lundi 14 février 2011

A família de Oséias segundo Calvino

[Eu sei que hoje poucos lêem Calvino, o que é uma pena. Afinal, o próprio Jacobus Arminius (1560-1609) disse dele:  “Depois da leitura da Escritura, a qual ensino, inculcando tenazmente, mais do que qualquer uma outra… Eu recomendo que os Comentários de Calvino sejam lidos... Pois afirmo que, na interpretação das Escrituras, Calvino é incomparável, e que seus Comentários são para se dar maior valor do que qualquer outra coisa que nos é legada nos escritos dos Pais — tanto que admito ter ele um certo espírito de profecia, em que se distingue acima dos outros, acima da maioria, de fato, acima de todos”. E eu concordo com ele. O trecho abaixo, em português, foi traduzido de uma versão em ingles, feita a partir de uma edição impressa em Genebra em 1567. Leia e descubra Calvino. Vale a pena, mesmo que você não concorde com ele. Jorge Pinheiro].

Vá, ele diz, toma para ti uma mulher de devassidões e filhos de devassidões; e adiciona-se a razão, pois pela fornicação, ou libertinagem, tornou-se a terra dissoluta. Indubitavelmente, fala ele aqui dos vícios que o Senhor há muito agüentava com inexprimível paciência. Pela devassidão pois a terra se tornou desenfreada, para que não siga a Jeová.

Muito labutam aqui os intérpretes, pois parece mui estranho que o Profeta tomasse por esposa uma meretriz. Dizem alguns que esse foi um caso extraordinário6. Decerto uma tal liberdade não teria sido tolerada em um mestre. Vemos o que Paulo requer em um bispo, e não há dúvidas de que o mesmo era requerido anteriormente nos Profetas: que suas famílias deveriam ser castas e livres de toda nódoa e mancha. Teria sido pois expor o Profeta ao escárnio de todos caso tivesse ele adentrado um bordel e tomado para si uma prostituta; pois ele não fala aqui apenas de uma mulher não casta, mas de uma mulher de devassidão, o que significa uma meretriz comum, pois é ela chamada uma mulher de devassidão, que desde muito tempo estava habituada a isso, a qual expunha a si mesma a todos, para gratificar-lhes o desejo, a qual se prostituía a si própria, não uma ou duas vezes, nem para alguns homens, mas para todos. Que tal fosse feito pelo Profeta parece mui improvável. Mas alguns replicam, como disse eu, que isso não deve ser reputado como regra comum, pois foi um mandamento extraordinário de Deus. E, todavia, não parece coerente com a razão, que o Senhor, dessa forma injustificável, faça com que seu Profeta seja desprezível; pois como podia ele esperar ser recebido ao aparecer diante do público, após haver trazido sobre si mesmo uma tal desgraça? Se ele houvesse se casado com uma mulher tal como a que é aqui descrita, deveria ter se ocultado por toda a vida em vez de se incumbir do ofício profético. A opinião de quem pensa que o Profeta tomara uma esposa semelhante à aqui descrita, por conseguinte, não é provável.
 
Depois, um outro motivo, totalmente irresolúvel, milita contra eles; pois não apenas se ordena ao Profeta que tome uma esposa de devassidão, mas ainda filhos de devassidão, gerados por prostituição. Logo, é como se ele mesmo houvesse cometido prostituição7. Pois, se dissermos que ele se casou com uma mulher que dantes se conduzira com alguma indecência e falta de castidade (como Jerônimo em detalhes argumenta para desculpar o Profeta), a escusa é frívola, pois ele não fala somente da esposa, mas também dos filhos, visto que Deus teria a prole toda como sendo adulterina, e isso não podia ser o caso de um casamento legal. Por isso, quase todos os hebreus concordam com esta opinião, que o Profeta não esposou realmente uma mulher, mas que lhe foi ordenado a fazer isso em uma visão. E veremos no capítulo terceiro quase a mesma coisa descrita; contudo, o que está ali narrado não podia realmente ter sido feito, pois é mandado ao Profeta que se case com uma esposa que violara sua fidelidade conjugal e, depois de a ter comprado, retê-la em casa por um tempo. Isso, sabemos, não foi feito. Segue-se então que isso foi uma representação exibida ao povo.

Alguns objetam dizendo que a passagem inteira, tal como dada pelo Profeta, não pode ser compreendida como aludindo a uma visão. Por que não? Porque a visão, dizem, foi dada só a ele, e Deus tinha em consideração o povo todo, em vez do Profeta. Porém, pode ser, e é provável, que visão nenhuma foi apresentada ao Profeta, mas que Deus apenas lhe ordenou proclamar o que lhe tinha sido dado como responsabilidade. Logo, quando o Profeta começou a ensinar, ele iniciou com algo desse jeito: “O Senhor me coloca aqui como em um palco, para vos fazer saber que me casei com uma mulher, uma mulher habituada a adultérios e prostituições, e que por ela gerei filhos”. O povo todo sabia que ele não fizera tal coisa; porém, o Profeta assim falou a fim de pôr perante seus olhos uma vívida representação. Tal, pois, foi a visão, uma exibição figurada, não que o Profeta soubesse disso por uma visão, mas o Senhor lhe ordenara a relatar tal parábola (modo de dizer), ou tal comparação, para que o povo pudesse ver, como num retrato vivo, a torpeza e perfídia desse. É, em suma, uma exibição, na qual a coisa mesma não é somente apresentada em palavras, mas também é colocada, por assim dizer, diante dos olhos deles de forma visível. A razão é acrescentada: pois pela devassidão a terra se tornou dissoluta.

Vemos agora então como as palavras do Profeta devem ser entendidas; pois ele assumiu um personagem perante o público, e nesse personagem ele disse ao povo que Deus lhe havia ordenado tomar para sua esposa uma meretriz, e por ela gerar filhos adulterinos. Seu ministério não se tornou, devido a isso, desprezível, pois todos eles sabiam que ele sempre vivera virtuosa e sobriamente; todos sabiam que sua casa era isenta de todo vitupério; mas aqui ele se exibia nesse suposto papel, como o fez, uma imagem viva da vileza do povo. Tal é o significado, e não vejo nada forçado nesta explanação; e vemos, ao mesmo tempo, o sentido dessa oração: Pela devassidão a terra se tornou dissoluta. Oséias poderia ter dito isso numa palavra só, mas ele se dirigia ao surdo, e sabemos quão grande e quão estúpida é a loucura daqueles que se deleitam em suas próprias superstições e que não podem suportar qualquer censura. O Profeta, então, não teria sido levado em consideração, a menos que tivesse exibido, como em um espelho perante os olhos deles, o que desejava que fosse compreendido por eles, ainda que houvesse dito: “Se nenhum de vós pode conhecer a si mesmo de modo a reconhecer sua pública vileza, se sois vós tão obstinados contra Deus, pelo menos agora saibais, pelo meu personagem simulado, que sois todos adúlteros, e vossa origem provém de um bordel imundo, pois Deus assim declara a respeito de vós; e, como não estais dispostos a receber uma tal declaração, é agora posto perante vós em meu suposto papel”.

(...)
Dissemos nós, na Dissertação de ontem, que Deus ordenou a seu Profeta que tomasse uma mulher de prostituições, mas que tal não foi, em realidade, feito; pois que outro efeito podia ter tido isso, senão fazer com que ele se tornasse desprezível a todos? E, dessa maneira, sua autoridade teria sido reduzida a nada. Porém, Deus somente quis mostrar aos israelitas, mediante uma tal representação, que eles se jactavam sem razão; pois nada tinham que fosse digno de encômio, mas eram, de todos os modos, ignominiosos. É dito então: Oséias foi e tomou para si Gômer, a filha de Diblaim. rmg,,, Gômer, em hebraico, quer dizer falhar; e algumas vezes significa, ativamente, consumir; e, por isso, Gômer tem o sentido de consumo. Contudo, Diblaim são pastas de figo, ou figos secos reduzidos a uma pasta. Os gregos as chamam palaqav, palathas. 

Os cabalistas dizem aqui que a esposa de Oséias foi chamada por esse nome, porque aqueles que são muito dados à libertinagem finalmente caem em morte e corrupção. Assim, consumo é a filha de figos, pois por figos eles entendem a doçura das concupiscências. Mas ficará mais simples dizer que essa representação foi exibida ao povo, que o Profeta pôs diante deles, em vez de uma esposa, consumo, a filha de figos; ou seja, que colocou perante eles pastas de figos ou palaqav, representando Gômer, que quer dizer consumo, e ele adotou uma maneira similar à dos matemáticos, quando descrevem suas figuras — “Se isso for tanto, então aquilo é tanto”. Podemos então compreender a passagem, que o Profeta aqui dá, para nome de sua esposa, as pastas deterioradas de figos; de modo que ela era consumo ou putrefação, nascida de figos, reduzida em tais pastas. Pois ainda persisto eu na opinião que ontem expressei, que o Profeta não entrou em um lupanar para tomar uma esposa para si: pois, de outro modo, teria ele gerado bastardos, e não filhos legítimos; pois, como foi dito ontem, a situação da esposa e dos filhos era a mesma.

Entendemos agora, então, o verdadeiro sentido deste versículo, como sendo que o Profeta não se casou com uma prostituta, mas apenas exibiu-a perante os olhos do povo como se ela fosse a corrupção, nascida de pastas de figos putrefatas. 

Segue agora que a mulher concebeu — a imaginária, a esposa tal como representada e mostrada. Ela concebeu, diz ele, e deu à luz um filho: então disse Jeová a ele, Chame seu nome Jizreel. Muitos vertem laurzy, Yzre’el, para dispersões, e seguem o parafraseador caldeu. Pensam também que esse termo ambíguo contém alguma alusão; pois, como urz, zera, é semente, supõem que o Profeta, indiretamente, vislumbra a vã jactância do povo; pois eles a si mesmo se chamavam a semente eleita, por que haviam sido plantados pelo Senhor; por isso o nome Jizreel. Porém, o Profeta aqui, de acordo com tais intérpretes, expõe essa loucura para desprezo; como se dissesse:
 
“Vós sois Israel; mas, em um outro aspecto, sois dispersão: pois, como a semente que é lançada em várias direções, assim o Senhor vos espalhará, e assim destruir-vos-á e lançar-vos-á fora. Pensais de vós mesmos haverdes sido plantados nesta terra, e terdes um lugar do qual nunca sereis abalados ou arrancados; contudo, o Senhor, com sua própria mão, agarrar-vos-á para vos lançar às mais remotas regiões do mundo”. Tal sentido é o que muitos intérpretes dão; nem nego eu que o Profeta faça referência às palavras semeando e semente; disso não discordo: apenas me parece que o Profeta olha mais para longe, e dá a entender que eles estavam inteiramente degenerados, e não eram a verdadeira nem a genuína linhagem de Abraão.
 
Fonte
João Calvino, Comentário sobre Oséias
Baseado na tradução inglesa de John Owen feita a partir do original em latim. Título da primeira versão inglesa de 1816: Commentaries on the Twelve Minor Prophets. Volume First: Hosea. Tradução para o português: Vanderson Moura da Silva. Edição: Felipe Sabino de Araújo Neto. Capa: Raniere Menezes. Primeira edição em português: Março/2008.
WEB: monergismo.com