mardi 22 octobre 2024

Sobre o não-ser para viver o ser

 Sobre o não-ser para viver o ser



Compreendi que não há nada melhor do que a gente ter prazer naquilo que faz. Esta é a recompensa. Pois como é que podemos saber sobre o não-ser? -- perguntou Qohélet.  


Qoh procurou a felicidade e a paz. Foi objetivo e prático na avaliação de seu tempo e constatou que o evento humano está sujeito à lei da alternância, que vai além da explicação imediata: o humano não tem domínio sobre as dinâmicas que governam a morte e a vida. E procurou refúgio na sofia grega. O texto hebraico de Qohélet, com a presença de palavras aramaicas e persas, sugere autoria anônima, situada entre 450 e 200 antes de Cristo, e se apresentou com a apodadura de Salomão. 


Qoh procurou entender o ser e o não-ser -- aquilo que está fora, além da existência -- no jogo de seus movimentos. Percebeu que não tinha controle sobre o movimento dos fenômenos do universo e viu que era preciso respeitar o espaço e o tempo para poder existir dentro do ritmo dos eventos. 


Mas ele não foi o único a pensar nessas coisas. A pergunta pelo não-ser, presente na história do humano desde que ele é sapiens, levou à pergunta pelo sentido do ser. Qohélet -- em português Eclesiastes e, segundo Haroldo de Campos, O-que-sabe -- de forma magnífica, quase à maneira de Nietzsche, trabalhou o tema da morte e da vida e nos levou a pensar sobre a única realidade a que de fato temos acesso: a existência -- terreno afetivo e emocional que produz e repousa sobre a riqueza material das humanidades. Qoh numa abordagem existencial discute o ser, sua integralidade e potencialidades.


Mas ele não foi o único a pensar a não-existência e a existência. Górgias (480-375 a.C.) traduziu no pensamento pré-socrático a dúvida sobre o não-ser e, por extensão, sobre o ser. Disse que se existisse alguma coisa, seria ser ou não-ser, ou ser e não-ser juntos. E se o não-ser existe, ele é e não-é ao mesmo tempo. Mas é absurdo dizer que alguma coisa existe e não-existe ao mesmo tempo. Para Górgias, em formulação matemática (pv¬p)v(p^¬p), a proposição “pv-p” é verdadeira. Mas “v” é verdadeiro se e somente se “p” for verdadeiro. Na lógica proposicional do filósofo pré-socrático temos, então, a negação de “p”. Donde, o não-ser não existe. Górgias disse mais do que isso, mas essa constatação, o não-ser não existe, é o que nos interessa nesse momento. 


É interessante que Qoh apresentou o não-ser, aquilo que está fora, além da existência, de uma maneira que nos lembra Górgias. Disse que ninguém se lembra do que aconteceu no passado e que até as coisas que acontecerão no futuro também vão ser esquecidas. Que ninguém se lembra dos sábios, assim como ninguém se lembra dos imbecis, pois no futuro todos seremos esquecidos. Há tempo para nascer e tempo de morrer, mas todos caminham para um mesmo lugar, pois tudo vem do pó e tudo volta ao pó. 


Disse, ainda, que felicitava os que já morreram mais do que os que estavam vivos. E considerou que mais vale o dia da morte do que o dia do nascimento. Ou, mais vale ir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festa. Que ninguém é senhor do dia da própria morte e que nessa guerra não há trégua. Por isso, um cão vivo vale mais que um leão morto, já que os vivos sabem que irão morrer; mas os mortos não sabem de nada e não tem recompensa nenhuma: sua memória já está no esquecimento. O amor, ódio e ciúmes pereceram com eles. E nunca mais participarão de qualquer coisa que se faz debaixo do sol.


A consciência do não-ser remete ao sentido do ser. E aqui há uma diferença básica com Górgias, porque para ele a negação do não-ser é também a negação do ser e, por isso, fez três afirmações que marcaram o pensamento lógico-matemático e balizaram o ceticismo: não dá para dizer que algo existe; se alguma coisa existe não temos como conhecer sua existência; e se o ser existe não temos como explicar sua existência aos outros.


Já o argumento de Qoh, a partir do não-ser, afirma o sentido do ser, único conhecido. A negação do não-ser de Qoh expressa o desejo de ser em abundância, enquanto está, porque tem por limites as bordas do tempo de ser. O ser existe, mas tem espaço e tempo – hoje diríamos é existencial e histórico. Por isso, é melhor o sentido do ser, a intensidade das ações do ser do que ficar na espera do não-ser. Assim, quando o não-ser sinalizar que está chegando e se aproximar, teremos o prazer de ter sido plenamente, com intensidade, de forma abundante. 


E, por isso, Qoh nos aconselha a aproveitar a vida, a ir em frente. A comer com prazer e beber alegremente o nosso vinho, pois o Eterno já aceitou deliciado o nosso bem-fazer. Sejamos felizes, diz O-que-sabe. Enquanto vivermos na fumaça desse mundo, curtamos a vida com a pessoa amada, pois essa é a recompensa pelo nosso fazer debaixo do sol. E o que tivermos para fazer, façamos ótimo, porque o não-ser é nada e no nada nada se faz, e no não-ser não existe pensamento, nem conhecimento, nem sabedoria. E depois do ser, vamos repousar no nada.


O fazer da existência vale a pena. O Eterno aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada ser na história dos fazeres humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto na Torah, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-ser não é uma fratura do tempo, é tempo da história. Qoh não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o Eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão de Qoh é que temos de ser no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-ser. 


A pérola e o anjo da árvore

 A pérola e o anjo da árvore

Jorge Pinheiro



No vale do Manre, na Palestina de três mil e quinhentos anos atrás, Abraão recebeu a visita de anjos. Era a hora mais quente do dia e Abraão estava sentado na entrada da sua barraca.

 

[Wendell] Nossa amiga Pérola, 54 anos, faleceu num sábado à tarde de dezembro de 2008, num incêndio em seu apartamento no Maracanã. Morreu também seu sogro. Seu marido e a empregada foram internados com ferimentos leves. Ela tentou salvar os gatos da casa, num total de 12, e conseguiu tirar nove ou dez. Desmaiou e faleceu devido à inalação de fumaça. O apartamento ficou totalmente destruído. Devido aos remédios que tomava, seqüelas de um AVC que sofreu há uns dez anos, estava um pouco grogue ou sonolenta, o que deve ter contribuído para a lentidão de sua saída do apartamento, além da questão afetiva dos gatos, que ela chamava de "meus filhos".


No final da década de 70, quando do racha da Convergência Socialista, seu argumento foi o que me convenceu a sair. Dizia, então, que para se repensar o marxismo, tínhamos de romper com a ortodoxia morenista. Anos depois, funcionária do PT, ela botou o partido na Justiça, pedindo direitos trabalhistas não pagos. Sua decisão causou furor no Rio, em certos círculos, porque, afinal, estava processando o partido... Ela me disse que era contraditório o partido defender os direitos dos trabalhadores para os outros, mas não cumpri-los. Nas audiências de conciliação, o PT mandava quadros da direção que mentiam descaradamente para ocultar o que ela desnudara. Sempre na vanguarda, nossa querida amiga. Com exageros, transgressões, mas, tal como o poeta Torquato Neto, ela veio para "desafinar o coro dos contentes". E o fez, com toda integridade. É isso aí, camarada. 


Abraão olhou para cima e viu três homens a sua frente. Quando os viu, correu ao encontro deles. Ajoelhou-se, encostou o rosto no chão e disse: Senhores, se eu mereço a sua atenção, não passem pela minha humilde casa sem me fazerem uma visita. Vou mandar trazer água para lavarem os pés e depois os senhores descansarão aqui debaixo da árvore. Também vou trazer um pouco de comida e assim terão forças para continuar a viagem. Os senhores me honraram com sua visita, portanto, deixe que eu os sirva.


[Halley] Oi Astrô e Jorge, aí segue a troca de e-mails entre eu e o Wendel provocada por vocês e pela idéia do Jorge de homenagear a Pérola no jornal do Matico. O nome dela  é Pérola Engellaum, significa anjo da árvore. Grande abraço! 


[Inês] Astrô e demais amigos, fiquei sabendo, fui ao enterro. Todos os amigos que estávamos lá: Halley, Edu, Ana, Cezar, Laís. Ficamos juntos, compartilhando nossas tristezas. Tive oportunidade de participar da banca de mestrado e de doutorado da Pérola. Uma guerreira. Em tudo, por tudo e sempre uma guerreira. Deixa muita saudade. Beijo. 


[Julio] Amigos/as, com enorme pesar acabo de chegar de viagem e receber a triste notícia do trágico desaparecimento de minha ex-companheira de célula na nascente Liga Operária, ex-primeira room-mate e ex-cunhada. Apesar dessas ex-liga-ações, o destino nos colocou em rumos de vida bem distintos. Lamento a viagem de mais um bravo de nossa geração. Incorporemos sua memória e marchemos com a vida. Abraços fraternos para todos. 


[Astrô] Amigos, ficarei com os bons momentos em que estive com Pérola. Em nosso último encontro, numa reunião de trabalho do IBAP, anos atrás em um sindicato aqui no Estácio, quando em dado instante ela dizia: "se a situação é salomônica é preciso fatiá-la". Naquela reunião tivemos a presença lendária de Ivan (o bondoso), Halley (o pensador), Celinha (a operadora) e do próprio Francisco, companheiro de Pérola. Espero não ter esqueci de ninguém, afinal a memória já não é tão brilhante. A vida continua e nossa história deveria ser escrita, alguém se habilita? 


Eles responderam: Está bem nós aceitamos. Abraão, então, correu para dentro da barraca e disse a Sara: Depressa, pegue uns dez quilos de farinha e faça pão. Em seguida, ele correu até onde estava o gado, escolheu um bom bezerro novo e o entregou a um dos seus empregados, que o preparou para ser comido. Abraão entregou leite e a carne churrasqueada e pôs tudo diante dos visitantes. Ali, debaixo da árvore, ele mesmo serviu a comida e ficou olhando.


[Halley] Agora me ocorreu uma outra coisa. Você falou do "London Calling" do The Clash. Você deve se lembrar de um dos versos da música que diz "London is drowning-and I live by the river". Na minha cabeça por muito tempo o verso era "London is burning - but I live by the river", nunca soube bem qual a razão. Se você não se importar vou mandar esta nossa troca de e-mails para a Laís. Acho que ela vai gostar. Se quiser, pode mandá-los também para o Jorge e o Astrô.


Eu também pensei em fazer alguma coisa, lá na hora que ela estava sendo enterrada. Me passou pela cabeça, não sei direito como. Não uma missa, de jeito nenhum. Acho que pensei foi numa espécie de festa. Festa mesmo, mas não sei qual. Nem como. Mas acho que devia ser feita. Engraçado que depois do enterro, não no domingo, mas a partir do dia seguinte, a coisa toda ficou meio enterrada também. Até abrir as fotos no computador para te mandar. Aí, voltei a chorar. Só aos poucos vou me reaproximando dela, da Pérola de novo. As coisas que você fala dela, ajudam muito. Mas é ainda muito difícil. É muito difícil, por exemplo, me aproximar do afastamento dela dela mesma nos últimos anos (e acho que de todo mundo, todos nós, embora que também a gente foi se afastando um pouco, uns mais outros menos... uma das coisa boas do enterro e da coisa toda lá antes do enterro foi ter ficado junto, reencontrado de verdade e chorado nos ombros da Laís, do Edu, da Ana, do Fernando, do Pedro e eles no meu). Eu custo um pouco a juntar a Pérola daquelas fotografias com a Pérola que vi pela última vez aqui na minha casa três anos atrás. Mas acho que era a mesma. Me manda, sim, o e-mail do Jorge. Só de ele ter lembrado de homenageá-la assim já merece um grande abraço. 


Eles então perguntaram: Onde está Sara, a sua mulher? Está na barraca, respondeu Abraão. Um deles disse: No ano que vem eu virei visitá-lo outra vez. E nessa época Sara a sua mulher terá uma filha. 


[Wendell] Oi, Halley, vou te mandar o e-mail que o Jorge mandou para o Astrogildo. Ali, tem o endereço da revista eletrônica Via Política, da qual é um dos colaboradores. Ele pretende fazer um artigo na revista e um memorial com depoimentos das pessoas. A revista, aliás, é muito boa. Tem um artigo que fala dos 40 anos de lançamento do histórico O banquete dos mendigos, dos Rolling Stones, um marco na história do rock, disputando com London Calling, do The Clash, o título de maior álbum da história do rock, em pesquisa feita pela edição nacional de Playboy. A coincidência é que o aniversário do disco foi no dia 6, data do falecimento da Perola. Embora ela tivesse mais o perfil dos Beatles, em termos de gosto musical, ela foi mais dionisíaca que apolínea, portanto, mais stoniana, transgressora, exagerada, quixotesca, enfim, tudo de bom. Pois não é quixotesco arriscar a vida pra salvar os gatos? 


Falei com um morador da rua em que ela morava, conhecido do casal, que faz fotolito de capa para a Rocco. Ele assistiu ao incêndio e viu quando o Chico desceu, chamuscado, encaminhando-se para a ambulância. Quando a empregada desceu, ela teria afirmado que tentou puxar, isso mesmo, a Perola para fora do apartamento, mas que ela resistiu, afirmando que salvaria os gatos primeiro. Parece que há um mês mais ou menos, ela esquecera um cigarro aceso, queimara a cama e matara um gato. Talvez esse remorso tenha dado força (sã ou insana) para ela resistir à empregada. O Chico está na casa de um casal amigo, conseguiram algumas roupas, ele já enterrou o pai, acho que na terça, e teria dito ao Duda que pagavam no condomínio um seguro contra incêndio. Se for isso, pelo menos materialmente não sai do zero. Se esse material para a revista se desdobrar em algo, ótimo. Se eu fosse católico, mandaria rezar uma missa, convidaria as pessoas e a homenagem seria feita. Mas não sou a família dela também não e, além disso, tem esse período de festas que nos absorve. O ideal seria aos trinta dias, só que por se tratar de janeiro, mês de férias, talvez não se encontrem as pessoas. É isso aí. 


Sara estava atrás dele, na entrada da barraca, escutando a conversa. Abraão e Sara eram muito velhos, e Sara já havia passado da idade de ter filhos. Por isso, riu por dentro e pensou: como poderei ter prazer sexual agora que eu e o meu homem estamos velhos? 


[Wendell] Oi, Halley, vou mandar as fotos para o Astrogildo repassar para o Jorge. O Duda, que estudou comunicação na UFF e conheceu Perola e Edu no cursinho pré-vestibular, foi, nos últimos tempos, o grande amigo da Perola e do Chico. Eles conversavam muito sobre o jovem Marx, filosofia grega e por aí. Ele havia falado com o Pedro, filho dela, no sábado à noite, e fiquei aguardando uma definição sobre o local e a hora do enterro. Mas o Pedro não voltou a contatar o Duda e quando ele conseguiu falar com a Janete já tinha acontecido. Lamento não ter podido ir. Não costumo olhar recado no celular, é um defeito meu, nunca deixe recado pra mim. Até a próxima. 


Então Adonai perguntou a Abraão: Por que Sara riu? Por que disse que está velha demais para ter filhos? Será que para Adonai há alguma coisa impossível? Pois, como eu disse, no ano que vem virei visitá-lo outra vez. E nessa época Sara terá uma filha. Ao escutar isso, Sara ficou com medo e quis negar o que tinha pensado. Então disse: Eu não estava rindo. Mas Adonai respondeu: Não é verdade, você riu mesmo.


[Jorge] Astrô, amigo e guerreiro. Recebi ontem o seu e-mail e fiquei triste. Me deu uma saudade enorme da amiga e da mulher corajosa que perdemos. Pérola fez parte de nossas vidas. Gostaria de escrever alguma coisa sobre ela, ou publicar alguma coisa dela na revista eletrônica do Matico, a Via Política. Se você puder me ajudar, mandando algum texto, algum comentário, o nome dela por inteiro, alguma foto se possível daquela época, escreveríamos um memorial. Uma lembrança pelo que representou em nossas vidas. Um abraço do amigo. 


Um ano depois o anjo da árvore voltou. Sara tinha dado à luz uma menina. Ela  recebeu o nome de Pérola e o anjo da árvore cuidou dela.  



[Os textos em negrito são adaptação literária, minha, de Gênesis 18. Os demais textos são e-mails recebidos de companheiros/as. Para entender melhor a companheira Pérola Engellaum, leia sua tese de doutorado:Samuel Rawet, A alma que sangra”.

WEB: www.ciencialit.letras.ufrj.br/trabalhos/perolaengellaum_aalma.pdf

Assinado: Jorge Pinheiro].