vendredi 7 septembre 2018

A amizade em vôo de pássaro


Dizem-me: esse gênero de amor não é viável. Mas como avaliar a viabilidade? Por que o que é viável é um Bem? Por que durar é melhor que inflamar?” [1]

Mais curioso que a pergunta -- o que é a filosofia? -- é a relação que os filósofos fazem da juventude com a ingenuidade e a imaturidade. Afirmam que na juventude filosofavam sem saber o que faziam, que não possuíam a fúria da velhice que tenta nominar os conceitos. Agora velhos quando se perguntam o que é a filosofia, apenas colocam de forma clara, simbólica, o que sempre fizeram. E, assim, a resposta é: filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos. 



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A origem grega da palavra filósofo pode ser traduzida como amigo da sabedoria. Mas seria mesmo uma amizade? 

Francisco Ortega é um dos pensadores contemporâneos que ressalta a importância da amizade como objeto de reflexão filosófica.[2]Incluindo-se nas correntes de pensamento que reivindicam para a filosofia a descentralização do sujeito e a tarefa de criar uma nova política da imaginação, Ortega projeta a amizade no contexto de uma nova ordem subjetiva, além da metáfora familiar aonde estes temas são reconhecidos e despolitizados. Politizar a amizade, para Ortega, é uma tarefa a ser assumida pela filosofia, no sentido proposto por Foucault, com "o deslocamento e a transformação das molduras do pensamento, a modificação dos valores estabelecidos e todo o trabalho que se faz para pensar de uma maneira diferente, para fazer outra coisa, para tornar-se outro do que se é".

Analisando o conceito de amigo, percebemos que a amizade possibilita uma relação íntima do ser humano com os conceitos, e que a condição para o exercício do pensamento é que tanto humano quanto conceito sejam vitais um para o outro. Mas, quando uma relação se torna condição para a existência de duas pessoas, chamamos estas não de amigas mas de amantes. Eis a questão: amigos ou amantes? 

Ora, o amor é esta tendência de um se unir com o outro, possuí-lo de modo contínuo, ou formar um todo com ele ("amor a Deus"). Em Platão é aspiração ao belo e ao bom, ao absoluto. Platão, em O Banquete,afirma que o amor é a principal motivação da filosofia, descobrindo assim o lugar central deste conceito. Mas convém distinguir o amor egoísta, possessivo, que persegue o outro como um objeto a ser devorado ("o amante ama o amado como o lobo ama o cordeiro", escreve Platão) e o amor que liberta do sofrimento e do desejo e conduz a alma ao banquete divino. O amor verdadeiro só pode ser satisfeito pela contemplação, para além do belo, do verdadeiro e do bem. 

Uma amizade pode ser o final de um grande amor, mas nunca o início. As amizades transformadas em amor, sempre foram amor. E partindo dessa premissa poderíamos dizer o que é a filosofia. 

Da reunião dessas duas idéias, amigo e amante, podemos inferir uma multiplicidade de conceitos. Podemos dizer que o filósofo é ele próprio conceito em potência e, a partir daí, que a filosofia deixa de ser apenas arte de fabricar conceitos, passando a ser a disciplina que consiste em criar conceitos. Mas quando falamos em criar conceitos estamos falando em definir idéias. Assim, definir um conceito é manifestar a sua compreensão. Deste modo, definir é delimitar as fronteiras. Geralmente a definição faz-se pelo gênero próximo e pela diferença específica.

Os conceitos não nos esperam feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: “os filósofos não devem mais contentar-se em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los”. 

Agora, já podemos tentar abordar, partindo do outro extremo, o que a filosofia não é. Não é contemplação, “pois as contemplações são as coisas elas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos”. Não é reflexão, “posto que ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja, isto é, artistas, por exemplo podem pensar sua arte sem que sejam filósofos, já que a reflexão pertence à própria criação individual, respectiva”. Não trabalha opiniões, pois nunca visa o “consenso”, mas sim o “conceito”. O primeiro princípio da filosofia deve ser que os universais não explicam nada, eles próprios devem ser explicados. 

Conhecer-se a si mesmo, fazer como se nada fosse evidente, espantar-se: estas determinações e outras compõem a filosofia. Mas não há garantias na manutenção dos conceitos criados, que podem ser revistos, fazendo com que a “exclusividade da criação de conceitos assegure à filosofia uma função, mas não lhe dê nenhuma proeminência, nenhum privilégio, pois há outras maneiras de pensar e criar, outros modos de ideação”. 

Utilizando estes argumentos e retomando às denominações propostas do amigo e amante, a filosofia segue seu caminho de provação. Nesta via caminha despojando-se dos limites impostos pela obrigação dos benefícios sociais, que não são sua finalidade, mas um de seus usos finais. 

A filosofia, encarnada na pele do filósofo, faz com que ele se delineie como um pretendente ao conhecimento, que no jogo da sedução se fantasie de amigo para obter sua conquista e assim tornar-se amante. Em sua fase apaixonada, intensa, criativa, o filósofo acaba por tornar-se um rival de seus próprios conceitos através da insaciabilidade por recriá-los. Por fim vem a maturidade e as criações da velhice, frutos de uma profunda amizade. [3]

Fontes

Aristóteles. Ética a Nicômaco. In: Os Pensadores IV. Aristóteles. Porto Alegre, Editora Abril, 1973. 
Bornheim GA. Os filósofos Pré-socráticos. São Paulo, Editora Cultrix, 1970. 
Colli G. O Nascimento da Filosofia. 2a edição. Campinas, Editora da Unicamp, 1992. 
Luce JV. Curso de Filosofia Grega. Do Século VI a. C. ao Século III d. C., Rio de Janeiro, J. Zahar Ed., 1994. 
Mossé C. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa editora, 1980. 
Os Pensadores I: Os Pré-socráticos. São Paulo, Abril cultural, 1973. 
Vernant JP. Mito & Pensamento entre os Gregos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. 
________, As Origens do Pensamento Grego. 9a edição. RJ, Bertrand Brasil, 1996


[1] Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981, p. 17.
[2] Francisco Ortega,Para uma política da amizade, Arendt, Derrida, Foucault, Rio de Janeiro,Relume-Dumará, 2000.
[3] Gilles Deleuze, Felix Guattari, O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992. pp.9-21.



A santidade do prazer

A religio­sidade primitiva ...

... para Bataille, extraiu das proibições o espírito da transgressão, enquanto, a religiosidade cristã se opôs ao espírito de transgressão. A visão de bom e mau, prazer e pecado, nos limites do cristianismo está ligada a esta relativa oposição.[1]

Há no cristianismo um movimento duplo. Nos seus fundamentos o cristianismo quis abrir-se às possibilidades dum amor que era princípio e fim. Quis encontrar em Deus a continuidade perdida, in­vocar os delírios rituais para além das violências reguladas, o amor to­tal e sem cálculo dos fiéis. Os homens, transfigurados pela continui­dade divina, eram chamados, em Deus, a amarem-se uns aos outros. 



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Assim, o cristianismo jamais abandonou a esperança de levar este mundo de descontinuidade ao reino da continuidade, abraça­do pelo amor. O movimento inicial da transgressão derivou no cristianismo na visão duma superação da violência, que foi. transmutada no seu próprio contrário.[2]Há neste sonho algo de subli­me e trágico.

E para Adélia Prado, poética e religião se cruzam. Na verdade, ela vai além. Não separo, para mim elas são a mesma coisa. (...) a poesia é um fenômeno de natureza religiosa, pois tem um papel fundador, que me conecta ao centro do ser. [3] 

Talvez por isso, ela é poeta e profeta, que vê imbricamentos e destinos que se costuram no ofício que exerce. Eu entendo a poesia como um oráculo, a fala de uma divindade. Como posso dissociar as duas coisas? Mas sei que, porque não dissocio, corro o risco de ser vista como uma catequista e não uma poeta. Estou fazendo uma poesia na qual o religioso é forte? Estou. Mas é poesia? É poesia. Eu sou catequista, sim, mas em outras horas.[4] 

E por ser religiosa e poeta, profeta e escritora, acaba desagradando aos críticos que olham desconfiados essa poesia deslavadamente religiosa e aos religiosos que acham excessivamente prazerosos os oráculos desta senhora mineira. 

Sem dúvida, o prazer permeia os seus textos, prosa ou poética, de forma desafiadora. Tenho um pouco de pudor de contar, mas só um pouco, porque sei que vou acabar contando mesmo. É porque lá em casa a gente não podia falar nem diabo, que levava sabão, quanto mais... ah, no fim eu falo.[5] 

Voltando a Bataille, a trans­gressão é a desordem organizada, ao introduzir num mundo organizado algo que o ultrapassa. Mas essa organi­zação, fundada no trabalho, tem por base a des­continuidade do ser. O mundo organizado do trabalho e o mundo da descontinuidade são o mesmo mundo. Se os utensílios e pro­dutos do trabalho sãocoisas descontínuas, aquele que se serve do utensílio e fabrica produtos é também um ser descontínuo e a cons­ciência da sua descontinuidade aprofunda-se na utilização e criação de objetos descontínuos. E é no mundo descontínuo do trabalho que a morte se revela: já que para quem trabalha a des­continuidade se faz presente, com poder, através da morte.[6]Ela é tragédia elementar que evidencia a ina­nidade do ser descontinuo. 

E a partir do poema Moça na sua cama, podemos ver como prazer, transgressão e descontinuidade se cruzam na poética de Adélia Prado.

Papai tosse, dando aviso de si,/ vem examinar as tramelas, uma a uma./ A cumeeira da casa é de peroba do campo,/ posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,/ tomo a bênção e fujo atrás dos homens,/ me contendo por usura, fazendo render o bom./ Se me tocar, desencadeio as chusmas,/ os peixinhos cardumes./ Os topázios me ardem onde mamãe sabe,/ por isso ela me diz com ciúmes:/ dorme logo, que é tarde.[7]

Ao reduzir o sagrado, o divino, à pessoa descontínua de um Deus criador, o cristianismo foi longe e transformou o outro mundo num local onde se prolongavam todas as almas descontínuas.[8]Povoou céus e infernos de multidões condenadas àdescontinuidade eterna de cada ser isolado. Eleitos e condenados, anjos e demônios, transforma­ram-se em fragmentos, para sempre divididos, para sempre distintos uns dos outros, para sempre desli­gados dessa totalidade do ser à qual era contudo necessário religá-los.

Assim, o dilema está colocado: como continuar religioso sem perder o prazer? Tal como a proibição criou, na violência organizada das transgres­sões, o prazer inicial, proibindo a transgressão organizada, o cristianismo aprofundou os graus da perturbação sensual. E tal dilema está exposto em Moça na cama.

Sim, mamãe, já vou:/ passear na praça sem ninguém me ralhar./ Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,/ moa de moços no bar, violão e olhos/difíceis de sair de mim./ Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,/os moços marianos vão me esperar na matriz./ O céu é aqui, mamãe./ Que bom não ser livro inspirado/o catecismo da doutrina cristã,/posso adiar meus escrúpulos/e cavalgar no torpor/dos monsenhores podados./ Posso sofrer amanhã/ a linda nódoa de vinho/ das flores murchas no chão.[9]

E o prazer se ligou à transgressão. Mas o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. E o pecado de que fala Baudelaire[10]. As narrativas dos sabbats, por exemplo,correspondem a uma procura do pecado. Sade negou o mal e o pecado[11]. Mas teve que introduzir a idéia de irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. Teve de recorrer à blasfêmia. Sentiu que a profanação era inó­cua, se o blasfemo negava o caráter sagrado do bem, que pretendia macular. A necessidade e a impotência das blasfêmias de Sade são significativas. A Igreja negou o caráter sagrado do prazer, encarado como transgressão. 

Por isso, filósofos e poetas negaram o que a Igreja considerava sagrado[12]. Nessa negação, a Igreja perdeu em parte o poder religioso de evocar uma presença sagrada: perdeu-o quando o diabo deixou de estar na base duma perturbação fundamental. Ao mesmo tempo, os espíritos livres deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o prazer, deixando de ser um pecado, deixava de poder encontrar-se na certeza de fazer o mal, o que implica a destruição da sua própria possibilidade. Num mundo profano só haverá mecânica animal. A consciência do pecado pode manter-se, mas só se mantém ligada à consciência de um logro. O que nos leva, de novo, à Moça na cama. 

As fábricas têm os seus pátios,/ os muros têm seu atrás./ No quartel são gentis comigo./ Não quero chá, minha mãe,/ quero a mão do frei Crisóstomo/ me ungindo com óleo santo./ Da vida quero a paixão./ E quero escravos, sou lassa./ Com amor de zanga e momo/ quero minha cama de catre,/ o santo anjo do Senhor,/ meu zeloso guardador./ Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.[13]

Ultrapassar uma situação não pode significar regressos ao ponto de partida. Há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As ações dos corpos podem, na lucidez, abrir-se, apesar dum empobreci­mento, à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cu­jos aspectos não deixarão de estar disponíveis[14]. O prazer dos corações, o prazer mais ardente, ganhará aquilo que o prazer dos corpos tiver perdido, o que nos remete à fêmea do louva-a-deus como heroína sadiana.[15] 

Notas

[1]Georges Bataille, O Erotismo, Lisboa, Antígona, 1988, p. 101.
[2]Georges Bataille, idem, op. cit., p. 102.
[3]Entrevista a José Castello, O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1999.
[4]Entrevista a José Castello, O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1999.
[5]De Afrodisíacos, Adélia Prado. Texto extraído do livro Filandras, Editora Record, Rio de Jan., 2001, p. 53.
[6]Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 103.
[7]Moça na sua cama. Esses versos publicados inicialmente no livroO Coração Disparado, foram extraídos de Adélia Prado - Poesia Reunida, Editora Siciliano, São Paulo, 1991, pág. 175.
[8]Georges Bataille, idem, op. cit., p. 104.
[9]Moça na sua cama. Idem, poesia citada.
[10]Segundo Otto Maria Carpeaux, Baudelaire era "espiritualista porque levou às últimas conseqüências o pecado como condição da alma, ora enfatizando audazmente a dissolução, ora padecendo pelo que a consciência lhe dita. Daí o ser denominado “poeta do tormento humano”, in Jamil Almansur Haddad, Traços Estéticos in Charles Baudelaire, As Flores do Mal, São Paulo: Círculo do Livro, 1995. 
[11]“Ser arrebatadonão é sempre ativamente resultado do objeto duma paixão. O que destrói um ser arrebata-otambém; o arrebatamentoé sempre, por outro lado, a ruína dum ser que se dera os limites do decoro.” Georges Bataille, A literatura e o mal, Sade, Lisboa, Passagens, pp. 106, 107.
[12]“Onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na terra, nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual.” Friedrich Nietzsche, Além do Bem e do Mal, Prelúdio a uma Filosofia do Futuro, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p.53.
[13]Moça na sua cama. Idem, poesia citada.
[14]Bataille, no prefácio a História do Olho, afirma que "eu nada saberei sobre o que acontece, se nada souber sobre o prazer extremo e a extrema dor!"
[15]Didier Ottinger, Retrato da fêmea do louva-a-deus como heroína sadiana, nos conta que “em maio de 1934, a revista Minotauretraz efetivamente um estudo de Roger Caillois: "La mante religieuse, de la biologie à la psychanalyse", em que o autor fornece aos futuros exegetas do louva-a-deus as chaves de sua interpretação sadiana. Um ano mais tarde, o artigo desenvolvido constituirá um capítulo da obra de Caillois, O mito e o homem. Se lhe aplicássemos as apreciações típicas de André Breton, o louva-a-deus pertenceria sem dúvida alguma à categoria dos "obcecados". Caillois nos ensina que o inseto é um matador apenas por lubricidade. Cita o entomólogo Raphael Dubois, de acordo com quem um acridídeo, se decapitado, executa melhor e mais demoradamente os movimentos reflexos e espasmódicos próprios da cópula. Os biólogos F. Goltz e H. Busquet, a partir dessa constatação, se indagam se "a fêmea do louva-a-deus, ao decapitar o macho antes do acasalamento, não teria por finalidade obter, mediante a ablação dos centros inibidores do cérebro, execução mais prolongada e melhor dos movimentos espasmódicos do coito, de tal forma que, em última análise, fosse o próprio princípio do prazer que lhe ordenasse a morte do amante".R. Caillois, Le mythe et l'homme, Coleção Essais, 1ª ed. 1938, Paris: Gallimard, 1996, p.54-55. 
[www.uol.com.br/bienal/24bienal/nuh/pnuhdad0301.htm#notas].



Picasso - Donner à voir






O socialismo religioso de Paul Tillich -- 1, por Jorge Pinheiro


A produção teórica de Paul Tillich 

sobre o socialismo é muito vasta e cobre dezesseis anos de produção, indo de 1919 a 1935, fora textos produzidos posteriormente em sua fase norte-americana. Embora tenhamos feito uma leitura de seus principais textos, editados em francês, em 1990, 1992 e 1994, [1] nos concentramos em algumas formulações que consideramos fundamentais para a compreensão do fenômeno político e do socialismo em particular. Nossa abordagem de Tillich e de sua produção procura a compreensão de métodos de análise e de crítica da condição socialista e não tomar as idéias e argumentos de Tillich como cânon. Entendemos que seus escritos foram elaborados sob condições especiais e refletem conjunturas e realidades peculiares à modernidade do século XX e, embora nos sirvam de roteiro para reflexão, não podem ser entendidos como palavra final. Metodologicamente optamos por uma leitura não histórica e não cronológica, mas sistemática. Assim, procuramos compreender o pensamento político de Tillich em seu conjunto, situando nessa compreensão a questão socialista e como suas abordagens, mas também suas contradições e perspectivas. 

Tillich nasceu num lar luterano, na cidade alemã de Starzddel, perto de Berlim, em 1886. Em 1910, graduou-se doutor em Filosofia, em Breslau, e em 1912 licenciou-se em Teologia, em Halle. Durante a I Guerra Mundial serviu como capelão no exército alemão. Psicologicamente, foi muito afetado pela visão das mortes e da destruição em massa causadas pela guerra. Sofreu dois colapsos nervosos e sua fé num cristianismo calcado no romanticismo alemão do século XIX desabou. Ele conta como foi esse sofrimento, que produziu a grande transformação de sua vida:

“A transformação ocorreu durante a batalha de Champagne, em 1915. Houve um ataque noturno. Durante toda a noite, não fiz outra coisa senão andar entre feridos e moribundos. Muitos deles eram meus amigos íntimos. Durante toda aquela longa e terrível noite, caminhei entre filas de gente que morria. Naquela noite, grande parte da minha filosofia clássica ruiu em pedaços; a convicção de que o homem fosse capaz de apossar-se da essência do seu ser, a doutrina da identidade entre essência e existência... Lembro-me que sentava entre as árvores das florestas francesas e lia “Assim Falou Zaratustra”, de Nietzsche, como faziam muitos outros soldados alemães, em contínuo estado de exaltação. Tratava-se da liberação definitiva da heteronomia. O niilismo europeu desfraldava o dito profético de Nietzsche, ‘Deus está morto’. Pois bem, o conceito tradicional de Deus estavamesmo morto”. [2]


Para Tillich, o mundo entrara em colapso, e com ele o otimismo naquela cultura que tinha depositado sua confiança no ser humano e acreditado no progresso da civilização. "A experiência dos quatro anos de guerra -- escreveu Tillich--, abriu diante de mim e de todos de minha geração tal um abismo que nunca pôde ser fechado novamente". E foi em Verdun que Tillich situou sua ruptura com o liberalismo teológico alemão. Como vimos, ele fala com tristeza daquela noite que, em meio ao trovejar dos canhões, depois de procurar durante horas dar um pouco de conforto aos moribundos que chegavam ao acampamento, ao amanhecer, exausto, dormiu entre cadáveres. E ali morreu seu idealismo teológico. Há nesta descrição da batalha de Verdun uma releitura das memórias de Goethe quando este fala da batalha de Valmy: "Neste lugar e neste dia começa um tempo novo da história do mundo". Goethe disse que Valmy foi o começo do século XIX, marcado pela fé na razão, na paz, na justiça e na democracia, convencido de que a cultura européia chegava a um momento especial de sua história. Em Verdun, Tillich descreve o fracasso desta fé, a queda desta convicção e, também, o fim do século de XIX. [3]

A experiência que Tillich viveu como capelão durante a I Guerra Mundial, não foi simplesmente uma experiência particular, mas em última instância a compreensão da condição humana, enquanto demonstração da situação espiritual do momento que se abria para o mundo. Nesse sentido, seu destino pessoal coincide com o destino de milhões de pessoas e da Europa inteira. Com a guerra, a derrota da Alemanha e o fim da monarquia, algo novo emergiu do desastre, surgiu das profundezas, da dimensão da profundidade do inconsciente de milhões de pessoas. Se durante alguns anos, o destino da morte cobriu uma geração inteira, derrubando por terra o edifício do século XIX, desse caos surgia a possibilidade de mudança, de construção de algo novo. O julgamento da I Guerra Mundial levou Tillich à compreensão de que não se pode divinizar nenhuma construção política. Mas ao se fazer o julgamento da guerra, também se faz o julgamento das possibilidades humanas. Ora, tal julgamento tem um aspecto positivo, que Tillich chamará de kairós [4] : é um momento de graça onde a possibilidade humana se torna plena de força divina. Mas este kairós é diferente das propostas apresentadas por aqueles socialismos que se posicionam a favor da guerra, pois o kairós aponta para a possibilidade de um mundo novo. E a esperança que ele gera é maior que a simples ilusão humana, pois esta esperança tem a própria eternidade por fundamento, já que aqui a graça gera o kairós.

Herdeiro do pensamento alemão do século XIX, Paul Tillich é devedor do idealismo alemão, em especial de Hegel e Schelling, [5] mas é a partir de 1919, na Alemanha destruída pela I Guerra Mundial, que começa a trabalhar sobre a idéia de uma teologia da cultura. Ora, a cultura deveria ter uma leitura diferente daquela da antropologia da segunda metade do século XIX, que incluía toda a produção humana com sua riqueza e diversidade. Para ele, cultura era a produção da intelectualidade européia ilustrada. E por baixo das manifestações culturais específicas se faz presente a religião. Assim, a religião expressa o incondicionado, dando margem a manifestações especiais, que se apresentam enquanto cultura. Daí seu interesse em manter um permanente diálogo com artistas, escritores e com o mundo social-democrata da época. Dessa maneira, durante toda sua vida Tillich será um teólogo da cultura e um filósofo da religião. 

Para Tillich, depois da I Guerra Mundial, era preciso abandonar aquele Deus concebido pela teologia do século XIX e fazer o cristianismo responder aos problemas e às exigências contemporâneas. Assim, depois da guerra começou a repensar seu cristianismo e se aproximou do socialismo do Partido Social Democrata alemão. Conforme explica o próprio Tillich, ele poderia ter desenvolvido sua teologia a partir da leitura de Nietzsche, mas a experiência da revolução alemã de 1918 [6] dirigiu suas preocupações em direção a uma filosofia da história, a partir da sociologia e da politica. E seu estudo de Ernst Troeltsch (1865-1923) [7] preparou a mudança de direção. [8]

Para definir os contornos do socialismo tillichiano em sua fase inicial devemos nos remeter a dois textos escritos nos dois anos subsequentes à revolução de 1918, redigidos no calor da vitória revolucionária, e que se encontram em “Christianisme et socialisme I e II”. [9] Embora esses textos não tenham a profundidade sistemática dos escritos socialistas dos anos 1920-30, eles procuram explicar de um ponto de vista teológico o papel da revolução que acabava de acontecer na Alemanha. Assim, em 1919, Tillich deu uma conferência pública cujo conteúdo foi um esforço para fundamentar teologicamente um artigo que tinha escrito antes, onde dizia ser tarefa do cristianismo assegurar a unidade interior do ser humano futuro, através da construção de uma nova síntese entre a religião e a cultura. Na conferência afirmava que tal exigência estava fundamentada na radicalidade da teologia. A conferência recebeu o título de “Sobre a idéia de uma teologia da cultura”. [10] Aqui Tillich empreende pela primeira vez uma definição da tarefa da teologia, no quadro das ciências da cultura. Ela aparece como ciência normativa, não por impor sua autoridade sobre as normas da conduta humana ou por traduzir o processo dos julgamentos de valor que esta conduta requer, mas porque está interessada em situações concretas, que constituem seu conteúdo. Ou, em outras palavras, ela é normativa porque é reveladora de sentido. 

A teologia, para Tillich, enquanto ciência do indivíduo deve partir do contexto histórico e cultural. Ele observa que as éticas teológicas anteriores tinham se dado como tarefa analisar o enraizamento da vida moral, ou seja, a raiz concreta do indivíduo em sua comunidade. Mas, agora, no momento em que a teologia reconhece a existência de uma comunidade cultural externa à igreja, comunidade que constitui o horizonte imediato das decisões do indivíduo e que se enraíza numa cultura contemporânea global, a constituição de uma ética teológica pura não é mais possível: torna-se necessário elaborar uma teologia da cultura. [11]

Anos mais tarde, em janeiro de 1933, o nacional-socialismo chegava ao poder. Entre os anos de 1919 e 1924, Tillich tinha participado do Círculo Kairós, um grupo de reflexão sociológico, filosófico e teológico do socialismo. Entre os anos 1920 e 1927 ajudou a editar os Cadernos do Socialismo Religioso, e em 1929/30 os Novos Cadernos do Socialismo. Mas com o advento do nazismo ao poder, ele percebe que o socialismo havia nascido como kairós, com a reflexão contextual da revolução socialista, e deveria desaparecer com ela. Nesse contexto de ascensão do nazismo, de crise e derrota da revolução socialista, não se poderia esquecer o fato de que o julgamento divino se apresenta paradoxal porque declara absoluto, perfeito e santo aquilo que é relativo, imperfeito e pecador, o ser humano. Assim, partindo da teologia de Lutero e de seu conceito de salvação pela graça, Tillich faz uma nova abordagem da questão social na Alemanha e na Europa: aquilo que aparece como abismo da realidade, que reduz a nada o que existe, que coloca todas as coisas sob julgamento, tem um lado positivo. É possível afirmar que o contexto de julgamento pode levar a uma vontade de moldar o mundo de maneira imanente, momento do novo, quando o reinar da eternidade se faz presente no mundo.

Fruto desses anos de reflexão e militância intelectual, Tillich formulou seu conceito de socialismo religioso [12] e escreveu A Decisão Socialista, [13] livro que foi queimado publicamente pelos nazistas em 1933. Se tivesse ficado na Alemanha, possivelmente Tillich tivesse terminado seus dias num campo de concentração, mas salvou-se ao aceitar o convite para lecionar na Universidade de Columbia e no Union Theological Seminary, em Nova York. 

Notas

[1]Paul Tillich, Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands, 1919-1931, Paris, Genebra, Québec: Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1990, 1992. Christentum und Soziale Gestaltung, Gesammelte Werke II, VI, IX, X, XII, XIII, Evangelisches Verlagswerke Stuttgart, 1962, 1967, 1970, 1972. Trad. fr., Nicole Grondin e Lucien Pelletier. Écrits contre les nazis, 1932-1935, Paris, Genève, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994. Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, Gesammelte Werke II, 1962, 1968. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.
[2]“To be or not to be”, Time Magazine, 16.03.1959, Vol. LXXIII, No. 11, pp. 47ss. Tillich foi capa desse número da revista, com chamada especial: “A theology for protestants”.
[3]André Gounelle, Fernand Chapey: “Paul Tillich: esquisse biographique”, Montpellier, Institut Protestant de Théologie, Etudes Théologiques et Religieuses/ETR, 1978/2, 53, pp. 223-224.
[4]Paul Tillich, “Kairos I” in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands(1919-1931), Paris, Genebra, Québec: Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 116-117. Der Widerstreit von Raum und Zeit, Gesammelte Werke, VI, Evangelisches Verlagswerke Stuttgart, 1963, pp. 53-72. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.
[5]Na sua tese sobre Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, La mystique et la conscience de la culpabilité dans le développement philosophique de Schelling (1912), Tillich apresentou o ponto de vista de Schelling sobre mito e mitologia. Martin Leiner, “ Mythe et modernité chez Paul Tillich ”, in Marc Boss, Doris Lax, Jean Richard (ed.), Mutations religieuses de la modernité tardive, Actes du XIVe. Colloque International Paul Tillich, Marselha, 2001, Hamburgo, Londres, LIT, 2002, p. 9. 
[6]Paul Tillich, “ La situation spirituelle du temps présent. Rétrospective et perspective ” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 330-331. Die religiose deutung der gegenwart, Gesammelte Werke, X, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1968, pp. 108-120. Trad. fr. de Nicole Grondin e Lucien Pelletier.
[7]Paul Tillich, “Ernst Troeltsch. Son importance pour l’histoire de l’esprit ” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 219-220. “ Ernst Troeltsch, Versuch einer geistesgeschichtlichen Wurdigung ”, Begegnungen, Gesammelte Werke XII, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1971, pp. 166-174. Trad. fr. de Nicole Grondin et Lucien Pelletier.
[8]Paul Tillich, “On the boundary, an autobiographical sketch”, in The Interpretation of History, New York-London, Scribner, 1936, p. 54. Aux Confins, Paris, Planète, p. 67. Trad. fr. Jean-Marc Saint. 
[9]Marc Boss, “ Protestantisme et modernité: résonances troeltschiennes des premiers écrits socialistas de Tillich (1919-1920) ”, in A Dumais et J. Richard, editores, Ernst Troeltsch et Paul Tillich, pour une nouvelle synthèse du christianisme avec la culturele de notre temps, Québec : Les Presses de l’Université Laval, L’Harmattan, 2002, pp. 88. 
[10]Jean-Claude Petit, La Philosophie de la Religion de Paul Tillich, Genèse et évolution, la période allemande 1919-1933. Montréal : Fides, Héritage et Projet, 1974, pp. 17-19.
[11]Jean-Claude Petit, La Philosophie de la Religion de Paul Tillich, op. cit., pp. 19-20.
[12]Paul Tillich, “Le socialisme religieux I” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands(1919-1931), Paris, Genebra, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 355-362. Christentum und soziale Gestaltung, Gesammelte Werke II, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1962, pp. 151-158. Trad. fr. de Nicole Grondin et Lucien Pelletier.
[13]Paul Tillich, “La Décision Socialiste”, in Écrits contre les nazis (1932-1935), Paris, Genève, Québec: Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994, pp. 17-170. “Die sozialistische Entscheidung”, inChristentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, Gesammelte Werke II, 1962, pp. 219-365. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier, introd. de Jean Richard.