jeudi 7 janvier 2021

O caminho humano

Leituras do humano
Jorge Pinheiro

Primeira parte

“Nós nos importamos com a boa qualidade dos homens, em primeiro lugar porque ela nos é útil, em seguida porque queremos dar-lhes alegria (os filhos aos pais, os alunos aos professores e em geral as pessoas benévolas a todas as outras pessoas). É somente quanto a boa opinião dos homens é importante para alguém, abstraindo a vantagem ou seu desejo de agradar, que falamos de vaidade”.
Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano.

O que é o humano? Se partirmos da teologia, teremos abordagens fundantes, que podem nos direcionar a uma compreensão mais abrangente do que é o humano. A primeira delas tem por base a antiga cosmovisão hebraica e apresenta uma antropologia da unicidade humana.

Dois textos do livro das Origens são paradigmáticos nessa leitura. O primeiro está em Gênesis 1.26 e conta que o Eterno disse: “vamos fazer os humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco” E assim o Eterno construiu os humanos; parecidos com Ele. O segundo texto descreve o modo de construção do humano, está em Gênesis 2.7 e diz que “do pó da terra, o Eterno formou o humano. Ele soprou em seu nariz uma respiração de vida e assim esse ser se tornou vivo”.

A partir do segundo texto, podemos entender que a matéria-prima utilizada pelo Eterno na construção do humano é ordinária, ele é uma unidade de carbono, enquanto material pertencente à ordem comum de ló nefesh, que também dá forma aos seres inanimados e animais. Assim, é o sopro do Eterno que faz especial essa matéria ordinária. Teologicamente, podemos nos fazer uma pergunta: será que estamos somente diante de um símbolo ou, de fato, a força criadora do Eterno transmitiu ao humano não somente vida, mas intensidade e profundidade? De certa maneira não é absurdo dizer que seres celestiais são criaturas espirituais. Sua existência procede do exterior da força criadora do Eterno. A exteriorização traduz-se no fato de que a força criadora se dá através da palavra, de uma ordem criadora do Eterno.

A expressão nefesh, presente no segundo texto, leva a uma concepção de exterior versus interior, e tem por base o texto de Deuteronômio 32.9, quando afirma que “uma parte do Eterno faz seu povo”, já que mobiliza diferentes níveis da força criadora.

Nesse sentido, nefesh, fruto do sopro primordial, procede da interioridade do Eterno e por isso é conhecida como ein soph, que vem de seu interior. “Ele soprou” deve ser entendido como continuidade da afirmação “façamos o humano” (Gn 1.26), de maneira que nefesh liga céu e terra, o que está acima e o que está abaixo. Por isso, na tradição antiga dos hebreus, apesar de não tão fortes, os humanos são superiores aos anjos, porque procedem da interioridade do Eterno: traduzem ação mediadora e conjuntiva da força criadora.

Donde, o humano procede de atributos divinos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integralidade, pluralidade social, sabedoria, compreensão e abertura à transcendência. Nefesh revela-se enquanto natureza que se torna compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência do espírito do Eterno, que indica em transbordamento e transparência no humano, que relaciona imanência com transcendência.

Mas, o texto de Gênesis 2.7 fala de respiração e daquilo que o humano passa a ser: não tem uma nefesh, é uma nefesh. O pensamento literário dos hebreus era sintético. Daí que a chave para chegarmos a uma compreensão analítica dele, exige identificar com que parte do corpo o humano pode ser comparado e onde o agir humano faz interface com nefesh. E para isso utilizaremos textos que apresentam diferentes sentidos da nefesh.

“A mansão dos mortos abre a sua nefesh, escancara as suas fauces desmedidamente”. Isaías 5.14.

“Ele escancara a sua nefesh sem medida, como a mansão dos mortos, e é como a morte, não se saciando nunca”. Habacuque 2.5.

Embora a expressão nefesh apareça 755 vezes nas escrituras hebraicas e seja traduzida seiscentas vezes na Septuaginta, em grego, por psyché, na maioria das citações em hebraico, o significado literal de garganta e estômago transmitem a idéia de necessidade, de algo difícil de ser saciado. Nesse sentido, a palavra alma, tradução do grego psyché, nos dá uma tradução incompleta, pois a idéia é que o Eterno construiu o humano do pó da terra e insuflou em suas narinas o seu hálito e o humano se tornou um vivente que necessita Dele para ser saciado.

Nefesh não traduz algo bom ou mal, mas uma existência colada à realidade das necessidades fundamentais do humano, que ao não serem preenchidas produz alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria.

Mas como o sopro do Eterno pode ter gerado um humano com tal índole de insaciabilidade? Se entendermos nefesh como figura das necessidades vitais, dos movimentos emocionais da alma, somos levados a entender o pensamento sintético hebreu ao ver a nefesh como síntese da própria vida. Assim, as necessidades humanas criadas pelo próprio Eterno só podem ser saciadas por Ele.

“Quem me encontra, encontrou a vida e alcançou benevolência do Eterno. Quem não me acha, faz violência à sua nefesh. Todos os que me odeiam, amam a morte”. Provérbios 8.39-40.

“Ó Eterno, tiraste a minha nefesh da mansão dos mortos”. Salmos 30.4.

No relato de Gênesis 2.7 o humano é definido como nefesh hayah, um ser vivente, que necessita ser saciado. Por isso, como vimos, quando integrado ao Eterno, nefesh é transbordamento e transparência do espírito do Eterno, o que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em baixo com o que está em cima.

Mas essa natureza também se constituirá enquanto expansão dos significados da imagem do Eterno, em graça e amor. “Ele soprou” traduz o fato de que as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da fala, em especial garganta e boca, que possibilitam o sopro. Esse padrão simboliza a interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que nascem da interioridade do Eterno. Em Gênesis 2.7, “ele soprou” significa que Aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui, direção e objetivo traduzem o destino humano.

Esse é o destino humano: ter sua nefesh saciada pelo Eterno e a partir daí relacionar-se com Ele, com o universo, com seus semelhantes e consigo mesmo. Nesse caso, temos uma nefesh em equilíbrio, plena do espírito do Eterno.

“O homem quer dar prazer a si próprio, mas à custa dos outros homens, seja levando-os a ter uma opinião falsa a respeito dele, seja aspirando a um grau de “boa opinião”, em que esta tem de se tornar penosa para todos os outros (provocando inveja). O indivíduo quer geralmente, por meio da opinião dos outros, certificar e fortalecer diante de seus olhos a opinião que tem de si; mas o poderoso respeito pela autoridade – respeito tão antigo quanto o homem – leva muita gente também a apoiar na autoridade sua própria confiança em si, portanto a só aceitar de mão de outrem: acreditam mais no critério dos outros do que no próprio”.
Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano.

O pensamento pré-socrático inaugurou o problema que atravessará toda a história do pensamento ocidental, o problema do ser, ao caracterizar a verdade (em grego, alethéia) como o nexo entre linguagem (logos) e natureza (physis). Para Heráclito de Éfeso, por exemplo, o filósofo, que ama a sabedoria, é aquele que busca a unidade originária da totalidade de todas as coisas.

Logos, no grego 'palavra', foi entendido por Heráclito, como o princípio supremo de unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o Universo. ["Bem dizia Heráclito: homens são deuses e deuses são homens, porque o logos é um só" (Hipólito, Refutações, IX, 10,6)]. 

Assim, Heráclito diante da mobilidade de todas as coisas denominou fogo ao elemento primitivo, e viu este comandado por uma lei natural racional, o logos. Considerou o logos dotado de dois princípios internos contrários a operar, concórdia e discórdia. Estas duas forças contrárias transformavam o elemento primitivo, ora na direção da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo.

Portanto, o logos, concebido por Heráclito como uma lei natural ordenadora, a tudo comanda em forma dialética. E segundo Platão é o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o inteligível. Assim, para a filosofia grega, logos era o princípio da inteligibilidade, a razão.

Mas, exatamente por ser razão e palavra, logos mantém uma relação de complementação com sabedoria, e por isso é pensada por Heráclito como harmonia, o próprio nexo original entre logos e physis. Todavia, para que, diante da ameaça do relativismo trazido pelas argumentações dos sofistas, encontre-se melhor determinado o que se compreende por verdade, Sócrates e Platão vão formular a questão: o que é? Esta questão busca definir isso que subjaz sempre idêntico a si mesmo, a essência, fundamento de toda instabilidade acidental da existência aparente.

O que em Heráclito se delimitava como o encontro da harmonia passa a ser, a partir de Sócrates e Platão, uma procura: nasce, então, a filosofia como um desejo de conhecimento. Aristóteles caracteriza esta transformação quando afirma que "o que desde sempre, agora e para sempre, é constantemente procurado, porque sempre de novo a questão fracassa, é o problema: o que é o ser?". A filosofia constitui-se, a partir das concepções socrática, platônica, aristotélica, como o pensamento que investiga a questão do ser.

O conceito razão relaciona-se a três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser. Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte da existência: origem do ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento, impossível de penetrar. Pari passo à essência, o logos correlaciona mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o logos. Assim, o logos é a origem da razão e também do ser. Mas, origem do ser aqui não significa conhecimento a priori, é estar colocado à parte do reino da finitude e por isso a origem do ser só é conhecida por um ato de revelação.

Dentre as inúmeras transformações que surgiram com a cidade democrática grega, a pólis, a mais importante foi a preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder.

A palavra deixou de ser o termo ritual e passou a ser a fonte para o debate, discussão e reflexão, sendo ela, ou melhor, o seu uso de forma mais persuasiva, que definirá o orador vencedor dos embates dialéticos (dialética era a arte da discussão: as normas para uma discussão correta). Todas as questões de interesse geral passaram a ser submetidas à arte da oratória e as decisões eram as conclusões dos debates. A política se tornou a arte do domínio da linguagem. Com a popularidade dos debates e das discussões, a polis se fundamentou na publicidade das manifestações sociais; se distinguiram os interesses comuns dos privados, consolidaram-se as práticas abertas e o domínio público, a base social da estrutura.

Esse desenvolvimento trouxe uma profunda transformação, já que ao tornar comuns os elementos da cultura, levou os mesmos à crítica e à controvérsia. Todos os elementos ficaram expostos a interpretações e a debates apaixonados. Já não era possível a ninguém se impor apenas por prestígio pessoal ou religioso. Deviria haver o convencimento pela dialética. 

A palavra constituiu-se no instrumento da vida política. Sua vertente escrita trouxe a possibilidade da divulgação do conhecimento. A escrita tornou-se pública, não mais estando presente apenas no palácio ou no templo. O saber fez-se público, deixando de estar restrito aos magistrados ou sacerdotes. Depois de divulgadas, as idéias deveriam ser submetidas ao debate político e à aceitação popular.

Assim com a consolidação da importância da palavra, o saber passou a ser um bem público. A sabedoria percorreu as veredas da linguagem, do discurso, da dialética: este caminho tornou-se característico da cultura grega. Por isso, podemos dizer que a filosofia nasceu no momento em que se tentou recuperar algo perdido no passado, a sabedoria.

Na contemporaneidade latino-americana, partindo da dialética, Enrique Dussel propôs a dialética analógica da alteridade, a abertura da totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos. O logos permanece no mundo e não pode avançar mais além. O logos que transcende é análogo, mais além do logos, analogia que se articula na dialética da voz ouvida que leva a ouvir: ou seja, a ouvir a voz. Assim, o logos chega ao seu limite, e confia no que ouve do outro pela fé, pois sem a confiança no outro, não se pode escutar sua voz.

Fé aqui significa ir mais além do horizonte da physis, ir mais além do horizonte da ontologia do mesmo, afirmando a ontologia da negatividade, isto é, já que o outro não se origina no idêntico, é diferente. Brota como ouvido, é âmbito ao qual a totalidade pode abrir-se, e ao abrir-se muda de estatuto, tornando-se ontologia negativa.

Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. E como aná significa em grego mais além, e logos significa palavra, análogos toma o sentido de palavra que brota no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. Mas se o outro é distinto, não há diferença, nem retorno, embora haja história e crise. Por isso, para Dussel, se este logos aparece enquanto interpelante indo mais além da compreensão, ele é análogo.

Essa interpretação de Dussel repousa na compreensão do Logos joanino, que pousa sobre o Cristo acima da tradição filosófica, quer de Heráclito, quer de Platão ou do neoplatonismo, e ainda da filosofia judaica expressa em Filo de Alexandria. Nesse sentido, se antes estávamos diante da personificação do Logos, ainda assim não há na tradição da filosofia grega ou judaica a idéia de encarnação do Logos. Esse Logos joanino, por isso, vai além de toda a tradição filosófica, embora João a utilize como ponte para falar à cultura de sua época.

Há ainda uma ponte com o pensamento judaico, principalmente no que se refere aos textos de Gênesis um e de Provérbios 8.22-31. O primeiro ao utilizar a expressão “en arché” e o segundo ao personalizar a sabedoria. Nesse sentido, o Logos de João se apresenta como análogo. Análogo ao Eterno, porque é pessoa de Deus, e análogo aos seres humanos, porque é pessoa humana.

Análogo significa que o Logos vem de mais-além, isto é, que há um primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo, que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem nova. Embora, este Logos eterno se reflita através de nossos pensamentos e, por isso, não possa existir um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e 1ª. carta aos Coríntios 2.16].

Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos então o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Vamos constatar que desde o princípio estivemos submetidos ao destino e que sempre desejamos livrar-nos dele, mas nunca conseguimos.

Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver a plenitude do tempo e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, o humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Nosso destino, que aqui pode ser entendido como missão, é servir ao Logos num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

«O interesse por si próprio, o desejo de se satisfazer alcançam no vaidoso tal nível que ele induz os outros a uma falsa estima de si falsa, demasiado elevada, e depois se fia, não obstante, na autoridade dos outros: desse modo provoca o erro e, contudo, lhe dá crédito. É preciso, portanto, admitir que os vaidosos não querem agradar tanto a outrem quanto a si próprios e que chegam ao ponto de com isso descurar seu proveito; pois, muitas vezes importa-lhes suscitar em seus semelhantes disposições desfavoráveis, hostis, invejosas, em decorrência desvantajosas para eles, apenas para terem satisfação de seu eu, o contentamento de si».
Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano.

Paulo dirá numa oração: “Que Eterno, que nos dá a paz, faça com que vocês sejam completamente dedicados a ele. E que ele conserve o pneuma, a psyché e o soma de vocês livres de toda mancha, para o dia em que vier o nosso Senhor Jesus Cristo”. Primeira carta aos Tessalonicenses 5.23.

Se o soma é o espaço do Eros, da vida e da materialidade; e a psyché o espaço do logos, da razão e da sensibilidade; o pneuma é o espaço da espiritualidade, entendido em grego como poiesis, espaço da experiência estética, que responde à necessidade criativa do sentido da vida.

Assim, o sentido da vida não é experiência exclusiva da pessoa religiosa, mas experiência que traduz a criatividade humana. Tal espiritualidade, ou pnêumica, é gratuita. Essa graça está no ato do fazer com imaginação, na inventividade.

Entre os pais da Igreja, partindo de Paulo, Orígenes (185-254) via o humano como triunidade e relacionava a consciência trinitária à sua leitura e interpretação das Escrituras. Para ele, no soma estava o sentido literal da compreensão da revelação; na psyché o seu sentido moral; e ao nível do pneuma o sentido simbólico. Ou seja, a própria compreensão da revelação tinha que passar por estes níveis da consciência humana.

E porque a atividade humana acontece dentro da cultura, que comove, Tomás de Aquino viu a busca da beleza como busca da totalidade, daquilo que é pleno, que possibilita a sacada. Dessa maneira, o conhecimento implica na existência de uma ontologia que, ao dar uma classificação para a percepção sensorial, descreve a experiência como composta de objetos que existem independentemente dos seres humanos. Temos, então, as diferenças que fundamentam a classificação: humano versus não-humano.

Assim, a temporalidade é percebida a partir dessa triunidade da consciência humana: materialidade, razão, espiritualidade. E se apresenta associada aos critérios de confirmação através de experiências intersubjetivas. Essa consciência tripartite é a base do conhecimento nas culturas, a fonte da inteligibilidade entre os humanos, mas também a base para a compreensão da natureza e da revelação.

O objetivo da revelação, antes que ser o de responder às crises que afetam o humano, é recuperar a ordem daquilo que aparece como caos. Por isso, a crítica à complexidade da revelação e à não-regularidade do comportamento proposto por ela está equivocada por não entender o mundo como infinidade de realidades não-observáveis, pois o aparente objeto único do ponto de vista do senso comum é sempre constituído por infinidade de realidades.

Aqui, o que importa é o aspecto qualitativo: a revelação postula realidades pnêumicas para explicar a diversidade das experiências observáveis. Quanto à não-regularidade do comportamento pnêumico, isso é patente apenas na perspectiva daquele que está de fora, pois, para a pessoa que vive o fenômeno espiritual, essas realidades estão sujeitas a leis, sendo a regularidade a própria condição de seu poder explicativo.

A partir dessas leituras, atravessando a correlação entre a nefesh dos hebreus, o soma e o logos do dualismo grego, e o pneuma de Paulo, o apóstolo, podemos dizer que o humano é construção, unicidade e pluralidade da pessoa, na comunidade, ser lançado no cosmo. Imagem do que é eterno, ser aberto à transcendência. Há nele um deslumbramento permanente diante do absoluto e do mistério. E por pensar o que não está aqui e o que não é agora, e refletir sobre o além da realidade imediata, tem prazer em se debruçar sobre o que é eterno e transcendente.

Segunda parte

Uma análise teológica de Gênesis 2.7-23 nos apresenta o humano em equilíbrio com a natureza e em harmonia com a transcendência. Mas, há no texto a metáfora da ruptura, como aquela que vemos na parábola do filho pródigo, contada por Jesus de Nazaré. Esta foi a interpretação de Ireneu de Lyon (ca. 130-202 d.C.) e de Quintus Septimius Florens Tertullianus (ca. 160 - ca. 220 dC).

Tertuliano considerou que o humano no princípio da vida é semelhante ao Adão descrito em Gênesis. Ou seja, as pessoas nascem, idealmente, no paraíso do equilíbrio natural e da harmonia com a transcenência, mas com a construção da consciência e da identidade humanas deixam para trás o jardim e entram no mundo da culpa. Por isso, Tertuliano rejeitou o batismo infantil.

Aurélio Agostinho (354-430), dito de Hipona, apresentou uma leitura diferente ao dizer que Adão era perfeito, justo e imortal, até perder tal condição com o pecado. Para Agostinho, o batismo tiraria o pecado original e restauraria a imortalidade aos descendentes de Adão. Atribuiu a Adão não somente o estado de pecado original em que viveriam todos os seus descendentes, mas também a culpa herdada por todos os seres humanos. Apoiou o seu conceito da culpa herdada numa tradição errônea, baseada num texto latino, da carta de Paulo aos Romanos (5.12): “em quem todos pecaram”. Mas, o texto grego diz: “assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”.

Segundo Agostinho houve uma queda histórica de Adão, o que fez com que a espécie humana herdasse o pecado original. Mas, a história de Adão nos remete à metáfora de uma experiência partilhada por todos na construção da consciência e identidade humanas. Não partimos de um estado de pecado, mas somos culpados por fazer pecados, conforme nos diz o apóstolo Paulo, “assim como, em Adão, todos morrem” (1ª. Coríntios 15.22), “outrora, sem a lei, eu vivia; mas, sobrevindo o preceito, reviveu o pecado, e eu morri” (Romanos 7.9). Assim, uma boa tradução para Gênesis 8.21 é “não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do ser humano, porque é mau o desígnio íntimo do ser humano desde a sua adolescência”, situando o movimento para a ruindade do coração a partir da construção da consciência e da identidade.

Adão estava em equilíbrio com a natureza e em harmonia com a transcendência, mas, também, em revolução permanente quanto ao conhecimento e às relações, com possibilidade de não escolher o distanciamento e de, no momento certo, superar a morte física pelo usufruto da árvore da vida.

Mas o humano, apesar de construído na semelhança do Eterno, desfrutar dos benefícios do equilíbrio com a natureza e da harmonia com a transcendência, viu que era diferente da natureza e que sua identidade se construía na separação da transcendência (Gn 3.1-5). Eis aí, a partir da alienação do estado natural e do mundo da transcendência, o surgimento do homo sapiens.

Esse distanciamento, no entanto, não surgiu apenas dentro da mente humana, mas veio também de fora. Veio da relação sujeito/objeto, do olhar a natureza e constatar que era diferente, do olhar a eternidade e ver-se humano. Nesse sentido, o desafio foi colocado pela natureza, que, ao existir, falou ao desejo de entendimento e de vida: “se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (Gn 3.5).

A curiosidade e reflexão surgiram a partir do próprio processo de conhecimento. Diante da natureza nasceu a consciência da diferença e a possibilidade de escolha que, por sua vez, leva a alternativas, escolher bem ou escolher mal, já que no início do processo nem sempre se sabe se será boa ou ruim a escolha feita. E, assim, o humano distanciou-se da natureza, embora ainda dependente dela, e também da transcendência. E com a consciência da diferença e de sua identidade humana, a morte chegou.

Não houve coerção, e, sim curiosidade, reflexão, escolha. O humano está livre para decidir.

Tais conceitos do humano em relação à alienação ressaltam que diante da hamartia a pessoa é culpada, não por participar do estado de pecado, mas, por praticar atos de pecado. O Eterno disse a Caim: “porventura se procederes bem, não se há de levantar o teu semblante? e se não procederes bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo; mas sobre ele tu deves dominar” (Gn 4.7) e profeta Ezequiel (18.20) afirmou: “a alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniqüidade do pai, nem o pai levará a iniqüidade do filho”.

Sem dúvida, há uma tendência humana para errar o alvo. Ou como disse Oseias (11.7), “porque o meu povo é inclinado a desviar-se de mim”. Mas, tendência não é sinônimo de compulsão ou depravação total. Assim, o distanciamento da transcendência levou à consciência dos desequilíbrios em relação à natureza e aos relacionamentos. Apareceu a culpa, fruto da alienação existencial -- “então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus” (Gn 3.7) e “esconderam-se o homem e sua mulher da presença do Eterno, entre as árvores do jardim” (Gn 3.8). Surgiu o medo existencial, fruto da consciência do poder transcendente: “ouvi a tua voz e tive medo” (Gn 3.10). E, também, à alienação nos relacionamentos (Gn 3.11-13 e 16) e à consciência da separação humano/natureza (Gn 3.17-19).

Dessa maneira, a alienação existencial levou ao lehatati e à consciência de morte, enquanto separação do humano daquilo que lhe é natural, seu próprio corpo, e daquilo que é transcendente, a presença da eternidade. Assim, como disse Byron Harbin, “a morte física é um rasgamento da alma (2Co 5.4) e a morte espiritual é um rasgamento da relação do espírito humano com o Espírito divino”. Mas tal ruptura tem como limite o amor do Eterno, pois “se ele retirasse para si o seu espírito, e recolhesse para si o seu fôlego, toda a carne juntamente expiraria, e o humano voltaria para o pó” (Jó 34.14,15).

A partir de “todos pecaram” -- Romanos (5.12) e Efésios (2.1 e 5) -- devemos entender que “estando vós mortos pelos vossos delitos e pecados” fala da morte como realidade humana resultante da ruptura com a transcendência. Esta morte frente ao espírito e a eternidade levou à morte física, “até que tornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás” (Gn 3.19), providência do Eterno para que o humano retornasse ao estado anterior à alienação e, assim, partici­passe do Novo Ser, ao invés do rasgamento permanente.

Terceira parte

A existência, enquanto processo, pode ter determinação construtiva no sentido teleológico, por apresentar qualidades adequadas à sua natureza ou função. E o humano, momento da existência, tem possibilidades diante dela. Essas possibilidades podem ser chamadas de liberdade condicionada e relativa à própria existência. Mas tais possibilidades são desafios à compreensão da condição humana e de suas relações reais. Estamos, então, falando de alienação.

A alienação antecede o exercício da liberdade. A idéia, trabalhada por Tillich, a partir de Hegel, é de que pertencemos essencialmente àquilo de que estamos separados. Ou seja, o humano não está separado de seu ser, mas é julgado por ele, e mesmo quando este lhe é hostil não consegue separar-se dele. As possibilidades humanas estão, nesse sentido, mesmo enquanto determinação construtiva e dinâmica, sob funções correlatas, alienação e lei, liberdade e necessidade, que são realidades da existência.

Se a alienação é ruptura essencial, parto que vai produzir a consciência humana, remete tanto ao distanciamento como à aproximação com o Ser. Não seria, então, apenas disfunção, mas apontaria também às funções do humano, enquanto ser com possibilidades de realização somática, psíquica, cultural, ecológica e do sentido pleno da vida.

Na tradição judaico-cristã essa relação entre alienação e liberdade foi um tema teológico de importância. Dos textos judaicos resgatamos idéias como aliança, constância, fidelidade, que remetem à correlação alienação/lei. E no testamento cristão a idéia de destino traduziu o conceito de alienação em seus dois vetores, distanciamento e aproximação.

As tensões ao redor da compreensão das idéias de alienação, que traduz funções e disfunções do humano, e graça, enquanto ação divina para a salvação, apontam para duas outras questões: história e liberdade. Essas duas questões formam a base do pensamento de que o ser humano por ser imagem do Eterno é um ser livre e, por extensão, faz história. Livre significa liberdade de julgamento e ação no âmbito da existência. Então, para que as pessoas sejam livres, o Eterno garante a liberdade delas.

Na carta aos Romanos (5.12), Paulo afirma que hamartia entrou no cosmo através do humano e com hamartia, a morte. Ora, hamartia ou peccatus é um fazer, uma consequência que nasce deste conceito militar dos gregos, ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a expressão no sentido de que a humanidade vive um fazer em que errar o alvo é possibilidade crescente na existência, embora não seja um estado dela.

Errar o alvo, ou, em hebraico moderno, errar o tiro, leva à consequências. Paulo privilegia uma delas, a consciência da morte. Para o apóstolo, hamartia ou peccatus produz uma consciência matricial, a consciência da morte. A partir da consciência da morte temos a consciência do divino, a consciência da diversidade, já que não somos bichos e, por extensão, não somos natureza, a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que coisas e ações podem ser boas ou não. Dessa maneira, o alvo é o desafio de acertar, e estão diante do humano, de forma permanente, as necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.

Alvo implica, então, em necessidades e lei e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do desafio da existência.

Ora, em termos teológicos, a partir dessa primeira reflexão, podemos dizer que todos são chamados à comunhão e cada pessoa pode responder positivamente a esse chamado. Caso o ser humano responda positivamente ao chamado, vive o processo de libertação que leva à comunhão plena. A comunhão consiste, então, em metanóia, que é volta ao estado de liberdade e permanência na escolha. A partir desta resposta, o Eterno opera a salvação do ser humano. Por isso, podemos dizer que a vontade humana abre o caminho da libertação. A partir daí entendemos a graça universal, pois todos os seres humanos poderiam responder positivamente ao chamado à comunhão. Ou seja, a liberdade de julgamento no âmbito da existência leva a pessoa a escolher os caminhos de sua história.

As funções e disfunções existenciais do humano, ou seja, a alienação, fazem com que as ações humanas, a partir dos desejos – emoções e sentimentos – levem o ser humano à possibilidade de errar o alvo, lehatati (להחט'א), em hebraico, hamartia, em grego, e peccatu, em latim. Dentro da tradição das escrituras hebraico-judaicas, lehatati é a violação da lei. Mas lehatati é sempre uma ação do coração e não um estado do ser. Já a alienação, esta sim, é um estado da existência e toda a humanidade se encontra nesse estado de disfunção, ou inclinação para fazer o mal, conforme vemos em Gênesis 8.21. Assim, lehatati traduz não somente falta moral, mas todas as violações da lei, quer conscientes ou não. E, segundo a tradição judaica, todo ser humano nasce sem lehatati, e a culpa de Adão recaiu sobre ele e sua família, mas não se estendeu à espécie humana. Apesar disso, todo ser humano é responsável pelo lehatati porque todos temos vontade livre, mas natureza alienada e, por isso, tendemos também para o mal. Por isso, o texto acima citado de Gênesis diz que o coração humano é mau desde a sua juventude. Mas o Eterno, através de sua misericórdia, possibilita ao ser humano a metanóia e o perdão.

A libertação humana é um processo, por isso, a pessoa não é plenamente livre, porque depende dela permanecer ou não na opção escolhida. Se ela manter a escolha será plenamente livre, se abandonar a escolha retorna à alienação. Caso a pessoa livre se alienar, se não houver metanóia, se não voltar à comunhão, estará alienada.

Dessa maneira, na polaridade alienação/comunhão dá-se a construção da história, ou seja, as pessoas e as comunidades humanas interagem, por opção ou por omissão, na construção de sua história. O Eterno é soberano porque criou e mantém o universo, sustentando-o na universalidade do Espírito, aqui entendido como sentido da vida. A soberania especial está sobre a comunidade que permanece na escolha. As outras comunidades estão fora desta soberania especial, da graça que gera comunhão plena, exatamente porque usaram a liberdade para escolher o lehatati.

E quanto maior a alienação, mais o Eterno retrai sua soberania sobre tais pessoas e comunidades, e, consequentemente, a graça que gera comunhão plena. O que explica o mal enquanto feituras pessoal e social. E para que o processo histórico se dê, o Eterno contrai espaço-temporalmente sua justiça executora.

Por paixão ao ser humano, ele contrai a ação de seu conhecimento. Caso o Eterno, a partir de seu conhecimento, definisse todas as ações livres do ser humano, as pessoas e as sociedades poderiam fazer apenas aquilo que o Eterno por conhecer definisse, sem poderem tomar decisões alienadas, sem poderem se afastar dele.

O Eterno dirige o seu fazer, mas interage com as pessoas e as comunidades humanas na produção da história, enquanto obra que nasce das correlações liberdade e comunhão e liberdade e alienação. A polaridade alienação versus comunhão não apresenta o ser humano como bom ou mal, mas como ser que age a partir dessa polaridade. Isso fica claro no diálogo que o Eterno tem com Caim, quando diz que ele está inclinado para o mal, mas deve dominá-lo. Essa conversa apresenta um padrão humano, a alienação.

Podemos ler Gênesis 6.5, 8.21 e Deuteronômio 31.21 a partir da compressão do conceito de alienação. É interessante que nenhum desses textos fala do ser humano como essencialmente corrupto, mas alienado. A própria palavra yetzer, que vem da raiz yzr, utilizada quando as Escrituras hebraicas falam de inclinação maligna, significa moldar, propor-se. A idéia é que o ser humano é dirigido por suas inclinações, imaginações, sejam elas boas ou más. É yetzer que, combinado ao julgamento livre no âmbito da existência, possibilita a metanóia. Ou, conforme diz Deuteronômio, o Eterno coloca diante do ser humano a possibilidade do bem e a possibilidade do mal. Os seres humanos terão comunhão se obedecerem aos mandamentos do Eterno e errarão o alvo se desobedecerem aos mandamentos do Senhor (11.16-28).

Assim, só o Eterno é capaz de fazer com que exista a liberdade humana e mantê-la. Essa graça, oriunda do Eterno e derramada sobre a humanidade, possibilita a construção da história. Por isso, Paulo diz que o Eterno fica de humor transverso com a alienação que distancia, mas segura as pontas com calma, por saber que a alienação é fruto da sua valência e, diante da alienação que aproxima, também obra sua, Ele expressa alegria. (Romanos 9.22-23).

Essa leitura da liberdade entregue ao ser humano é importante para a teologia, pois ao dizer que as pessoas e as comunidades humanas podem agir à margem daquilo que o Eterno desejaria para a humanidade, apresenta a violência, a guerra e os genocídios como frutos da opção e ação humanas. E o teólogo pode, então, analisar porque os profetas clamam e apontam às sociedades o caminho do Reino, embora estas possam escolher os seus próprios caminhos. O campo de concretação de Auschwitz, sob o nazismo, e os genocídios contemporâneos são, então, passíveis de estudo. Mas a nossa leitura coloca, também, para as comunidades de fé, o clamor profético e o desafio de expandir o Reino.

Em relação à alienação, o ser humano herdou de Adão a inclinação para o mal e, como consequência, a possibilidade crescente de errar o alvo, mas não a culpa. Os seres humanos são alienados porque separaram razão e coração e erram o alvo porque são alienados. E em relação ao processo de libertação, a morte do Cristo abre as portas da comunhão, mas não assegura a libertação plena, pois esta só será definitiva se a pessoa não desistir da corrida.

Paralelo ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentou uma rica leitura do conceito de destino, que relaciona alienação e hamartia. O conceito destino nasceu da reflexão de que os deuses são imortais porque o humano está situado entre a finitude existencial e a infinitude potencial. Para os gregos o destino era finitude existencial, e esse é o tema da tragédia grega e da busca da superação filosófica, principalmente de estóicos e epicuristas. Era uma tentativa de colocar o humano acima do destino que o distanciava de seu ser, transformando-se em poder destrutivo que envolveu o mundo helênico em culpa e julgamento.

Um exemplo dessa leitura, que nos interessa para a construção de uma compreensão teológica da alienação, seria o arrazoado que Pedro, o apóstolo, fez em sua segunda epístola, ao dizer que a graça não tem limites, pois o Eterno não retarda a sua promessa, como alguns afirmam, por julgá-la demorada, mas por ser paciente. Ele não escolheria a danação eterna de pessoas, ao contrário, desejaria que todos chegassem à metanóia, ou seja, fizessem o caminho de volta à liberdade e construíssem comunhão.

Dessa maneira, a graça tem eficácia ilimitada, mas há uma chave para que a função graça seja plenamente exercida. E essa chave é: chegar à metanóia. Dessa maneira, o sacrifício de Cristo, que é graça plena e universal, deve ser somado à metanóia, produzindo então a libertação. Ou seja, graça plena mais metanóia é igual à libertação. E o sacrifício do Cristo sem a metanóia, produz justiça. Ou seja, o valor da cruz não é limitado, mas sim sua aplicação. E a preparação da pessoa e das comunidades humanas para a graça tem o julgamento livre no âmbito da existência como movimento e o Eterno como móvel.

Essa preparação pode ser pensada como movimento que parte, enquanto universalidade, da liberdade humana em direção à especificidade que tem o Eterno como móvel e implica em graça determinada pelo Eterno, embora não seja proveniente da coação, mas do seu pleno conhecimento, porquanto a intenção do Eterno não pode deixar de ter efeito.

Por isso, podemos falar da universalidade da graça, presente na comunidade humana, e na especificidade da graça, que infalível segue a boa vontade humana. Mas esse movimento é dialético, pois, quando olhamos da perspectiva do humano, ele parte da universalidade, mas se olharmos da perspectiva divina parte da especificidade. Ou seja, universalidade e especificidade são termos relativos, que se complementam na plenitude da graça. Por isso, liberdade, eleição e graça fazem parte de uma dança permanente, onde cada conceito implica na existência do outro e nenhum tem existência independente, mas criam uma unidade/diversidade correlacional plena e necessária.

Todas as pessoas e comunidades humanas realizam suas existências dentro desse processo, fazem parte dele, o que significa dizer que existência, liberdade e graça fazem parte da história humana. O Eterno mobiliza o processo em direção à especificidade, com base no seu conhecimento da fé e da perseverança de cada pessoa e das comunidades humanas, mas conhece e aceita o sentido da universalidade humana. Esta seria a leitura do texto de Pedro, quando disse que no meio do povo surgiram falsos profetas que introduziram doutrinas destruidoras, a ponto de renegarem o Eterno que os resgatou.

Na teologia paulina, enquanto diálogo das concepções do apóstolo com o mundo helênico, principalmente em sua carta aos Romanos, alienação/destino é o tempo favorável que triunfa sobre o espaço. O caráter do tempo propício à liberdade substituiu o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir dessa compreensão, destino traduz aproximação, e apresenta novas possibilidades de construção da liberdade no tempo e na história.

Antes, a filosofia confrontava-se com a inspiração dos poetas, mas, a partir de Paulo, a revelação apodera-se da filosofia. Assim, o destino que distanciava foi questionado pelo pensamento paulino: “aquele que não era meu povo será chamado de meu povo, e aquela que não era amada passou a ser amada”. (Romanos 9.25). O transitório e perecível perdeu importância e a idéia da construção da existência enquanto tempo favorável foi tomando forma.

Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, alienação/destino, no sentido de que os limites são potencialmente ilimitados, é a lei na qual surge o conceito de liberdade. Assim, alienação/destino correlaciona conceitos, porque a alienação está sujeita à liberdade; porque alienação significa que a liberdade também está sujeita à lei; e porque alienação significa que liberdade e lei são complementares e interdependentes.

Analisando o conceito cristão palestino de alienação/destino -- exposto por Paulo em sua carta aos Romanos -- podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram entrelaçadas. Para Paulo, assim como para a tradição judaica, lei é imposição de limites. Por isso, a alienação é um estado que surge da correlação entre lei e vida, porque se o julgamento é inerente a tudo na existência, também o é a liberdade.

Assim, a certeza de que a alienação/destino é propícia e tem significado realizador e não destruidor, é a peça chave do pensamento de Paulo, que coloca o sentido da vida acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance da razão humana, mas o sentido da vida traduz a imortalidade potencial do humano.

Quando o humano faz a defesa do sentido incondicional da vida deixa de temer a ameaça da alienação/destino que distancia, e aceita o lugar que cabe à alienação enquanto estado da existência. Reconhecemos, então, que desde o princípio vivemos num estado de alienação e que sempre desejamos nos livrar dela, mas nunca conseguimos. Mas nessa análise da alienação cabe relacionar sentido de vida e tempo. O sentido de vida deve envolver as leis universais, a plenitude do tempo e a própria existência. E quando o sentido de vida alcança a existência, penetra no tempo e faz da alienação, aproximação.

É necessário, porém, entender que a consciência parte da alienação e que o reino da existência só é acessível ao conhecimento liberto da alienação que distancia. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, o humano possui potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade humana – que cresce na medida da expansão do sentido da vida – maior será sua consciência de destino.

O destino humano, que nasce da alienação, aponta para o sentido da vida que emerge das crises e desafios. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido paulino de prokeimai, estar colocado, ser proposto, e o de nossas comunidades, tanto mais livres seremos.

Assim, a liberdade humana se dá na existência, enquanto realidade condicionada pela materialidade. A liberdade entende-se como correlação entre lei e sentido de vida. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade somada à ação transformadora. Ou seja, consciência da lei diante do estado de alienação que distancia é mudança radical, é ação transformadora da vida.

Lehatati, hamartia, peccatu é um fazer. Em relação ao imediato transforma-se em estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Lehatati, hamartia, peccatu acontece quando minha liberdade é desafiada, quando ela é chamada a surgir como feitura humana. Nesse sentido, lehatati, hamartia, peccatu não se apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois lehatati, hamartia, peccatu é um contra-tipo da liberdade.

Por isso, só podemos responder à alienação que distancia reconhecendo que lehatati, hamartia, peccatu é feitura minha e de minha espécie, e que devo promover a ruptura desse fazer através da ação de expansão do sentido pleno da vida. Ao nível do pensamento, do sentimento, da vontade e da ação -- pois a alienação que distancia é o que não devia estar -- devemos exercer uma ética radical de defesa da vida e de seu sentido, de combate ao estado de alienação na vida de pessoas e comunidades.

Em 1970, Manuel Ballestero publicou em Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad), analisando o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Ballestero diz que sua preocupação residiu em analisar o projeto de liberdade desses três pensadores, sabendo que a autonomia e o ato livre são concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicos, embora existam, no contexto da obra dos três, analogias de fundo. E essas se referem ao fato de que liberdade poderia significar a abolição da lei, o colapso da determinação exterior, e não o comportamento que se adequou aos limites da ordem. Assim, segundo Ballestero, Cusa, Lutero e Marx olham a liberdade como a destruição da ordenação exterior e anterior ao próprio ato livre.

Os ensaios mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não foi gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraizou no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamaram por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século dezesseis, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e a consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a alienação que distancia da condição humana na incipiente sociedade capitalista foi percebida por Cusa e Lutero: a liberdade do sujeito se dá como dor.

Mas ambos consideraram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partiram do distanciamento nessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deveria ser superada para que o sentido da vida florescesse. Aí, então, teríamos o fim da não-essencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não poderia acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade plena de vida, que sustenta o humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o sentido da vida constrói num nível superior o universo anteriormente negado.

O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partiu dessa discussão. Para ele, a religião era a realização imaginária da essência do humano, mas essa essência não tem realidade alguma. De todas as maneiras, há um ponto de interligação nessa perspectiva: a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo e como responsabilidade maior do ser humano.

Para Lutero, o humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação partiu da ansiedade teórica do século dezesseis, mas traduziu-se em superação da subjetividade alienada. O humano pleno do sentido de vida é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da vida em plenitude. Sua liberdade transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter da liberdade do humano pleno do sentido de vida se dá como processo: morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza.

A liberdade surge como deslocamento do humano alienado, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta. “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto sentido pleno de vida, uma dimensão de combate.

Os humanos são chamados a superar a alienação, ter a liberdade que vai além, a liberdade que é construída na expansão do sentido pleno da vida. E, assim como Paulo, devemos saber que morte ou vida, anjos ou governos, coisas presentes ou futuras, poderes, altura ou profundidade, ou qualquer criatura não poderá nos distanciar do amor do Eterno, que está no Novo Ser, o Senhor.