vendredi 18 novembre 2011

O reencontro do erotismo

Por Jorge Pinheiro, de São Paulo  

A paixão explode em chamas e queima como um incêndio devastador. Um olhar sobre Spinoza, Teresa de Ávila e George Bataille em busca da experiência religiosa, da paixão e da morte. 


Imaginei um pensar transverso entre Baruch de Spinoza (1632-1677), Teresa de Ávila (1515-1582) e Georges Bataille (1897-1962). Não uma conversa que deve levar a leituras definitivas, mas a compreender a percepção de cada um dos três sobre a experiência religiosa, a paixão e a morte. 
"Vivo sin vivir en mí, y de tal manera espero, que muero porque no muero". 
O filósofo Baruch Spinoza considerava a teologia um pensar primitivo, que caía muito bem na construção pré-científica da realidade. Achava que a tal busca das últimas causas não acrescentou nada à compreensão da natureza. E, que, só quando a humanidade parou de olhar para cima, olhou para si própria e ao seu redor, pode pensar a física, a geologia e as demais ciências e progredir no conhecimento da natureza. Gosto de Spinoza, mas acho que foi enganado ao colocar a teologia fora do humanismo e do naturalismo que defendia. Na verdade, se olharmos a teologia e, por extensão, a experiência religiosa apenas como formas de um supranaturalismo, elas se mostram, sem dúvida, superficiais. 
"Vivo ya fuera de mí después que muero de amor; porque vivo en el Señor, que me quiso para sí; cuando el corazón le di puse en él este letrero: que muero porque no muero". Mas, há um lado do pensamento de Spinoza que não pode ser desacreditado: o comportamento humano não pode ser explicado de modo diferente ao dos outros comportamentos na natureza. Ou seja, para ele, não poderia haver plena liberdade, nem plena responsabilidade no comportamento humano. Deveria, por isso, ser descrito em termos de causas mecanicistas, como os fenômenos da natureza. Assim, para Spinoza bom é aquilo que nos dá prazer e mal o que nos causa dor. Será mesmo, amigo Spinoza? 
"Esta divina prisión del amor con que yo vivo ha hecho a Dios mi cautivo, y libre mi corazón; y causa en mí tal pasión ver a Dios mi prisionero, que muero porque no muero". 
E se você, amigo Spinoza, tivesse lido as confissões de uma jovem monja carmelita, chamada Teresa, que assim contou um dos seus muitos momentos de êxtase: 
“Vi nele uma comprida lança de ouro e sua ponta parecia ser um ponto de fogo. Parece que ele a enterrou muitas vezes em meu coração e perfurou minhas entranhas. Quando retirava a lança, parecia também retirar minhas entranhas e me deixar toda em fogo do grande amor de Deus. A dor era tão grande que me fazia gemer, porém, a doçura dessa dor excessiva era tal que eu não podia pensar em ficar livre dela... A dor não é corporal, mas espiritual, embora o corpo tenha sua parte e mesmo uma grande parte. É uma carícia de amor tão doce, que então acontece entre a alma e Deus, que rogo a Deus em sua bondade que faça com que ela seja experimentada quem quer que pudesse acreditar que estou mentindo”. (1) 
Mas, vamos ouvir um pensador maldito, Georges Bataille. Para ele a experiência religiosa está marcada pelo prazer. O prazer de viver. E é esse tropismo ao prazer que leva à superação, no cristianismo, à acentuação de uma teologia do pecado, com a consequente culpa infindável. Mas, aqui estamos diante de um paradoxo, pois a tradição cristã enfrenta esta pedra de tropeço, pois enquanto construção simbólica pesa sobre ela a sombra de um instrumento de tortura do qual pendeu seu fundador. De todas as maneiras, mesmo sem negar o pecado e a culpa, a experiência religiosa recupera o prazer de viver e leva o fiel em êxtase a saborear as frutas que a vida oferece, doces e amargas. 
"¡Ay, qué larga es esta vida! ¡Qué duros estos destierros, esta cárcel, estos hierros en que el alma está metida! Sólo esperar la salida me causa dolor tan fiero, que muero porque no muero". 
É por isso que Teresa, em meio à solidão da cela, fala da liberdade do êxtase. 
“Durante os dias em que isso acontecia, ficava meio abobada; não queria ver nem falar, mas ficar abraçada com meu sofrimento que para mim era a maior glória. Isto ocorria algumas vezes, quando o Senhor queria que me viessem estes arrebatamentos intensos, que mesmo estando entre pessoas, não podia resistir. Antes que esse sofrimento de que falo agora comece, parece que o Senhor arrebata a alma e a põe em êxtase, e assim não há lugar para dor e padecimento, porque logo vem o gozar". (2) 
E Bataille em sua explicação sobre a experiência mística, que está presente em todos os movimentos cristãos, mesmo os mais conservadores, diz que, como a proibição criou, na violência organizada das transgres¬sões, o erotismo inicial, proibindo a transgressão organizada, por sua vez, aprofundou os graus da expressão sensual. E dá como exemplos as noites dos sabbats, ou da solidão em celas, onde, por exemplo, o marquês de Sade escreveu Cent Vingt Journées. E cita Baudelaire quando afirmou que a única e suprema volúpia do amor jaz na certeza de fazer o mal. Ou seja, homem e mulher sabem que é no mal que se acha a volúpia. 
"¡Ay, qué vida tan amarga do no se goza el Señor! Porque si es dulce el amor, no lo es la esperanza larga. Quíteme Dios esta carga, más pesada que el acero, que muero porque no muero". 
Bem, se o prazer se liga à transgressão, como explicar o êxtase religioso, que não produz culpa? E aí é onde Bataille cresce e completa Spinoza quando critica o pensar teológico. Para Bataille, o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. E é do pecado que falou Baudelaire. Da mesma maneira, as narrações dos sabbats falam de uma procura pelo pecado. Mas, Sade e Teresa negam o mal e o pecado. Mas ambos – tanto Sade como Teresa – fazem intervir a idéia de irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. 
"Sólo con la confianza vivo de que he de morir, porque muriendo, el vivir me asegura mi esperanza. Muerte do el vivir se alcanza, no te tardes, que te espero, que muero porque no muero". 
O cristianismo negou o caráter sagrado da atividade erótica encarada na transgressão. Em contrapartida, os místicos negaram o que a igreja considerava divino. Nessa negação, o cristianismo, com o tempo, perdeu em parte o poder religioso de evocar uma pre¬sença sagrada: perdeu-o na medida em que o diabo deixou de estar na base duma perturbação fundamental. Ao mesmo tempo, os místicos, aqueles que foram marcados pela experiência religiosa do êxtase, deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o erotismo, deixando de ser um pecado, deixava de ser uma certeza de fazer o mal. Por isso, na experiência profana, tem razão Spinoza, só há mecânica animal. Mas, a partir da experiência religiosa, e mais exatamente do êxtase místico, como aqueles de Teresa de Ávila, somos chamados a ultrapassar uma situação, sem que isso signifique regressar ao ponto de partida. 
"Mira que el amor es fuerte, vida, no me seas molesta; mira que sólo te resta, para ganarte, perderte. Venga ya la dulce muerte, el morir venga ligero, que muero porque no muero". 
E por que? Porque, nos explica Bataille, há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As a¬ções dos corpos podem, na lucidez, abrir-se à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cu¬jos aspectos não deixarão de estar disponíveis. Veremos, então, que, por caminhos não prescritos o erotismo se reencontra. Chegamos, então, ao erotismo dos corações, ao erotismo mais ardente, quando, aparentemente, o erotismo dos corpos já sucumbiram. 
"Vida, ¿qué puedo yo darle a mi Dios, que vive en mí, si no es el perderte a ti para mejor a Él gozarle? Quiero muriendo alcanzarle, pues tanto a mi Amado quiero, que muero porque no muero". (4) 
Ou como diz uma canção, lá no primeiro Testamento, o amor é poderoso como a morte; e a paixão é forte como a sepultura. O amor e a paixão explodem em chamas e queimam como fogo furioso. 
São Paulo, 8/11/2009 
Fonte: ViaPolítica/O autor 
Referências 
1. Santa Teresa de Jesus, Livro de sua vida, cap. XXIX. 
2. Santa Teresa de Jesus, idem, obra citado. 
3. Georges Bataille, O Erotismo, Lisboa, Antígona, 1988. 
4. Santa Teresa d´Ávila, “Versos nacidos al fuego del amor”, in Obras Completas, Burgos, Editorial Monte Carmelo. 
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