vendredi 26 septembre 2008

JÜRGEN MOLTMANN, um roteiro de estudo

por Jorge Pinheiro

A teologia de Moltmann situa-se entre os campos da teologia dialética de Barth e a teologia existencial de Bultmann. E sua obra mestra será Teologia da Esperança, publicada em 1964. Para entender Moltmann devemos ver os princípios sobre os quais estão baseados sua teologia.

1. Primazia da esperança > A esperança é a esperança da fé. Estruturalmente primeiro vem a fé e depois a esperança, embora a fé possa desenvolver-se sem a esperança. Nesse sentido, a esperança é o “companheiro inseparável” da fé e entrega à fé o horizonte do futuro em Cristo.

Na vida cristã, a prioridade pertence à fé, mas o primado à esperança”. [Teologia della speranza, p.14]. Está é uma formulação dialética. A fé em Cristo, sem esperança, produz um conhecimento efêmero de Cristo. E a esperança, por sua vez, sem fé, transforma-se em utopia, perdendo sua dimensão teológica. Assim, a prioridade pertence à fé [a esperança é esperança de fé], mas o primado pertence à esperança, já que a fé se expande na esperança e é através da esperança que a fé atinge seu horizonte escatológico.

2. Cristologia escatológica > Para formular sua teologia da esperança, Moltmann parte do Antigo Testamento, mostrando que a religião de Israel era uma religião de promessa. Assim, a revelação no Antigo Testamento tem caráter promissório, que abrem novos horizontes históricos e escatológicos. Logicamente, nem toda promessa é escatológica. Ela se torna escatológica quando assume universalização e intensificação.

Escatológico em Moltmann é sinônimo de futuro universal e radical. Um futuro que inclui todos os povos e uma radicalidade que se estende para além do limite extremo da existência. Olhando sobre essa perspectiva o Novo Testamento ratifica as promessas, apontando para a realização do futuro escatológico. A ressurreição de Cristo é a confirmação das promessas ao mesmo tempo em que é promessa escatológica que se cumprirá com a ressurreição dos mortos e o surgimento de uma nova humanidade. As bases do futuro da humanidade estão na ressurreição de Cristo. Isto é Cristologia escatológica.

3. Eclesiologia messiânica > Para Moltmann a promessa leva à missão. Ou como ele diz: “A pro-missio do Reino é o fundamento da missio do amor pelo mundo” [Teologia della speranza, p. 229]. Considera, no entanto, que a igreja moderna está socialmente marginalizada e por isso refugiou-se em funções supletivas, que são traduzidas na privatização do culto.

Para Moltmann, a igreja tem uma função pública, que “está a serviço da adventícia salvação do mundo e é como flecha lançada no mundo para indicar o futuro” [Teologia della speranza, p. 320]. A missão da igreja, enquanto comunidade cristã, é tarefa de todos os cristãos e será desenvolvida por ele nos textos A experiência esperança (1974) e A Igreja na força do Espírito (1975).

Teologia da Esperança e marxismo

Depois de uma criativa ruptura com a modernidade, enquanto pensamento, tradição e história, é necessário sentir de novo a alegria da esperança escatológica, para compreender a natureza do terreno sobre o qual pisamos. Há um momento de cisão no qual modificou-se, de modo essencial, a concepção do que significa teologia. Esse momento foi assinalado a partir dos anos 60, com a teologia da esperança, de Jürgen Moltmann.

Trata-se de uma reflexão prodigiosamente profética, pois enuncia, não somente a queda do muro de Berlim, mas o processo de aglutinação vivido por alemães, em primeiro lugar, por europeus, na seqüência. É sem dúvida, uma das elaborações mais impressionantes, se entendermos sua abordagem epistemológica. Sugere um campo normativo, a ser percorrido pelos movimentos e comunidades que abririam aguerridamente, a golpes de machado, a senda pós-moderna.

A expressão abordagem epistemológica não é exagerada. Refere-se ao projeto teológico, herdadas das estruturas hegelianas e marxistas, relidas e traduzidas por ele e Ernest Bloch. É sobre a questão da identidade histórica, entendida como processo a realizar-se, que recai a crítica da teologia realizada por Moltmann. É justamente a experiência de viver, enquanto comunidade que se realiza no futuro, que é realçada por ele. No nível antropológico, trabalha os elementos dessa esperança, a partir da qual se produz saber e práxis cristã. Suas heranças são translúcidas:

Por meio de subverter e demolir todas as barreiras -- sejam da religião, da raça, da educação, ou da classe -- a comunidade dos cristãos comprova que é a comunidade de Cristo. Esta, na realidade, poderia tornar-se a nova marca identificadora da igreja no mundo, por ser composta, não de homens iguais e de mentalidade igual, mas, sim, de homens dessemelhantes, e, na realidade, daqueles que tinham sido inimigos. O caminho para este alvo de uma nova comunidade humanista que envolve todas as nações e línguas é, porém, um caminho revolucionário”.

Como num laboratório, o teólogo da esperança extrai o fato teológico de sua contingência histórica, tratada sob condições de extrema pureza escatológica. Muito claramente afirma a escatologia como essência da história da redenção e leva à conclusão de que essa mesma essência seja a expressão maior da ressurreição, enquanto metáfora da cruz de Cristo. Essa cruz repousa sobre o esvaziamento da desesperança, enquanto praesumptio e desperatio, na relação que mantém com o mundo.

A teologia, vida cristã em movimento, numa permanente autoformação, advém das pulsações criadoras da própria esperança, cujo sentido volta-se para ela própria. Essa construção, que se nos apresenta como caleidoscópio, belo, mas aparentemente ilógico, traz em si a força combinatória do devir cristão. Assim, a teologia de Moltmann quebra os grilhões do presente eterno da neo-ortodoxia, e nos oferece um conceito realista da história, que tem por base um futuro real, lançando dessa maneira as bases para uma teologia que responda às reais necessidades do homem pós-moderno.

A teologia de Moltmann nasce enquanto reação ao existencialismo e absorção do revisionismo de Bloch. A descontrução do marxismo, realizada por aquele filósofo, não agradou ao mundo comunista, mas estabeleceu uma ponte, diferente daquela da teologia da libertação, entre o hegelianismo de esquerda e o cristianismo. Substituiu a dialética pelo ainda-não, enquanto espaço que não está fechado diante de nós, e definiu uma antropologia que não mais está calcada no império dos fenômenos econômicos, mas na esperança.

Os escritos filosóficos do jovem Marx serviram de ponto de partida para o vôo de Bloch. A alienação do homem é um fato inquestionável, não como determinação econômica, mas enquanto determinação ontológica. Afinal, o universo em que vive é essencialmente incompleto. Mas a importância do incompleto é que é susceptível de complemento. Por isso, o possível, o ainda-não, o futuro traduz de fato a realidade.

Nesse processo estão presentes a subjetividade humana e sua potência inacabada e permanente em busca de solução e a mutabilidade do mundo no quadro de suas leis. Dessa maneira, o ainda-não do subjetivo e do objetivo é a matriz da esperança e da utopia. A esperança traduz a certeza da busca e a utopia nos dá as figuras concretas desse possível.

O homem é impelido, assim, ao esforço permanente de transcender a alienação presente, em busca de uma ‘pátria de identidade’. É no ‘vermelho quente’ do futuro que está a razão fundamental da existência humana.

Nenhum marxista chegou tão próximo da escatologia cristã!

Deus -- enquanto problema do radicalmente novo, do absoluto libertador, do fenômeno da nossa liberdade e do nosso verdadeiro conteúdo -- torna-se-nos presente somente como um evento opaco, não objetivo, somente como conjunto da obscuridade do momento vivido e do símbolo não acabado da questão suprema. O que significa que o Deus supremo, verdadeiro, desconhecido, superior a todas as outras divindades, revelador de todo o nosso ser, ‘vive’ desde já, embora ainda não coroado, ainda não objetivado. Aparece claro e seguro agora que a esperança é exatamente aquilo em que o elemento obscuro vem à luz. Ela também imerge no elemento obscuro e participa da sua invisibilidade. E como o obscuro e o misterioso estão sempre unidos, a esperança ameaça desaparecer quando alguém se avizinha muito dela ou põe em discussão, de modo muito presunçoso, este elemento obscuro”.

Bloch realiza uma penetrante releitura da cosmovisão judaico-cristã. Entende o clamor profético do mundo bíblico e da proclamação cristã não como alienação e ópio, mas como fermentos explosivos de esperança, protestos contra o presente em nome da realidade futuro, a utopia.

Talvez por isso possamos dizer que nos anos 60, os caminhos de Moltmann e Bloch não apenas cruzaram-se na Universidade de Tübingen, mas abriram espaço para o mais enriquecedor diálogo cristão-marxista que conhecemos. É interessante lembrar que em 1968, quando manifestações estudantis varriam Tübingen, Heldelberg, Münster e Berlim Ocidental, grande parte dos líderes estudantis eram oriundos das faculdades de teologia. Sua Theologie der Hoffnung, publicada no início da década na Alemanha, estava na oitava edição, e no ano seguinte, ele lançaria Religion, Revolution and the Future nos Estados Unidos.

Assim, em síntese, a Teologia da Esperança surgiu para revigorar, teológica, social e politicamente, a esperança cristã através de “projetos de esperança”, que levem a igreja a tornar-se responsável pelo futuro da humanidade. Esse futuro nos foi entregue por Deus, como promessa, mas é conhecido por antecipação no advento e ressurreição de Cristo. Nosso Cristo é o fim da utopia, é certeza escatológica amparada pela fé.

Notas

1Ao homem que se lamenta: ‘Não consigo ver significado na história, e portanto minha vida, entrelaçada com ela, também é destituída de significado’, respondemos: não fiques olhando ao redor de ti, para a história universal, mas olha para tua história pessoal. O sentido da história sempre está contigo no teu presente, e tu não podes vê-lo como mero espectador, mas somente em tuas decisões responsáveis. Em cada momento dorme a possibilidade de vir a ser o momento escatológico, Cabe a ti despertá-la”. R. Bultmann, Storia ed escatologia, Milão, Bompiani, 1962, p. 176.

2A universalização da promessa atinge seu escathon na promessa do senhorio de Iaveh sobre todos os povos. A intensificação da promessa encaminha-se para a realidade escatológica mediante a negação da morte”. J. Moltmann, Teologia della speranza, pp. 133-134.

3Os filósofos justamente conscientes do poder de coordenação das funções espirituais consideram suficiente uma mediação deste pensamento coordenado, sem se preocupar muito com o pluralismo e a variedade dos fatos (...). Não se é filósofo se não se tomar consciência, num determinado momento da reflexão, da coerência e da unidade do pensamento, se não se formularem as condições de síntese do saber. E é sempre em função desta unidade, desta síntese, que o filósofo coloca o problema geral do conhecimento”. G. Bachelard, Filosofia do Novo Espírito Científico, Lisboa, Presença, 1972, pp. 8-9.

4A história arqueológica nem é evolutiva, nem retrospectiva, nem mesmo recorrente; ela é epistêmica; nem postula a existência de um progresso contínuo, nem de um progresso descontínuo; pensa a descontinuidade neutralizando a questão do progresso, o que é possível na medida em que abole a atualidade da ciência como critério de um saber do passado”. Roberto Machado, Ciência e saber. A trajetória arqueológica de Foucault, Rio de Janeiro, Graal, 1982, p. 152.

5 Jürgen Moltmann, “God in Revolution”, em Religion, Revolution and the Future, Nova York, Scribner, 1969, p. 141.

6O passado e o futuro não estão dissolvidos num presente eterno. A realidade contém mais do que o presente. Ao desenvolver sua teologia futurista, Moltmann realmente tem o peso considerável da história bíblica do lado dele, e faz bom uso dela. (...) Ao enfatizar o futuro, desenvolveu um pensamento bíblico legítimo que jazia profundamente enterrado na teologia ética e existencial dos séculos XIX e XX”. Stanley Gundry, Teologia Contemporânea, São Paulo, Mundo Cristão, 1987, p.167.

7 Ernst Bloch, "Geist der Utopie", Franckfurt, 1964, p. 254 in Battista Mondin, Curso de Filosofia, São Paulo, Paulinas, 1987, vl. 3, pp. 246-7.

8 Jürgen Moltmann, Teologia della Speranza, Queriniana, Bréscia, 1969.

jeudi 11 septembre 2008

As lágrimas negadas

À maneira de Agostinho


Os dois rapazes, armados, trombaram a velhinha. Arrancaram a bolsa e começaram a tirar tudo que tinha lá dentro. Tiraram a Bíblia, revolveram tudo, mas não acharam o que queriam: dinheiro.

-- Diz velha, onde está o dinheiro? Diz logo, senão a gente te apaga.

-- Meninos, por que vocês fazem isso? Vocês são tão bonitos...

A velhinha -- tinha mais de 70 anos -- pegou a Bíblia que estava nas mãos de um deles e encostou-a no peito.

-- Jesus muda tudo, faz tudo novo... Qualquer vida...

-- Deixa essa velha pra lá. Vamos embora, ela parece minha mãe.

Maria chegou em casa e contou a história como se fosse a coisa mais normal do mundo. Depois disse:

-- Vou orar por eles. Deus pode mudar a vida daqueles meninos.

O pai era atacadista de café nos ricos anos 20 nas Minas Gerais. Mas cedo foi morar no Rio de Janeiro, em Copacabana. Estudou no Sacré Coeur de Marie. O grande amor de sua vida foi meu pai, jornalista e socialista.

Mas o mundo dá voltas e Maria ficou viúva com dois filhos, Jorge e Alex. E aos poucos a herança foi virando fumaça. E aquela mulher, educada para ser dondoca, de fina cultura, lutou, batalhou para criar os dois meninos. Enfrentou momentos difíceis, sofreu um forte stress e tentou o suicídio, cortando os pulsos. Foi internada. E, no meio do desespero, uma voz suave falou ao seu coração.

Dez anos depois na morte de meu pai, Maria conheceu o Salvador, aquele que dá sentido à vida. Maria me lembra outra mulher, Mônica, mãe de Agostinho.

É verdade que minha mãe, vivificada em Cristo, antes mesmo de ser livre dos laços da carne, viveu de tal modo, que Teu nome era louvado em sua fé e em seus costumes”. [Agostinho, Confissões, Livro Nono, Capítulo XIII, Preces pela mãe morta].

Foi com Maria que aprendi o doce dom do amor. Eu, com minha cabeça materialista, ficava chocado, quando ela alimentava famintos ou cuidava de mendigos. Eu, adolescente, brigava com ela, dizia que era piegas, que isso não adiantava nada e outras tantas coisas. E Maria, com paciência, me respondia:

-- Um dia você vai entender.

Não, de forma nenhuma foi perfeita. De novo, me lembro das palavras de Agostinho sobre Mônica.

Não me atrevo a dizer que desde que a regeneraste (...) não saiu de sua boca nenhuma palavra contrária a sua lei. Porque a Verdade, que é teu Filho, disse: ´Quem chamar a seu irmão de louco será réu do fogo da geena´. Ai da vida dos homens, por mais louvável que seja, se tu a julgares sem a tua misericórdia!”. [Agostinho, Confissões, Livro Nono, Capítulo XIII, Preces pela mãe morta].

Minha mãe, Maria, morreu aos 87 anos, na quinta-feira, dia 27 de novembro. Pode parecer estranho, mas apesar do profundo amor que sempre nutri por ela e de toda a saudade que ficou, não chorei. Ao menos até agora, doze horas depois do sepultamento. Mais uma vez recorro a Agostinho.

De fato, não julgávamos correto celebrar aquele funeral com lágrimas e choros, pois tais demonstrações deploravam geralmente o triste fim dos que morrem, ou sua total extinção. A morte de minha mãe não era uma desgraça, e ela não morria para sempre, e disto estávamos certos pelo testemunho de seus costumes. Por sua fé sincera e outras razões inequívocas”. [Agostinho, Confissões, Livro Nono, Capítulo XII, As lágrimas negadas].

Há promessas

Então vi um novo céu e uma nova terra. O primeiro céu e a primeira terra desapareceram, e o mar sumiu. E vi a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descia do céu. Ela vinha de Deus, enfeitada e preparada, vestida como uma noiva que vai se encontrar com o noivo. Ouvi uma voz forte que vinha do trono, a qual disse:

-- Agora a morada de Deus está entre os seres humanos! Deus vai morar com eles, e eles serão os povos dele. O próprio Deus estará com eles e será o Deus deles. Ele enxugará dos olhos deles todas as lágrimas. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor. As coisas velhas já passaram.

Aquele que estava sentado no trono disse:
-- Agora faço novas todas as coisas!


E também me disse:

-- Escreva isto, pois estas palavras são verdadeiras e merecem confiança.

E continuou:

-- Tudo está feito! Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. A quem tem sede darei água para beber, de graça, da fonte da água da vida. Aqueles que conseguirem a vitória receberão de mim este presente: eu serei o Deus deles, e eles serão meus filhos.
[Apocalipse 21.1-7].

Eu creio nestas promessas! Até mais ver, querida mãe!

mardi 9 septembre 2008

Adoração, mas afinal o que é isso?

“No entanto, está chegando a hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. São estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade”. João 4.23-24.

A adoração pode ser definida como veneração ou culto que se rende a alguém ou algo que se considera sobrenatural, divino e sagrado, bem como rituais e códigos morais que expressam a ação de adorar.

A palavra portuguesa adorar deriva do latim adoratìo, ónis. No mundo helênico, anterior ao nascimento do cristianismo, adoração referia-se a realização de um serviço sacerdotal, no grego leitourgeo. Mas, depois, no cristianismo passou a ser visto como um estilo de comportamento marcado pelo amor, veneração, ou mesmo idolatria por alguém ou alguma coisa que se considerava excepcional, singular. Donde adorar passou a ser entendido como uma forma de paixão.

A palavra adoração foi usada durante séculos no contexto cultural da Europa, marcado pela presença do cristianismo que se apropriou do termo latino. E tanto na antropologia, como na sociologia, foi compreendida como expressão de um tropismo humano em direção ao transcendente, ou seja, como expressão de espiritualidade.

Se tomarmos, por exemplo, o filme “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, vemos que tanto os críticos como milhões de espectadores não notaram que o filme tratava de um dos temas centrais do cristianismo: a questão da espiritualidade cristã. E é esse tema que pretendo abordar, adoração/ espiritualidade, a partir de um texto clássico, o diálogo entre Jesus e a samaritana.

Para os povos semitas, o que nós hoje entendemos por adoração era traduzido nos gestos de curvar-se, prostrar-se, colocar a cabeça no chão, num ato de total submissão, de entrega, já que aquele diante de quem a pessoa se prostrava poderia decepar-lhe a cabeça. Mas havia um outro gesto, o do beijo, que significava o abrir-se ao espírito e ser por ele possuído. Assim, adorar foi entendido através desses gestuais como submissão e possessão.

Mas a adoração não é exclusiva dos povos semitas. Os hindus têm, por exemplo, o culto ao rio Ganges, pois acreditam que é mais antigo que a terra e que jorrou do céu e, por isso, pode libertar o homem de seus pecados em vidas anteriores, curar e purificar o corpo e a alma. E eles adoram o Ganges. A adoração é chamada puja e consiste de orações e oferendas. Assim, a idéia de adoração é enriquecida também pelo ato de entregar algo, algo vital, que pode ser alimento, bebida ou mesmo riquezas.

Entendidos esses três componentes do conceito adoração, vamos à discussão do texto onde Jesus conversa com a samaritana e trata da adoração/ espiritualidade cristã. E pensar os versículos 23 e 24. De forma abrangente podemos dizer que espiritualidade é aquela relação do ser com a transcendência, que dá sentido à vida. E exatamente por isso intercalo na nossa reflexão o belo poema de Ada Negri, Atto d´amore.

"Não sei dizer-te quanto te amo Deus/ no qual creio, Deus que é a vida/ vivente, aquela já vivida e aquela/ que é para ser vivida além dos confins/ do mundo e onde não existe o tempo."

O ser humano, unidade multiforme, tem em seu espírito não uma dimensão parcial da vida, mas irredutível, conforme afirma Lossky. Nesse sentido, o espírito é a totalidade da vida. Nas situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida há sempre experiência com a transcendência, pois mesmo na negação dela há um sentido transcendente.

Na reconstrução da Europa, depois da Segunda Guerra mundial, o teólogo teuto-americano Paul Tillich disse que a desintegração espiritual da sociedade ocidental já tinha sido prevista por teólogos e estudiosos, no século XIX, mas a necessidade de compreender este fenômeno exigia que nos aprofundássemos em seu estudo.

Assim, para Tillich, “se não houver espírito, as construções humanas não poderão produzi-lo. Ele, o espírito age ou não age nos indivíduos e nos grupos. E quando age cria seu próprio meio de comunicação. Assim, o espírito se manifesta por meio das palavras, das formas de vida, das instituições sociais e dos símbolos religiosos”.

A idéia espírito, de que nos fala Jesus, nos leva a uma compreensão abrangente de espiritualidade, que não pode ser entendida apenas como sinônimo de piedade ou como conhecimento dos princípios de que se compõe a piedade.

Partindo do senso comum da igreja brasileira, a espiritualidade pode ser vista como uma interpretação particular do ideal evangélico, mas se partimos do que Jesus nos transmite e da contextualização realizada por Tillich podemos dizer que há uma espiritualidade comum à espécie humana, que ela se expressa existencialmente por sermos todos imago Dei.

Quando multidões assistem a um filme como A Paixão de Cristo e são despertadas, cada qual a sua maneira, acerca da miserabilidade humana, constatamos que as pessoas têm atributos potenciais para a espiritualidade. Esses atributos, presentes na imagem de Deus que somos, e que chamo de tropismo à transcendência, nos leva à questão da adoração.

“Eu não soube; mas a Ti nada escondo / daquele que está no profundo. Cada ato/ da vida, em mim, foi amor. E eu acreditei/ que fosse pelo homem, ou a obra, ou a pátria/ terrena, ou nascido do meu próprio peso, / ou das flores, das plantas, das frutas que caem no chão, / da substância, alimento e luz/ mas foi o Teu amor, que em cada coisa/ e criatura estás presente. E agora/ que um a um caíram ao meu lado, / os companheiros de estrada, e submissas sopram as vozes da terra, a tua/ face refulge de esplendor mais forte/ e tua voz é cântico do gloria”.

A espiritualidade e o sagrado

Otto, um dos teóricos que se debruçou sobre esta questão, diz que a experiência humana diante do sagrado tem sempre algo intenso e profundo, que ele chama de mysterium tremendum, que traduz o numinoso, o que é transcendente para a realidade do crente, que diante daquilo que o esmaga desenvolve senso de temor. Esse temor é um medo qualitativo, motivo para reflexão e energia que transformado em poder faz dele um adorador.

Tais experiências com o sagrado encorajam e incorporam no adorador aquilo que lhe é distinto. Apesar dessa relação de aparente intimidade de relacionamento, permanece o abismo entre adorador e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo que separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará origem à espiritualidade.

Se por um lado a crise ocidental pode ser traduzida como uma crise espiritual, por outro essa busca frenética de bens materiais e de consumo aumenta o vazio humano e favorece a busca da espiritualidade como experiência de vida coerente e recomendável. Assim, vivemos numa sociedade em crise espiritual, que procura encontrar a espiritualidade perdida.

A espiritualidade cristã

A espiritualidade cristã foi construída ao redor da cruz. A paixão de Cristo sempre foi entendida por teólogos e crentes como o derramar do dom da vida de Deus sobre os seres humanos. E porque a morte de Jesus Cristo não é derrota, mas sacrifício livremente aceito, a espiritualidade cristã tem sempre dois movimentos:

1. Um movimento em relação ao outro, ao próximo, ao desvalido, àquele que sofre, que é um chamado ao compromisso. Este movimento da espiritualidade em relação ao próximo nós chamamos de serviço.

A partir desse momento em que a espiritualidade torna-se caminho para Deus através do serviço ao próximo, a espiritualidade tem algo a dizer a todos os nossos relacionamentos, tanto pessoais, como sociais e políticos.

Pode parecer desconcertante relacionar espiritualidade e relacionamentos pessoais, sociais e políticos, mas ao falar de espiritualidade estamos falando do exercício do amor e por relacionamentos pessoais, sociais e políticos entendemos a transformação da sociedade na direção do reino de Deus, para que se faça justiça aos excluídos de tal forma que encontrem vida e salvação. Nesse sentido, a espiritualidade dá sentido à vida pessoal, social e política e torna-se além de profética, transformadora.

2. Mas a espiritualidade tem um outro movimento, que se por um lado está ligado ao rigor da fé, como vemos na oração e nos momentos de contrição, ela se realiza existencialmente, enquanto encontro com Deus. Esse encontro, conforme no diz Jesus, é a adoração e está na raiz da conversão e de todo processo de santificação. É um processo místico, no sentido que mostra nossa miserabilidade diante do insondável mistério de Deus.

Por isso, a espiritualidade e, por extensão, a sua expressão de submissão, possessão e entrega, que é a adoração, é profética e transformadora no encontro com o outro, com o humano, e um ato místico de adoração diante da majestade de Deus.

Ou, conforme nos diz Galilea, a contemplação de Jesus Cristo no irmão que sofre e a contemplação de Deus no Cristo ressurreto são sempre frutos da ação do Espírito em nossas vidas. Esses dois encontros devem ser a base da espiritualidade cristã na alta modernidade e fundamentam todo ato de adoração daquele que crê.

“Ora, Deus que sempre amei – te amo sabendo/ amar-te; com a inefável certeza/ que tudo foi justiça, mesmo a dor, / tudo foi bem, mesmo o meu mal, tudo/ para mim Tu foste e sei, me faz temente/ de uma alegria maior que a morte. / Permanece comigo, pois a noite desce/ sobre minha casa com misericórdia/ de sombras e estrelas. Que Tu participas, à mesa/ humilde, o pouco pão e a água pura/ da minha pobreza. Permanece Tu apenas/ junto de mim a tua serva; e no silêncio/ dos seres, o meu coração te entende único”.

Notas
1. Ada Negri nasceu em Lodi, na Lombardia, em 1870, filha de camponeses. Seus primeiros livros refletiam uma consciência social que se opunha às tendências dominantes no fim do século. Mais tarde, a sua poesia incluiu uma afirmação de sexualidade feminina, diferente das tradicionais poesias de amor (Il Libro di Mara, 1919). Ada Negri faleceu em 1945.
2. Tradução do italiano para o português por Jorge Pinheiro.
3. Vadlimir Lossky, A l’image et la ressemblance de Dieu, Paris, 1967, p. 118.
4. Paul Tillich, A Era Protestante, São Paulo, Ciências da Religião, 1992, pp. 275-276.
5. Rudolf Otto, O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992, pp. 21-22.