jeudi 6 mars 2014

Deuteronômio, leituras a partir de Watts

DEUTERONÔMIO
Uma leitura da Introdução de John D. W. Watts
Jorge Pinheiro, PhD

Na edição norte-americana do The Broadman Bible Comentary, Nashville, Tennnessee, Broadman Press, 1970, John D. W. Watts, PhD, no volume 2 da coleção, faz um detalhado comentário sobre o texto do livro de Deuteronômio. Nesse trabalho analisaremos a Introdução de Watts a seu estudo, utilizando para isso a edição norte-americana.

Watts considera que o Deuteronômio pode ser lido a partir de três enfoques: como fim do Pentateuco, começo da história de Israel ou o livro da aliança. A primeira variante parte do fato de que em nossas Bíblias o livro fecha o bloco conhecido como Pentateuco, seguindo a tradição judaica, vigente a partir do IV século a.C., quando Deuteronômio aparece como o último livro dos rolos da Torah, a parte mais importante das escrituras judaicas. Assim, apresenta os últimos textos de Moisés, fechando seu extenso trabalho como legislador e realizador da aliança. Sob esse ponto de vista, “o livro oferece um reposicionamento da aliança e da lei” , de forma que Israel pudesse obedecê-la e cumpri-la em sua caminhada para Canaã. Sem dúvida, para o estudioso do Pentateuco, um conceito sobressai nesse primeiro enfoque formulado por Watts: o do Deuteronômio enquanto reposicionamento da aliança e da lei.

O segundo enfoque apresenta o livro como o começo da história de Israel, e apoia-se em outra tradição judaica, essa mais antiga, do VI século a.C., quando Deuteronômio era visto como a primeira parte da história da nação, abrindo o bloco dos rolos de Josué, Juízes, Samuel e Reis. Encarado assim, esclarece Watts, teremos então a base teológica para um julgamento da história de Israel. Posicionamento que se repete nos rolos que seguem a Deuteronômio. Os editores desse Deuteronômio histórico deram ao livro uma introdução (capítulos 1 a 4) e fizeram várias outras inserções, como as referências ao exílio e às punições de Israel pelos pecados cometidos, quebrando a visão essencialmente otimista que caracteriza o livro. Temos aqui outro conceito que nos interessa em especial: os editores históricos fizeram uma releitura talvez mais realista, mais crua, da saga israelense, a fim de adaptar Deuteronômio como texto de abertura dos rolos históricos.

O terceiro enfoque apresenta Deuteronômio como o livro da aliança. Muito possivelmente, essa era a visão dos israelenses dos séculos VIII e VII a.C., e tem por base os capítulos 5 a 30, que fazem um chamado à aliança. Pela qualidade dinâmica desses textos, podemos dizer que originalmente Deuteronômio é o livro da aliança. Mas, para Watts, primariamente, Deuteronômio continha inserções sacerdotais oriundas de Êxodo e Levítico. E mostra que essa renovação da aliança não é exclusiva do texto deuteronômico, mas poderá ser encontrada em Josué (Js 24), Esdras (Ne 8-9), nos reinos de Ezequias (2 Cr 29:10) e Josias (2 Re 23), e em Samuel (1 Sm 10:25; 11:25). Há por assim dizer um espraiamento desse conceito de renovação da aliança, que começará com a primeira geração que segue a Moisés indo até meados do século V a.C..

A conclusão de Watts, a partir do entrelaçamento dos três enfoques acima, é de que Deuteronômio representa uma coleção de tradições que organizou-se ao redor das formas da aliança e foi cultivada em diferentes lugares e épocas. Essas tradições, origem de Deuteronômio, são muito mais antigas que o texto atual do livro.

Deuteronômio toma forma

Existem fortes evidências de que as fórmulas de pacto entre grandes potências e seus vassalos foram utilizadas no livro. As origens destas fórmulas datam de épocas anteriores a Moisés, pois são conhecidas desde a época dos hititas até os assírios, que estabeleceram acordos desse tipo com Ezequias e Manassés. Esses acordos tinham uma estrutura, que se traduziam assim: (1) preâmbulo, (2) recitação dos eventos que levaram ao tratado, (3) declaração do princípio que levou ao tratado, (4) lista das medidas específicas, (5) convocação dos deuses para testemunhar, e (e) maldições e bênçãos.

Segundo Watts, essa influência da diplomacia da época pode ser claramente encontrada no livro de Deuteronômio. O capítulo 5 é uma recitação de eventos, o capítulo 6 é uma declaração de princípios, o capítulo 7 uma benção e o capítulo 8 uma maldição. Aliás, bênçãos e maldições são itens evidentes em Deuteronômio (8:19,20; 11:26-32; 27:15-26; 28:1-68). Estão condicionadas à obediência ou ao cumprimento daquilo que é exigido pela aliança.

Se as fórmulas pactuais fazem parte da composição tradicional do livro, o papel de Moisés é claramente realçado. Várias passagens são colocadas na primeira pessoa, por Moisés. São textos memorialísticos (1:3; 4:10+; 9:7+). Watts acredita que esses textos são uma seleção de extensas coleções pertencentes originalmente ao profeta. Dois trechos, fundamentais, são atribuídos a ele: o poema do capítulo 32 e a benção do capítulo 33.

Quanto à fórmula original do livro, sem dúvida foi de pregação ou exortação, seguindo, aliás, a tradição de orações de despedida que encontramos Josué (23), Samuel (I,12:1) e Crônicas (I, caps. 12 e 29). 

Historicamente, é importante entender como o período da conquista influenciou na formação do Pentateuco. Essa questão não é analisada por Watts, mas a consideramos de vital importância. Apesar de ser um grande general, Josué cometeu erros políticos: fez uma aliança bilateral com os gabaonitas, permitiu aos jebuseus que permanecessem em Jerusalém e não destruiu as bases dos filisteus no litoral. Esses erros isolaram as tribos de Judá e Simeão do resto do país. A entrada principal para o território de Judá ficou sob controle dos jebuseus, que ocupavam Jerusalém. E toda a região permaneceu cercada pelas cidades dos gabaonitas. Esta situação fracionou a confederação hebréia e acabou por definir toda a futura história de Israel.

É por isso, que Watts levanta com razão a hipótese de que o berço das tradições pactuais mais primitivas de Canaã estavam em Siquém, já que as benções e maldições foram muito possivelmente realizadas nas montanhas de Ebal e Gerizim.

Refugiando-se em Jerusalém, os sacerdotes levitas, que originariamente dirigiam os santuários no Norte, tornaram-se apoiadores tanto de Ezequias, como de Josias. Assim, o Deuteronômio exerceu influência sobre esses reis e sobre as gerações posteriores. Dessa maneira, mais do que refletir as tradições da aliança e reinado davídicos, Deuteronômio trouxe para o Sul a tradição da antiga confederação tribal, visando claramente a renovação da aliança realizada no Horebe. E esse propósito é explicitado no capítulo 5.

Para Watts, três tendências históricas resumem as origens de Deuteronômio: as formas e cerimônias da tradição pactual; a construção de um texto adaptado às condições de Estado organizado; e a transmissão através das gerações de famílias levíticas, nos santuários de Siquém e Gilgal.

O cerne do livro

O centro de Deuteronômio está no sermões sobre o primeiro mandamento, afirma Watts. Esses sermões eram apresentados publicamente ao povo. Mais tarde, acredita o autor, aos sermões foram acrescentados seções que especificavam condições para o cumprimento do primeiro mandamento. Essa combinação de aliança e lei mosaica, que reflete a influência de sábios e profetas, aconteceu muito possivelmente a partir das reformas de Ezequias. Esse Deuteronômio ad reforma, onde a lei é traduzida pela visão dos pregadores levíticos, pode ser sintetizada num slogan, que traduz a história e o pensamento da época: “Um só povo, sob um só Deus, numa só terra”.

Por volta do ano 600, acredita Watts, teve início a elaboração de uma grande história de Israel. Essa história era apresentada através de um bloco de livros: Deuteronômio, Josué, Juízes, Samuel e Reis. Segundo esta maneira de ver, o prefácio do livro com um primeiro discurso de Moisés, nos capítulos 1-4, assim como o acréscimo de “um terceiro discurso e dois poemas, nos capítulos 29-33”  tem como finalidade destacar a sucessão e abrir caminho para o livro de Josué.

Mas, para nosso autor, o livro de Deuteronômio sofreu outra revisão, que aconteceu muito possivelmente durante o exílio babilônico e teve origem com a reflexão que se fez necessária sobre aquele momento de crise. E essa revisão procurou responder ao porquê das maldições. Ou melhor, quais as razões que distanciavam as promessas originais da realidade do povo da diáspora. Ainda assim, a reflexão sobre o juízo, que se encontra nos capítulos 7 e 8, não fechará o ciclo de revisões que Deuteronômio sofreu. No pós-exílio, os sacerdotes dão canonicidade ao texto, apresentando-o como a parte final do Pentateuco. Para isso acrescentam materiais próprios, como 1:3, 4:41-43, 32:48-52. 34:1a, 7-9 e muito possivelmente todo o capítulo 34, como encerramento da vida e obra de Moisés. 

Dessa maneira, para Watts, o Deuteronômio que conhecemos e, logicamente, o Pentateuco, são uma restauração pós-exílica.

Isso, no entanto, em nenhum momento descarta o papel de Moisés como profeta essencial na história e construção da aliança de Deus com Israel. Na verdade, Watts afirma que a essência de Deuteronômio, em seu cerne mais antigo, fala de Moisés como o grande mediador e legislador da aliança. E em todos os momentos da história da várias redações de Deuteronômio este fato não foi esquecido ou omitido. Ao contrário, era considerado fundamental para a compreensão da própria renovação permanente da aliança, conforme 9:8-21, 25-29; 10:1-5.

“Quanto a mim, permaneci na montanha durante quarenta dias e quarenta noites, como na primeira vez. E Iaweh me ouviu ainda esta vez, e Iaweh não te quis destruir. Iaweh disse-me então: ‘Levanta-te, caminha à frente desse povo, para que tomem posse da terra que eu jurei aos seus pais que lhes daria’.” Dt 10:10-11.

Dessa maneira, o livro de Deuteronômio realça a autoridade de Moisés e seu papel como mediador da aliança veterotestamentária.

Os judeus sefaradim e a hakítia

Uma língua dos judeus 

Álvaro Cunha / Especial para o AHJB

Para os ascendentes dos sefaradim, judeus da Península Ibérica, 5252 − 1492 pelo calendário cristão − é concebido como o desditoso ano, em que personae non gratae (a rainha Isabel de Castela, o rei Fernando de Aragão e o frade dominicano Torquemada) e acontecimentos (Inquisição e expulsão) afligiram os israelitas da região. 

Muitos foram assassinados e suas propriedades usurpadas mesmo antes de dizerem adeus, outros dissiparam-se da Espanha e se precipitaram mundo afora, rumando para longe da Península Ibérica. A Inquisição, tribunal eclesiástico conhecido como Santo Ofício e que perseguia judeus, muçulmanos e irreligiosos, tornou-se famosa em razão da sangria, queimações em praças públicas e torturas. Sob a égide do 4¢ª Concílio de Latrão, em 1215, esteve em intenso exercício até a primeira metade do século 19, sendo mais inflexível na Espanha e em Portugal.


A língua usual dos sefardim que imigraram para a Turquia, Sérvia, Bulgária, Romênia, Grécia, Israel, França e regiões circunvizinhas, foi o ladino; a dos que imigraram para o norte da África, ficou conhecida como hakitía.

Apesar de ambas terem a mesma origem − castelhano −, o ladino é basicamente o idioma de Castela do século 15, recheado de palavras turcas, italianas, gregas, francesas, hebraicas, entre outras, mas com a idiossincrasia fonético-fonológica e morfossintática ibérica. Não muito diferente, a hakitía resulta da soma de três idiomas − 42% de castelhano do século 15, 38% de árabe marroquino e 20% de hebraico litúrgico −, que é igual ao judeu-marroquino.

Hakítico-falantes entendem o que ladino-falantes querem dizer, mas o contrário não é verdadeiro. A hakitía é mais oral que escrita, fala-se com maior freqüência do que se escreve; há irrisórios documentos oficiais e religiosos, contudo o número de missivas familiares é relativamente significativo. Não se chegou a um consenso para definir a grafia da hakitía − em caracteres latinos ou hebraicos. Os hakítico-falantes nunca se importaram em estabelecer um alfabeto para a língua.

Os judeus sefardis, séculos atrás, experimentaram uma situação de isolamento absoluto − social, cultural e linguístico −, se comparados com seus patrícios de outras regiões. Criaram, então, formas especiais de falar, seja por particularidades culturais ou por autodefesa, a fim de se comunicarem sem serem compreendidos por não-judeus.

As chamadas línguas judaicas surgiram por pelo menos três razões. 1- Segregação: os judeus não adquiriram as normas dos dialetos não judaicos coterritoriais por causa da exposição limitada à sociedade não judaica. Como resultado, eles podiam não seguir normas não judaicas de padronização. Suas línguas, cortadas das inovações lingüísticas que afetavam os falantes não judeus, se tornavam arcaicas; 2- Separatismo religioso: o judaísmo encorajaria o uso do hebraico e do aramaico e apresentaria relativo fechamento para os termos da língua nativa que denotassem conceitos religiosos não judaicos e línguas litúrgicas não judaicas; 3- Migrações: com a expulsão, aumentou a probabilidade de os judeus ficarem mais largamente expostos a dialetos heterogêneos e a línguas estrangeiras do que a população não judaica relativamente mais sedentária.

Religiosos sefaradim passaram para o ladino centenas de páginas que continham preces e escritos judaicos. O primeiro documento impresso apareceu em Constantinopla, no ano de 1510. Já para documentos vazados em hakitía é improvável que haja um lugar e uma data tão precisa, pois essa variante linguística judaico-românica era considerada uma fala de comunicação estritamente oral e popular, sem finalidade religiosa.

No desfecho da Idade Média (1453), num ambiente permeado pela ideologia religiosa intolerante e por interesses político-econômicos tenebrosos, milhares de judeus − homens, mulheres, crianças e idosos − expulsos da Espanha ficaram órfãos da pátria na qual nasceram e cresceram e que ajudaram a construir e desenvolver. Após a queda do reino de Granada, os reis cristãos puseram fim à existência dos judeus no território ibérico.

Acolhidos no Império Otomano pela dinastia dos Banu Marin, esta foi complacente com os judeus a ponto de lhes dar proteção, ainda que em troca do pagamento de impostos. Outra curiosidade é que os judeus não serviam às armas e gozavam de liberdade intelectual, judicial e religiosa. A maioria dos historiadores israelenses enfatiza que, no Marrocos, os israelitas tinham relativa autonomia. Estabeleceram de forma independente seus próprios conselhos e suas próprias instituições jurídicas, ficando aos cuidados da legislação muçulmana apenas os casos de delitos criminais. Fora isso, os judeus tinham voz e vez.

Por fim, a hakitía acaba de se constituir num veículo lingüístico comum a uma parcela de judeus procedentes da Espanha e de Portugal, os quais foram vítimas do primeiro holocausto do povo israelita.

Álvaro Cunha é jornalista e professor.

Fonte