dimanche 31 juillet 2022

A vida como desafio

 A vida como desafio


A construção de uma economia social e solidária

 

Jorge Pinheiro

 

Este é um tempo de pensar o futuro, por isso vamos visitar uma interessante experiência econômica, construída na França, com muita força a partir do pós-guerra. E vamos falar de economia, pensando o futuro que deve e pode se abrir após a pandemia do Covid 19.

 

Foi Charles Gide (1847-1932), economista do século dezenove, quem criou o conceito de solidariedade, que depois deu origem a um outro conceito, o de economia social e solidária / ESS. A economia social e solidária -- segundo dados apresentados por Frédéric Rognon, professor de filosofia da religião na Universidade de Estrasburgo -- hoje na França é responsável por cerca de 12% dos empregos assalariados. Está presente em quase todos os setores de atividade.

 

As origens da economia social solidária remontam à idéia de solidariedade, desenvolvida por Gide, a partir de sua compreensão de textos do Novo Testamento. Normalmente, quando falamos de economia e protestantismo, frequentemente nos referimos ao sociólogo Max Weber. Mas Frédéric Rognon, autor de "Charles Gide - Ética Protestante e Solidariedade Econômica" (Olivetan ed., 2016), prefere nos falar de Gide, porque este intelectual é o pai de um caminho econômico cujo legado é a economia social e solidária.

Foi por volta de 1870 que surgiu a ideia de que todos estamos relacionados, uns com outros, do ponto de vista econômico, quando Gide e outros pensadores foram inspirados pelos textos neotestamentários, em especial, do apóstolo Paulo, que disse: Se um membro sofre, todos os membros compartilham seu sofrimento, se um membro é honrado, todos compartilham sua alegria".

 

O solidarismo criou o sentido sociopolítico de solidariedade, e recorreu ao termo latino "in solidum", que se refere à ideia de um todo coerente. Implica na idéia de que se uma pessoa sofre uma agressão ou por algum motivo tem uma dívida, todos os demais estão envolvidos. O termo solidariedade é também usado na biologia, para descrever o modo como todo o corpo é tocado quando um órgão é afetado.

 

Assim, de acordo com Gide, estamos ligados uns aos outros, ou seja, quando pessoas sofrem é importante que todos ajudem aqueles menos afortunados. Hoje, segundo o departamento de Economia e Finanças francês, a economia social e solidária gera de 6% a 10% do PIB e emprega mais de 2,3 milhões de franceses: cerca de 13% do emprego privado.

 

Uma economia de libertação se esforça em apresentar um princípio universal: o dever da produção e reprodução da vida de cada ser humano. Princípio este que é objetiva e subjetivamente negado pelo sistema-mundo e pela economia capitalista liberal.

 

Donde, o desenvolvimento sustentável, a produção orgânica e o comércio justo são objetivos fáceis de entender, mas teoricamente podemos dizer que há um objetivo fundador, tornar a economia significativa, reunindo empresas que conciliam atividade econômica e função social, dando primazia às pessoas e não exclusivamente aos lucros.

 

Uma das características desta economia é de que ela não é um setor econômico, mas sim um modo de conciliar exigências de solidariedade e desempenho econômico, utilidade social e eficiência. Tal característica exige paciência dos investidores e envolvimento das partes interessadas: membros voluntários, funcionários, mas também fornecedores e clientes, conforme relatório do Ministério da Economia francês, em 2014.

 

Este modo de gerar empresas e realizar negócios está fundado sobre cinco princípios:

 

1. Não à lucratividade individual

 

Este princípio não proíbe ou elimina a realização de lucros, mas a apropriação individual deles. Pode ser absoluta: é o caso de associações, onde qualquer pagamento de dividendos, remuneração paga aos acionistas de uma empresa em troca de seu investimento no capital da empresa, é proibido. Pode ser parcial, em cooperativas, onde os funcionários podem receber até metade dos lucros obtidos, de diferentes formas. Na mesma linha, escalas de pagamento são controladas dentro da economia solidária, e qualquer aumento no capital resultante da atividade da estrutura é, prioritariamente, atribuído ao desenvolvimento de seus projetos.

 

2. Gestão democrática

 

Toda decisão tomada dentro de uma estrutura governada pela economia social e solidária responde ao princípio de uma pessoa = um voto. Assim, qualquer que seja o capital investido ou o tempo gasto dentro da estrutura, cada um de seus membros tem o mesmo peso.

 

3. Utilidade coletiva ou social do projeto

 

O interesse coletivo do projeto é um princípio comum às estruturas da economia social e solidária, mas esse princípio é vasto. Pode ser manter empregos de qualidade, montar um projeto que respeite os três pilares do desenvolvimento sustentável (social, econômico e ambiental), pensar em montar uma organização mútua que tenha suas próprias características.

 

A utilidade social, desde que esteja sujeita a uma gestão solidária, é garantida quando os conselheiros desempenhem suas funções de forma voluntária, e não realizem qualquer distribuição direta ou indireta de lucros. E deve ser aprovada se a atividade satisfaz uma necessidade não levada em conta pelo mercado ou insuficientemente; se a atividade é realizada em benefício de pessoas que justifiquem a concessão de vantagens especiais em vista de sua situação econômica e social; se os preços dos produtos estão abaixo dos custos de mercado; e se a publicidade em torno deste projeto destina-se apenas a coletar doações ou a informar sobre as ações realizadas pela estrutura.

 

4. Recursos mistos

 

Os projetos das estruturas da ESS são financiados graças ao rendimento das atividades de mercado, aos subsídios públicos e às contribuições voluntárias.

 

5. Livre adesão

 

Ninguém deve ser obrigado a participar de um projeto de economia social e solidária. Nesse sentido, um membro de uma cooperativa pode vender livremente suas ações se não desejar embarcar em um projeto da ESS ou se desejar sair de tal estrutura.

 

Assim, a economia social e solidária agrupa organizações definidas primeiro por seu status, administração sem fins lucrativos e democrática, e pelo que fazem, finalidade social, reivindicando uma utilidade social específica em domínio econômico, social ou ambiental.

 

Tais organizações traduzem o fato de que a empresa privada capitalista não é a única forma de organização capaz de produzir bens e serviços e que o enriquecimento pessoal não é o único motivo que pode fazer uma pessoa empreender. Esta economia é, portanto, uma forma de empreender, e tais estruturas podem aparecer em todos os setores de atividades, desde que os princípios acima mencionados sejam respeitados.

 

A experiência francesa

 

O sistema-mundo nesta alta-modernidade, ao impossibilitar a produção e reprodução da vida caminha no sentido de aprofundar seu próprio caos e crise ao semear doenças, fome, terror e morte. As vítimas são esses bilhões de seres humanos, cujas dignidades e vidas são permanentemente destruídas. A alta-modernidade e sua globalidade levam a um assassinato em massa. São os cavalos do apocalipse. É o fetichismo do capital, que se apresenta como sistema formal performático, onde dinheiro produz dinheiro. 

 

Por isso, em parte na contra-mão deste sistema-mundo, nos interessa a experiência francesa, onde  as organizações e empresas de economia social e solidária são as primeiras empregadoras do setor social, 62% dos empregos, e na áreas de esporte e recreação representam 55% dos empregos no setor. É também o segundo maior empregador nas atividades financeiras, bancárias e de seguros, 30% dos empregos no setor, e tem peso significativo nas artes, 27% dos empregos no setor, e na educação, 19%.

 

Assim, 90% dos serviços prestados às pessoas são gerenciados por uma estrutura da ESS, enquanto mais de 85% das instalações para pessoas com deficiências são gerenciadas por um modo associativo. Para dar exemplos concretos destas estruturas, o crédito cooperativo é o banco histórico da economia social e solidária. E a maioria dos profissionais que trabalham em associações esportivas estão vinculados a esta economia, enquanto as associações de ensino, complementares à escola pública, assim como as federações de educação popular, que atuam em tempo extracurricular, também são administradas sob os princípios da economia social e solidária.

 

Longe de ser um setor à margem, a economia social e solidária na França administra 30% das instalações de saúde: nove de cada dez pessoas com deficiência são cuidadas por instituições da economia social, e 68% dos serviços de cuidados a domicílio. Dentro da mesma perspectiva, pessoas dependentes são apoiadas por empresas da economia social.

 

E o uso da etiqueta solidariedade corporativa, permitido a organizações que não estão listadas nos mercados financeiros, possibilita que elas se beneficiem de certos subsídios. A obtenção desta etiqueta está sujeita a algumas condições específicas. De maneira simples, uma empresa que deseja obter esta etiqueta deve cumprir pelo menos uma das duas condições: (1) pelo menos 30% de sua força de trabalho contrata jovens, deficientes, e beneficiários de condições sociais mínimas; (2) a empresa cumpre duas condições relacionadas tanto com a natureza jurídica da empresa como com o nível de remuneração.

 

A natureza jurídica da empresa -- associação, mutualidade, cooperativa, instituição de previdência – deve estar sob estes parâmetros da economia social e solidária. O nível de remuneração é controlado: para empresas com um a dezenove empregados ou membros, o executivo não deve receber remuneração superior a quatro vezes o salário mínimo. Para empresas com vinte ou mais funcionários ou membros, a condição acima deve ser atendida por dezenove funcionários ou membros e nenhuma remuneração deve exceder oito vezes o salário mínimo. Além disso, a faixa de salários não deve exceder a proporção de um para sete.

 

A distribuição de empresas e organizações da ESS estão presentes em todo o território, mas concentram-se no grande oeste de França, nas regiões da Bretanha e do Loire. Nessas regiões, o peso dos estabelecimentos de empregadores da economia social e solidária em todos os estabelecimentos patronais no território excede 11,5%.

 

O desafio é a vida

 

Para que uma economia social liberte é necessário descobrir o sentido do presente histórico. E esse desvelar o sentido do presente histórico nós entendemos como o falar diante. Mas falar diante de quem? Na modernidade, este falar diante nos levou a leitura formal do ir: deveríamos ir para falar diante. Ora, falar do sentido dos acontecimentos presentes através da vida, nesta alta-modernidade de caos e crise, significa que não somos chamados a ir, mas a receber. Vivemos a localidade global, não somos chamados a ir, mas a receber, porque os excluídos e expropriados de bens e possibilidades estão entre nós, conosco. Assim, contra a lógica que não aceita a exterioridade da pessoa, a solidariedade na alta-modernidade é receber, construir e viver a realidade no chão da vida. 

 

Eu sei que você, caro leitor e leitora, levou um susto e talvez diga, isso é impossível aqui. Mas se começarmos a pensar em solidariedade e em economia social vamos encontrar os nossos próprios caminhos.

 

Sim, a solidariedade traduz uma ação desconstrutiva nesta alta-modernidade de caos e crise, do fazer e pensar da economia capitalista liberal, mas, por outro lado, uma economia social e solidária promove transformações construtivas que possibilitam a produção e reprodução da vida. E assim a solidariedade deixa de ser apenas um desejo e se transforma em economia social. 

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