samedi 17 avril 2021

Sobre bruxas e Bruxas

Notas para uma crônica sobre bruxas e Bruxas 

Essas são minhas notas para uma última crônica nesta temporada na Europa. Anotações sobre uma igreja, a Catedral de São Salvador de Bruges. E anotações várias, além dessa primeira. 

1. O meu interesse não está exatamente na catedral, mas no paradoxo do nome Catedral de São Salvador de Bruges. Para que o leitor entenda, Brugge/Bruges tem um correlato inglês, Bridge, mas em espanhol e português o nome da cidade pode e deve ser traduzido, se formos traduzir, por Bruxas. Mas é bom dizer que na raiz flamenga brugge significa ponte, porque se acreditava que a bruxa era a ponte entre aquele mundo medieval chato e outro mundo de desejos possíveis. 

2. Donde, o nome da igreja é Catedral de São Salvador das Bruxas. Mas por que bruxas em Bruges? Bem, para os especialistas, historiadores no caso, esta era uma região de bruxas e feitiçarias, assim como o restante da Bélgica. Por isso, encontramos uma interessante bibliografia sobre a região e as atividades das bruxas. Para os interessados vamos citar dois artigos, um de Gailliard e outro de autor desconhecido, e também o livro de Stalpaert. 

3. Mas quero falar de bruxas e da catedral. E para falar de bruxas vou recorrer a um texto de Luiza Tomita, onde cita o Malleus Maleficarum, documento usado pelos homens da Inquisição: 

-- Toda bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres, pois, segundo Provérbios 30, ela é comparável a um fogo que é preciso alimentar incessantemente, devoradora como o louva-a-deus. 

-- Há três coisas insaciáveis, quatro que nunca dizem: Basta! A quarta é a boca do útero. Pelo que, para saciarem sua lascívia, copulam até mesmo com demônios. 

-- As mulheres saciam os seus desejos obscenos não apenas consigo mesmas, mas também com aqueles que se acham no vigor da idade, de qualquer classe ou condição; causando-lhes, através de bruxarias, de toda espécie, a morte da alma, pelo fascínio desmedido do amor carnal, de tal forma a não haver persuasão ou vergonha que os faça abster-se de tais atos. 

4. Tal obsessão sobre o sexo da mulher, como diz Tomita, traduzia o desejo, o medo e sentimentos confusos, presentes no pensamento e nos escritos da igreja cristã medieval. E como resultado, de 1560 a 1630, a perseguição vitimou cerca de 100 mil mulheres – alguns historiadores falam em um milhão – na França, Alemanha, Suíça, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. 

5. A Catedral de São Salvador das Bruxas foi levantada como igreja de paróquia no século XII e dedicada a São Donato. No século XIV sofreu mudanças e partes seguiram um estilo particular de gótico, o gótico de Escalda, nome do rio que atravessa essa região da cidade. No século XV, o deambulatório com suas capelinhas seguiram o gótico verticalista. 

6. A medievalidade de Bruges com suas ruas estreitas e tortuosas, canais, sombras e imaginações noturnas, não nos remete apenas às bruxas, mas à máfia dos tempos bicudos da alta-modernidade. Por isso, virou filme de Martin McDonagh. Depois de um trabalho em Londres que corre mal, dois assassinos são enviados para Bruges. Objetivo: desaparecerem do mapa por uns tempos. Ray (Colin Farrell) odeia a cidade e está irritado com o insucesso do trabalho. Ken (Brendan Gleeson) se deixa levar pela beleza mítica da cidade. Durante a estadia, sucedem-se encontros estranhos com turistas e residentes: um ator norte-americano anão, prostitutas e uma misteriosa mulher, Clémence Poésy -- Seria uma bruxa? Não se esqueçam que ela foi Fleur Delacour no filme Harry Potter e o Cálice de Fogo. As tais férias acabam quando o chefe, Harry (Ralph Fiennes), telefona a um deles e ordena-lhe que assassine o outro. As ruas das Bruxas tornam-se então um cenário surrealista de perseguições. 

7. E não se esqueça, há um dia das feiticeiras na Bélgica, é o 27 de Julho, com direito a procissão das bruxas e tudo. 

8. Essa história de bruxas nos remete à obsessão por amuletos na Idade Média, que estava ali-ali com a feitiçaria. Umberto Eco nos conta uma história que para mim raia a loucura. Diz ele, que “o prepúcio de Jesus estava exposto em Calcata (Viterbo) até que em 1970 o pároco comunicou o seu sumiço. Mas reivindicaram a posse da mesma relíquia Roma, Santiago de Compostela, Chartres, Besançon, Metz, Hildesheim, Charroux, Conques, Langres, Amberes, Fécamp, Puy-en-Velay e Auvergne. O sangue que brotou da ferida lateral, recolhido por Longino, teria sido levado para Mântua, mas outro sangue conserva-se na basílica do Sangue Sagrado em Bruges, na Bélgica”. 

Assim, de novo, Brugge/Bruges/Bruxas volta à berlinda e uma igreja, a Basílica do Sangue Sagrado, aparece como guardiã de uma relíquia inusitada. Que a engenharia genética não leve isso muito a sério... 

9. Para os finalmentes me pergunto: salvador de quem? Das bruxas ou daqueles que queimavam mulheres? Salvador das bruxas não poderia ser, pois como diz Tomita, para Santo Agostinho, a abominação da bruxaria surgiu da ligação entre a humanidade e o diabo: a mulher para tornar-se bruxa deveria renunciar a fé católica; dedicar-se de corpo e alma à prática do mal; ofertar crianças não batizadas ao demônio; e entregar-se aos atos carnais com íncubos e súcubos. 

10. Na Catedral de São Salvador das Bruxas, hoje uma igreja protestante, temos obras de arte. Entre elas, tapeçarias que decoram as paredes da nave, tecidas em Bruxelas por Van der Borcht, em 1730. São exuberantes. Sob o altar está uma escultura do Deus Pai, em mármore branco, feita por Arthur Quellin. À direita do prédio está o museu da catedral. Nele, há pinturas flamengas, jóias e relicários ouro e prata. 

Para as bruxas do século XXI sobrou uma procissão no dia 27 de julho. 


Découverte : Bruges, la Venise du nord, inchangée depuis 5 siècles


On part à Bruges, une ville belge qui doit son essor à un raz-de-marée en 1134. C’est à la fin du 15ème siècle que le port menacé par l'ensablement de la rivière, a vu son commerce s’affaiblir. Cette cité riche de son histoire a su conserver son patrimoine. On vous emmène découvrir cette Venise du nord, véritable musée à ciel ouvert et ancienne capitale européenne de la culture. Le site de l'émission : http://www.france3.fr/meteoalacarte Facebook : https://www.facebook.com/MeteoALaCarte Twitter : https://twitter.com/Meteoalacarte Instagram : http://instagram.com/meteoalacarte