariedade traduz uma ação desconstrutiva nesta alta-modernidade de caos e crise, do fazer e pensar da economia capitalista liberal, mas, por outro lado, uma economia social e solidária promove transformações construtivas que possibilitam a produção e reprodução da vida. E assim a solidariedade deixa de ser apenas um desejo e se transforma em economia social. 

O cristianismo na França

Uma breve leitura do cristianismo na história da França

Prof. Dr. Jorge Pinheiro




Introdução


A religião na França é autorizada pela Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789, desde que sua "demonstração não perturbe a ordem pública". Sua prática é definida pela lei de 9 de dezembro de 1905, que fez da França um estado secular. Ou seja, por lei existe a separação da religião e o estado, portanto a República Francesa não tem mais uma religião estatal ou uma religião oficial.


A França não possui estatísticas oficiais sobre as religiões. Donde, as estimativas se baseam em pesquisas de institutos privados que sempre variam e são de abrangência restrita. Podemos, no entanto, dizer que numa população de 67 milhões de habitantes, haveria cerca de 4 a 7 milhões de católicos, a maior religião da França -- no início do século XX, os católicos representavam 95% da população francesa, hoje são de 6 a 10%, mesmo que metade dos franceses continuem se dizendo católicos --, de 2 a 5 milhões de muçulmanos, 600 mil cristãos protestantes, 150 mil budistas e 125 mil judeus.


No entanto, no geral, a prática religiosa é relativamente baixa. Embora 70% da população tenha sido batizada, o país está entre os menos religiosos do mundo e os ateus são cerca de 40% dos franceses. Se levarmos em conta aqueles que não se identificam com nenhuma religião a percentagem de ateus mais os sem religião varia de 60 e 70%.


1. A expansão do cristianismo


A história do cristianismo na França começa no século II. Desde a separação das Igrejas do Oriente e do Ocidente (1054), foi marcante o papel da Igreja Católica na vida espiritual e social do país, desde a Idade Média até os tempos modernos. Só no correr do século XX e no início do século XXI diminuiu o papel do clero na vida dos fiéis e de suas práticas religiosas.


A evangelização da Gália, depois das províncias orientais do Império Romano, começou durante o segundo século. O cristianismo na Gália chegou através de comerciantes do Oriente. O cristianismo era tolerado, mas quando crescia muito em uma região ou comunidade sofria violenta perseguição. É o caso dos mártires de Lyon no ano 177.


O cristianismo seguiu a corrente comercial do Mediterrâneo subindo o vale do Ródano, onde Eusébio de Cesareia foi o respnsável pelo primeiro grupo de comunidades cristãs conhecidas em 177 em Lyon. Os cristãos dessa época se reuniam na clandestinidade, perto das cidades, nos locais onde seus mortos eram enterrados e onde celebravam seus cultos, como nas catacumbas de Roma.


Grégoire de Tours, em sua Histoire des Francs, apresenta histórias das diferentes origens, datas e valores cristãos, e fala de sete missionários que na época da perseguição em Roma, por volta de 250, foram enviados à Gália: Gatien de Tours, Trophime d'Arles, Paul de Narbonne, Saturnin de Toulouse, Denis de Paris, Austremoine de Clermont e Martial de Limoges. E assim surgiram os primeiros bispados na França, seguindo a tradição dos tempos apostólicos.


Dos séculos II ao IV cada igreja, ou santuário que geralmente se tornava lugar de peregrinação, assim como as festas que celebravam a história de Jesus, remetiam aos evangelistas e mártires apostólicos que ali estiveram presentes. É o caso de Caprais e Foy d'Agen cujos corpos só foram descobertos no século V, de Maurice d'Agaune e seus companheiros cujos corpos nunca foram encontrados, de Quentin Vermand e Lucien de Beauvais.


Irineu de Lyon ficou conhecido como um dos Pais da Igreja e foi o primeiro ocidental a desenvolver uma teologia sistemática. Do século II ao IV surgiram trinta bispados na Gália. Houve um crescimento material, graças às doações dos fiéis, um número crescente de bispos, construção de igrejas, bem como o mais antigo batistério retangular, em Poitiers, Lyon.


A expansão do cristianismo na Gália se reflete em números: enquanto a população total de cristãos não excedia 2% em torno de 250, alcançou de 5 a 10% sob Constantino no quarto século. O Concílio de Arles, em 314, condenou o donatismo (1). Mas o arianismo (2) se desenvolveu na Gália. Hilaire de Poitiers foi o grande defensor da ortodoxia nicena (3), e condenou o arianismo em 355. 


Martin de Tours introduziu o monasticismo (4) na Gália no final do século IV. O monasticismo martiniano se localizou ao redor do Loire, enquanto os monasticismos de Lerinian e Cassianita se desenvolveram no sul da Gália no século V.


No final do século V, a invasão dos francos afetou a presença cristã nas regiões onde haviam se estabelecido. Mas a conversão do rei Clóvis, em 499, favoreceu a fusão desse povo germânico, os francos, com o povo gaulês/romano sob o manto protetor do cristianismo niceno da Gália. Este evento, do ponto de vista histórico, simboliza a conversão do país ao cristianismo católico, quanto da tradição da origem divina da monarquia dos reis da França. Nesta perspectiva, a França foi considerada a "filha mais velha da Igreja".


O século VII foi um período importante para a expansão cristã tanto para a Europa quanto para a França. A evangelização das cidades e círculos aristocráticos nos quais os bispos estavam diretamente envolvidos, e a do campo em pleno crescimento demográfico, favoreceu a multiplicação de locais de culto, em especial graças ao desenvolvimento agrário, o que possibilitou o surgimento dos mosteiros, que se tornaram centros de altos estudos de teologia. Este período viu o desenvolvimento da rede paroquial nas áreas rurais até o século VIII.


2. Roma e monarquia francesa unidas


Em busca proteção militar contra os lombardos, o papa Estêvão II rompeu as últimas amarras de Roma com o Império Romano do Oriente em 754 e coroou Pepino, rei dos francos. Dessa maneira, a história do cristianismo ocidental se fundiu tanto com a da Igreja de Roma quanto com a da monarquia francesa. 


Do século XI ao XIII, os cavaleiros e soberanos franceses participaram das cruzadas na Espanha e na Terra Santa. A criação da Ordem do Templo em 1129 nasceu neste contexto de guerra santa. A Inquisição foi responsável pela luta contra as "heresias", oficializada pelo Papa Inocêncio III em 1199 com a criação de tribunais eclesiásticos. A Inquisição na França, entre 1459 e 1461, levou a julgamentos pessoas acusadas de bruxaria, não importando condições sociais, e obrigou os  judeus à conversão forçada.


No final da Idade Média, a Igreja Católica não tinha mais o papel cultural e social que tivera no meio da Idade Média. As mudanças econômicas levaram à criação de estados modernos e empresas privadas. A Igreja não tinha mais tanta terra e meios econômicos para se impor culturalmente. No nível político, isso se traduziu no confronto do rei da França, Philippe le Bel, com o papa Bonifácio VIII, quando cada um buscando afirmar a primazia absoluta de seu poder. Isto levou ao grande cisma do catolicismo, nos anos de 1378 a 1418, quando existiram então dois papados, um em Roma e outro em Avignon (1309-1418).


A Concordata de Bolonha assinada em 1516 entre Francisco I e o Papa Leão X passou a definir as relações entre a Igreja Católica e o rei da França até 1790. Deu aos reis da França poder sobre a Igreja em seu reino.


3. A Reforma e a guerra das religiões


Uma questão se coloca, onde estava a igreja não católica, antes dos huguenotes? Os protestantes reformados tiveram diferentes antepassados. O primeiro foi o reformador checo Jan Hus, que se levantou contra as indulgências do catolicismo. Lutero conhecia os escritos de Hus, mas não gostava deles, porque Hus se orgulhava de suas ações. Até 1520, Lutero pensou que ele poderia ser um hussita, mas constatou que suas críticas à igreja de Roma eram mais profundas que as de Jan Hus. 


Depois vieram os valdenses, herdeiros do pensamento de Pierre Valdo. Era um rico comerciante. Por volta de 1170, ele ouviu uma passagem da vida de São Alexis narrada por um trovador. Esse relato o levou ao desejo de seguir o Cristo pobre. Entregou sua propriedade à esposa e seguiu o ideal de pobreza apostólica. Começou a pregar nas ruas de Lyon sem a permissão das autoridades eclesiásticas. Ele e seus seguidores foram expulsos da cidade. Mais tarde, durante o Sínodo de Chanforan (1532), muitos deles aderiram à Reforma. Segundo historiadores protestantes dos séculos XVI e XVII, os valdenses surgiram com as primeiras comunidades cristãs, antes mesmo de Pierre Valdo. Graças a eles, as igrejas reformadas francesas puderam afirmar sua origem apostólica. 


O terceiro grupo foram os albigenses ou cátaros. Os albigenses nos séculos XI e XII se fizeram presentes no sul da França, no Languedoc, na Provença, e se localizaram principalmente nas cidades de Albi, de onde levaram o nome, Béziers, Carcassonne, Toulouse, Montauban, Avignon. Os albigenses deram a si mesmos o nome de cátaros, puros. Viviam uma vida simples, sem ostentação, longe dos vícios, tendo como modelo as primeiras comunidades cristãs. Inicialmente, os protestantes reformados foram hostis a eles. Mas, na década de 1560, os católicos acusaram os protestantes de serem idênticos aos albigenses, e os protestantes adotaram esse ponto de vista por volta de 1562. Para eles, a perseguição aos albigenses tornou possível pensar melhor seu cristianismo protestante. Isso significou uma ligação direta entre albigenses e reformados.


A França experimentou um fracionamento religioso violento no século XVI. A maioria do país era católica, mas os reformados/huguenotes cresciam em número e importância política e social. O princípio da coexistência das duas denominações no Reino fracassou. Vejamos um exemplo dessa violência, que até hoje marca a história francesa.


Em 22 de agosto de 1572, um atentado foi realizado contra o almirante de Coligny, protestante (França Antártica/ Baía de Guanabara/ Villegagnon/ Forte Coligny), quando ele deixou o Louvre, onde participara do Conselho do rei. O ataque falhou e o almirante ficou ferido.


Na noite de 23 a 24 de agosto de 1572, um Conselho Real se reuniu, durante o qual foi decidido assassinar o Almirante de Coligny e os líderes huguenotes. A igreja Saint-Germain-l'Auxerrois tocou o sino como sinal para início do massacre.


O almirante foi selvagemente morto em sua casa, enquanto outros líderes huguenotes eram massacrados no Louvre e na cidade, surpreendidos à noite sem possibilidade de defesa, "mortos como ovelhas no matadouro", como escreveu Theodore Beze.


Por três dias, o assassinato continuou em Paris. A violência foi extrema. Católicos que usavam uma cruz branca em seus chapéus atacavam todos os lares protestantes. As ruas ficaram vermelhas de sangue derramado. O número de vítimas é estimado em 4.000 mortos em Paris. Em 26 de agosto, o rei foi ao parlamento e assumiu a responsabilidade pelo massacre. E o papa elogiou à ação católica.


Oito guerras se sucederam por um período de 36 anos (1562-1598), intercaladas com períodos de paz frágil. Estima-se que três milhões de pessoas morreram durante a guerra, por violência, fome ou doença. Foi a segunda guerra religiosa mais mortífera da história da Europa, superada apenas pela Guerra dos Trinta Anos, que matou oito milhões de pessoas. A guerra das religiões terminou com o edito de Nantes, 30 de abril de 1598, que estabeleceu uma dualidade confessional. Mas a esta altura, 200 mil huguenotes tinham sido mortos, outros tantos migraram e o restante se refugiou nas montanhas. Calcula-se que no início da guerra havia cerca de 600 mil de protestantes na França, numa população francesa de cerca de 10 milhões de pessoas.


O secularismo francês foi construído no século dezenove na reunião presencial entre católicos e republicanos. Esse corpus jurídico garante a liberdade de crer ou não e a separação entre comunidades ou organizações religiosas e o Estado. O catolicismo recebeu vantagens, financiamento público de seus locais de culto e em parte de seus estabelecimentos de ensino, sob certas condições. Mas também passou a enfrentar limitações, em particular de seus esforços evangelísticos e missionários dentro do país. Isso trouxe uma crise progressiva entre 1949 e 1954, uma crise nos movimentos de jovens católicos entre 1956 e 1965, as consequências eclesiais da crise do maio de 68, os debates em torno da encíclica Humanae Vitae, a dissidência fundamentalista, a renovação carismática, e a crise vocacional.


Considerações finais


Uma pesquisa de 2009 estima os protestantes franceses em 3 a 4% da população, enquanto em 1995 uma pesquisa os estimou em 1,5%, um crescimento que o sociólogo Jean-Paul Willaime atribui à expansão dos movimentos evangélicos. O historiador batista Sébastien Fath trabalha com estatísticas diferentes. Numa, calcula cerca de 2,6 milhões de pessoas, sendo 750 mil evangélicos e 1.850 mil luteranos e reformados, incluindo a França ultramarina. Já numa estatística bem mais restrita, considera 600 mil pessoas sendo 460 mil evangélicos e 140 mil luteranos e reformados. Esse pequeno grupo seria cerca de 2% da população francesa e pode ser comparado aos 6 a 10% que representariam o catolicismo. Ainda a partir de Sébastien Fath há na França quatro mil locais de culto protestantes, sendo 2.600 evangélicos e 1.400 luteranos ou reformados.


A era contemporânea assiste na França o desenvolvimento do diálogo inter-religioso. O diálogo entre judeus e cristãos, dificultado desde o final do século XIX pelo caso Dreyfus e a ascensão do anti-semitismo entre católicos, retomou e aprofundou-se após a Segunda Guerra Mundial. O judaísmo francês estava então no meio de uma reconstrução religiosa, ampliação da rede de sinagogas, fundação em 1948 da Amizade Judaico-Cristã da França, e intelectual em torno de instituições como a escola Gilbert Bloch em Orsay ou conferências de intelectuais dos dois grupos religiosos. As mutações do judaísmo, entre memória e comunidade, se fazem presentes a partir da segunda metade do século vinte pelo retorno a diferentes formas de judaísmo despertadas pela Memória da Shoá, pela Guerra dos Seis Dias e pela busca de solução do conflito árabe-israelense.


As novas vagas de imigração favoreceram o desenvolvimento do Islã na França. Até a década de 1960 era uma religião minoritária de trabalhadores isolados. Mais tarde, porém, se tornou a segunda denominação religiosa do país, e cada vez mais visível no espaço público. E enquanto comunidade, muito mais praticante que as outras, o que alimenta um debate recorrente sobre a integração dos muçulmanos no país. Isso dá origem a debates políticos e teológicos entre os católicos franceses. O anti-semitismo recua e o anti-islamismo cresce. No entanto, a contribuição do trabalho etnológico na década de 1950 e a descolonização também favoreceram o diálogo islâmico-cristão, cujos principais precursores foram Louis Massignon, Jean-Mohammed Abd-el-Jalil, Louis Gardet e Georges Anawati.


Atualmente, a liberdade de consciência protestante se reflete em contradições entre sua origem liberal e a ascensão -- mesmo dentro de instituições como a Federação Protestante da França -- de uma corrente evangélica mais orientada à identidade e mais conservadora.


Mesmo que a polarização permaneça -- dominada pela separação entre cristãos e muçulmanos versus ateus e sem religião -- podemos dizer que a França é atualmente um país de diferentes religiões, onde, em geral, a prática religiosa não está diminuindo, mas, ao contrário, começa a crescer.


Notas


(1) O donatismo foi um movimento cismático cristão iniciado no século IV na Numídia, atual Argélia, que nasceu como uma reação à lassidão dos costumes dos fiéis. Iniciado por Donato, bispo de Cartago, afirmava que somente os sacerdotes cujas vidas eram eticamente exemplares podiam administrar os sacramentos, entre eles a eucaristia, e que pecadores não poderiam ser membros da Igreja.

(2) O arianismo desenvolveu uma cristologia anti-trinitariana. Foi defendida por Ário, presbítero de Alexandria. Negava que Deus e Cristo com partilhavam a mesma substância. Dizia que Cristo era um ser pré-existente, criado, embora a primeira e mais sublime de todas as criaturas.

(3) O Credo Niceno foi a profissão de fé definida no Concílio de Niceia, na Bitínia, atual Turquia, em 325. Chama-se também o Símbolo Niceno (em latim: Symbolum Nicaenum) e a Profissão de fé dos 318 Pais, referência aos 318 bispos que participaram do Concílio de Niceia.

(4) O monasticismo, do grego monachos, uma pessoa solitária, consiste na abdicação da vida em sociedade em prol da prática religiosa. As pessoas que praticam o monasticismo são monges e monjas. Ambos podem ser chamados também de monásticos e, por norma, vivem na clausura monástica.

 


 

samedi 9 juillet 2022

Les Cèvennes e a tradição huguenote

Nesta à viagem à França vamos ver como a fé reformada reagiu, não somente militarmente com os camisards de Les Cévennes e em outras regiões da França, mas também social e politicamente à intenção católica de acabar com os protestantes, que em 1560 eram cerca de 7 milhões de fiéis. numa população de 18 milhões de franceses.

A partir de Paris, vamos à região de Les Cèvennes e ao Museu do Deserto http://www.museedudesert.com/article5684.html.

E visitaremos a Tour de Constance  https://museeprotestant.org/notice/aigues-mortes-gard-la-tour-de-constance/  famosa por ter-se tornado uma prisão de mulheres, onde Marie Durant se tornou símbolo da resistência e da fé. Para entender: em 1685, o rei Luís XIV (1638-1715) revogou o Édito de Nantes que havia estabelecido a paz religiosa entre protestantes e católicos. A partir de então, o exercício do culto protestante foi proibido, os pastores eram presos, lançados às galeras ou mesmo mortos. E as crianças eram batizadas à força na fé católica. Milhares de protestantes deixaram o reino às pressas, mas a resistência tomou conta do país.


Prisioneiras huguenotes na Tour de Constance. Tela de Michel Maximilien Leenhardt

Passearemos pela Montpellier protestante e, finalmente, iremos à La Rochelle, que foi a capital do protestantismo, reconstruindo assim, juntos, uma história de fé e luta que nos ajudam a entender a França de hoje.

Observação: Para entender a história do protestantismo na França nos remetemos a um texto de Sébastien Fath, historiador e sociólogo, batista, e professor da Universidade de Paris  https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-03100463/document .



dimanche 3 juillet 2022

Tzimtzum por Jorge Pinheiro

 O tzimtzum


O judaísmo mostrou uma coerência em relação à hermenêutica de Gênesis Um. O retrair-se de D´us para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo, é desenvolvido na teoria da contração, em hebraico tzimtzum. Essa teoria formalizada pelo Rebe Luria (1534-1572) é uma das concepções mais surpreendentes do pensamento judaico. Isaac Luria, um dos maiores expoentes da tradição mística do judaísmo, nasceu no Cairo, mas desenvolveu seu ministério em Safed, na Palestina.


A expressão tzimtzum significa originariamente concentração, mas acabou sendo entendida como retirada. Segundo Scholem, Luria partiu de textos do Midrash, onde encontramos que D´us concentrou sua Shekiná, sua presença no Santo dos Santos, Assim todo seu poder retraiu-se num único ponto. Foi daí que surgiu a expressão tzimtzum. [Exod Raba ao Êx 25.10, Lev. Raba ao Lv 23.24; Pessikta de Rab Kahana, Ed. Buber 20a; Midrasch Schir Ha-Schidim, Ed. Griinhut, 1899, f. 15b, apud Gershom Scholem, A Mística Judaica, São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 263].


Infelizmente, as duas idéias, concentração e retirada, que deveriam ser entendidas como complementares, já que D´us se retira e então concentra a sua luz sobre este ponto, dividiu os estudiosos em dois grandes grupos: os que defendem o tzimtzum como base para a doutrina da creatio ex nihilo e também para aqueles que defendem a doutrina da emanação (em hebraico atsilu) ou processio Dei ad extra.


O próprio Luria tornou-se o principal expositor do processio Dei ad extra, que tem por base não um processo no tempo, mas uma estrutura da realidade, enquanto emanação, criação, formação e ação. Assim, para Luria e seus discípulos, níveis inferiores de realidade emanaram de níveis superiores que, por sua vez, tiveram origem em D´us. Dentro dessa concepção há um midrash, a teoria do vaso quebrado, que trabalha com a hipótese de que o mundo foi feito de remanescentes de mundos anteriores, que D´us havia destruído. Uma conhecida lenda rabínica explica esse processo como o desprender de uma chama de carvão da roupa de D´us.


No princípio (Gênesis 1.1), a vontade do Rei começou a gravar signos na esfera superior. Do recesso mais oculto, uma negra chama brotou do mistério do ein sof, o Infinito, como um novelinho de massa informe, como que inserido no aro dessa esfera, nem branca nem preta, nem vermelha nem verde, de nenhuma cor. Somente depois de distender-se como um fio, produziu ela cores para luzir em si. Do âmago da chama, jorrou uma fonte da qual brotaram cores e se espalharam sobre tudo embaixo, oculto na ocultação mais misteriosa do ein sof. Mal rompeu ela, inteiramente irreconhecível, seu círculo de éter, sob o impacto da irrupção, um ponto oculto, superno fulgiu da irrupção final. Aquém desse ponto está excluído todo conhecimento e por isso ele é chamado reschit, princípio, a primeira palavra do Todo”. [O Princípio, Sefer ha-Zohar (Livro do Esplendor), apud J. Guinsburg, Do Estudo e da Oração, São Paulo, Perspectiva, 1968, p. 605].


Em sua riqueza teológica, podemos classificar a doutrina da emanação como um evolucionismo teísta, que define o mundo material enquanto desdobramento de D´us em diferentes níveis. E porque o mundo existe dentro de D´us, o processio Dei ad extra leva à pergunta pelo que existe de divino nos fenômenos do cotidiano.


Se entendermos, porém, a teoria do tzimtzum, como a relação dialética de dois movimentos, o da retirada e o da concentração ficará mais fácil aproveitar os estudos de Luria. O tzimtzum explica o recuo de D´us para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo. Como D´us é infinito, sem o tzimtzum não haveria o nada no qual pudesse produzir a estrutura espaço/tempo de uma criação separada. 


É interessante notar, que se por um lado a dialética da autocontração e concentração divinas deu origem ao mundo material, o choque entre o movimento restritivo e o transbordante amor de D´us criou também a possibilidade do mal. Nesse sentido, a cosmogonia judaica vê o surgimento do universo em primeiro lugar como consciente autolimitação e na seqüência como revelação e julgamento. E como julgamento é a imposição de limites, julgamento faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de D´us. Em outras palavras: se o mal é uma probabilidade que surge da dialética amor/ retração, o julgamento passa a ser inerente a tudo na criação, já que todas as coisas estão determinadas por seus limites.


A tradição do debate sobre a creatio ex nihilo é antiga no pensamento judaico. Na verdade, podemos dizer que começa a ser realizada no segundo século. Por isso, não é de estranhar que encontremos reflexões profundas sobre Gênesis Um nos séculos posteriores. Assim, em um dos textos mais representativos do pensamento caraíta, movimento medieval de retorno à letra da Escritura, considerado por muitos um protestantismo judeu de coloração pietista, a “Explanação dos Mandamentos”, de Aha Nissi ben Noah de Bassorá, que ensinou em Jerusalém na segunda metade do século IX, lemos:


No primeiro dia, D´us criou sete coisas: o céu, a terra, as trevas, a luz, a água, o abismo e o vento (Gn 1.1-12). Primeiro criou tohu e bohu (a solidão e o caos), dos quais surgiu a terra (Gn 1.1-2). Criou as trevas: ‘Ele formou a luz e criou as trevas’ (Isaías 45.6). Criou o vento, conforme a palavra: ‘e criou o vento’. Criou a água, pois com a criação da terra havia água. Criou o abismo, para que a água tivesse uma profundidade e uma submersão. Criou a luz (Gn 1.3). Para a criação do mundo foram necessárias quatro coisas: a ordem, o trabalho, a determinação e a proclamação” [Nissi ben Noach, Explanação dos Mandamentos, apud J. Guinsburg, op. cit., p.309]. 


Nesse texto aparentemente tão simples, encontramos uma idéia fundamental: tohu (sem forma) e bohu (vazio) fazem parte da criação e para que haja criação é necessário ordem.


Outro pensador judeu, que fez oposição ao pensamento caraíta, foi Saadia Gaon (892-942). Influenciado pela efervescente teologia do Islã e pelo pensamento helenístico clássico, Gaon combateu a presença heterodoxa, de tendência maniqueísta, os remanescentes de Filo e a crítica gnóstica. Seu texto sobre a doutrina da creatio ex nihilo é de uma profunda beleza, apesar de apresentar imperfeições normais ao conhecimento da época, como, por exemplo, sua visão geocêntrica. Mas, de forma brilhante enfrenta opositores bem parecidos aos que encontramos hoje em dia.


 “Aqueles que acreditam na eternidade do mundo procuram provar a existência de algo que não tem começo nem fim. Por certo, nunca depararam com uma coisa que percebessem, pelos sentidos, sem ser começo nem fim, mas procuram estabelecer sua teoria por meio de postulados da razão. Semelhantemente, os dualistas empenham-se em provar a coexistência de dois princípios separados e opostos, cuja mistura fez que o mundo viesse a ser. Sem dúvida, nunca testemunharam dois princípios separados e opostos, nem o pretenso processo da mistura, mas tentaram suscitar argumentos derivados da razão pura em favor de sua teoria. De maneira similar aqueles que acreditam numa matéria eterna consideram-na como um hilo, isto é, algo em que não há originalmente qualidade de quente ou frio, de úmido ou seco, mas que se transforma por uma determinada força e assim produz aquelas quatro qualidades. Indubitavelmente, seus sentidos nunca perceberam uma coisa carente de todas essas quatro quantidades, nem jamais perceberam um processo de transformação e a geração das quatro qualidades como é sugerido. (...) Assim sendo, é claro que todos concordam em admitir alguma opinião concernente à origem do mundo que não tem base na percepção sensorial”. [Saadia Gaon, Criação Ex-Nihilo apud J. Guinsburg, idem, op. cit., p. 316].


Para sua defesa da criação ex-nihilo, Gaon trabalhou com quatro argumentos, três dos quais muito bem expostos: de finitude do universo, estrutura e acidentalidade. 


Continuou a afirmar que nosso Senhor, louvado e enaltecido seja, informou-nos que todas as coisas foram criadas no tempo, e que Ele as criou do nada (...). Ele nos comprovou essa verdade por meio de sinais e milagres, e nós a aceitamos. Examino ainda mais nesta matéria com o intuito de saber se ela podia ser comprovada por especulação como foi comprovada por profecia. Achei que era este o caso por certo número de razões, da quais, devido à brevidade, selecionei as quatro seguintes: 1. A primeira prova baseia-se no caráter finito do universo (...). 2. A segunda prova é derivada da união de partes e da composição de segmentos. Vi que os corpos consistem de partes combinadas e de segmentos ajustados entre si (...). 3. A terceira prova baseia-se na natureza dos acidentes. Verifiquei que nenhum dos corpos são desprovidos de acidentes que os afetem direta ou indiretamente. Animais, por exemplo, são gerados, crescem até que alcançam sua maturidade, então, definham e se decompõem. Então eu disse a mim mesmo: Será que a terra como um todo é livre destes acidentes? (...) 4. A quarta prova baseia-se na natureza do tempo. Sei que o tempo é triplo: passado, presente, futuro. Embora o presente seja menor do que qualquer instante, tomo o instante como se toma um ponto e digo: Se um homem tentasse em seu pensamento ascender deste ponto no tempo ao ponto mais elevado, ser-lhe-ia impossível fazê-lo, porquanto o tempo é agora admitido como infinito e é impossível ao pensamento penetrar no ponto mais remoto daquilo que é infinito.” [Saadia Gaon, Quatro Argumentos para a Criação, idem, op. cit., pp. 317-320].


De todos os pensadores judeus medievais, talvez o mais conhecido fora dos meios judaicos, seja o talmudista francês Shlomo bar Itzhak, o rabi Rashi de Troyes (1040-1105). Exegeta, Rashi apresentou uma tradução para o versículo um de Gênesis que leva em conta estrutura e acidentalidade: “No princípio, ao criar D´us os céus e a terra, a terra era vã...” E segundo seu midrash, o texto não está preocupado em mostrar a ordem do surgimento do universo, mas em afirmar o ato criador de D´us. Rashi mostrou-se preocupado com o sentido literal, mas definiu claramente sua hermenêutica: 


Todo texto se divide em muitos significados, mas, afinal nenhum texto está destituído de seu sentido literal” [Herman Hailperin, Rashi and the Christian Scholars, Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1963].





Le tsimtsoum

Le tsimtsoum (de l'hébreu צמצום, contraction) est un concept de la Kabbale. Il traite d'un processus précédant la création du monde selon la tradition juive. Ce concept dérive des enseignements d'Isaac Louria (1534-1572), Ari zal de l'école kabbalistique de Safed, et peut se résumer comme étant le phénomène de contraction de Dieu dans le but de permettre l'existence d'une réalité extérieure à lui.

 

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Origine de la théorie du tsimtsoum

« Qu'est-il arrivé avant le commencement des temps pour que commencement il y ait ? » Jusqu’à ce qu’Isaac Louria s’intéresse à cette question, le Dieu des religions n’avait d’intérêt qu’en tant qu’il se manifestait aux hommes. Le Dieu d'avant la création n’était ni un souci, ni un problème important, selon Charles Mopsik[1].

« Comment Dieu créa-t-il le monde ? – Comme un homme qui se concentre et contracte sa respiration, de sorte que le plus petit peut contenir le plus grand. Il a ainsi concentré Sa lumière dans une main, à Sa mesure, et le monde fut laissé dans les ténèbres, et dans ces ténèbres il tailla les rochers et sculpta la pierre », explique Isaac Louria[2]. Louria conçoit ainsi la première manifestation de Dieu. Nahmanide, un kabbaliste du xiiie siècle, imaginait un mouvement de contraction originelle, mais jusqu’à Louria, on n’avait jamais fait de cette idée un concept cosmologique fondamental, remarque Gershom Scholem[3].

« La principale originalité de l'hypothèse lourianique tient au fait que le premier acte de la divinité transcendante — ce que les kabbalistes appellent le En Sof (l’Infini) — n’est pas « un acte de révélation et d’émanation, mais, au contraire, un acte de dissimulation et de restriction »[3] ».

Cette thèse part de l’idée que la transcendance divine, le En Sof, ne laisse aucune place à la création, car il n’est pas possible d’imaginer en son être un domaine qui ne soit pas déjà en lui, puisque ce domaine, alors, contredirait l’infinitude du En Sof. Par conséquent, la création n’est possible que par « le retrait de Dieu en lui-même », c’est-à-dire par le tsimtsoum par lequel Dieu se contracte ou se concentre en lui-même pour permettre à quelque chose qui n’est pas le En Sof d’exister[3].

Cette contraction ou concentration crée le vide, c’est-à-dire l’espace, à l’intérieur duquel le cosmos prend place et s’organise peu à peu en se déployant à travers toute une série de mondes entrelacés[1]. Une part de la divinité se retire afin de laisser place au processus créateur du monde, un retrait qui précède toute émanation, selon Louria[3].

La tradition talmudique mettait déjà en jeu le tsimtsoum. Ainsi, selon le Talmud, Dieu se contractait en lui-même pour se loger en un lieu unique, le Saint des saints du temple de Jérusalem. Mais Isaac Louria donne au tsimtsoum la signification inverse, note Scholem : « Il ne s’agit pas de concentration de la puissance de Dieu en un lieu unique », chez Louria, « mais de son retrait d’un lieu »[3].

Le lieu dont Dieu se retire ne consiste qu’en un « point », comparé à son infinité, mais ce point vide, ce point spatial, comprend le monde et tous ses degrés d’existence, tant spirituelle que corporelle, selon Louria. C’est l’espace primordial, appelé tehiru, par Louria, un terme repris du Zohar.

C’est à partir de cette conception que se précise ce en quoi consiste le En Sof dans la théorie lourianique. Le En Sof, selon Louria, comprend d'emblée deux aspects fondamentaux : celui de la Miséricorde (l’aspect masculin) et celui du Jugement (l’aspect féminin). L'un comme l'autre sont en lui de toute éternité. Mais l'un d'eux, l'aspect du Jugement (din), n'a pas de localisation propre : il est dissout comme du sel dans l'océan de la pure miséricorde. Le jugement y est imperceptible, « comme des grains de poussière infinitésimaux perdus dans un abîme de compassion sans bornes[1] ».

Premier mouvement dans le En Sof allant vers l'émanation et la création des mondes, ces grains infimes de jugement, dissous au point d’être dépourvus de toute réalité propre, ces grains de jugement se recueillent et se condensent.

Ce degré zéro de manifestation équivaut au passage du néant à l'être, observe Charles Mopsik : « la création ex nihilo (yéch méayin), désigne ici le recueillement du Jugement, sa venue à l'être ou sa manifestation[1] ».

L'être (doué du jugement) qui émerge primordialement du néant et qui constituera l'ossature des mondes, est à la source de toute rigueur et de toute sévérité, pour Louria. Cette émergence entraîne aussitôt un retrait de la puissance de miséricorde qui constitue les « masses d'eaux » de l'océan primitif, à savoir le En Sof. Ce retrait de l’océan de Miséricorde fait place à quatre mondes successifs : le monde de l’émanation, puis le monde de la création, puis le monde de la formation, enfin le monde de la fabrication (c’est-à-dire le monde actuel). En se retirant, Dieu laisse comme des traces de vagues sur une plage, des traces que Louria assimile aux reflets de la lumière de la Miséricorde, une sorte de résidu d'infini lumineux dans un univers limité par la puissance restrictive du Jugement[1].

Textes

  • Joseph Ibn Tabul, Derush Hefzi-Bah, publié dans Simhat Cohen de Massud ha-Kohen al-Haddad, Jérusalem, 1921, réédité par Weinstock, Jérusalem, 1981.
  • Hayyim Vital, Etz Haim (L'Arbre de Vie), édité par Isaac Satanow, Korsec, 1782 ; réédité à Varsovie en 1890 et à Tel-Aviv en 1960.
  • Naphtali Bacharach, Emek ha-Melekh (La Vallée des rois), une version de la théorie lourianique par un rabbin allemand du xviie siècle, proche de la version d'Ibn Tabul, éditée à Amsterdam en 1648 ; rééditée par Yerid ha-Sefarim, Jérusalem, 2003.
  • Christian Knorr von Rosenroth, Kabbala denudata, ouvrage monumental qui contient une traduction latine partielle du Etz Haim de Hayyim Vital, ainsi qu'une traduction complète du Emek ha-Melekh de Naphtali Bacharach, parmi bien d'autres traductions latines de textes de la Kabbale, avec des commentaires de l'auteur, éditée à Sulzbach à 1677, pour le premier volume, et à Francfort en 1684 pour le second. Ce fut le principal véhicule de la théorie lourianique dans le monde chrétien. C'est l'ouvrage que connaissaient Leibniz ou Newton.

ÉtudesModifier

  • Gershom Scholem, Les grands courants de la mystique juive, Payot, Paris, 1954.
  • Gershom Scholem, La kabbale, trad. de l'anglais., Gallimard, coll. Folio essais, Paris, 1974.
  • Charles Mopsik, Aspects de la Cabale à Safed après l’Expulsion, dans Inquisition et pérennité (ouvrage collectif) sous la direction de David Banon, Le Cerf, 1992.
  • Marc-Alain Ouaknin, Concerto pour quatre consonnes sans voyelles, Balland, Paris, 1992.
  • Gérard Nahon, La Terre sainte au temps des kabbalistes, 1492-1592, Albin Michel (Présences du judaïsme), Paris, 1997.
  • Gershom Scholem, La Kabbale. Une introduction, origines, thèmes et biographies, Le Cerf, Paris, 1998.
  • Eliahu Klein, Kabbalah of Creation: Isaac Luria's Earlier Mysticism, Jason Aronson Publishers, Northvale, New York, 1999.
  • Charles Mopsik, Cabale et Cabalistes, Albin Michel, Paris, 2003.

Wikipedia
Le tsimtsoum pour les nuls