samedi 23 juillet 2016

Olhar na contramão

Olhar na contramão
Por Jorge Pinheiro


Gnocchi alla crema
Começou pela borda
Olhar fixo
Gorgonzola gratinati

Al forno con olio tartufato
Por onde o pé caminha
Olhava sem tirar o olho
Lasagne al ragù di carne

Alla Toscana, Chianti
Pelo chão da firmeza
Ela picniqueava na dele
Panne artesanal

Casa Sasso di Dante
As pernas abertas
Sem o amasso do peso
Fa caldo, Fiorenza augusta e bella

Tutto che circonda
O vestido não cobria
A calcinha de pois preto
Do barro que cola na sola
Lèvati, Aquilone, e vieni, o Austro!

Ele olhava fixo
Sem a lama que amola o lustro
Ela levantou-se na prontidão do passo
Soffiate sul mio giardino, 

Sì che se ne spandano gli aromi!
Ar bravo e chegou-se
Na esteira da linha fixa da montagem
Sem besteira dita alhures

No vão da despreocupação
Por que o senhor não tira 
Com respeito, ousadia, direção
Gli occhi del mio giardino?

De quem sabe que a sizânia não se espalha
Ele continuou a olhar o nada
O em cima está aqui na frente,
Ao alcance da mão operosa,

Desculpe senhorita, sou cego!
Coração sábio, o futuro se constrói
Então o senhor não viu nada?
Nada, nadinha? Pobre!

Com os movimentos de hoje
Venga l'amico mio nel suo giardino,
e ne mangi i frutti deliziosi!
E vissero felici e contenti






Política e religião

POLÍTICA E RELIGIÃO
JORGE PINHEIRO, PhD
 
Introdução

Religião e política não são realidades estanques. Isto porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Pensamento político é a expressão de um ser político, de uma situação social. Não se pode entender o pensamento quando se subestimam as realidades sociais das quais vem o pensamento político. 

As raízes do pensamento político não podem agir com uma força igual em todo momento e em todo grupo. Um ou outro pode predominar, depende de uma situação social, grupos ou formas de dominação determinadas. Depende de estruturas sociopsicológicas, da interação com a situação social objetiva. 

Partimos, em nosso estudo, de uma antropologia da imago Dei e de uma teologia da existência. Assim, nosso primeiro referencial é o ser. Nesse sentido, podemos dizer que trabalhamos com uma fenomenologia política quando analisamos questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, e a partir daí procuramos trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político. 

1. A questão existencial, presente na teologia, nos leva a uma antropologia existencial. Ora, a questão existencial é traspassada pela religião, que é a dimensão da profundidade, o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano.

A metáfora profundidade significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do ser humano, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano. Assim, a religião constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do ser humano.

Nem sempre é necessário perguntar pelas raízes de um fenômeno espiritual ou social. Muitas vezes tal pergunta mostra-se supérflua, principalmente quando um testemunho saudável revela a integridade das raízes. Mas quando se apresentam distorções ou desvios, quando o testemunho congela ou a vida principia a desaparecer, então se torna necessário perguntar: quais são suas raízes? 

2. É necessário procurar pelas raízes do pensamento político no próprio ser humano. Sem uma imagem do ser humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento e do ser político. Sem uma teoria do ser humano, não se  pode construir uma teoria das orientações políticas. 

O ser humano diferente da natureza, é um ser dividido. Não importa saber onde termina a natureza e onde começa o ser humano, não importa que a passagem entre os dois se faça através de lentas transições ou por um salto. O importante é que em determinado momento, a diferença ficou clara.

Há, no entanto, um processo vital indiviso, que desdobra natureza sem interrogar nem requerer, um processo que está ligado àquilo que se encontra nele e faz parte do que ele é. Assim, existe um processo vital que deseja saber sobre o ser humano, e que coloca algumas questões para ele: já não é indiviso, mas também dividido. É idêntico a si mesmo quando diante de si mesmo, no ato de pensar e de conhecer. Mas não apenas isso.

3. O ser humano tem consciência de si mesmo, ou em outras palavras, distingue-se da natureza enquanto ser que se desdobra, tornando-se um ser consciente de si mesmo. A natureza ignora esta divisão. Por isso, o ser humano não é uma combinação de duas partes autônomas, tais como natureza e mente ou corpo e alma, mas um só ser, porém fendido em sua unidade.
    
Estas determinações gerais levam a algumas considerações no que se refere à pesquisa do pensamento político. Elas negam qualquer dedução do pensamento político enquanto puro movimento de pensamento, de exigências ético-religiosas, ou considerações ditadas por determinada cosmovisão. 

4. O pensamento político vem do ser humano enquanto unidade. Está enraizada no ser e na sua consciência, mais precisamente em sua unidade indissolúvel. É por isso que não se pode entender um sistema de pensamento político sem contextualizar seu enraizamento no ser humano enquanto ser social, ou seja, o imbricamento de pulsões e interesses, os constrangimentos e as aspirações constituintes do ser social. 

Mas também é impossível separar o ser de sua consciência, ou ver o pensamento político como simples subproduto do ser. Assim, a consciência estrutura todo o ser do ser humano, todo o ser social, em cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes mais primitivas. 

Quando tenta desfazer laços passa-se ao largo da primeira e mais importante característica da essência humana, o que produz uma distorção no quadro geral que ele faz de si próprio, de que há uma consciência inadequada ao ser, uma falsa consciência, mas que não invalida a unidade do ser e da consciência. Isto porque, afirma, o conceito de falsa consciência não é possível quando a coisa que se designa é não conhecível. Assim, a consciência justa é uma consciência que emerge do ser e ao mesmo tempo o determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o ser humano é uma unidade na divisão, e desta unidade nascem as duas raízes de todo pensamento político. 

5. O ser humano se encontra enquanto realidade dada, assim como seu ambiente. Mas estar no mundo enquanto realidade significa aquele não vem da si mesmo, que ele não é sua própria origem. Conforme diz Heidegger, o ser humano é um “ser lançado”. Esta situação leva o ser humano a colocar-se o problema da fonte. O que mais tarde vai aparecer como questão filosófica. Mas tal discussão é uma construção, e o mito apresenta a primeira resposta, enquanto determinante para a discussão de conjunto.   
 
6. A origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo novo, que não existiu antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. A realidade que somos está colocada, mas também é algo próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio.

Mas, a origem não nos liberta. Não se pode dizer que era e que não é mais. Constantemente somos puxados pela origem: ela nos faz emergir, nos segura firme. É ela que nos estabelece como algo, enquanto essência. Dessa maneira, ser-posto no mundo supõe caminhar para a morte. 

6. A concepção conservadora admite o surgimento do eterno no tempo, que repousa no passado. Por essa razão nega toda mudança, presente ou futura. A força dessa concepção repousa no fato de que considera o eterno como dado e não como resultado da ação cultural e religiosa do ser humano. 

A concepção conservadora também reconhece o kairós, mas o situa no passado. Desconsidera que se aconteceu no passado como acontecimento único, é ele quem se revela em todos os sim e não do passado, do presente e futuro. Sob tal visão repousa o pensamento político conservador. Perdeu o sentido supratemporal do kairós.

7. O mito expressou com profunda riqueza este estado de coisas, com o testemunho de  objetos e eventos nos quais o grupo humano percebe sua origem. Em todos os mitos ressoam a lei cíclica do nascimento e da morte. Todo o mito é mito da origem, responde à pergunta da providência e conta porque somos segurados na origem e estamos debaixo de seu império. A consciência mítica original é a raiz de todo o pensamento político conservador e romântico.    

Mas o ser humano vai além do colocar-se como realidade dada, vai além do saber colocar-se diante do ciclo do nascimento e a morte. Faz a experiência de uma exigência que separou o imediato da vida e o leva a colocar-se diante da pergunta da providência uma outra pergunta: por que?

Esta pergunta quebra o ciclo de uma maneira fundamental, eleva o ser humano acima da esfera do simples viver. Porque é a exigência de algo que não está aí, que tem que se tornar realidade. Quando se faz a experiência desse tipo de exigência não se está mais colado à origem. Vai-se além da afirmação do que já está. A exigência nomeia o que deve ser. E o que deve ser não é determinado com a afirmação daquilo que já é, disso que é, significa que tal exigência impôs ao ser humano o incondicionado. 

O “por que” não está dentro dos limites da fonte. É o incondicionalmente novo. É através do “por que” que o ser humano deve alcançar algo do incondicionalmente novo. Este é o sentido da exigência, quando o ser humano, por ser dividido, faz esta experiência. Ele detém um conhecimento próprio, por isso é possível ir além da realidade, além daquilo que o cerca. 

9. Tal é a liberdade do ser humano: não que ele tenha uma vontade livre, mas não está preso, enquanto ser humano, ao que está dado. O ciclo do nascimento e morte foi quebrado, sua existência e sua ação não estão amarradas na simples propagação de sua origem. Quando esta consciência se  impõe, são rasgados os laços da origem, o mito original está quebrado. A ruptura do mito original pelo incondicionado de exigência é a raiz do pensamento político liberal,  democrático e socialista. 

A concepção progressista considera o eterno um alvo infinito, existente em cada época, mas que não se apresenta enquanto irrupção. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última .  

Este progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim incondicionados, a supressão do anúncio da plenitude dos tempos. É o verdadeiro adversário do espírito profético .

10. A exigência que o ser humano faz na experiência diante do incondicionado não é estranha a ele. Se fosse estranha à sua essência, não lhe seriam concernentes e ele não poderia discernir tal coisa como exigência. Se ela lhe toca é porque coloca diante de seus olhos sua essência enquanto exigência. Funda-se a incondicionalidade, a irrevogabilidade com que o dever-ser aborda o ser humano e exige ser afirmado por ele. 

Se a exigência é a própria essência do ser humano, então ela encontra seu fundamento na sua  origem, e então a providência e o destino não pertencem a mundos diferentes. Ainda, diante do original, o que é requerido é o incondicionalmente novo. Assim, a origem é ambígua. Há nela uma separação entre origem verdadeira e a  origem real. O que é realmente  original não é o que é original de verdade. 

A realização da origem é esta exigência e este dever-ser pelo qual o ser humano é confrontado. O “por que” do ser humano é a realização da sua providência. A origem real é negada pela origem verdadeira; mas certamente, não é uma pura e simples negação. A origem real tem que levar à real verdadeira, ela é sua expressão, mas também disfarce e distorção. A pura consciência mítica original ignora todas as ambigüidades da origem. É por isto que esta consciência está presa à origem e considera sacrilégio toda a ultrapassagem da origem. Só a consciência que, fazendo a experiência da exigência da incondicionalidade, se livra dos laços de origem e se apercebe da ambigüidade da origem.    

A exigência quer a realização da origem verdadeira. Porém o ser humano não recebe uma exigência incondicionada de outros. É no reencontro do "eu e você" que a exigência torna-se concreta. Seu conteúdo é reconhecido no você com a dignidade do "eu", a dignidade para ser livre, portador da realização daquilo que  apontada à origem. Reconhecer no você uma dignidade igual ao do eu, isto é justiça. 

11. A exigência que nos arrasta à ambigüidade da origem é a exigência de justiça. A origem não rompida conduz a poderes em tensão que procuram a dominação e destroem um ao outro. Quando a origem é rompida vem o poder do ser, o declínio dos poderes que "expiam e são julgados por seu sacrilégio, de acordo com a ordem do tempo", como já evocou a filosofia grega. 

A exigência incondicional eleva acima deste ciclo trágico. Diante do poder e da impotência do ser, opõe a justiça, que provém do dever-ser. Portanto, não há uma simples oposição, porque o dever-ser é a realização do ser. A justiça é o verdadeiro poder do ser. Nisto se torna realidade o que é apontado na origem. Na relação entre os dois elementos da existência humana e as duas raízes do pensamento político, a exigência predomina sobre a pura origem, e a justiça, sobre o puro poder do ser. A pergunta do “por que” é superior à da providência. O mito original não deve representar no pensamento político mais do que uma crença rompida, uma crença desvelada.    

Esse é o caminho da utopia. Sem o espírito utópico não há protesto, nem espírito profético.  

Isto é exato na medida em que cada tensão orientada para adiante comporta uma representação daquilo que deve vir e de como se entende a realização desse ideal. Eis porque o espírito da utopia está presente em todo agir incondicionalmente decidido, em todo agir orientado à transformação do presente .

12. A utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. Progresso mitigado é o resultado da utopia revolucionária desencantada.

A idéia do kairós nasce da discussão com a utopia. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua essência, aquele que faz a irrupção no tempo, sem contudo fixar-se nele.

Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo, lá onde a utopia desaparece, mas não a sua ação.  

Considerações finais

Metodologicamente, toda mudança, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há no espírito profético da responsabilidade inelutável um choque entre este kairós e a utopia, que pensa poder fixar a eternidade no tempo presente. Tal desafio não pode ser resolvido por um ser humano, por mais que encarne o espírito da profecia. O sujeito da transformação será, em última instância, a massa.
  
Essas duas raízes do pensamento político mantêm entre elas uma relação que é mais do simples justaposição. A exigência predomina na origem. Considerando as várias tendências políticas, não se pode supor que elas sejam atitudes humanas justificadas. Onde são requeridas decisões, o conceito tradicional de realidade não é aplicável. Outro, no entanto, é quando estamos diante de uma exigência do incondicionado. 

Ninguém pode entender o solidarismo cristão se não experimentar a exigência de sua justiça como uma exigência do incondicionado. Quem não é confrontado pelo solidarismo não pode falar do socialismo, a não ser enquanto expressão que vem do exterior.  Não podem falar dele em verdade, porque é contrário às tendências políticas que defendem. Aí está o nó da origem.

Mas, todo sistema político requer autoridade, não só no sentido de possuir instrumentos de força, mais também em termos de consentimento mudo ou manifesto das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que está no poder representa uma idéia poderosa, que goze de significado para todos.


Considerações finais


Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia, relação que se caracteriza assim: 

Toda estrutura política pressupõe poder e, conseqüentemente, um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade política.

Assim, religião e política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. E por isso, religião e política estão imbricados, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia, enquanto grupo no poder.

São Paulo, 23 de abril de 2003.