mardi 23 février 2021

O cozinheiro de pratos picantes

A sopa de repolho e o cozinheiro de pratos picantes
Jorge Pinheiro, PhD

“Porque as vossas mãos estão contaminadas de sangue, e os vossos dedos, de iniqüidade; os vossos lábios falam mentiras, e a vossa língua profere maldade. Ninguém há que clame pela justiça, ninguém que compareça em juízo pela verdade; confiam no que é nulo e andam falando mentiras; concebem o mal e dão à luz a iniqüidade”. (Isaías 59. 3-4).

Quando falamos de assassinatos por envenenamento nos lembramos imediatamente de uma jovem chamada Lucrecia, que nasceu em Roma em 1480. E que teve por pai o cardeal Rodrigo Borgia, que mais tarde se tornaria o Papa Alexandre VI, e por mãe Vanozza Cattanei. Embora filha ilegítima, Rodrigo a reconheceu, lhe deu seu sobrenome, e a usou nas mais diferentes intrigas palacianas. Mas, ao contrário do que conta a lenda, seus contemporâneos não viam em Lucrecia Borgia nada mais que uma princesa usada por seu pai e por seu irmão Cesare Borgia, Il Valentino, em lutas políticas, por ser bela, culta, amante das artes e mulher caridosa.

Por isso, talvez seja melhor falar de comida e política. 

Definir prato picante pode variar, conforme a culinária ou o gosto de cada um. Mas uma coisa permanece nesta idéia: é um prato que chama a atenção por condimentos que excitam o paladar e deixam um gosto marcado na boca. Assim, o escritor Airton Ortiz, [Airton Ortiz, O churrasco de um gaúcho viajante, Água na boca. Web: www.missd.com.br.] por exemplo, tem uma receita de churrasco, onde recomenda que coloquemos «no primeiro espeto um pedaço de lingüiça calabresa, a mais picante que encontrar». Segundo ele, «aprendi a comer pratos picantes na Índia, fiquei contaminado e agora não abro mão da pimenta. Asso-a rapidamente, na labareda mesmo. Ela fica torradinha. Para torrar mais rápido, furo a tripa com um palito, para escorrer a água. Servida no início do churrasco, na hora dos aperitivos, serve especialmente para despertar nos meus convidados o gosto pela cerveja. Mesmo os que não são adeptos do álcool partem imediatamente para um copo estupidamente gelado». 

Mas, talvez, um dos pratos picantes mais conhecidos e citados na historiografia da culinária seja a Shchi[ Shchi, Russian cabbage soup, ou sopa de repolho russa, conforme receita usada e divulgada por Josef Stálin (1929-1953), ex-ditador da União Soviética. A shchi pode ser feita com carne ou sem ela, mas é indispensável o chucrute ou o repolho, ou ambos. Uma recomendação fundamental é que deve sentar e curar no mínimo por um ou dois dias, antes de ser comida. Esta receita que fazia parte do cardápio de Stálin, e era, segundo alguns, seu prato preferido, por causa da presença do chucrute e do repolho, é cheia de sabores e texturas e deve ser comida quente, com pumpernickel ou pão de centeio e manteiga. 

É importante dizer que não foi Stálin quem inventou a shchi, pois há evidências de que já era conhecido na Rússia desde antes do ano 988, quando o cristianismo foi aceito. Shchi originariamente significava "comida líquida" e só depois ficou conhecida como "sopa de repolho", quando o legume passou a ser cultivado na região. Foi a sopa favorita de mongóis, de Ivã, o terrível, Nicolas II, de Lênin, de Stalin, e de Mao Zedong. 

E Alexandre Dumas gostou tanto da shchi que a colocou no seu livro de receitas. E Lewis Carroll a achou bebível, mas um pouco azeda, condizente com o paladar russo. Isso é tão verdadeiro que ainda hoje na Rússia se alguém for chamado de “professor de shchi azedo” significa que é uma fraude, ou seja, incapaz de preparar algo que todo mundo sabe fazer.

Simple Shchi soup (cabbage soup) Recipe - Irina's Home Cooking -- Youtube


Por isso, fugindo ao apodo de “professor de shchi azedo” segue aqui uma versão unânime da sopa de repolho russa. Ingredientes: quatro xícaras de repolho, duas ou três xícaras de chucrute não enlatado. Duas colheres de massa de tomate, doze xícaras de carne de boi, ou, se você não come carne, de legumes variados, em especial cogumelos. Três colheres de sopa de manteiga, uma cenoura descascada e cortada em Julienne, uma xícara e meia de cebola cortada, um talo de aipo bem cortadinho, um nabo grande descascado e também bem cortadinho. E ainda tomates cortados, sal e pimenta. E, por fim, cravo da Índia picado.

Aqui vai outra receita: 
comece saturando os cogumelos em água, depois de lavados e fatiados.

Em uma frigideira grande derreta a manteiga em calor médio, refogue a cenoura, cebolas, aipo, nabos, e cogumelos até tudo ficar ligeiramente marrom (aproximadamente quinze minutos). Numa caçarola, coloque o repolho e o chucrute e refogue durante 15 minutos, mexendo sempre. Depois coloque os ingredientes da frigideira na caçarola, e os temperos. Mexa tudo, cubra e deixe cozinhar em fogo brando por vinte minutos. Por fim, acrescente o alho e cozinhe por mais cinco minutos. 

Deixe então sentar e curar por um ou dois dias. Se for inverno aqueça antes de servir. Se for no verão, como recomenda Edouard Limonov, sirva frio. Com guarnição sirva endro fresco cortado e misturado com nata azeda. Por ser um prato azedo e picante combina com vinho branco, mas os russos, logicamente, preferem acompanhar com vodca. Assim, presente tanto na historiografia da culinária, como na literatura, não seria de estranhar que também se fizesse presente na política russa.

Vladimir Illich Lênin, pai da revolução bolchevique, apelidou Stálin de “o cozinheiro de pratos picantes”. [León Trotsky, O cozinheiro de pratos picantes, citado por Ludo Martens, O testamento de Lênin, Centro de Mídia Independente.] Esse apelido partia do viés culinário de Stálin, mas guardava outro sentido: a acusação velada de que Stálin envenenava seus desafetos. O apelido foi mais tarde utilizado por Trotsky contra Stálin e acabou se generalizando na Oposição de Esquerda.

Trotsky acreditava ou ao menos fez questão de publicitar que Stálin tinha envenenado Lênin.

Apesar de, durante todo o período stalinista, esta acusação ter ficado marginalizada da historiografia soviética, ela reapareceu com força com o fim da União Soviética. Está presente em “Touro”, filme do cineasta russo Alexander Sokourov que evoca os últimos dias de Lênin em 1922, depois que sofreu um primeiro derrame. Prematuramente velho, caminha com dificuldade e tem surtos de depressão e delírios. Só Krupskaya, sua mulher, o trata com carinho. Rodeado por guardas e criados, alguns dos quais informantes da polícia política, aqui o retrato de Lênin é o do Minotauro, monstro e vítima, possuidor de poder, mas cada vez mais solitário e isolado. [Alexei Jankowski, Lénine en fauteuil roulant Taurus, film russe d’Alexandre Soukourov. Les Archives (do jornal) l´Humanité, L´Humanité.] A cena em que Lênin descobre que o telefone da datcha foi cortado mostra isso. E a visita de Stálin, discutida várias vezes, mas em especial num jantar, onde o prato servido é a shchi, traz à tona o medo de Lênin de ser envenenado pelo novo secretário-geral do Partido. E quando Stálin chega e entra na casa, Sokourov traduz em sombras e meia-luz esta presença maligna do anjo da morte. 

Trotsky décadas antes de Sukourov já havia apresentado sua versão: “Eu imagino que as coisas se passaram quase dessa forma. Lênin pede veneno ao final de fevereiro de 1923. No inverno, o estado de Lênin começou a melhorar lentamente. O uso da voz retornara. Stálin queria o poder. O objetivo estava próximo, mas o perigo emanado de Lênin estava mais próximo ainda. Stálin devia tomar a resolução que lhe era imperativa, de agir sem demora. Se Stálin enviou o veneno a Lênin depois que os médicos tinham deixado entender por meias palavras que ele não tinha mais esperança ou se recorreu a outros meios mais diretos, eu ignoro”. Essa leitura de Trotsky também é a de historiadores contemporâneos, como Domènech,[ Antoni Doménech, El eclipse de la fraternidad, Una revisión republicana de la tradición socialista, Barcelona, Ed. Crítica, 2004. Vide: Entrevista político-filosófica de Antoni Domènech, Salvador López Arnal, que afirma ter sido Lênin assassinado por Stálin. 

Certamente é difícil dar uma palavra final sobre a morte de Lênin. Em 1991, documentos foram divulgados, entre eles a autópsia de Lênin, assim como as memórias daqueles que acompanharam sua morte. Um trabalho publicado no "European Journal of Neurology" de junho de 2004 sugere que Lênin, aos 54 anos, morreu de neurossífilis. [Julio Abramczyk, Estudo especula sobre morte de Lênin, Folha de S. Paulo, 01/08/2004.] Os autores, V. Lerner, Y. Finkelstein e E. Witztum, de Israel, com base em cinco anos de pesquisas em arquivos liberados da antiga União Soviética, relatórios de necropsia e livros de memória de antigos médicos, concluíram que Lênin sofreu de sífilis terciária, que no correr dos anos afeta o cérebro. A causa oficial da morte de Lênin foi uma arteriosclerose cerebral, mas apenas oito dos 27 médicos que trataram dele assinaram esse diagnóstico. Os dois médicos pessoais do revolucionário recusaram-se a assinar o atestado de óbito oficial. Segundo os médicos israelenses, a sífilis produziu lesões cerebrais e demência nos dois últimos anos de vida do líder. 

É verdade que a sífilis na época era incurável, mas é interessante que sua mulher Krupskaya viveu até 1939 e nunca apresentou nenhum sintoma da doença. Assim, a sífilis de Lênin pode ser mais uma especulação, principalmente quando nos lembramos que ele sofreu uma tentativa de assassinato em 1918 e que a bala nunca foi removida. Daí, outra hipótese, o do envenenamento lento causado pela bala não extraída.

Diante dessa comida que mata, dessa bebida que fulmina, talvez o jeito seja cantar o rock punk do k2o3: «És capaz» da banda de punk rock k2o3, formada em 1994. Seu álbum de estréia foi lançado em 1996, pela El Tatu.

Veneno que me rouba a vida
veneno, uoohhoo! 
é o veneno que me está a matar
mesmo que queria não consigo escapar
cruel e fria perseguição
que só acaba com destruição
Veneno que me rouba a vida veneno, uoohhoo!

Notas

Airton Ortiz, O churrasco de um gaúcho viajante, Água na boca. Web: www.missd.com.br.
Shchi, Russian cabbage soup. Web: www.soupsong.com/bfaves.
León Trotsky, O cozinheiro de pratos picantes, citado por Ludo Martens, O testamento de Lênin, Centro de Mídia Independente.
Alexei Jankowski, Lénine en fauteuil roulant Taurus, film russe d’Alexandre Soukourov. Les Archives (do jornal) l´Humanité, L´Humanité.
Antoni Doménech, El eclipse de la fraternidad, Una revisión republicana de la tradición socialista, Barcelona, Ed. Crítica, 2004. Vide: Entrevista político-filosófica de Antoni Domènech, Salvador López Arnal. 
Web: http://www.nodo50.org/red.../descargas/Entrevista_TD_def.pdf.
Julio Abramczyk, Estudo especula sobre morte de Lênin, Folha de S. Paulo, 01/08/2004.
«És capaz» da banda de punk rock k2o3, formada em 1994. Seu álbum de estréia foi lançado em 1996, pela El Tatu. O segundo álbum recebeu o título de “Grita!”. O grupo não existe mais.




Na contramão com Aristófanes

Um, dois, três...
Na contramão com Aristófanes
Jorge Pinheiro, PhD


O texto hebraico das Origens conta que o eterno disse não é bom que o cara viva sozinho, vou construir para ele alguém que o ajude a ir em frente. Isso a gente sabe, todos num estado de tranqüilidade, e ciente dos desejos do coração, deseja amar e ser amado. 

Ou seja, num momento de sinceridade, amamos ter alguém em quem confiar, e se possível a ponto de podermos revelar nosso lado íntimo. É, acho que gostaríamos muito poder confiar àqueles que gozam de nossa intimidade alguns dos sentimentos que guardamos lá dentro. Talvez, por isso, nos sentimos atraídos por grupos de relacionamentos como facebook, twitter e outros. É isso mesmo, no raso e no fundo, queremos amar e ser amados.

Às vezes no silêncio da noite/ Eu fico imaginando nós dois/ Eu fico ali sonhando acordado/ Juntando o antes, o agora e o depois (“Sozinho”, de Caetano Veloso e Peninha). 

Por isso, a pergunta procede: o que nos impede de abrir o coração e amar? Tememos riscos? Que riscos? 

Vamos pensar isso com o poeta Aristófanes, lá no Banquete de Platão. Ele disse que antigamente a natureza não era como é hoje. Nossos ancestrais eram duplos, mas tinham unidade. Cada pessoa constituía um todo, de forma esférica, com costas e flancos arredondados. Tinham quatro mãos, o mesmo número de pernas, dois rostos idênticos num pescoço redondo, mas uma cabeça única para o conjunto desses dois rostos opostos um ao outro. Tinham quatro orelhas e dois órgãos sexuais.

Por que você me deixa tão solto?/ Por que você não cola em mim?/ Tô me sentindo muito sozinho

Essa dualidade genital explica por que não havia dois e sim três gêneros na espécie humana: os machos, que tinham dois sexos de homem, as fêmeas, que tinham dois sexos de mulher, e os andróginos, que tinham ambos os sexos. 

O macho, conta o poeta, era filho do Sol, a fêmea filha da Terra, a espécie mista da Lua, que participa do Sol e da Terra. Todos tinham uma força impressionante e, por isso, tentaram subir ao céu e derrubar os deuses. Para puni-los, Zeus decidiu cortá-los em dois, de cima a baixo, como se corta uma laranja. Então terminou a completitude e a unidade. A partir de então cada um é obrigado a buscar o outro pedaço.

Não sou nem quero ser o seu dono/ É que um carinho às vezes cai bem/ Eu tenho meus desejos e planos secretos/ Só abro pra você mais ninguém

Agora, estamos separados de nós mesmos. Esse desejo de busca é o que Aristófanes chamava amor, e, quando satisfeito, seria a condição da felicidade. Somente o amor reconstruiria a natureza, ao fundir dois seres num só. Por isso, para o poeta e dramaturgo, uma pessoa seria homoafetiva, heteroafetiva ou andrógina, conforme a unidade perdida.

Assim, a partir do mito, Aristófanes considerou que quando uma pessoa -- tenha ela inclinação por homens ou mulheres -- encontra a sua metade, transforma-se num prodígio de amor e ternura.

Por que você me esquece e some?/ E se eu me interessar por alguém?/ E se ela, de repente, me ganha?

Essa é a definição do amor fusional de Aristófanes, que faria voltar à unidade da natureza primeira, que libertaria da solidão, e que seria, tanto nesta vida como na outra, a maior felicidade a ser alcançada. 

Mas, por necessitar duas pessoas tal fusão é sempre um momento e, por isso, longe de abolir a solidão, a confirma. Se as almas pudessem se fundir seria outra coisa, mas são os corpos que se fundem, por um momento.

Daí o fracasso. Todos querem ser um só, mas eis todos mais do que nunca sendo dois, sempre. Por isso, os romanos diziam que post coitum omne animal triste. Mas se o amor não nasce dessa fusão de corpos, nasce o prazer. Ou, podemos dizer, os corpos entendem mais de Eros do que os especialistas. Os corpos entendem as solidões, as loucuras dos desejos, os abismos do prazer. Se após a união dos corpos, a solidão é parceira, o corpo é este pedaço de mim nunca completado.

Detalhe: Platão não gostava de Aristófanes. E o relato hebreu, que mergulha nas profundezas na existência, não deixa por menos, somos dois mesmos, sempre. E é do diferente, do divergente, que deve nascer a união. Ou como disse o homem de Nazaré, e ambos serão uma só carne. E se isso é bênção ou maldição, acho que depende de cada dois. 

Ou você me engana/ Ou não está madura/ Onde está você agora? (“Sozinho”, de Caetano Veloso e Peninha).