dimanche 29 octobre 2023

Salmo



Senhor, obrigado por aquele baile no paulistano da glória. Obrigado por aquela  moça com quem dancei e tomei uma boa cerveja. Eu a quero ao meu lado, quero  que traduza comigo o poder do teu Espírito. 

O Senhor sussurrou no meu ouvido esquerdo e disse: os teus descendentes, fiéis  à minha aliança, atentos à minha voz, assim como os filhos e as filhas deles,  estarão sob a minha bênção.

Eu o Senhor abençoarei as suas moradas e viverei com eles. Eu quero assim. Eu os suprirei de pão e eles terão fartura.

E Naira, a  sua companheira, se alegrará com isso e te amará porque verá o meu poder.

Vocês serão vestidos de alegria e salvação. Vão celebrar os dias que lhes dou e  farão brilhar a luz do meu Ungido. 

E Jorge & Naira disseram amém.



Kadish, vida, morte e Reino



Jorge Pinheiro dos Santos
Kadish 
Vida, Morte e Reino


O kadish, santificação, é uma das ideias-força da liturgia judaica. Deve ser praticado como ato de glorificação e santificação do haShem, do Nome divino, a partir de uma das visões escatológicas de profeta Ezequiel. Na liturgia apresenta várias versões, e a mais conhecida é a do lamentado, embora o kadish não inclua nenhuma referência aos mortos ou a sua ressurreição. O kadish influenciou várias orações cristãs, e o rabino de Nazaré ensinou aos seus discípulos um kadish que ficou conhecido como o Pai Nosso.

Não há nenhum ensino explícito nos textos das escrituras hebraicas que nos dê uma receita para orar o kadish. Porém, rabinos entendem Levítico 22.32 como um ensino que deve ser respeitado ... “para que Eu possa ser santificado entre os filhos de Israel".

No Talmude, o kadish é mencionado várias vezes. Foi ensinado pelo rabino Yossi: Um dia eu estava caminhando na estrada, e entrei nas ruínas de Jerusalém uma ruína para orar. Vint Eliyahu, o profeta, que estava na porta, esperou por mim até eu terminar minha oração. Depois ele me disse: A paz seja com você, rabino, e eu disse: "A paz seja com você também meu rabino e meu senhor. Ele disse então: Meu filho, por que você entrou nesta ruína? Disse-lhe: para orar. Ele então acrescentou: Meu filho, que voz você ouviu nesta ruína? e eu lhe disse: Ouvi um eco, como o pio de uma pomba, dizendo: Ai dos filhos pelos pecados que destruíram a minha casa, e queimou o meu altar, e os lancei no meio das nações. Ele então completou: Na sua vida não é nesta hora que deve elevar sua voz, mas todos os dias, três vezes ao dia. Não só isso, mas na hora em que Israel entra nas sinagogas e casas de estudo. 

Mas também o rabino Shimon ben Gamaliel exortou homens e congregação a orarem o kadish. 

Na segunda agadá, após a destruição do Templo, o kadish era orado em aramaico e considerado de importância para a sobrevivência espiritual do mundo. O kadish não era orado como lamento, mas pelos rabinos após suas exposições da Torá, nas tardes do sábado. E, mais tarde, quando terminavam o estudo de uma seção de midrash ou agadá. Esta prática se desenvolveu na Babilônia, onde a maioria das pessoas falava o aramaico.

Pessoalmente, vejo o kadish não apenas como peça litúrgica, mas como teologia que na adoração a haShem engloba vida, morte e reino. Por isso, sem dúvida, podemos aprender muito com as tradições judaicas desta teologia do kadish. 

Nessas reflexões sobre adoração, história, teologia e também política seguimos os passos de Shaul de Tarso, rabino filho de rabino, e utilizamos como referenciais teóricos três pensadores: um teólogo, Paul Tillich; um dos pais da Sociologia, Karl Marx; e um filósofo, Slavoj Zizek, com os quais tenho trabalhado durante anos de produção acadêmica. Assim, Shaul, Tillich, Marx e Zizek, convido-os simplesmente a fazer o mesmo que Jesus: romper preconceitos.



Prefácio



O livro de Slavoj Zizek e John Milbank, “A monstruosidade de Cristo, paradoxo ou dialética”, editado em 2009, traz um diálogo entre Zizek, que discute a possibilidade de um materialismo do messias, do mashiah, que discute a questão a deidade do Cristo, ou seja a encarnação de Deus, e a leitura ortodoxa, podemos dizer tomista de Milbank, que faz a defesa do escândalo da encarnação a partir da ontologia.

Em 1967, Jean-Luc Goddard fez um filme inspirado a partir de um artigo sobre donas de casa de um conjunto habitacional no subúrbio de Paris, que se prostituíam para alimentar o consumo supérfluo. O título do filme – “Duas ou três coisas que eu sei dela” -- se refere à Paris dos anos 1960, um retrato da sociedade de consumo, em meio à pobreza das massas e a tragédia da guerra do Vietnã. Numa reflexão sobre espiritualidade e alta-modernidade, numa leitura a partir de Slavoj Zizek e John Milbank, quero falar de duas ou três coisas que nascem da referida discussão.


Tal abordagem, como o amor de Goddard por aquela Paris, também parto do coração. E nasceu no jovem sefardita, marxista, militante, que mais tarde, já na terceira década de vida, reconheci no rabino de Nazaré o mashiah esperado. E é exatamente esse itinerário de construção de vida e teologia que me levam a uma empatia com o materialismo do mashiah pensado por Zizek.


Nesta reflexão, há três coisas que penso, quando tratamos de espiritualidade e alta-modernidade, numa leitura a partir da monstruosidade de Cristo: a primeira coisa é que na modernidade colonial e eurocêntrica se conjugava missão a partir do verbo ir, mas neste momento de alta-modernidade em caos e crise se faz necessário pensar o verbo receber; a segunda coisa, é que naquela modernidade referida a lógica da expansão colonial e eurocêntrica era a dialética, mas nesta alta-modernidade somos chamados a pensar a analética; e como terceira coisa que penso nesta introdução, é que na modernidade o Yeshua era o logos joanino, mas nesta alta-modernidade o Yeshua precisa ser entendido como aná-logos


Ora, estas três percepções permitem leituras críticas da monstruosidade do Cristo, num confronto entre paradoxo e dialética, e colocam preocupações que devem ser levadas em conta quando se pensa espiritualidade e alta-modernidade.


Como sefardita, ou seja, do povo da estrela, que só aceitou o mashiah na maturidade, vivi e vivo a monstruosidade da encarnação e o mesmo acontece com todos aqueles não-cristãos que pensam o cristianismo, quer sejam muçulmanos ou judeus e essa monstruosidade da encarnação, deus/homem, homem/deus, não desafia apenas Zizek, está presente no mundo da alta-modernidade, e tem a ver com os excluídos e expropriados do terceiro mundo.

Quando pensamos a espiritualidade a partir da América Latina temos elementos para uma análise do clamor dos excluídos e expropriados a partir do conceito de outro e vamos fazer isso, a leitura do mesmo -- aquele que se fecha em si, sente-se autossuficiente, etnocêntrico e não aceita o outro, não aceita a alteridade --, trazendo para o momento presente a discussão entre Slavoj Zizek e John Milbank. 

A ontologia, a partir do iluminismo, ou melhor, a partir de Hegel, e este é um dos problemas da abordagem tomista de Milbank, não se baseou na relação pessoa-pessoa, mas na relação sujeito-objeto. Essa ontologia de uma só pessoa levou ao discurso solipsista, onde não há espaço para o outro, pois é não-ser e negatividade. O olhar europeu colocou-se como superioridade em relação ao outro, externo, primitivo e subalterno, o que conduziu à colonização e à expropriação das vidas. Tal situação teve justificação teológica: o outro é revestido da impessoalidade do inimigo, do estranho, do inferior donde, não há problema se for exterminado, já que este outro está fora da totalidade. Nada acrescenta ou diminuiu à totalidade.

Este mal é transmitido de geração em geração. A prática histórica ganha característica de lei, por isso, apesar de injusta, a exploração se torna legal. Mas a legalidade não pode ser o fundamento da moralidade. Toda prática justa deve ir além do pré-estabelecido, da ontologia da totalidade, além da ordem legal vigente. A origem de uma moralidade justa não está no mesmo, mas no outro, por isso a prática originada no mesmo é uma prática alienante, dominadora e opressora. 

No final dos anos 1960, a partir da constatação de que a dialética era limitadora para a formulação de uma teologia da práxis, Enrique Dussel e Juan Carlos Scannone buscaram uma expansão que chamaram analética. A expressão foi cunhada por B. Lakebrink e traduzia uma releitura da analogia tomista. Mas foi Scannone o primeiro a utilizar o conceito, opondo totalidade e alteridade, ao dizer que tal processo, mais que dialético, para distingui-lo da dialética hegeliana, era analético. 

Assim, Dussel e Scannone buscaram uma alternativa às dialéticas hegeliana e marxista clássica, o que foi possível pela afirmação da existência de um âmbito antropológico alterativo, além da identidade da totalidade, que abria a possibilidade de uma refundação do fundamento, deixando de ser tal para destacar-se como fundado. Mais tarde, Dussel dirá que seu método parte de Lévinas, mas que tem como pano de fundo a realidade latino-americana. A princípio foi formulado como leitura de uma ética da libertação latino-americana, mas ao definir a ética como filosofia primeira, a analética torna-se, em Dussel, a compreensão apropriada a uma filosofia latino-americana de libertação.

Em 1976, teólogos reunidos em Dar-er-Salam afirmaram que o método interdisciplinar na teologia e, por extensão a espiritualidade, tem que levar em conta a interrelação entre as teologias e a análise política, psicológica e social, quando se afirma que a criação é fundamentalmente boa e que a presença do Espírito no mundo e na história é contínua. É importante ter em mente o mal que se manifesta na alienação do ser humano e nas estruturas socioeconômicas. As desigualdades são diversas e apresentam muitas formas de degradação humana e, por isso, exigem fazer do evangelho um bem novo para o pobre. São exatamente essas leituras que nos levam a formular a necessidade de uma espiritualidade que chamamos da libertação

Em América Latina dependência e libertação, Dussel afirma que na passagem diacrônica, desde o ouvir a palavra do outro até a adequada interpretação, pode-se ver que o momento ético é essencial ao método. Somente pelo compromisso existencial, pela práxis libertadora no risco, por um fazer próprio, pode-se ter acesso à interpretação, conceituação e verificação da revelação do mundo do outro. Dessa maneira, só aparentemente o pensamento europeu antepôs a teoria à práxis, pois o eu colonizo, o eu conquisto precedem o ego cogito. A exploração e a opressão criaram as condições históricas das quais nasceu uma espiritualidade da justificação e do paradoxo, uma falsa consciência da realidade. A práxis da dominação formou a subjetividade do conquistador: o eu moderno é imperial, livre e violento. O pensamento eurocêntrico e sua extensão estadunidense ocultam o conceito emancipador de modernidade como saída do estado de menoridade, o que traduz a justificação da práxis de violência por parte de culturas que se autocompreendem como desenvolvidas. Esta superioridade impôs um processo civilizatório de via única. 

Uma afirmação de Zizek – devemos, então, de um ponto de vista materialista radical, pensar destemidamente nas consequências de se rejeitar a realidade objetiva. A realidade se dissolve em fragmentos subjetivos, mas esses fragmentos incidem de volta no ser anônimo, perdendo sua consistência subjetiva  e nos remete à questão do paradoxo.

O esquivar-se da realidade e de uma leitura materialista do mashiah, a partir da ontologia do paradoxo, nos leva à frase exposta por Tertuliano de Cartago, escritor cristão do século terceiro, credo quia absurdum!, creio porque é absurdo. 
  
Este absurdo paradoxal sobressalta à concretude e nos chama a mergulhar na imensidão do divino/humano e a fechar os olhos e a dizer como o fez um rabino chamado Shaul, que ficou conhecido como Paulo, o pequeno: os judeus pedem um sinal e os gregos a sabedoria, mas nós pregamos a Yeshua crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos,

Absurdo, escândalo, paradoxo, tudo como fundamento da fé. Essa mesma emunah que justifica Abraão em meio à loucura de um pai que deve sacrificar o filho da promessa. Logo, a fé deixa de ser a emunah hebraica, que define posicionamento militar, e se transforma em paradoxo, não delírio ou devaneio, mas a loucura da confiança no divino, já que somos incapazes de compreender.

Ora, desde Paul Tillich, enquanto herdeiro de Hegel e do jovem Marx, a práxis é a mediação entre a ontologia e a efetivação do real. Esta correlação, que em Tillich vai virar método, é a procura da superação das dialéticas anteriores, que tratavam do conhecimento do ser e de suas manifestações fora da práxis histórica. Devemos, nesta introdução sobre espiritualidade e alta-modernidade também fazer este trânsito, ao construir uma lógica que não será hegeliana, nem marxista no sentido clássico, mas procurará correlacionar ontologia, lógica e metodologia na dinâmica da práxis espiritual.

Essa correlação com a exterioridade caracteriza a mobilidade da espiritualidade da libertação que, por isso, será uma espiritualidade da práxis, pois, desenvolve o caminho da correlação entre exterioridade e ontologia face à dinâmica da práxis, tratando das formulações de método que acompanham a superação dos horizontes ontológicos. Dessa maneira, coloca a afirmação da exterioridade como fonte anterior às exigências da ontologia, fazendo o caminho que leva um cruzamento comum: a ética. 

Espiritualidade na alta-modernidade deve ser construída a partir de duas abordagens, o outro enquanto revelação de um mistério incompreensível da liberdade e a comunidade de fé enquanto infraestrutura que denuncia o poder excludente. E, assim, a fé nasce como ato da inteligência, é um modo de ver quem é, ou o que é, que realmente ultrapassa o que se vê, que vai além do que se vê. Em primeiro lugar, a esperança de que o outro se revelará concretamente e é a possibilidade da produção e reprodução da vida o que vai além da visão do rosto. Assim, a espiritualidade da libertação significa um pensar sobre um outro, mas um outro que se revela na história, que se revela através do outro, que é o mistério incompreensível de nossa liberdade. Crer na revelação do outro é compreender o sentido da história.

Para que a espiritualidade liberte é necessário descobrir o sentido do presente histórico. E esse desvelar o sentido do presente histórico chamou-se profecia, o falar diante. Mas falar diante de quem? Na modernidade, este falar diante nos levou a leitura formal do ir: deveríamos ir para falar diante. Ora, se profecia é isso: falar do sentido dos acontecimentos presentes através da vida cristã, nesta alta-modernidade de caos e crise, o desafio não é ir, mas receber. Vivemos a localidade global, não somos chamados a ir, mas a receber, porque os excluídos e expropriados estão entre nós, conosco. Assim, contra a lógica que não aceita a exterioridade, espiritualidade na alta-modernidade é receber e viver a realidade da fé no chão da vida. 

A espiritualidade libertadora reconhece a vida a partir da analética: onde o outro se apresenta como alteridade, pois irrompe como estranho, diferente, excluído, que está fora do sistema e clama por justiça.

Ora, a ação espiritual é uma atividade de afrontamento, que diz respeito aquelas pessoas que sabem que é preciso consultar e interpelar, e não situar-se como espectadores passivos.

A analética é uma contribuição à questão metodológica, que parte da exterioridade, que é real devido à existência da liberdade humana, capaz de constituir outras histórias, outras culturas e outros mundos. A lógica hegeliana e por extensão a dialética só chegam até o horizonte do mundo, onde engolfa o outro, anulando-o em sua alteridade. Porém, além da identidade divina e além da dialética ontológica de Heidegger existe um momento antropológico, que afirma uma nova maneira de pensar a espiritualidade.

Analético é o fato pelo qual o ser humano, comunidade ou povo se situa sempre além do horizonte da totalidade. O momento analético é o ponto de apoio de novos desdobramentos. Entretanto, o ponto de partida do discurso metódico é a exterioridade do outro, como uma alternativa à dialética que trabalha com a contradição, identidade e diferença. O princípio não é o de identidade, mas de distinção. O momento analético segue uma sequência, a totalidade é posta em questão pela interpelação provocativa do outro. Escutar sua palavra é ter consciência ética, é aceitar a palavra interpelante por respeito à pessoa que fala, por não poder interpretá-la adequadamente. É lançar-se à práxis do excluído e expropriado.

Desde o século dezesseis, a América Latina é um continente ontologicamente oprimido por uma vontade de poder exercida na totalidade mundial pela Europa. Vontade de poder é uma potência que não somente critica os valores estabelecidos, mas que propõe novos, propõe valores na totalidade a partir do lado dominante da bipolaridade: a América Latina tem então como ideal ser europeia.

Na analética se faz necessária a aceitação ética da interpretação do clamor e a mediação da práxis. Esta práxis é constitutiva, condição de possibilidade da compreensão: traduz ser levado à exterioridade, lugar do exercício da consciência crítica. Sem o momento analético o método pode se dizer científico, mas se reduz ao fático natural, ao lógico ou matemático. 

O momento analético é a afirmação da exterioridade: não é somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade, é a superação da totalidade a partir da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. O momento analético é crítico por isso: é a superação do método dialético negativo, mas não o nega, como a dialética não nega a ciência, simplesmente o assume e completa, lhe dá seu justo valor. Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, o imprevisível para a totalidade, aquilo que surge a partir da liberdade não condicionada, inovadora. Só através da analética é possível comprometer-se com o outro, a ponto de arriscar a vida na luta pela libertação desse outro, além do que possibilita a justiça do sistema como consequência. A analética é prática: é uma economia, uma erótica, uma pedagogia e uma política que trabalham para a realização da alteridade humana, alteridade que nunca é solitária, mas a epifania de pessoas, gêneros, crenças, de uma geração, de um tempo e da espécie humana. 

A questão pedagógica não é tratada por Heidegger porque pensa que o ser-no-mundo procede unicamente da pessoas, mas se esquece que quem dá sentido ao meu mundo é o outro. É no processo pedagógico que se organiza o meu mundo, quando me descubro outro que está no outro, me descubro novo. 

A analética, então, não é pura teoria como a ciência e a dialética, mas é prática, porque sua essência constitutiva é a ética. Quando não há práxis não há analética, porque a prática -- a relação pessoa/pessoa -- é a condição para compreender o outro e exercer a plenitude da consciência crítica diante do sistema. O momento chave da leitura analética é o saber ouvir, o saber ser discípulo do outro, para poder interpretá-lo: isto é comprometer-se com sua libertação. Isso implica derrotar a totalidade ontológica divinizada, descer da oligarquia acadêmica e cultural, para expor-se a favor dos excluídos e expropriados pelo sistema. 

Ao citar Bento XVI, de forma crítica, Zizek diz que o papa condenou o secularismo sem Adonai, ocidental, no qual o dom divino da razão foi deturpado em doutrina absolutista. A conclusão do papa parece clara, pois razão e fé deveriam se juntar de uma nova maneira e descobrir seu fundamento comum no logos divino. E seria para esse grande logos, para essa amplitude da razão, que deveriam nortear o diálogo entre as culturas. 

Mas será mesmo?

Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além da totalidade ou além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo e como em grego aná significa mais além, e logos significa palavra, análogo toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. Por isso, quando o logos irrompe enquanto interpelante, deixa de ser paradoxo, é análogo. 

Dialético é um a-través-de, analético é logos que vai além. No logos, num primeiro momento surge a palavra interpelante, mais além do mundo. Este é o ponto de apoio do método dialético, que passa da ordem antiga à ordem nova. Esse movimento de uma ordem a outra é dialético, porém é o outro como excluído e expropriado que é de fato o ponto de partida. A leitura analética surge desse outro e avança dialeticamente, há uma descontinuidade que surge da liberdade do outro. Este método tem em conta a palavra do outro como outro, implementa dialeticamente todas as mediações necessárias para responder a essa palavra, se compromete pela fé-posicionamento na palavra histórica, esperando o dia em que possa viver com o outro e pensar sua palavra.

Os antecedentes da analética foram colocados pelos pós-hegelianos e por Lévinas, não pelos filósofos modernos, nem por Heidegger, porque estes incluem tudo na concepção do ser. Mas, os verdadeiros críticos do pensamento eurocêntrico são os movimentos de libertação do terceiro mundo, porque escutam o outro, o não-europeu que foi excluído e expropriado. Para este, que está mais além, a dialética não basta, é necessário a analética, capaz não de ver, mas de ouvir a palavra crítica do outro, capaz de despertar a consciência ética e aceitar essa palavra, por respeito e fé-posicionamento ao outro, cuja interpelação não é interpretada adequadamente porque sua fundação transcende o nosso horizonte. Partimos da crítica de Lévinas, mas em Lévinas o outro é um outro abstrato. Lévinas ficou no meio do caminho, porque tem uma pedagogia, mas carece de uma política: nunca imaginou que o outro possa ser um muçulmano. Seu método se esgota no começo. Por isso, há que ir mais além de Lévinas e, por suposto, além de Hegel e Heidegger. Mais além que estes por serem ontólogos e mais além que Lévinas por este permanecer numa metafísica da passividade e numa alteridade equivocada. 

Zizek diz que não há provas – e não pode haver – de que Deus exista. Mas em vez de ser motivado por provas, o fiel, seja ele judeu, cristão ou muçulmano é motivado pelo desejo de que Adonai exista. Essa, no entanto, é a melhor prova de que Deus não existe, pois uma vez que só podemos desejar que exista aquilo que não existe, o teísmo é a melhor prova da não existência de Deus. Isso é o que Lacan afirma: os teólogos são os únicos ateístas verdadeiros. 

Mas será assim tão simples?

Depois da questão judaica, Marx faz a crítica econômica do cristianismo. Essa crítica está dirigida às comunidades de fé, já que para Marx elas são a expressão da miséria. Mas também faz a crítica da religião quando analisa o fetichismo da mercadoria, porque a leitura religiosa do mundo real só vai desaparecer quando desaparecerem as condições atuais de vida. Mas por que é assim? Em que consiste essa leitura do mundo real? Porque o olhar religioso vê a existência separada das relações construídas pelos seres humanos, mas essa existência independente das relações sociais, essa existência não-real, é reflexo de outro real. Essa divisão entre a aparência que encobre a existência e esconde a realidade é o fenômeno do fetichismo. O fetichismo da mercadoria, um modo estranho de fetichismo, consiste nisso: esconde o caráter social do trabalho e se manifesta como se fosse um caráter material dos próprios produtos do trabalho. Ou seja, em relação à mercadoria, acontece o mesmo que no mundo da religião: a realidade se apresenta separada, alienada, das relações de trabalho, do essencial concreto e de seu produto, criando uma realidade aparente, como se o valor da mercadoria pertencesse por direito a sua própria estrutura independente.     

Uma espiritualidade da libertação é uma ética da vida. Há aqui uma passagem da razão estratégica, enquanto campo estratégico de forças sem sujeitos, em direção à razão libertadora, situada ao nível da microfísica do poder. Entendo esta questão a partir das barricadas de maio de 1968. Será que a razão libertadora, que se dá como síntese da ação crítico-desconstrutiva, num primeiro momento, para depois passar a ação construtiva de normas, subsistemas e sistemas completos, tem um componente que não é razão instrumental, mas razão de mediações a nível prático? Quando a razão estratégica visa chegar a um fim exitoso é preciso entender que, enquanto razão crítica, esse fim é uma mediação da própria vida humana, principalmente quando excluídos e expropriados são partícipes dessa ação.

É a partir dos excluídos e expropriados enquanto partícipes, que a razão estratégico-crítica realiza a ação transformadora. Mas quem é este sujeito das transformações e como se articula a espiritualidade com este sujeito histórico? Ora, a espiritualidade é a consciência ilustrada da práxis judaico-cristã. Agir no espírito pode vir de uma comunidade estranha ao excluído e expropriado, mas que adere ao clamor da vida não por sentimentos necessariamente religiosos, mas por superação. Por isso, a espiritualidade judaico-cristã está sempre exposta às oscilações oportunistas, por não perder o vínculo ideológico com o chão materno e seu messianismo.

Ora, a espiritualidade libertadora não é apenas uma razão estratégica que procura realizar os fins que as táticas e as circunstâncias impõem. Na verdade, não tem as mãos livres quando se trata de espiritualidade libertadora, em relação aos excluídos e expropriados. O êxito dependerá das condições de possibilidade, ou seja, será impossível separar teoria e prática. Por isso, a espiritualidade da libertação deverá saber integrar os princípios enunciados na escolha de fins, meios e métodos, que levam à práxis crítica e posicionam o outro como análogo.

O sistema-mundo nesta alta-modernidade em caos e crise, ao impossibilitar a produção e reprodução da vida caminha no sentido de aprofundar seu próprio caos e crise ao semear doenças, fome, terror e morte. As vítimas são esses bilhões de seres humanos, cujas dignidades e vidas são permanentemente destruídas. A alta-modernidade e sua globalidade levam a um assassinato em massa e ao suicídio coletivo. São os cavalos do apocalipse. É o fetichismo do capital, que se apresenta como sistema formal performático, onde dinheiro produz dinheiro. 

Cabe, por isso, à espiritualidade libertadora levantar uma ética enquanto recurso diante de uma humanidade em perigo de extinção. A esta espiritualidade cabe a corresponsabilidade solidária, que parte do critério de vida versus morte, de caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da cínica irresponsabilidade ética diante de excluídos e expropriados e a paranoia fundamentalista.

Aqui estamos diante do sujeito histórico que aponta para a esperança escatológica, para a construção do Reino, que se realizará com o ir mais além da alta-modernidade, onde o ser humano excluído e expropriado não apenas do sistema, mas do direito à produção e reprodução da vida, colocará na ordem do dia a questão da revolução enquanto promessa escatológica. E a espiritualidade da libertação deve entender que tal ação e postura não nega o análogo crístico, mas que deve deixar de ser apenas hermenêutica teórica e desenvolver-se enquanto presença que fundamenta a transformação prática. E isso só pode acontecer no sentido estrito de uma ética da libertação, não fundamentalista ou salvacionista.

É por isso que a espiritualidade da libertação deve se esforçar para apresentar um princípio universal: o dever da produção e reprodução da vida de cada ser humano. Princípio este que é objetiva e subjetivamente negado pelo sistema-mundo e pela globalização.

E volto ao Goddard de Duas ou três coisas que eu sei dela, quando cita a frase do Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein: os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem. Só que em seguida vemos Juliette andando por Paris e dizendo: mas o mundo sou eu. 

Linguagem e pessoalidade, a espiritualidade libertadora caminha sobre o fio da navalha: de um lado está a negação de presença e recebimento do outro, e de outro o fundamentalismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem partir de critérios claros e de um princípio geral -- o dever da produção e reprodução da vida -- que possibilitem cumprir às mediações existentes. É nesse sentido que receber, e tudo o que isso implica, rompe a discussão tão moderna entre paradoxo e dialética. Não há paradoxo porque o Yeshua é análogo e o método é analético. Os fins estratégicos devem ser enquadrados dentro desses princípios gerais, a fim de que, com factibilidade ético-crítica a espiritualidade possa negar as causas da negação da vítima. Essa é uma luta desconstrutiva, que exige meios proporcionais àqueles contra os quais a luta é travada.

Mas se por um lado a espiritualidade traduz uma ação desconstrutiva, nesta alta-modernidade de caos e crise, por outro promove transformações construtivas que se projetam na esperança escatológica e Deus é nesta esperança e possibilidade de produção e reprodução da vida, e o Cristo já não é monstruosidade ou paradoxo, mas análogo. E é nesse sentido que Deus é, e o Cristo é análogo, pois se projetam no eterno agora, planejado, realizado em progressão, mas nunca totalmente. 

É exatamente a partir daqui que desejo convidar descendentes e leitores a fazerem uma viagem no tempo, onde memórias e vidas se misturam numa reflexão a partir do kadish, vida, morte e reino. 






Que o vento da justiça sopre sobre você, que a paz seja como riachos de águas, e que o fogo do amor traga alegria!


1.

Um reformador marginal

Somos desafiados, ao ler o Novo Testamento, a buscar as bases bíblicas da política social de Jesus. E aqui faremos isso a partir do texto de Lucas 4.14-30 e tomaremos como referenciais a Ben Witherington III e John Howard Yoder. 

Witherington III analisa a marginalidade social de Jesus a partir das realidades expressas pela hierarquia sacerdotal da época em relação a ele. Ao não ter pai conhecido e reconhecido não tinha direito a um nome. Por isso, era visto como alguém de genealogia desconhecida. E o fato de ser nomeado homem de Nazaré, oriundo de uma vila de camponeses e artesãos, pouco conhecida e afastada das rotas comerciais, fazia com que sua identidade geográfica também o desclassificasse como possível figura messiânica. 

Assim, genealogia e geografia faziam dele um judeu socialmente à margem, que, por suas origens, não merecia crédito. Mas, esse homem-sem-nome, esse homem-sem-terra santa iniciou suas atividades de maneira no mínimo inusitada na sinagoga de Nazaré, conforme descreve Lucas.

Segundo Yoder, na época, não havia nas sinagogas uma leitura dos profetas regularmente prescrita. E o fato de essa passagem não estar presente nos lecionários conhecidos posteriormente, tende a indicar que Jesus a escolheu de propósito. Morris, afirma que essa hipótese corrobora a afirmação de Lucas: “abrindo o livro, achou o lugar onde estava escrito”. Aqui dois detalhes merecem ser realçados: primeiro, é a única referência clara nos Evangelhos de que Jesus sabia ler. E, segundo, por que, ao ler Isaías 61.1-2, ele omitiu uma frase, curar os contritos de coração e acrescentou outra, libertar os oprimidos, que está em Isaías 58.6? Na verdade, utilizou os textos que considerou mais úteis à exposição de sua plataforma político social.

O uso que fez de termos políticos, como reino e evangelho, mostram que tal seletividade tinha uma finalidade: falar de uma promessa política de intervenção social alternativa àquelas dos poderes presentes na época. Assim, se lermos o texto apresentado por Jesus, numa perspectiva rabínica, estamos diante de uma recorrência às promessas do jubileu, quando as injustiças acumuladas durante anos deveriam ser sanadas. A fala daquele homem de identidade questionada não afirmava que a Palestina seria resgatada na escala temporal, mas que deveria entrar na vida palestina o impacto solidário do ano sabático. 

Da mesma maneira, o reino vindouro surgia enquanto compreensão profética do ano sabático. Nesse sentido, o sábado da semana ampliava-se no sábado dos anos, onde o sétimo deveria ser de descanso e reforma, já que restaurava o que tinha sido exaurido, natureza e pessoas. Essa coleção de regulamentos presente em Levítico concernia ao direito de propriedade da posse da terra e de pessoas, que constituíam a base da riqueza. O propósito era fixar limites ao direito de posse, já que toda propriedade, natureza e pessoas, pertenceria a Adonai. Assim, ninguém poderia possuir a natureza e as pessoas de forma permanente, pois tal direito pertencia a Adonai. E o ciclo de sete anos sabáticos desaguava no quinquagésimo ano, o jubileu messiânico, que só vai aparecer de novo em todo o Antigo Testamento apenas em Números. Mas, Jeremias falou de uma reforma social na Jerusalém sitiada, quando Zedequias proclamou a liberdade dos escravos hebreus. Da mesma maneira, em Isaías encontramos a reforma como parte da visão profética. Nesse sentido, a reforma do jubileu apontava para a reestruturação econômica e sócio-política das relações entre os povos da Palestina.

É interessante que Flávio Josefo tenha afirmado anos depois da presença de Jesus em Nazaré, que “não existe um único hebreu que, mesmo hoje em dia, não obedeça à legislação referente ao ano sabático como se Moisés estivesse presente para puni-lo por infrações, e isso mesmo em casos que uma violação passaria despercebida”.

Apesar da afirmação de Josefo, sabemos que um enquadramento econômico e social a partir das disposições de Levítico 25, o que incluía inclusive a redistribuição da propriedade, nunca foi literalmente vivido entre os judeus. Por isso, coube a um sem-terra prometida levantar o discurso do ano da libertação. 

A proposta de reforma do Jesus marginal era a anunciação profética da entrada em vigor de uma era nova, caso os ouvintes aceitassem a notícia. Não estava a se referir a um evento histórico, mas reafirmava uma esperança conhecida de seus ouvintes: a da reforma econômica e sócio-política que deveria mudar as relações entre os povos palestinos.

E aquele homem de genealogia desconhecida e geografia marginal colocou a centralidade da reforma sobre ele próprio ao afirmar que naquele momento, na sinagoga de Nazaré, a promessa profética se cumpria. E é isso que Lucas vai mostrar na sequência de seu evangelho: o reformador marginal era o messias prometido.

A centralidade do messias

A revolta generalizada da terra brasilis urbana contra a atual situação em que vive grande parte da população nos leva a pensar uma reforma radical, no sentido protestante. As manifestações e mobilizações apontam para aquilo que Tomás de Aquino afirmava: “há um mínimo de condições exigidas para a prática da virtude”. Assim, a existência de vidas em condições desumanas, injustas, inferiores, leva milhões de brasileiros à prática de atos contrários aos padrões morais. A terra brasilis quer definir sua identidade enquanto nação. 

A terra dos brasis não enfrenta um problema de subdesenvolvimento, mas outro, mais complexo, que é o do desenvolvimento desigual. A resistência à mudança localiza-se na natureza patrimonialista do pensamento arcaico. E tal pensar não está apenas nas zonas rurais tradicionais, mas dentro do próprio espaço urbano. Diante de tal situação, qual o caminho da rebeldia protestante? Será possível uma resposta coerente, que apresente saídas para os grandes dilemas desta terra cantada em verso e prosa? 

A situação se insere num contexto mundial, que é fruto das transformações sociais e dos imperativos morais e religiosos decorrentes da ampla utilização da tecnologia nos meios de comunicação, produção e reprodução da vida. Em última instância, a tecnologia é boa, pois modifica as condições de vida das pessoas, mas, paradoxalmente, virou o mundo de ponta cabeça.

Somos exortados a viver a reforma radical, em marcha, já que não é mais possível tolerar a exclusão de direitos e possibilidades. Os rebeldes protestantes não podem divorciar-se da luta pela justiça. E essa luta traduz ao nível do real, atributos do próprio mashiah, já que ele fez do humano mordomo e não dono do mundo. Esse messias lança o desafio, já que é impossível adotar a criança da manjedoura e esquecer a realidade, colocar-se sob a cruz e esquecer a sociedade em que vivemos.

A vida é o primeiro passo para a construção de uma centralidade do mashiah. Ao ler o evangelho de Lucas, 

“indo a Nazaré, onde se criara, ao sábado entrou na sinagoga segundo o seu costume, e levantou-se para ler. Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías e, abrindo-o, achou o lugar em que estava escrito: O espírito do haShem está sobre mim, Pelo que me ungiu para anunciar boas novas aos pobres; Enviou-me para proclamar libertação aos cativos, E restauração da vista aos cegos, Para pôr em liberdade os oprimidos, E proclamar o ano aceitável do haShem. Tendo fechado o livro, o entregou ao assistente e sentou-se; e todos na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Então começou Yeshua a dizer-lhes: Hoje se cumpriu esta Escritura nos vossos ouvidos” 

... temos o programa ministerial do rabino de Nazaré. E no texto destaca quatro pontos programáticos: anunciar uma nova ordem aos excluídos de bens e possibilidades; proclamar a libertação aos deserdados da terra; restaurar a vida dos que estão sendo ceifados pelas enfermidades; e apregoar o ano aceitável do haShem.

Ora, se os três primeiros itens do programa se referem aos aspectos materiais da vida humana, sobre o que trata o quarto item? O compromisso, a opção por estar na trincheira ao lado daqueles que lutam por dignidade e justiça. 

Aqui, está, à maneira protestante radical, as sementes para uma centralidade do evangelho do rabino de Nazaré para nossas vidas e para a nação. E podemos tirar algumas conclusões desta abordagem profética. 

A nossa emunah, fé posicional judaico-cristã, deve interpretar a condição humana à luz do propósito do messias. Somos porta-vozes do messias para condições específicas. Somos protestantes em ação. Somos protestantes do povo do messias e de nosso tempo. Exercemos uma ação profética à luz da compreensão do destino do povo do messias. O propósito básico de nossa pregação social é a aliança no sangue do mashiah. Justiça e juízo, amor e integridade são importantes para a estrutura política, a religião organizada e a organização das instituições econômicas da nação. Nosso compromisso é com o messias. O mashiah participa dos combates pela justiça, é a centralidade de nossa ação. Hoje, somos desafiados, na centralidade do mashiah, a enfrentar os dilemas destes dias.

Se os protestantes colocam-se na brecha social e consideram fundamental participar da vida real do país, em que sentido podemos falar da centralidade do mashiah numa reforma radical da sociedade brasileira? O que significa, em última instância, a centralidade do mashiah? Teologicamente, fazemos a proclamação da soberania do messias, depositando sobre os ombros de nossa juventude a tarefa de aceitar o desafio do momento, a fim de demonstrar a evidência da ação do mashiah no mundo.

O perigo é, em meio às rápidas transformações sociais, ficar atrás em nosso pensamento social e pregar um evangelho que não seja compreensível e adequado às necessidades do sociedade em mudança. O papel dos protestantes numa sociedade em crise é seguir os passos do rabino de Nazaré, amante apaixonado dos excluídos de bens e possibilidades. Ele, o messias, é a centralidade para a solução dos problemas porque sob sua soberania está nossa ação política, a favor da vida, na reforma permanente do reinar de haShem. E neste que fazer, o fazemos todos, juntos a partir de nosso atuar transformador.

Mas convém constatar que não estamos inventando a roda. Ao contrário, fazemos parte de uma história impressionante, que não pode ser esquecida. A compreensão da necessidade de uma sociedade solidária, organizada, participativa e militante, nasceu com os anabatistas, no início do século dezesseis. Eles foram cristãos que se levantaram contra a dominação dos príncipes alemães e da instituição religiosa hegemônica. Eles partiram de uma frase de Marcos, um apóstolo de Yeshua, que disse que quem crer e for batizado será salvo. A partir dessa afirmação, deduziram que quem não crê de nada serviu o batismo quando pequeno. Então, negaram todo valor ao batismo de crianças, afirmando que esse sacramento deveria ser recebido quando a pessoa tivesse plena consciência do que estava a fazer. E aqueles que tinham sido batizados antes da idade da razão deveriam ser batizados de novo. E começaram a crescer. Mas, o crescimento dos anabatistas na Alemanha e na Europa central se tornou um problema para as autoridades eclesiásticas, porque propunha às pessoas a não batizarem seus filhos. Logicamente, os católicos e, por extensão, os reformados se colocaram em oposição direta a essa idéia, e o como o poder eclesiástico estava intimamente ligado aos príncipes feudais na Alemanha e também na Europa central, as forças do feudalismo se lançaram ao extermínio dos anabatistas.

Nessa conjuntura de choque, em Zurique, em meio ao pessoal que seguia o reformador Zwinglio, surgiu um grupo de anabatistas que rejeitou o poder eclesiástico, fosse ele reformado ou católico, exigindo a autonomia dos novos agrupamentos cristãos. E, assim, eles próprios passaram a escolher seus pastores e a construir comunidades separadas do estado. E a confissão de Schleithein reagrupou várias dessas comunidades ao redor das sete teses de Schaffhouse, o primeiro tratado de teologia anabatista, que dizia: 

O batismo está reservado aqueles que aceitam a fé, quer dizer, aos adultos seguros da redenção, que desejam viver fielmente a mensagem do mashiah. A ceia do messias é uma cerimônia de lembrança feita com pão e vinho, mas nela não há nem consubstanciação, nem transubstanciação. O pastor é eleito livremente pela comunidade e não está investido do sacerdócio. Estão excluídos da ceia do messias todos os fiéis que caíram em erro ou pecado. A separação do mundo é total: tanto eclesiástica como política. É necessário se separar de todas as instituições que não vivem o evangelho. Um anabatista não pode exercer funções civis e nunca servir às forças militares do mundo. Ele não deve jamais fazer juramento.

Logicamente muita água correu debaixo da ponte e não concordamos com todas as ideias anabatistas, mas, sem dúvida, quem mais nos interessa nessa abordagem solidária dos levantes camponeses é o pastor luterano Thomas Müntzer. Em 1521, ele liderou um grupo de anabatistas que se somaram aos camponeses sublevados ao redor da reivindicação de terra e liberdade. Müntzer criou assim, pela primeira vez na história, um movimento de libertação camponês anabatista. 

Müntzer não foi apenas um teólogo, mas um militante que praticava sua fé. Acreditava ser um profeta de haShem, chamado para implantar o reino de haShem. Seu dever era denunciar e executar as sentenças contra os governantes que exploravam o povo. Suas pregações estavam impregnadas de conteúdo social e político: o fim da velha Igreja deveria marcar o inicio de uma nova ordem social.
 
Friedrich Engels, colaborador de Karl Marx, argumenta que nas guerras camponesas lideradas pelos anabatistas se travaram lutas de classe. E apesar de terem uma cara religiosa, suas reivindicações iam além da expressão religiosa que apresentavam. Para Engels, a política de Müntzer nasceu de seu pensamento revolucionário, que caminhava adiante da situação social e política de sua época da mesma maneira que sua teologia. Seu programa exigia o estabelecimento imediato do Reino, com o milênio de felicidade, anunciado como retorno da Igreja à sua origem, com a supressão de todas as instituições que se encontravam em contradição com o mandamento do rabino de Nazaré.

Para Müntzer, o céu estava aqui no chão. E por isso o militante cristão deveria construí-lo na vida. A esse militante cabia a missão de estabelecer o reino sobre a terra. E afirmava que depois da morte não haveria céu, nem inferno. Da mesma maneira, não existia diabo, mas a cobiça dos senhores feudais. Seus sermões se mesclavam ao clamor político, que deveria instaurar uma nova ordem social. A partir de Müntzer, os anabatistas fizeram dos sermões proféticos, elaborados a partir da realidade social em que estavam inseridos, manifestos revolucionários, cujas propostas atemorizavam príncipes e governantes eclesiásticos em toda a Europa. A compreensão que os anabatistas tiveram através do cristianismo da condição social em que se encontravam os camponeses e excluídos, sem dúvida, quebra o estereótipo da fé como fator de alienação social e política. E nós estamos, aos poucos, entendendo isso.

Mais tarde, em combate, seu exército foi derrotado e ele foi preso e executado. Mas a guerra camponesa na Alemanha se estendeu até 1525, quando os anabatistas revolucionários foram afogados em sangue.

A utopia anabatista, porém, não morreu aí, subsistiu no coração de muitos. Sete anos depois da morte de Thomas Müntzer, em 1532, uma insurreição tomou conta da cidade de Müntzer. Ela foi iniciada por um ex-padre da Catedral de Müntzer, que se tornou luterano, Bernard Rothmann. Mas este foi expulso da cidade e na sequência, em 1534, o pastor anabatista Jan Matthys, junto com outros líderes, entre os quais Jan van Leiden e Gert Tom Kloster, declarou a cidade livre do domínio dos príncipes e do poder eclesiástico. 

Matthys iniciou uma reforma radical: os proprietários de terras foram expropriados e suas terras e bens distribuídos entre os camponeses. Dando sequência ao movimento, ele e um grupo de anabatistas atacaram a guarnição liderada pelo príncipe Franz von Waldeck, que era também bispo de Münster e chefe do exército. No confronto Matthys foi  morto. Foi, então, sucedido por Jan van Leiden. Após um ano de resistência, Waldeck liderou um exército bem equipado e assaltou a cidade. Jan van Leiden e seus oficiais foram torturados e executados. Os combatentes anabatistas foram lançados às prisões e, posteriormente, deportados para outras regiões da Alemanha e Suíça. 

A partir desse momento as pequenas comunidades anabatistas, que reuniam crentes conscientes de sua fé, passaram a viver umas isoladas das outras, de forma clandestina. Seus líderes eram leigos que pregavam em roupas civis. Adotavam uma disciplina e uma ética rígidas a fim de sobreviverem na clandestinidade. Essas pequenas igrejas se refugiaram no interior da Europa e se estruturaram de forma autônoma. Cada igreja vivia do compromisso de cada crente. 

Essa história, essa utopia que ardeu em corações e mentes, faz parte de nossa origem. Se a Reforma protestante está ligada ao capitalismo que surgia, as comunidades anabatistas apontavam o caminho de uma sociedade solidária. E como elas, cada uma das comunidades de fé devem ter autonomia e viver do compromisso consciente e voluntário de seus membros. E como elas sonhamos com a liberdade, a justiça e a paz. Talvez, por isso, em nossos corações ainda pulse a força da utopia, como a dos evangélicos radicais, que afirmavam ter haShem falado no passado, mas que ainda fala hoje: fala nos corações. A partir de Thomas Müntzer podemos dizer que os ideais de liberdade, justiça e paz repousam no coração daqueles que explorados e perseguidos têm consciência de sua situação. 

Se você está boquiaberto com esta história, faça também no seu coração a sua declaração de fé solidária. Tenha plena consciência do caráter permanente e universal das transformações sociais, já que estão ligadas à própria vida em comunidade. E creia que os movimentos libertários da história humana traduzem esse anseio inerente ao espírito humano. Por isso, temos que levar em conta que as transformações falam a língua da sua época. É natural que os anabatistas e tantos outros, séculos atrás, adotassem a da face humana do cristianismo.

Essa é a força do reino: é utopia humana que baliza sonhos e esperanças, em tempos e lugares diferentes. Por isso, somos chamados a resgatar o pensamento libertário das comunidades cristãs anticlericais que pontuaram a Idade Média e que culminaram com o messianismo revolucionário anabatista de Thomas Müntzer. Tal messianismo propôs uma reforma radical, sem a qual não poderia haver restauração cristã, já que para ele o reino estava presente no cotidiano. Ele quis instaurar a dignidade de homens e mulheres, um reino no aqui e agora. É esse caminho que nos permite dialogar fraternalmente com as comunidades cristãs. Na verdade, o solidarismo em construção permanente não estabelece doutrinas e dogmas, mas contextualiza as reflexões e práticas cristãs. Por isso nadamos pela orla da Reforma protestante, mergulhamos na ação radical dos cristãos anabatistas e chegamos ao jovem Marx a braçadas. E, agora, cá estamos, um pensador solidário em diálogo com este mundo sempre desafiador. 

 
2.

O amor do Deus único

Bendita seja a eternidade, que ama as gentes e a vida plena de sentido, que nos apresenta os limites para que não sejam quebrados com ignorância, mas possibilita a liberdade de ir além. Bendita seja a eternidade, que ama as gentes.

O amor do Deus único foi revelado no messias através dos seus ensinos e das suas obras, da sua morte na cruz. Quando crescemos na graça e no conhecimento de Yeshua hamashiah, nos revestimos do caráter dele e nos parecemos mais com ele. O caráter de Yeshua se revela em nós através das virtudes que dão o tom da nossa comunhão com os irmãos na comunidade de fé. 
 
Nossa comunhão com as pessoas, na comunidade de fé, se faz através da misericórdia, que é um relacionamento afetivo e cuidadoso com irmãos e pessoas machucadas e abatidas. Quando Yeshua viu a multidão, ficou com muita pena daquela gente porque eles estavam aflitos e abandonados, como ovelhas sem pastor. Por isso, somos chamados à bondade, prontos para fazer o bem sem olhar a quem; à humildade, numa atitude prestativa; à mansidão, numa relação sem coerção para mudança das pessoas; à longanimidade, com boa vontade para ser tolerante diante da fraqueza das pessoas; ao perdão, já que somos perdoados por haShem caso perdoemos; e à paz, já que como resultado da prática do amor, do perdão e da bondade, a comunidade de fé mostra ao mundo que a reconciliação e a paz podem ser alcançadas em Yeshua. As decisões feitas em justiça e amor constroem a paz que excede a compreensão humana, mesmo nas situações de conflito.

Nós, criados à imagem e à semelhança do Deus único, somos chamados a viver a experiência cristã como comunidade de fé. Podemos usufruir, como iguais que somos, as bênçãos dessa comunidade nas celebrações de nossa igreja. Somos convocados a conviver no corpo de Yeshua que alcança o mundo, na comunidade de fé da nossa igreja local.

Portanto, não existe mais condenação para aqueles que estão em Jesus. A lei da ruach da vida em Yeshua te libertou da alienação e da extinção. Coisa impossível ao esforço humano, porque enfraquecido pelo distanciamento, o Deus único enviando o seu filho numa humanidade semelhante à nossa, condenou a alienação, o distanciamento e os alvos errados, a fim de que sua justiça se cumprisse em nós que vivemos segundo o espírito. Com efeito, os que vivem segundo o  espírito, as desejam as coisas que são do espírito.

Na carta do apóstolo Paulo -- que passaremos a chamar de rabino Shaul por ter sido fariseu filho de fariseus --, aos judeus romanos temos dois blocos de textos: um maior, que é o capítulo oito inteiro, e cuja temática é a vida sob a lei do espírito; e um bloco menor (1-5) que trata especificamente da vida emancipada por esta lei do espírito. Esses dois blocos nos dão a linha de pensamento de Shaul: a vida emancipada; a vida exaltada; a vida esperançosa; e a vida exultante. Dessa maneira, o rabino traça o curso da vida, na qual a graça triunfa sobre o esforço humano, e os justos experimentam o livramento da alienação.

A epístola de Shaul, como um todo, enfoca três blocos temáticos: um que fala da justificação através da emunah; outro que discute a exclusão temporal do povo da estrela, e a inclusão daqueles que não têm o berit milah; e por fim exortações práticas.

Ao analisar a justificação, mostra que a libertação do ser humano repousa fundamentalmente sobre a emunah, que é fé-posicionamento, proveniente da graça de Yeshua. Essa misericórdia de haShem não depende da lei, porque o homem, em sua natureza pecaminosa, não tem como responder efetivamente às exigências da lei, que expressa a santidade de haShem. Assim, a graça provem do messias, que no seu amor e sacrifício, perdoa os pecados dos homens. A liberdade da vida cristã, liberdade diante da lei, não depende do próprio da própria pessoa, nem do que ele possa fazer, mas daquilo que haShem já fez por ele.

Há outra carta do rabino Shaul, que também trata dessa relação esforços humanos versus graça, que é a carta escrita aos gálatas. Ali, o rabino escreve sobre a justificação através da emunah, falando da liberdade.

Sem dúvida, a análise de Shaul parte da Torá e ele escreve aos judeus romanos, e explica que a promessa feita a Abraão teve por base a emunah, já que ainda não tinha realizado o berit milah. 

O texto está inserido numa epístola, forma literária específica, amplamente utilizada pelos apóstolos e pela comunidade de fé primitiva. No capítulo que segue, analisaremos com mais detalhes esta forma literária, inserindo-a no contexto histórico de gregos e romanos durante o primeiro século da Era Comum. A epístola aos Romanos é uma carta de construção sofisticada, porque o rabino Shaul, o apóstolo Paulo cristão, intercala um pensamento central com várias digressões, tornando complexa a conexão das idéias. E o tema que o rabino trata é um assunto eletrizante para a época, mas hoje aceito pela totalidade dos seguidores de Yeshua: povos e raças de todo o mundo podem se tornar seguidores de Yeshua e não somente o povo da estrela. 

Em Romanos 8:1-5, encontramos no grego cinco verbos fundamentais para a compreensão do que o autor estava expondo. São eles: (1) receber alforria, o oposto ao estado de escravidão, não estar sujeito a uma obrigação, livrar, libertar. Te libertou e variantes: me libertou, nos libertou. É um aoristo passado, isto significa que a ação foi plenamente realizada, mas segue vigente no presente. (2) penalidade imposta por condenação judicial, servidão penal, condenar. Também é um aoristo passado. (3) encho, aterro, encho a ponto de transbordar, dou plenitude, cumpro. (4) ando, vivo, dirijo minha vida. (5) penso, ter a mente controlada por, ter como hábito de pensamento, inclinar-se.

Desses verbos, dois são antônimos (receber alforria versus condenado judicialmente) e levam à oposição que o rabino quer mostrar entre a lei da ruach da vida e a lei da alienação e do extermínio. Assim, ao regime da alienação, o rabino Shaul opõe o novo regime da ruach hakadosh  e diz que em nós transborda o que é justo e bom. Esse transbordar o que é justo, o que é bom, só é possível pela união com o messias através da emunah e tem sua tradução no mandamento do amor. Isto porque, não vivemos segundo a materialidade da vida, mas andamos no espírito, ou seja, temos a mente controlada pela ruach.

A palavra lei aparece 70 vezes no texto de Romanos e sempre tem uma das três conotações: (a) revelação de haShem e de sua santidade, (b) foi dada para esclarecer o que é a alienação, e (c) existe para orientar a vida dos justos. Da mesma maneira, a palavra carne é sempre utilizada com o sentido de natureza humana enfraquecida e natureza humana não regenerada.

O rabino nos apresenta a operação da ruach hakadosh, entendida como aquela que comunica a vida, aquela que dá liberdade e que intercede junto a Adonai.

É interessante notar que o texto original de Romanos 8, em grego, começa com dois advérbios intercalados por uma partícula ilativa, que poderíamos traduzir assim: Atualmente, por isso, nada em absoluto pode condenar aqueles que estão em Yeshua. 

Essa partícula ilativa, que é um conectivo, nos leva ao capítulo 7, onde o rabino Shaul mostra que esforços humanos e alienação não são sinônimos. E que há uma grande diferença entre a esforços humanos e a natureza humana. Entre o que é espírito e o que é material. O corpo, com os membros que o compõem interessa a Shaul enquanto instrumento da vida moral. Submetido à tirania da materialidade, à alienação e à destruição, Shaul clama: quem me livrará? E dá "graças a haShem, por Yeshua, nosso senhor". É a partir desse clímax, que dá sequência ao texto, informando que por isso, hoje, nada em absoluto pode condenar os que estão no messias. 

No mundo de gregos e romanos, as cartas particulares tinham em média, cerca de noventa palavras. Já os textos literários, como os de Sêneca, por exemplo, tinham em média duzentas palavras. As epístolas de Shaul, no entanto, eram bem maiores. A menor delas, dirigida a Filemon, tem 335 palavras, e a maior, enviada a igreja de Roma, 7.101 palavras. Assim, podemos dizer que este Paulo, rabino e apóstolo, criou um novo gênero literário, a epístola, maior que as cartas e os textos literários comuns à época, de conteúdo teológico explícito, e dirigida a comunidade específica.

Quase sempre, as cartas eram ditadas a um escriba profissional, chamado amanuense, que usava uma espécie de taquigrafia durante o ditado rápido. Depois, o amanuense burilava o texto, e o autor, finalmente, editava a carta. Na carta de Shaul aos judeus romanos seu amanuense foi Tércio.

Quando escreveu sua epístola aos romanos, o rabino Shaul tinha mais de cinquenta anos e vinte e cinco de encontro com o mashiah. Estava ansioso para ministrar nessa comunidade romana, que já era conhecida no mundo, e por isso escreveu a carta que deveria preparar sua futura visita. Foi escrita em Corinto, quando estava levantando uma coleta para as comunidades da Palestina. Partiu, então, para Jerusalém para entregar o dinheiro. Lá foi preso, e acabou sendo levado à Roma, mas como prisioneiro. 

Teólogos como Orígenes e Barth consideram que a carta do rabino aos judeus romanos é o ponto alto dos textos neotestamentários. Ela sedimentou a compreensão de Agostinho e a reforma de Lutero. Calvino considerava que quem entendesse esta epístola estaria com a porta aberta para a compreensão de toda as escrituras judaico-cristãs. E Tyndale disse algo parecido, ao afirmar que a carta é "a parte principal e mais excelente do Novo Testamento, e o mais puro Evangelion, isto é, as boas novas a que chamamos Evangelho, e também uma luz e um caminho para penetrar em toda a Escritura".

Em termos de ensino, Shaul mostrou que a Lei de Moisés, boa e santa, faz as pessoas conhecerem a vontade de haShem, mas não lhes transmitiu a força para cumpri-la. Deu-lhes consciência de sua alienação e da necessidade que têm de socorro. Esse socorro, inteiramente gratuito, chegou através de Yeshua. E a humanidade, ferida pela alienação, é recriada em Yeshua, podendo agora viver em liberdade e justiça, segundo a vontade de haShem.

Romanos tem como tema central a revelação da justiça de haShem e a universalidade da obra de Yeshua. E, se Romanos é o centro nevrálgico das Escrituras, o capítulo 8 é o coração da carta. 

O capítulo 8 de Romanos mostra que a lei foi, através do sacrifício de Yeshua, dominada pela graça. E a epístola de Romanos foi fundamental no processo vivenciado pela Reforma. A igreja que rompeu com o catolicismo romano, quer a reformada de Lutero, Calvino e Zwinglio, quer a revolucionária de anabatistas e inspiracionistas, entendeu que o apóstolo Paulo traçou na epístola aos judeus romanos o curso da vida cristã, mostrando que através da graça há vitória plena sobre a alienação.

Shaul queria deixar claro que as propostas anteriores não tinham razão de ser, pois a obediência à lei nunca logrou êxito. Através de Yeshua, unido a Yeshua pela ruach hakadosh, aquele que crê está livre de sua alienação e pode iniciar uma vida de liberdade, dentro de uma nova lei, a lei da ruach hakadosh da vida no messias Yeshua.

Os reformados radicais do século dezesseis, contextualizando os ensinamentos de Shaul, entenderam que não havia mais necessidades de obras para se alcançar a liberdade. O que a igreja católica romana proclamava, tanto no que concerne às indulgências, como às obrigações de caridade, estava fora do ensino do rabino nas epístolas aos romanos e aos gálatas, assim como no restante das Escrituras.

Ainda hoje Romanos apresenta ensinamentos fundamentais para a comunidade de Yeshua: a alienação humana; sua luta interior, a gratuidade da liberdade, a eficácia da vida além da vida e o ser levantado de Yeshua. Mas também fala da justificação através da emunah e a adoção dos justos filhos. É a partir desta hermenêutica que Romanos pode ser interpretado. Teremos, então, uma melhor compreensão daquilo que o rabino Shaul chama da lei da ruach da vida no messias Yeshua e de sua importância no caminhar do cristão. Ah! Se você ainda não leu a carta do rabino Shaul/Paulo aos romanos, não perca tempo. Vale a pena.

No evangelho de João, Yeshua fala aos judeus sobre a liberdade. Os judeus acreditavam ser livres porque eram descendentes de Abraão. Mas Yeshua apresentou a eles um novo critério de liberdade.

Em primeiro lugar, os que haviam crido deveriam permanecer na palavra. Yeshua deixava claro que para ser livre não basta apenas crer, e necessário permanecer na palavra. Mas o que é isso? É continuar firme. É uma vida sincera. Permanecer é ter constância e viver Yeshua no dia a dia.

Mas para ser livre é preciso também conhecer a verdade. E o que é conhecer? Significa permanecer, antes de qualquer coisa. Depois, então, e que se vai inteirar, descobrir. É a partir daí que caminhamos em direção à liberdade. E a liberdade passa a ser a vida distante da escravidão da alienação. Liberdade para Yeshua é viver livre da alienação, das materialidades deste mundo que amarram e impedem o movimento do espírito em nossas vidas.

Precisamos descobrir o significado dessas duas palavras usadas por Yeshua, permanecer e conhecer. Permanecer na palavra, cumprindo-a, para assim conhecer a verdade. A partir daí seremos livres da alienação que escraviza e leva à ruína, à escravidão e à morte. Que Adonai lhe abençoe e você permaneça na palavra, conheça a verdade e seja livre no Espírito! Esta é a minha oração. 

A Confissão de fé valdense, de 1554, dizia: Cremos que há um só Deus, que é espírito – o criador de todas as coisas – o de tudo, que é sobre tudo, e por tudo e em tudo; o qual deve ser adorado em espírito e em verdade – do qual dependemos continuamente, e a quem rendemos louvor por nossa vida, alimento, abrigo, saúde, enfermidade, prosperidade, e adversidade. Nós O amamos por ser a fonte de toda bondade; e O reverenciamos pois é o ser sublime, que sonda e prova os corações dos filhos dos homens.
 
A palavra de haShem nos ensina que o único Adonai vivo e verdadeiro é ruach pessoal, eterna, infinita e imutável. Adonai é ruach, e por isso os que o adoram devem adorá-lo em espírito e em verdade. “Escute, povo de Israel! O haShem, e somente o haShem, é o nosso Adonai”.

Só existe um Adonai, o pai e criador de todas as coisas. E existe somente um senhor de nossa humanidade, Yeshua, por meio de quem todas as coisas foram criadas e por meio de quem nós existimos. É, existe um só Adonai e uma só pessoa que une Adonai com os seres humanos, o ser humano Yeshua, que deu a sua vida para que todos fiquem livres de sua alienação. Esta foi a prova, dada no tempo certo, de que Adonai quer que todos sejam libertos.
 
Adonai é onipotente, onisciente e onipresente. Adonai disse: Eu sou quem sou. E disse ainda: Você dirá o seguinte: “Eu sou me enviou a vocês. Eu sou o haShem, o Santo Adonai de vocês, o criador de Israel e o seu rei.

Ao Rei eterno, imortal e invisível, o único Adonai, a ele sejam dadas a honra e a glória, para todo o sempre! Amém!.
 
Adonai é perfeito em santidade, justiça, verdade e amor. Portanto, orem assim disse o rabino de Nazaré: Pai nosso, que estás no céu, que todos reconheçam que o teu nome é santo. O haShem diz: Eu sou o haShem e não mudo. É por isso que vocês, os descendentes de Jacó, não foram destruídos. Tudo de bom que recebemos e tudo o que é perfeito vêm do céu, vêm de haShem, o criador das luzes do céu. Ele não muda, nem varia de posição, o que causaria a escuridão.
 
Adonai é o criador, sustentador, redentor, juiz e senhor da história e do universo, que governa pelo seu poder, dispondo de todas as coisas, de acordo com o seu eterno propósito e graça. No começo Adonai criou os céus e a terra. 

Quando Abrão tinha noventa e nove anos, Adonai apareceu a ele e disse: Eu sou o Adonai todo-poderoso. Viva uma vida de comunhão comigo e seja obediente a mim em tudo. 

Não há outro Adonai como tu, ó HaShem! Quem é santo e majestoso como tu? Quem pode fazer os milagres e as maravilhas que fazes? Estendeste a mão direita, e a terra engoliu os que nos perseguiam. Por causa do teu amor tu guiaste o povo que libertaste; com o teu grande poder tu os levaste para a tua terra santa. Os povos ouviram falar do que fizeste e estão tremendo de medo. 
 
Adonai é infinito em santidade e em todas as demais perfeições. Adonai, que fez o mundo e tudo o que nele existe, é o senhor do céu e da terra e não mora em templos feitos por seres humanos. E também não precisa que façam nada por ele, pois é ele mesmo quem dá a todos vida, respiração e tudo mais. De um só homem ele criou todas as raças humanas para viverem na terra. Antes de criar os povos, Adonai marcou para eles os lugares onde iriam morar e quanto tempo ficariam lá. “

O Altíssimo, o santo Adonai, o Adonai que vive para sempre, diz: Eu moro num lugar alto e sagrado, mas moro também com os humildes e os aflitos, para dar esperança aos humildes e aos aflitos, novas forças. 

Agora, vocês que têm juízo, me escutem. Será que Adonai faria alguma coisa errada? Será que o Todo-Poderoso cometeria uma injustiça?
 
Adonai é triuno. O eterno Adonai se revela como pai, filho e ruach hakadosh. Yeshua veio de Nazaré, uma pequena cidade da região da Galileia e foi batizado por João Batista no rio Jordão. No momento em que estava saindo da água, Yeshua viu o céu se abrir e a ruach de haShem descer como uma pomba sobre ele. E do céu veio uma voz, que disse: Tu és o meu filho querido e me dás muita alegria. Portanto, vão a todos os povos do mundo e façam com que sejam meus seguidores, batizando esses seguidores beShem haav vehaben veruach hakodesh. Que a graça do Yeshua, o amor de haShem e a presença da ruach hakadosh estejam com todos vocês!

O humano não pode se contentar apenas em não fazer o mal, não matar, não cometer adultério, não roubar, não mentir, mas deve fazer o bem. Deve se comprometer com a construção do bem. A resposta de Yeshua ao jovem rico é clara: Se você quer ser perfeito, vá, venda tudo o que tem, e dê o dinheiro aos pobres, e assim você terá riquezas no céu. Depois venha e me siga.

Imaginamos que uma sociedade justa é aquela que respeita a dignidade humana e, por isso, cumpre os mandamentos de haShem. Até mesmo os ateus, se forem homens e mulheres de bem, deveriam respeitar os mandamentos. Mas, o humano está desafiado a levar em conta as exigências da ética do Sermão da Montanha, que apresenta:

A universalidade do amor: Amem os seus inimigos e orem pelos que perseguem vocês. Portanto, todo humano deve ir além do que a sociedade propõe e faz.

A confiança na providência: Não fiquem preocupados, perguntando: onde é que vamos arranjar comida? Ou, onde é que vamos arranjar bebida? Ou, onde é que vamos arranjar roupas. O humano justo sabe que Adonai é o senhor da história, Adonai provedor, e age conforme essa convicção.

Ir além do que é exigido: Se alguém processar você para tomar a sua túnica, deixe que leve também a capa. O humano deve ser capaz de ir além do que a lei obriga, deve pautar-se pelas leis da caridade, da solidariedade e da fraternidade nas relações com as pessoas. A lei não pode nos obrigar a amar os outros, mas nós devemos amá-los, mesmo que sejam adversários. E em nome desse amor devemos fazer aquilo que habitualmente o mundo secular não faz.

Quando pensamos no messias, pensamos na pessoa de Yeshua e em sua obra. E no ministério terreno de Yeshua há uma realidade que é central, a cruz. E quando pensamos na cruz vemos que o ministério do Calvário é a prova concreta do amor do pai, ao entregar seu filho.

Somos justificados pela cruz de Yeshua, e por isso vemos as coisas como elas são, ou seja, entendemos que o perdão de nossos pecados não é fruto de uma contabilidade espiritual. Aliás, o profeta Miquéias já perguntara: O que eu levarei quando for adorar ao Adonai eterno? O que eu oferecerei ao Adonai altíssimo? A cruz de Yeshua é algo inusitado, que precisa acontecer nas nossas vidas para por fim a ira de haShem e derrotar de uma vez por todas os nossos inimigos: o mundo, a materialidade e o adversário. Somente Adonai pode fazer estas coisas e por um ponto final na separação de homens e mulheres, reconciliando-nos consigo, fazendo-nos confiar nele e receber os benefícios da sua vitória. A chave para compreendermos a emunah da cruz de Yeshua está no fato de que não damos nada a Adonai, mas é Adonai quem nos dá algo, o perdão e a vida eterna.

O rabino Shaul disse que devemos considerar-nos mortos para a alienação, para o distanciamento e para a separação, mas vivos para Adonai, por estarmos unidos com Yeshua. A compreensão sobre o ministério da cruz está no entendimento de que Ele tornou-se o que nós éramos, para que nos tornássemos o que Ele quer que sejamos. Adonai torna-se humano, vive a nossa experiência, sofre e morre na cruz, envolto em nossos pecados, levando a condenação da ira de haShem para que o poder da alienação, da ira, da morte e do inferno sejam vencidos através da ressurreição e sua vida vitoriosa seja comunicada a nós.

A emunah na obra de Yeshua na cruz tem que ser algo real nas nossas vidas e não uma constatação meramente racional, pois Yeshua morreu sentindo em si mesmo e em sua consciência a agonia da separação última de haShem. Esta é uma concepção radical sobre a cruz, que deve nos levar a uma reflexão sobre a realidade fundamental da obra de Yeshua em nós e por nós, sem a qual jamais poderíamos receber o poder da vida e da salvação de haShem. Em todo momento novo da vida, pense: Agora que fomos aceitos por Adonai, por meio da fé, temos paz com Ele por intermédio de Yeshua, o nosso Senhor.

O amor é o ponto mais alto na vida humana. E domínio próprio é obediência e, por isso, tem base no amor, na graça e nas bênçãos da presença de haShem na vida, na intimidade e nos relacionamentos. Yeshua disse que a pessoa que o ama obedeceria aos seus mandamentos. No que tange ao amor, domínio próprio é controle sobre si mesmo, sobre a ambição desmedida, os caprichos, a luxúria e as tentações. É o amor que resiste e persiste. 

O domínio próprio é uma manifestação da ruach hakadosh, definido na capacidade de controlar tendências e impulsos, superando as fraquezas. O domínio próprio está relacionado com a prudência, como característica da pessoa guiada pelo Espírito. O que é demonstrado por um comportamento sábio e equilibrado. 

O rabino alerta: continuem trabalhando com respeito e temor a Adonai para completar a libertação de vocês. Pois Adonai está sempre agindo em vocês para que obedeçam à vontade dele, tanto no pensamento como nas ações. Diz também que todo atleta que está treinando aguenta exercícios duros. E ao falar sobre sua experiência de vida, conta que corria direto para a linha de chegada a fim de conseguir o prêmio da vitória. E Tiago, irmão do rabino de Nazaré, como que completa o pensamento de Paulo, ao dizer que quem tem domínio sobre seus desejos e paixões, receberá como prêmio a vida que Adonai promete aos que o amam.

Assim, o fruto da ruach hakadosh aponta o amor como o ponto mais alto na vida humana e nos obriga ao amor ao próximo. O amor aqui é ágape e significa querer o bem para as pessoas sem desejar nada em troca. Por isso, Shaul diz que o amor une perfeitamente todas as coisas. Mas não haverá união, nem perfeição se caprichos e paixões controlarem o nosso viver e os nossos relacionamentos. Aqui a palavra haShem quer dizer a ruach. E onde a ruach do HaShem está presente, aí existe liberdade.

Em seu devocional “A imitação de Jesus”, Thomas à Kempis faz a seguinte oração: “Peço-vos, ó meu benigníssimo Deus! Preservai-me dos cuidados desta vida, para que não me embarace demasiadamente neles; das muitas necessidades do corpo, para que não me escravize a sensualidade; e de todas as perturbações da alma, para que não me desalente sob o peso das angústias. Não falo das coisas que a vaidade humana busca tão empenhadamente, mas das misérias que, pela maldição comum de todos os mortais, penosamente oprimem a alma de vosso servo, e a impedem de elevar-se à liberdade perfeita do Espírito”.

“Ó meu Deus, doçura inefável! Convertei em amargura toda consolação carnal, que me aparta do amor das coisas eternas e me fascina pelo encanto de um prazer momentâneo. Não me vença, Adonai meu, não me vença a carne e o sangue; não me seduza o mundo, com sua glória passageira; não me faça cair o demônio, com sua astúcia. Dai-me força para resistir, paciência para sofrer, constância para perseverar. Dai-me, em lugar de todas as consolações do mundo, a suavíssima unção do vosso Espírito e, em lugar do amor terrestre, infundi-me o amor de vosso nome!”

Onde está a ruach do haShem há liberdade. Mas que liberdade é essa, de que fala o rabino Shaul e Thomas à Kempis? É a liberdade de fazer a escolha certa, de deixar de lado a carne e o sangue, a escravidão às muitas exigências do corpo, às seduções do mundo. Escolher a liberdade do Espírito é deixar-se escolher pelo espírito. É escolher o amor do pai, a obediência do filho e a santidade do espírito. Tais escolhas na emunah renovam a vida e vencem a materialidade do mundo.

É uma experiência que não abandona aqueles que a experimentaram realmente: é a liberdade que leva do medo à confiança, que faz reviver a esperança, que traduz o amor à vida. A liberdade no espírito leva a uma vida criativa. Significa ultrapassar os limites da realidade determinada pelo passado e buscar as possibilidades que não se realizaram. É liberdade que livra da força do mal, da lei das obras e do poder da morte: que leva a uma comunhão direta e eterna com Adonai. Essa é da liberdade no espírito.

Que os caros leitores e caríssimas leitoras vivam plenamente esta liberdade. Pois, esta mundialização de caos e crise não pode receber o espírito da liberdade porque não o pode ver, nem conhecer. Mas, vocês o conhecem porque Ele está com vocês e vive em vocês.


3.

A nossa fraqueza é a nossa força

Quem é fraco numa crise é realmente fraco. Este provérbio está dividido em três momentos. Primeiro fala daquele que é rafah. Palavra hebraica que pode ser traduzida por afundar, relaxar, deixar cair, estar desalentado, mostrar-se frouxo. Na verdade, quem se mostra frouxo, fica desalentado, deixa cair a bola, relaxa e afunda.

O segundo momento do provérbio é a expressão yom tsarah, que pode ser traduzida por dia ou momento de aflição, dificuldade, problema. Mas, literalmente a expressão quer dizer dia da Sara e tem o sentido daquela que importuna ou de esposa rival. Talvez porque na tradição do judaísmo antigo, Sara, mulher de Abraão, era vista como brava e brigona, que maltratou Agar, a ponto dessa última fugir de casa. Se entendermos a expressão no sentido da família expandida hebraica, a esposa rival era aquela que em determinado momento entrava em choque com a outra, ou com as outras e desestabilizava o equilíbrio da família poligâmica. Para o macho, esse era o momento da crise.

O homem, regente da família expandida hebraica, de estrutura reconhecidamente patriarcal, caso se mostrasse rafah, diz o ditado hebraico, ou seja, caso se mostrasse frouxo, ficaria desalentado, perderia o controle da situação e da família, entraria em depressão e afundaria.

Caro leitor e leitora, o provérbio parte de uma realidade cultural, ilustrada na família patriarcal machista, onde as mulheres se chocam, e o marido não pode ser frouxo. 

Apesar de não concordarmos com essa estrutura familiar patriarcal machista, a lição do provérbio permanece válida. Assim, contextualizado, podemos dizer que a atitude que homens e mulheres devem tomar diante da crise não pode ser de alguém que se deixa desorientar, deixa cair a bola e afunda.

A crise aí descrita fala de um momento onde há um elemento desestabilizador, que enlouquece um ambiente ou uma situação. Ser frouxo, ter uma atitude de deixa estar que depois melhora pode levar todos a afundarem juntos. Esse é o momento da liderança consciente, momento de encarar o problema com sabedoria e firmeza. Caro leitor, caríssima leitora, que Adonai lhe dê coragem e sabedoria para enfrentar problemas e conquistar vitórias!

A palavra criadora, cheia de poder, se tornou um ser humano e habitou entre nós. É isso que o discípulo amado nos conta.

O apóstolo João utilizou uma expressão grega, que traduzimos por “palavra”, para dizer que Yeshua é a poderosa comunicação criadora de haShem. Essa palavra tem o poder de criar a realidade. Vemos isso em bereshit, quando Adonai disse: Haja luz. E a luz começou a existir.

A luz foi criada pelo poder da palavra de haShem. Mas a palavra de haShem, que é a comunicação de haShem, também revela aquilo que está oculto. Quando falamos, revelamos aquilo que está no nosso pensamento. Assim, a outra pessoa só sabe o que pensamos se usarmos a palavra.

Quando dizemos que Yeshua é a palavra de haShem, estamos dizendo que Ele tem o poder de revelar o mistério insondável de haShem e mostrar como Ele é. Yeshua é a comunhão de haShem conosco e nos revelou que Adonai é amor, justiça e poder. É por isso que o apóstolo diz: Ninguém nunca viu Adonai. Somente o filho único, que é Yeshua e está ao lado do pai, foi quem nos mostrou quem é Adonai.

Essa é a verdade maior: Yeshua tornou-se gente para que Adonai pudesse ter comunhão conosco e assim comunicar à humanidade o seu grande amor.

A palavra continua entre nós e, na sua comunhão conosco, tem o poder de plantar a fé, converter os corações e criar um novo mundo de paz. É a palavra que nos revela os propósitos, a vontade e o amor de haShem pela humanidade.

Os três curtos diálogos de Yeshua, presentes em Lucas 9.57-62, nos falam de três candidatos a discípulos. Originalmente são três estrofes onde o texto trabalha com imagens da natureza e costumes agrícolas da época de Yeshua. Falam do reino de haShem e todos os três diálogos apresentam sempre três temas: seguir + ir + preço. 

O primeiro candidato estava disposto a seguir e ir, mas não estava disposto a pagar o preço.
 
E nós, aceitamos pagar o preço? Caso queiramos poder e influência, talvez seja melhor seguir as águias, que têm segurança nos cumes das montanhas, ou quem sabe seguir as raposas, que dirigem seus negócios com astúcia. O filho do homem nos oferece um ministério sofredor, é isso mesmo que desejamos? 
 
O segundo candidato recebe o convite para seguir. Mas quer ir para casa. Yeshua diz que ele deve ir e proclamar o reino. 
 
Aquele que Yeshua chama às vezes está à margem da estrada pensando: O meu pessoal faz certas exigências, e a força dessas exigências é muito grande. Yeshua não espera que eu frustre as expectativas do meu pessoal, não é? Mas é exatamente isso que Yeshua quer  que nós façamos. A proclamação do reino de haShem só tem significado quando apresenta o reino como uma realidade presente. Quem está espiritualmente morto pode cuidar de responsabilidades tradicionais, mas não tem condições de proclamar a chegada do reino. 
 
O terceiro candidato quer seguir e como o segundo quer ir primeiro para casa. E como o primeiro é desafiado a pagar o preço.
 
Aquele que não pode resolver a tensão das lealdades em conflito e vive olhando para trás para ver o que os outros estão ordenando que faça, segundo Yeshua, não está apto para o reino de haShem. O camponês distraído pode dar com o arado numa rocha, pode quebrá-lo ou cansar o boi inutilmente. O camponês distraído por lealdades divididas não será capaz de manter a harmonia, não será apenas improdutivo, mas também destruidor.
 
E você querido irmão, quer seguir, mas primeiro ir realizar tarefas que não podem ser adiadas? Ou até aceita ir, mas acha que o preço é alto demais?  Lembre-se, nessas três curtas histórias, Yeshua está nos ensinando que quando somos pressionados por alternativas definidas, mesmo dolorosas, precisamos decidir. Eis o desafio que o Mestre nos coloca.


4.

Momentos de deserto

Não sei se você viu o filme “Os dois filhos de Francisco”. É a história de uma dupla sertaneja e mostra como o sucesso implica em superação de dificuldades, persistência e fidelidade a um ideal. De fato, não é uma questão de sorte, mas de fidelidade a um projeto.

Conforme nos conta Lucas, por três vezes, na solidão do deserto, o Yeshua foi tentado. Na primeira vez, o adversário propôs os prazeres do corpo. Na segunda, o caminho do poder e das riquezas. E na terceira vez, a autossuficiência.

Firmado nas Escrituras, Yeshua resistiu às tentações por amor ao pai e ao espírito, e a cada um de nós. Yeshua foi fiel porque não queria se afastar do pai e do espírito e, também, porque não queria se afastar de você.

Em momentos de deserto, também somos tentados a abandonar a comunhão com nosso Adonai e com Yeshua. Somos tentados a escolher os caminhos mais fáceis, os prazeres do corpo, a glória desse mundo e o egoísmo.

As tentações sempre surgirão em nossas vidas. Mas o caminho secreto da vitória sobre elas é a fidelidade. Fidelidade de comunhão com Adonai e com o corpo de Yeshua. Possivelmente, ninguém tomará conhecimento de suas batalhas, porque se darão nos momentos de deserto de seu coração, mas, lembre-se: a recompensa pela fidelidade é a comunhão eterna com o messias Yeshua. 

 “A terra era um vazio, sem nenhum ser vivente, e estava coberta por um mar profundo. A escuridão cobria o mar, e a ruach de haShem se movia por cima da água”. Gênesis 1.2.

A ruach hakadosh é o acontecer da presença atuante de haShem, que penetra até o mais íntimo da existência humana. Leia o Salmo 139.7-23. Ele atua como força de vida no ser humano e transforma aqueles que se encontram sob o poder de Yeshua.

Cria espaço, põe em movimento, leva da estreiteza para a amplidão. Cria o horizonte e nas nossas vidas amplia o horizonte. Na experiência com o Espírito, Adonai não é experimentado somente como pessoa da trindade, mas também como aquele espaço e tempo de liberdade onde o ser humano pode se desenvolver.

Aí eu me ajoelhei aos pés do anjo para adorá-lo, mas ele me disse: Não faça isso! Pois eu sou servo de haShem, assim como são você e os seus irmãos que continuam fiéis à verdade revelada por Yeshua. Adore a Adonai! Pois a verdade revelada por Yeshua é a mensagem que o Espírito entrega aos profetas.

Esta é a experiência do espírito. Um dos nomes de haShem, segundo a religião judaica, é Macom: amplidão. Quando o Espírito é experimentado como essa amplidão aberta à vida, quando os seres humanos vivem no Espírito, Adonai é experimentado como um novo tempo de vida.

A ressurreição é bênção da integridade de haShem. Quando pensamos na ressurreição pensamos em duas coisas: lá atrás na história, Adonai ressuscitou Yeshua. E lá na frente, um dia, Adonai vai nos ressuscitar. Assim, a ressurreição tem passado e futuro. São duas colunas: passado e futuro. Mas e hoje? Será que a ressurreição tem alguma coisa a ver com o meu presente?
 
E a nossa esperança era que fosse ele quem iria libertar o povo de Israel. Porém já faz três dias que tudo isso aconteceu. Essa foi a palavra daqueles dois discípulos na estrada de Emaus. 

A morte personifica os limites da existência. A morte personifica medo existencial, fim da esperança, perda do sentido da vida. E naquele entardecer, naquela estrada, os discípulos entristecidos afirmaram que, com a morte de Yeshua, havia morrido algo na vida deles. Assim como a morte do esposo mata algo na esposa, como a morte do amigo mata algo naquele que fica, a morte de Yeshua matara naqueles dois discípulos a vida que dava sentido ao caminhar de cada um deles. 

Foi isso que aconteceu com aqueles discípulos de Emaus: vagavam à noite pela estrada da vida, cabisbaixos, derrotados. A vida não tinha mais sentido para eles. E é assim que acontece conosco muitas vezes: andamos desesperançados, derrotados pela realidade que esmaga a vida e destrói o futuro. 
 
Mas eles insistiram com ele para que ficasse, dizendo: Fique conosco porque já é tarde, e a noite vem chegando. Então Yeshua entrou para ficar com os dois. Sentou-se à mesa com eles, pegou o pão e deu graças a Adonai. Depois partiu o pão e deu a eles. Aí os olhos deles foram abertos, e eles reconheceram Yeshua. 

O novo nasce quando nos reunimos com o irmão ao redor da mesa, ouvimos a palavra e repartimos o pão. Nós vencemos as crises quando redescobrimos o sentido da ressurreição. E ela é mais que uma lembrança do passado e um futuro de esperança. É um fato presente, uma bênção da integridade de haShem para nossa vida presente. A ação de haShem que no passado trouxe Yeshua à vida é a mesma que a cada dia te dá força. Mas lembre-se: a descoberta da ressurreição não é um ato solitário. É um ato solidário, que implica em ouvir a palavra e repartir o pão. A ressurreição de Yeshua é a expressão permanente do compromisso irrevogável de haShem conosco.


5.

A fé do caminhante

Existe um fio condutor entre a história do povo de Israel e a tradição nascida com o rabino de Nazaré, que é a idéia de libertação. Na origem da história do povo de Israel, Adonai se revela a Abraão, faz com ele uma aliança, prometendo abençoá-lo, multiplicar a sua descendência e dar-lhe uma terra.

Em Abraão vão entroncar-se as grandes religiões monoteístas, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Os judeus alimentaram ao longo de séculos a esperança na vinda de um messias. E mantêm ainda hoje como referência da sua história, a libertação da escravidão do Egito. Na noite da passagem do anjo exterminador, que matou todos os primogênitos egípcios, incluindo o filho do Faraó, e o início de uma caminhada de quarenta anos em direção à terra de Canaã, realizaram uma ceia especial, a Páscoa. Nesse jantar foi servido cordeiro assado, ervas amargas e vinho, simbolizando os sofrimentos passados e a alegria futura, a esperança da liberdade. Atualmente, a Páscoa judaica, chamada Pessach, é uma festa que se estende do 15 ao 21 de Nissan (março-abril). Dura sete dias em Israel e oito na diáspora para evitar qualquer erro de calendário. É a festa da Páscoa e também a festa da primavera.

Já os muçulmanos não celebram a Páscoa, mas virados para Meca, seguindo a tradição do Antigo Testamento oferecem a Alá, animais em sacrifício por seus pecados e imploram as bênçãos de Alá. É a grande festa, a festa do sacrifício, que se celebra setenta dias após a ruptura do jejum do mês de Ramadã. Ela tem lugar no décimo dia do décimo-segundo mês do ano. Ela se desenvolve em união com os peregrinos de Meca. É a maior festa religiosa do Islamismo.

Yeshua vem na continuidade da história de Israel, dando origem a uma outra aliança, feita com todos os povos da terra. Nessa história, a celebração da Páscoa judaica, na quinta-feira, foi o clímax de vida terrena de Yeshua. No fim desse jantar com os discípulos, conta o Evangelho que Yeshua tomou do pão e do vinho, abençoou-os, fazendo deles, memorial de sua oferta vicária pelos homens, antecipando a entrega que se daria dali a horas no alto do calvário. A ceia da Páscoa dá origem a uma nova aliança, que é marcada pelo tríduo pascal da morte, sepultamento e ressurreição de Yeshua.

Dentro da tradição católica, a Páscoa é precedida de quarenta dias de preparação conhecidos por Quaresma e que começam na Quarta-feira de cinzas. A semana anterior à festa é chamada de Semana Santa. A Páscoa é a festa maior do cristianismo e centro de toda a sua fé. Na Semana Santa se celebram o Domingo de Ramos, a Quinta-feira Santa ou Festa da Eucaristia ou Lava-pés , a Sexta-feira Santa, ou dia da morte de Yeshua, quando se faz a Via-sacra, e na véspera da Páscoa, é celebrado o Sábado de Aleluia, também conhecido como Vigília Pascal. A data é móvel seguindo o calendário lunar e celebrada no primeiro Domingo depois da primeira lua cheia após o início do outono, no hemisfério Sul.

O rabino Shaul, escrevendo aos cristãos da Galácia, lembra que Yeshua libertou homens e mulheres para que vivam com dignidade, sem submeterem-se outra vez ao jugo da escravidão. Esse é o sentido da Páscoa, memorial de libertação, embora incompleto, pois se realiza a cada dia, enquanto construção humana consciente, quando lutamos contra o que escraviza e aliena.

E  “a palavra é um leão. Deixe-a solta!” Martin Lutero. O diálogo com Adonai é a conversa iniciada por Adonai com o ser humano. É Adonai se comunicando e ouvindo o ser humano, é a resposta do ser humano, em obediência, à palavra de haShem para sua vida. O diálogo com Adonai é sempre universal, mas também particular. Diálogo com Adonai na sua universalidade é a auto manifestação de haShem a todos os seres humanos, em todos os lugares e em todos os tempos: se faz através da natureza (Rm 1.19-20), da providência (Rm 8.28), da preservação do universo (Cl 1.17), da personalidade humana e da consciência moral (Rm 1.32-2.16).

Diálogo com Adonai em sua particularidade é a auto manifestação de haShem para certas pessoas, em tempos e lugares definidos, a fim de que tais pessoas entrem num relacionamento de intimidade com ele. A Palavra registrada nas Escrituras e o Logos encarnado são dois momentos desse diálogo especial de haShem com o ser humano.

Para Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero e Calvino o diálogo com Adonai traduz um ensino proposicional; para Pannenberg e Moltmann se dá através da História; para Schleiermacher, Ritschl e Teilhard de Chardin acontece através de uma experiência pessoal, internalizada; para Barth e Bultmann se dá na própria experiência existencial; e para Karl Rahner e Leonardo Boff gera uma nova consciência.

Na modernidade iluminista, o racionalismo definiu como critério de verdade a lógica dedutiva, em especial a matemática. Spinoza, assim como Descartes, Leibniz e Kant descartaram a possibilidade do um diálogo especial de haShem com os seres humanos, quer através das Escrituras, quer através da fidelidade da Palavra. Esses filósofos, geniais em vários campos do conhecimento, ajudaram a construir a metodologia científica da modernidade, mas abriram o caminho para o deísmo. E na sequência, Hume e dos deístas ingleses aprofundaram o racionalismo e descartaram a possibilidade dos milagres. 

Muita gente considera o conhecimento como algo meramente racional. Teologicamente, conhecimento é fé (Hb 11.1), assim quem considera o conhecimento de haShem como processo puramente racional, também vê a fé como puramente racional. Exclui a vontade, o afeto, a personalidade, a ação humana, as obras e as experiências de sua compreensão de fé. Tal abordagem nos leva a três perguntas:

Qual é a natureza da fé? A fé vem antes ou depois do arrependimento? A fé vem antes ou depois da regeneração?

Respondendo ao primeiro questionamento, consideramos que a fé depende de uma opção da pessoa e que é um estado do coração. Vejamos. A partir de Romanos (10.9-10) podemos dizer que a fé (1) é um dever e, portanto, a vontade está incluída; (2) é uma graça entregue pelo Espírito (1 Co 13), e sendo graça não está limitada ao intelecto; (3) dá glória a Adonai e não se dá glória a Adonai só com a razão, pois envolve toda a personalidade humana; (4) se expressa em termos de afeto (2Ts 2.10). Ora, receber inclui afeto, implica assim em engajamento de afetividades (Rm 10.9-10); (5) a falta de fé está ligada a uma disposição moral (Jo 5). A incredulidade é um estado do coração, não é um erro de abordagem meramente racional. Em relação à segunda questão, consideramos que se não houver arrependimento não há fé verdadeira. João pregava o banho do arrependimento. Ver o chamado de Yeshua (Mc 1.15) e a experiência da jovem igreja cristã em Atos (2.37-38).

Quanto ao terceiro questionamento consideramos que sem regeneração não há fé. Veja 1Co 2.10-16, 1Co 12.3; a experiência de Nicodemos (Jo 3), e a afirmação de Shaul (Rm 8.7).

A compreensão da fé e da realidade do diálogo de haShem com opção do coração, arrependimento e regeneração elimina idéia de que podemos conhecer exclusivamente através de processos racionais. Por isso, dizemos que o processo do diálogo de haShem está ligado à obediência que, em última instância, é disposição positiva do coração, enquanto totalidade da personalidade humana, arrependimento e regeneração de vida.

O registro do diálogo com Adonai é a capacitação divina para que pessoas registrassem os diferentes momentos de sua conversa com os seres humanos. É uma capacitação (Mt 15.4) de pessoas (Lc 1.1-4), que ouvem ou sensibilizam de diferentes maneiras o oráculo divino (Ap 22.6,7, 18, 19).

Nesse sentido, o diálogo especial com Adonai abrange toda a Escritura (2Tm 3.16), e Adonai é a fonte do processo (2Tm 3.16), ou como afirma Pedro: “nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana, entretanto homens santos falaram da parte de haShem movidos pelo Espírito”. 2Pe 1.19-21. E os apóstolos deram testemunho disso: Ap 22.6-10, 18-20.

A compreensão que apresenta as Escrituras como revelação para a vida foi reconhecida pelos pais da Igreja e pelos mais importantes teólogos da cristandade. Anselmo disse: “Além disso, este próprio Deus-homem estabeleceu o Novo Testamento e confirmou o Antigo. Por isso, assim como é necessário afirmar que Ele mesmo era verdadeiro, também ninguém pode negar a verdade de qualquer coisa incluída nestes Testamentos”. (Anselmo, Cur Deus Homo, bk2, ch22).

Agostinho: “As consequências mais calamitosas devem seguir o acreditar que qualquer coisa falsa é achada nos livros sagrados, isto quer dizer, que os homens através de quem a Escritura foi dada em forma escrita colocaram nestes livros qualquer coisa falsa. Se, uma vez, tu permites nesse templo alto da autoridade uma declaração falsa, nenhuma sentença será deixada nesses livros”. (Epistulae, ep.28).

Tomás de Aquino: “As Sagradas Escrituras, porém, devem manifestar a verdade de modo eficaz, sem erro de qualquer espécie”. (Suma Teológica, 1.1.10 ad. 1). 

Martinho Lutero: “Tenho aprendido a dar esta honra, isto é, infabilidade, somente aos livros que são chamados de Cânon, a fim de que eu creia com confiança que nenhum dos seus autores errou”. (em M. Reu, Luther and the Scriptures, p. 24).

John Wesley: “Pois, se houvesse qualquer erro na Bíblia, poderia haver mil. Se houver um engano nesse livro, ele não veio do Adonai da Verdade”. (Journal, VI:117).

(1) A natureza de haShem: Jo 17.3; Tg 1.17; Rm 3.4. (2) O testemunho do texto: Mt 5.17,18 (cf. 24.25). (3) O testemunho do uso do texto: Mt 22.29-32 (Ex 3.36).

Não temos nenhum manuscrito original das Escrituras, mas, o que importa é o códice. Uma cópia perfeita tem o mesmo valor do original. A Bíblia fala de e usa cópias anteriores (Dt 10.2,4; 17.18; Jr 36.8; etc.). Os autores do NT não tinham os originais do AT, mas o próprio Yeshua destacou a validade do códice do AT (Jo 10.35).

Atualmente, há mais de 5.000 manuscritos do NT, com 350 códices (Sinaiticus, Vaticanus, Alexandrinus), e 2.000 lecionários com mais de 86 mil citações bíblicas. O códice original não está perdido, está dentro dos manuscritos que temos.

Com respeito às escrituras judaico-cristãs hoje, embora tenham algumas expressões discutíveis com respeito ao autógrafo original, são a revelação de haShem para a vida.

Atenção, dificuldades não são erros! 1. Nem sempre as citações são exatas, às vezes são paráfrases. 2. Nem tudo que está escrito na Bíblia é aprovado pela Bíblia. 3. Um relatório parcial não é necessariamente um relatório falso. 4. Relatórios diferentes não são necessariamente contraditórios. 5. Palavras diferentes podem ter um significado igual e vice-versa. 6. Muitas vezes, a linguagem bíblica é fenomenológica (aparente). 7. Descrições inexatas não são necessariamente falsas. 8. Alguns problemas podem ser erros de copistas.


Um resumo em três versículos: Jo 17.3; 2Tm 3.16; Jo 17.17. Se o diálogo de haShem é uma conversa entre Deus e o homem, é a partir desse diálogo que temos os elementos fundamentais para conhecer o ser humano. Nesse sentido, por mais decaído que esteja, ao ser humano ainda lhe resta a liberdade de consciência necessária para aceitar ou não esse diálogo proposto pelo Criador.
 
O pressuposto fundamental dessa reflexão é a imago Dei, que traduz a verdade de que a compreensão de haShem leva à compreensão do homem e sua razão de existir. Não se trata de conhecer o ser humano para conhecer a Adonai, porque o ser humano não é Adonai, mas o contrário.
 
A antropologia, enquanto instrumento hermenêutico, parte do diálogo de haShem. Não utilizamos o conceito tomista de analogia em seus dois sentidos, como se fosse possível ao ser humano conhecer a Adonai a partir de si próprio, mas acreditamos que as necessidades e anseios do espírito humano apontam para aquilo que ele perdeu.


6.

A aliança de haShem

Tu lhes deste o teu bom Espírito para lhes ensinar o que deviam fazer. A primeira vez que a palavra espírito aparece na Bíblia é no relato da criação, em Gênesis. Lá, a ruach de haShem pairava sobre as águas como poder criador que traz ordem ao caos. O salmista faz eco a esse conceito, quando diz: Por meio da sua palavra, o haShem fez os céus; pela sua ordem, ele criou o sol, a lua e as estrelas. 

Por meio do sopro de haShem, hadam tornou-se uma alma vivente. Jó afirma que a ruach de HaShem o criou e que recebeu vida por meio do sopro do Todo-poderoso. Quando Adonai retira seu sopro dos seres humanos e dos animais, eles morrem e retornam ao pó. No vale dos ossos secos, o sopro de haShem entrou nos esqueletos e eles retornaram à vida.

A tradição bíblica apresenta os pais da humanidade e os patriarcas como monoteístas. Adão, Sete, Noé, Abraão e seus descendentes conheciam o Adonai Eterno e guardavam seus preceitos. O politeísmo surge como degeneração e distanciamento desse Adonai criador do universo.

Qualquer análise do surgimento da religião de Israel deve partir do homem Abraão e de seu contexto histórico e social. Podemos localizar as origens do surgimento de Israel na primeira metade do segundo milênio a.C. (2.000-1550). Foi nesse período que Abraão migrou de Ur com destino à Palestina. O mundo de Abraão é um mundo objetivo, não mitológico, e a aliança com o Adonai Eterno, conforme se encontra em Gênesis 15, é a chave para entendermos todo o Pentateuco, os cinco livros da Lei.

A consolidação dessa aliança acontecerá com Moisés, descrita em Êxodo 24 e reiterada em Deuteronômio 5, numa das montanhas do deserto do istmo, entre o Egito e Madiã-Seir. Essa é a idéia-força de toda a religião de Israel: um acordo que implica em salvação.

Berit, aliança, tem o sentido de obrigação, mas também de segurança. É um acordo entre duas pessoas, celebrado solenemente, com o derramamento de sangue. A parte mais forte fornece a segurança, ou a salvação, e a mais fraca se obrigava a determinados compromissos. Dessa maneira, a aliança impôs um relacionamento especial entre o Adonai Eterno e o povo. E os mandamentos e leis, dados mais tarde, no deserto a Moisés, transportam de uma conotação legal e externa para uma perspectiva de acordo maior, de adoração e obediência. O centro da aliança está no primeiro mandamento do decálogo (as dez palavras, em hebraico) que proíbe a adoração de outros deuses, da milícia do céu e dos ídolos. 

Mas a aliança é também um pacto moral. Só que o fundamental desse pacto, que perpassa toda a Torá ou Pentateuco não é sua mera formalização, já que outros povos também possuíam noções desenvolvidas de lei e moralidade. O assassinato, o roubo, o adultério e o falso testemunho eram condenados não apenas pela lei moral universal, mas também duramente punidos pelos códigos de Ur-Nammu, de Lipit-Ishtar e de Hamurabi [León Epsztein, A Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, SP, Paulinas, 1990, "As Leis Mesopotâmicas", pp. 11 a 26], para citar os mais representativos.

Agora, no entanto, pela primeira vez a moralidade é apresentada pelo próprio Adonai Eterno como fruto de um relacionamento entre Ele e o povo, com normas para o estabelecimento de um reino de novo tipo. É uma aliança com toda a nação. A consolidação que acontece centenas de anos mais tarde, no monte Sinai é fruto da aliança abraâmica e vai além das sabedorias babilônica e egípcia.

A moralidade apresentada no Gênesis, por exemplo, que é individual, ganha aqui uma roupagem nova, passa a ser coletiva e nacional. "Yahweh não elegeu Israel para fundar um novo culto mágico em benefício dele; elegeu-o para ser seu povo, para realizar nele o seu arbítrio. Portanto, por sua natureza, também a aliança religiosa foi uma aliança moral/legal, envolvendo não apenas o culto, mas também a estrutura e os regulamentos da sociedade. Assim, colocou-se o alicerce da religião da tora, incluindo tanto o culto como a moralidade e concebendo a ambos como expressões da vontade divina". [Yehezkel Kaufmann, A Religião de Israel, SP, Perspectiva, 1989, p.232]. Na verdade, a aliança que o Adonai Eterno faz com Abraão em Gênesis 15, historicamente, tem seu cumprimento em outras condições e em outra época, no Sinai.

Dessa maneira, a aliança feita com Abraão não somente prepara o roteiro do Pentateuco, mas faz parte intrínseca dele. É bereshit, não somente como saga da origem, mas como alicerce de todos os cinco livros da Lei. Bereshit é uma expressão hebraica que normalmente traduzimos por "no princípio". É formada pela preposição B mais var, que significa cabeça, início, principal, o mais elevado. Na Bíblia hebraica o nome do livro de Gênesis é bereshit, porque o primeiro versículo das Escrituras começa assim: "No princípio ..."

A teologia de Gênesis tem por base o conceito da aliança, como descrição de um processo vivo, que tem origem em determinado momento histórico, numa relação entre o Adonai Eterno e um homem historicamente definido. "A centralidade da aliança para a religião do AT já possuía defensores muito antes de Eichrodt [August Kayser, Die Theologie des AT in ihrer Geschichtlichen Entwicklung Dargestellt (Strassburg, 1886), p. 74]: "a concepção dominante dos profetas, a âncora e o alicerce da religião do AT em geral, é a noção de teocracia ou, utilizando a expressão do próprio AT, a noção de aliança" [G. F. Oehler, Theologie des AT (Tubingen, 1873), i, p. 69]: "O fundamento da religião do AT é a aliança por meio da qual Adonai recebeu a tribo escolhida, a fim de realizar seu plano de salvação" [Gerhard Hasel, op. cit., p. 57].

Ao entendermos o conceito de aliança como centro unificador do livro de Gênesis e, por extensão, do Pentateuco, a leitura do texto bíblico passa a ter uma dinâmica real, que cresce conforme a aliança se transforma em osso e carne, primeiramente na vida dos patriarcas e, posteriormente, na formação da própria nação de Israel.

O livro de Gênesis apresenta a humanidade recém formada como monoteísta [Kaufmann, op. cit., p.220]. Até o capítulo 11 não vemos nenhum traço de idolatria. Só após Babel surge a idolatria, que seria contemporânea ao aparecimento das nações da antiguidade.

A partir de Gênesis 12 temos nações idólatras e politeístas e pessoas que adoravam ao Adonai Eterno. Entre estes estão Abraão e Melquisedeque. A compreensão desse fato é importante para tirarmos das costas de Abraão a responsabilidade de ter criado a primeira religião monoteísta. Ele não criou a religião do único e verdadeiro Adonai, mas viveu uma tradição, no sentido de transmissão de conhecimento e cultura, que vinha em parte de seus antepassados.

Vejamos um pouco mais sobre a vida desse homem, conforme descrita em Gênesis 12:1 a 25:18. Ele vivia na terra formada entre os rios Tigre e Eufrates, às margens de um afluente do Eufrates, chamado Balique.

A cidade de Ur, onde vivera antes de ir para Harã, é situada pelos arqueólogos na região da moderna Tell el-Muqayyar, a catorze quilômetros de Nasiryeh, no sul do Iraque. Segundo estudos de Sir Leonard Woolley, do Museu Britânico, que reconstruiu a história de Ur desde o quarto milênio até o ano 300 a.C., o deus-lua Nanar, que era adorado em Ur, também era a principal divindade em Harã.

Décadas antes de Abraão, Ur era a mais importante cidade do mundo. Centro de produção manufatureira, agropastoril e exportador, estava situada numa região de enorme fertilidade. Daí partiam caravanas e navios em direção ao golfo Pérsico. Já na época de Abraão a cidade foi eclipsada pelo crescimento de Babilônia, mas manteve sua importância durante décadas.. A Babilônia destaca-se no cenário mundial a partir do governo de Hamurabi (1728-1686 a.C.). Ele venceu militarmente a Assíria, subjugou antigos aliados e também o reino de Mari, importante centro comercial da época. Durante seu governo, a Babilônia teve um impressionante florescimento cultural. 

Anos mais tarde, as águas do golfo Pérsico recuaram e o rio Eufrates mudou seu curso, correndo 16 quilômetros para leste. Ur então foi abandonada, sendo sepultada pelas tempestades de areia do deserto.

As pesquisas arqueológicas desenvolvidas pela Universidade da Pensilvânia e o Museu Britânico, numa expedição dirigida por Sir Woolley, entre 1922-1934, descobriram o zigurate ou torre-templo, cujo modelo fora a torre de Babel. Era o edifício mais importante da época de Abraão. A torre era quadrangular, construída com sólidos tijolos, possuía terraços arborizados e no topo ficava um santuário ao deus Lua.

A cidade tinha ainda dois templos. Um ao deus Lua, Nanar, e outro à deusa Lua, Ningal. Esses dois templos eram um complexo de santuários, com pequenas salas, alojamentos de sacerdotes, sacerdotisas e atendentes. Eram essas divindades que o pai de Abraão cultuava.

Num bairro residencial de Ur foram descobertas casas, lojas, escolas e capelas, com milhares de placas, documentos de negócios, contratos, recibos, hinos, liturgias, etc. As casas eram de alvenaria, com dois pavimentos, no alinhamento das ruas, e com pátio interno.

Depois de sair de Ur, Abraão viveu com sua família em Harã, uma cidade também muito desenvolvida. Seus parentes, Terá, Naor, Pelegue e Serugue, tiveram seus nomes registrados nos documentos diplomáticos de Mari, na região e também em documentação dos assírios, como nomes de cidades naquelas regiões.

7.

Ainda que não haja flores
 
Louvemos ao Adonai e pai do nosso senhor Yeshua! Por causa da sua grande misericórdia, ele nos deu uma nova vida pela ressurreição do senhor Yeshua. Por isso o nosso coração está cheio de uma esperança viva. Assim esperamos possuir as ricas bênçãos que Adonai guarda para o seu povo. Ele as guarda no céu, onde elas não perdem o valor e não podem se estragar, nem ser destruídas. Essas bênçãos são para vocês que, por meio da fé, são guardados pelo poder de haShem para a salvação que está pronta para ser revelada no fim dos tempos. Alegrem-se por isso, se bem que agora é possível que vocês fiquem tristes por algum tempo, por causa dos muitos tipos de provações que vocês estão sofrendo. Essas provações são para mostrar que a fé que vocês têm é verdadeira. Pois até o ouro, que pode ser destruído, é provado pelo fogo. Da mesma maneira, a fé que vocês têm, que vale muito mais do que o ouro, precisa ser provada para que continue firme. E assim vocês receberão aprovação, glória e honra, no dia em que o senhor Yeshua for revelado.

A esperança é uma herança que Adonai entrega aos seus filhos e filhas. Mas, a esperança não significa apenas um tipo de expectativa com relação ao futuro. Ela é o ingrediente que dá sentido à vida presente. É ela que tira do dia-a-dia as sombras da incerteza e deixa brilhar o sol da alegria. Fazer da esperança apenas uma possibilidade futura é torná-la uma expectativa, mas não a certeza de algo real.

A esperança é a certeza de que Adonai está presente na vida, aqui onde estamos, e traz plenitude e paz ao coração, mesmo quando tudo parece sem sentido. Ela é a certeza de que Adonai tem um lugar preparado para nós, quando a história deste mundo chegar a seu final. Isso quer dizer que a esperança está ligada à fé. É por isso que Pedro diz que somos guardados pelo poder de haShem, mediante a fé.

E Pedro afirma também que devemos alegrar-nos quando a provação vier. E por que? Para que o valor de nossa fé, uma vez confirmado, redunde em louvor, glória e honra no dia em que o senhor Yeshua for revelado.

Diante do sofrimento não perca a esperança. O sofrimento é fogo que refina e quando este momento passar sua fé estará mais madura e tudo terá sido para a glória de haShem. Você está a enfrentar dificuldades na vida? Suas forças parecem se esgotar? Utilize a herança que Adonai lhe entregou: a esperança é para hoje. Adonai expulsará a dor e o sofrimento de sua vida. Você não está sozinho: Yeshua está aqui com você. Que essa esperança encha o seu coração e ilumine sua vida. É a oração do seu amigo e pastor.

 Mesmo assim eu darei graças a haShem e louvarei a Adonai, o meu Salvador. 

Muitas vezes, quando falamos de crise entre as nações, ou de dor e sofrimento, nos perguntamos se Adonai está preocupado com essas coisas. A resposta para essas questões estão bem presentes no livro de Habacuque. O profeta do Antigo Testamento nos ensina que os povos e as nações são julgadas pelo bem e pelo mal que produzem no mundo. E que esses juízos muitas vezes atingem também os filhos de haShem. 

Conhecedor dos alvos errados de Judá e consciente de que os caldeus invadiriam seu país, Habacuque sofre diante do que acontecerá ao seu povo. O profeta ora ao HaShem e pede que Ele tenha misericórdia no exercício da sua justiça. 

E foi assim, num momento extremo de dor, que Habacuque compôs o final do  seu livro, o capítulo três, que é um dos poemas mais lindos do Antigo Testamento. E nele o profeta nos mostra que toda a glória e todo o louvor pertencem a Adonai. 

Glória pelo que Ele é: misericordioso. O nosso Adonai não vem só para julgar, mas também vem para livrar. Mesmo que estejas irado, tem compaixão de nós.

Glória por sua majestade. Devemos aceitar a sua justiça, não porque entendemos ou deixamos de entender, mas porque Ele é Adonai e nós somos pó. Ele para e a terra treme. Ele olha para as nações e elas ficam com medo.

Glória por nos manter firmes na adversidade. Lembre-se: ainda que a figueira não floresça, que não haja uvas nas parreiras, que os campos não produzam alimentos e que o rebanho seja exterminado, Ele está ao seu lado. Adonai é a minha força. Ele torna o meu andar firme.

Por isso, querido irmão, querida irmã, como Habacuque não se esqueça: quando tudo parece perdido, com Adonai ainda não está perdido. Quando chegamos ao final de nossos recursos, os recursos de haShem ainda estão disponíveis. E quando a crise, a dor e o sofrimento nos encurralam, precisamos olhar para o alto, porque é Ele quem torna o teu andar firme como o de uma corça e quem te leva para as montanhas, onde estarás seguro 

Que a emunah de Habacuque sirva de exemplo para você e para mim. 
 
A ruach hakadosh é aquela que convence os errados de suas culpas, que defende aqueles que são acusados e que julga com misericórdia. A vida humana pode ser negada e, por isso, para ser realmente vivida tem de ser afirmada. Vida negada e recusada é morte. Vida aceita e afirmada é felicidade. É o espírito da verdade quem convence o universo de seus alvos errados, que corrige o universo injusto e que transforma as pessoas, de escravos e vítimas do erro em servos alforriados pela graça de haShem.

Com efeito, se olharmos a prodigiosa atividade do Espírito em Atos dos Apóstolos, será fácil entender o Espírito Defensor dos servos de haShem e da comunidade neotestamentária, que se por um lado produzia unidade, por outro trabalhava a diferença e diversidade das pessoas.

Nesse sentido, a autoridade defensora do Espírito interveio nos momentos difíceis quando a vida de pessoas estava sob risco, quando a perseguição crescia ou quando se fazia necessário proclamar o Verbo da vida. Foi esse espírito defensor que revelou às igrejas apostólicas o mistério da encarnação do filho de haShem, em conformidade com o ensino dos profetas e do evangelho.

Mas, quando se faz necessário morrer pela proclamação do Verbo da vida, o espírito defensor é consolador preenchendo a fraqueza humana de coragem e fidelidade.

É este Espírito Defensor que possibilita o encontro das diferentes experiências de vida, assim como a comunhão da diversidade que Ele próprio cria e administra em cada um de nós. E é Ele, que/quem nos encoraja à esperança. O Espírito, o Espírito de unidade e da diversidade, não cessa de atuar entre os cristãos, mesmo quando distantes e aparentemente separados.

Quem fala em línguas estranhas fala a Adonai e não às pessoas, pois ninguém o entende. Pelo poder da ruach hakadosh ele diz verdades secretas. Porém quem anuncia a mensagem de haShem fala para as pessoas, ajudando-as e dando-lhes coragem e consolo. Quem fala em línguas estranhas ajuda somente a si mesmo, mas quem anuncia a mensagem de haShem ajuda a igreja toda.

Quem fala com Adonai sem usar as palavras em português, ou no seu idioma pátrio, edifica-se a si mesmo. Mas, essas línguas podem ser humanas  ou uma língua desconhecida na terra. Os justos de Corinto exageraram na importância do dom de línguas em detrimento dos outros dons. Para corrigi-los, Shaul deu a seguinte orientação: 

a) a profecia, por que é proclamação do Evangelho, é mais importante para a igreja porque exorta, edifica e consola: dela todos se beneficiam. Os irmãos não devem pensar apenas na sua edificação.

b) para que os benefícios se estendam ao maior número de pessoas na comunidade de fé, aquele que fala em línguas, ore para receber o dom de interpretação, se é que deseja os dons espirituais. Em nenhum momento Shaul despreza o dom de variedade de línguas. Ao contrário, ele agradeceu a Adonai porque falava em línguas e disse que gostaria que todos falassem em línguas, mas que houvesse mais proclamação do Evangelho. 

Podemos dizer ainda que o falar em línguas é o processo da misericórdia de haShem para pobres e excluídos, que não têm voz na sociedade, cujas línguas estão mudas. Então, é um desprender-se sob o Espírito que possibilita expressarem o que sentem e experimentam. É uma nova expressão para a experiência da fé, e é uma expressão pessoal.

Mas, para benefício da Igreja convém que o dom de línguas tenha intérprete. Caso não haja intérprete, melhor que fiquem em silêncio, falando consigo e com Adonai. E, por fim, uma recomendação do apóstolo: procurem, com zelo, profetizar e não proíbam falar línguas, mas façam-se todas as coisas decentemente e com ordem. 

Por isso, já que vocês estão com tanta vontade de ter os dons do Espírito, procurem acima de tudo ter os dons que fazem com que a igreja cresça espiritualmente.

A graça é algo intocável, está além de nós, vem de haShem. Por ela somos salvos e isso não é produto de merecimento próprio ou de nossa capacidade, é dom de haShem. Mas, através da presença do mashiah, que vive em nós [ou como diz o rabino Shaul: estou crucificado com o messias e não sou eu quem vive, mas Yeshua vive em mim, essa graça intangível se transforma em vida, em realidade visível e palpável.
 
A graça de haShem vai além de nós, é independente de nós, mas ao ser vivida, nos faz portadores dela. Sabemos que a fé vem pelo ouvir, porque assim nos diz a Palavra de haShem. Essa Palavra vem de haShem, para nós. Ao ser vivida por nós continua sendo transcendente, mas passa também a ser imanente, passa a ser realidade divina vivida por nós. O apóstolo Paulo conta que Adonai lhe disse: “A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza”. E ele, consciente do que isso significa, disse: Por isso me gloriarei nas minhas fraquezas, para que em mim habite o poder de Yeshua.
 
É assim que a fé opera, enquanto poder que transforma e leva graça aos homens e mulheres deste mundo. Essa notícia tão especial, esse Evangelho da graça, muda as vidas e as comunidades. O apóstolo João, falando da graça derramada pelo sacrifício do mashiah, exprime assim essa verdade: Ele é a propiciação pelos nossos alvos errados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo.
 
A palavra veio de haShem, invadiu nossas vidas, podemos recebê-la, pronunciá-la e deixar que transforme tudo que está ao nosso redor. A realidade da graça, ao ser vivida e pregada, transforma o mundo e sua história. 

 Aqui a palavra haShem quer dizer o espírito. E onde o Espírito do HaShem está presente, aí existe liberdade.

Onde está o espírito do haShem há liberdade. Com essa experiência do Espírito, o rabino Shaul fala sobre a liberdade cristã. Mas para falar da liberdade no Espírito é necessário começar pela fé.

A fé é geralmente entendida como uma concordância formal com a doutrina da igreja ou como uma participação na fé da igreja. Mas a fé que liberta é mais do que isso, é uma fé que nos envolve pessoalmente. A fé que me faz livre é a fé com a qual eu concordo, porque eu a compreendo, não porque seja forçado por hábito ou tradição. A fé pessoal é o início de uma liberdade que renova inteiramente a vida e vence o universo.

Essa fé é uma experiência que não abandona aqueles que a experimentaram realmente: a liberdade do medo para confiança, o reviver para uma esperança viva, o amor incondicional à vida.

Para a fé cristã, a liberdade não consiste nem na compreensão de uma necessidade histórica, nem na autonomia sobre si próprio e sobre a propriedade, mas sim no ser tocado pela energia de vida do Espírito.

Fé significa ser criativo com Adonai e no seu Espírito. Crer leva a uma vida criativa e vivificante pelo amor. Crer, por isso, significa ultrapassar os limites da realidade determinada pelo passado e buscar as possibilidades da vida que não se realizaram. E é essa fé que livra da força do mal, da lei das obras e do poder da morte e leva a uma comunhão direta e eterna com Adonai. Essa é a base e o fundamento da liberdade no Espírito. 

O Espírito e a Noiva dizem: Venha! Aquele que ouve isso diga também: Venha! Aquele que tem sede venha. E quem quiser receba de graça da água da vida.
 
As palavras hebraica e grega para espírito revelam um significado duplo: espírito e vento. Por exemplo, o Espírito de haShem pairava sobre a face das águas, e Adonai fez passar um vento sobre a terra, e as águas abaixaram. Yeshua disse a Nicodemos: O que é nascido do Espírito, é espírito... o vento sopra onde quer”. 

Outro significado do termo espírito nas duas línguas é sopro, respiração, tanto divina como humana (Jó 4.9; 12.10; 2Ts 2.8; Ap 11.11). Nas Bíblias em português, a expressão espírito é escrita com letra maiúscula para referir-se ao Espírito de haShem ou com letra minúscula para indicar o espírito humano. Como os manuscritos antigos não usavam letras maiúsculas, os tradutores e editores, às vezes, têm dificuldade para determinar se o escritor bíblico tinha em mente o espírito de haShem ou o humano. Como exemplo veja as variações de tradução em Atos 19.21. 

A imagem da água, que denota limpeza e purificação, as imagens do óleo e do azeite, que denotam unção e a imagem do fogo, que denota luz e o consumir da justiça divina são também símbolos do Espírito.

De repente, veio do céu um barulho que parecia o de um vento soprando muito forte e esse barulho encheu toda a casa onde estavam sentados. Então todos viram umas coisas parecidas com chamas, e cada pessoa foi tocada por uma dessas línguas. Todos ficaram cheios da ruach hakadosh e começaram a falar em outras línguas, de acordo com o poder que o Espírito dava a cada pessoa.

As cartas apostólicas ensinam o princípio tri/unitário, tanto no início como na conclusão dos textos. O evangelho de Lucas tem passagens que apresentam a concepção de Yeshua como obra do Espírito, assim como Mateus. João Batista disse ao povo que ele os batizava com água, mas Yeshua os batizaria com o Espírito e com fogo. 

Na história humana, a idéia de poder sempre esteve ligada à violência, às guerras e ao prazer. Ter poder é possuir riquezas, são os músculos, ou os votos que um político pode conquistar. Mas, nas Escrituras, o Espírito é comparado à água, que refrigera, limpa e purifica, por isso simboliza o poder de um novo nascimento.

A ruach também é comparada ao óleo ou azeite. Nessa simbologia, o Espírito é um poder que conforta, já que o azeite era utilizado como medicina. Os reis eram ungidos com o azeite perfumado. O azeite da unção usado em Israel tinha uma fórmula, na qual entravam a mirra, a canela, as madeiras aromáticas, a cássia e o azeite de oliva, razão porque era usado como perfume. 

Já o fogo sempre esteve ligado à imagem de haShem e sua justiça. No Pentecostes, centelhas de fogo pousaram sobre a cabeça de cada um dos apóstolos e no Apocalipse um lago de fogo está reservado para a morte, para o universo dos mortos e para aqueles que não tiverem seus nomes escritos no Livro da Vida. A água, o óleo e o fogo são sinais da presença e da justiça de haShem e nos ajudam a compreender o papel do Espírito em nossas vidas, nas sociedades e no universo.

Ele os batizará com o Espírito e com fogo.


8.

Juntos, a multiplicar o pão

A palavra comunhão provém do grego koinonia, relacionamento, comunicação, que por sua vez tem como origem koiné, que significa comum. Quando foi traduzida para o latim, agregou o sentido de servir a alguém e de trabalhar junto.
 
Comunhão é chamado: Adonai é fiel e chamou vocês para que vivam em união com o seu filho Yeshua, o nosso senhor.
 
Comunhão com o pai: Contamos a vocês o que vimos e ouvimos para que vocês estejam unidos conosco, assim como nós estamos unidos com o ai e com Yeshua, o seu filho.
 
Comunhão com o filho: Porque, onde dois ou três estão juntos em meu nome, eu estou ali com eles. Escutem! Eu estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, eu entrarei na sua casa, e nós jantaremos juntos.
 
Comunhão com o espírito: Que a graça do haShem, o amor de haShem e a presença da ruach hakadosh estejam com todos vocês!
 
A quebra da comunhão. Vocês estão pensando que o haShem perdeu a força e não pode nos salvar? Ou pensam que ele está surdo e não pode nos ouvir? Pois são os alvos errados de vocês que os separam do seu Adonai, são as suas maldades que fazem com que ele se esconda de vocês e não atenda as suas orações. Endurece o coração. Não sejam teimosos, como os seus antepassados foram em Meribá, quando estavam em Massá, no deserto. E atrapalha o espírito. Não atrapalhem a ação da ruach hakadosh.
 
Manter a comunhão é um imperativo. Um dia, quando estava com os apóstolos, Yeshua deu esta ordem: Fiquem em Jerusalém e esperem até que o pai lhes dê o que prometeu, conforme eu disse a vocês. Porém, quando o espírito descer sobre vocês, vocês receberão poder e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria e até nos lugares mais distantes da terra.

E todos continuavam firmes, seguindo os ensinamentos dos apóstolos, vivendo em amor cristão, partindo o pão juntos e fazendo orações.

Louvavam a Adonai por tudo e eram estimados por todos. E cada dia o haShem juntava ao grupo as pessoas que iam sendo libertas.
 
Os resultados da comunhão. Eu estarei com você e o protegerei em todos os lugares aonde você for. Adonai disse: Eu irei com você e lhe darei a vitória. Moisés disse ao povo: Quando vocês saírem para combater os inimigos e virem que eles têm mais soldados do que vocês e que têm muitos cavalos e carros de guerra, não fiquem com medo deles. Pois o haShem, nosso Adonai, que os livrou do Egito, está com vocês.

Quando você atravessar águas profundas, eu estarei ao seu lado, e você não se afogará. Quando passar pelo meio do fogo, as chamas não o queimarão.

E lembrem disto: eu estou com vocês todos os dias, até o fim dos tempos.


9.

E a comunidade caminha ...

Essas notícias chegaram à igreja de Jerusalém, que resolveu mandar Barnabé para Antioquia. Barnabé era um homem bom, cheio da ruach hakadosh e de fé. E muitos se converteram ao haShem.

Atos dos Apóstolos é um livro sobre a prática de missões sob o comando da ruach hakadosh. O espírito é missionário. Por isso, o livro de Atos é único em seu estilo no Novo Testamento, porque revela o espírito como um espírito missionário. E se o espírito é missionário, o que lemos em Atos é a consequência natural da história de uma igreja que é formada como igreja missionária. A relação espírito-igreja é a chave do sucesso em Atos. 

Mas, Lucas deixa claro que a ruach é quem comanda a igreja em sua missão. A ruach é Adonai e Adonai soberano. Ele conduziu em triunfo a jovem igreja cristã em sua missão de evangelizar e discipular. E o mesmo espírito quer hoje conduzir nossa igreja em sua tarefa missionária. Afinal, é o espírito quem vocaciona, capacita e dirige os obreiros e a igreja na missão.

Naquele tempo alguns profetas foram de Jerusalém para Antioquia. Um deles, chamado Ágabo, levantou-se e, pelo poder da ruach hakadosh, anunciou: Haverá uma grande falta de alimentos no universo inteiro. Isso aconteceu quando Cláudio era o Imperador romano.

Além disso, é Ele quem vai adiante: abre as portas e prepara o caminho para o sucesso da obra missionária. E o mesmo espírito, além de preparar o campo, é quem transforma este mesmo campo em base missionária. A visão missionária é uma dádiva do espírito para a igreja de Yeshua. Praticar esta visão, como o fez a jovem igreja de Atos, é entender o propósito para o qual a igreja de Yeshua existe.
 
Entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se, o adoraram; e, abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra.
 
A família de Yeshua já não estava no estábulo, porque, depois do recenseamento, as pessoas que não moravam em Belém foram voltando para suas aldeias. Por isso, não deve ter sido difícil para a família encontrar uma casa para alugar. 
 
E assim os sábios encontraram, depois de tanto esforço, em Belém, aquele que eles procuravam, o bebê com Maria, sua mãe. E lançando-se no chão o adoraram. Esta não é uma mesura diplomática diante de um rei qualquer. Aqueles viajantes estavam tomados de alegria e expressaram seus sentimentos em gestos de adoração.
  
E abrindo os seus tesouros ofereceram-lhe suas ofertas. O texto nos remete à Bíblia hebraica e ao costume de entregar ofertas a Adonai. A expressão utilizada aqui para ofertas só aparece sete vezes no Novo Testamento e todas no sentido de oferta entregue a Adonai. Sem dúvida, devemos entender que aqueles sábios terminaram sua peregrinação, entregando ao Messias presentes especiais.
 
Que presentes eram esses? Ouro, incenso e mirra. No Antigo Testamento, não há nenhum caso de um soberano que tenha sido presenteado com ouro, incenso, e mirra. A rainha de Sabá ofereceu a Salomão especiarias, pedras preciosas e ouro. Ela chegou com um grande grupo de servidores e também com camelos carregados de especiarias, pedras preciosas e uma grande quantidade de ouro. Mas não sabemos que especiarias eram essas.
 
E Isaías profetiza: atraídos pela sua luz, Jerusalém, os povos do mundo virão; o brilho do seu novo dia fará com que os reis cheguem até você. A multidão de camelos te cobrirá, os dromedários de Midiã e de Efa; todos virão de Sabá; trarão ouro e incenso e publicarão os louvores do haShem. Ou seja, ele vê camelos e dromedários vindo do golfo de Ácaba e do sul da Arábia, da região do Iêmen, com ofertas: ouro e incenso.  
 
O incenso era produzido a partir de resinas aromáticas de certas árvores misturadas com especiarias. O incenso era queimado nas cerimônias de adoração a Adonai, de manhã e à tarde no templo. Era um símbolo das orações que subiam para Adonai. A mirra também era uma resina, tirada de uma pequena árvore do Oriente Médio, com a qual se fazia um perfume agradável e um remédio que, misturado com vinho, servia como calmante.
 
Essas três ofertas mostram a importância da criança. O ouro foi apresentado ao Rei Menino como símbolo da realeza dele. O incenso como símbolo da sua divindade. E a mirra como símbolo dos sofrimentos que haveria de sofrer. As três ofertas nos falam de alguém que tem duas naturezas: é divino e humano. Vemos nesses presentes, o Yeshua senhor e rei; o Yeshua sacrificador; e o Yeshua servo sofredor. 
 
Esses foram os presentes que o menino recebeu naquele primeiro natal. E o que você dará a ele neste Natal? O ouro de suas posses e bens, em reconhecimento de que Ele é haShem e Rei da sua vida? O incenso de sua adoração mais sincera, em reconhecimento de que Ele é o Sumo Sacerdote, único e eterno, que intercede por você junto ao Pai? A mirra da entrega de suas dores e sofrimentos humanos, em reconhecimento de que Ele sim é o Servo Sofredor, que morreu em seu lugar?
 
Ore... E entregue-se ao haShem!

Adonai diz a seu povo: Depois disso, eu derramarei a minha ruach sobre todas as pessoas: os filhos e as filhas de vocês anunciarão a minha mensagem, os velhos sonharão e os moços terão visões. Até sobre os escravos e as escravas eu derramarei o meu espírito naqueles dias

O derramamento do espírito no dia de Pentecostes é início e fim. É o fim da antiga aliança e o surgimento de uma nova. É o fim de uma velha era e o início de uma nova. O que era escrito em pedras agora é escrito no coração. O povo de haShem agora é uma raça, é roça: é a colheita do espírito que semeia a palavra no coração das pessoas.

No Pentecostes, ao citar o profeta Joel, Pedro deixa claro: os últimos dias começaram. A compreensão de que o Pentecostes marca o tempo do fim e o fim dos tempos, traz para nós duas lições:

A primeira, é que somos chamados à vigilância, pois o fim se abrevia: o tempo da partida está cada dia mais próximo. A segunda é que devemos fazer a crítica daqueles que pensam poder apresentar os tempos e as épocas que Adonai reservou para si.
 
Pois a ruach que Adonai nos deu não nos torna medrosos, pelo contrário, o espírito nos enche de poder e de amor e nos torna prudentes.

Deixemos de lado cálculos, estimativas, projeções e repousemos sobre a certeza de que o Dia do haShem se aproxima, e que a igreja o aguarda desde o dia de Pentecostes. Aquele derramar do espírito foi o esperado que aconteceu inesperadamente. 

É interessante observar que Lucas diz que os discípulos deveriam esperar o tempo da promessa em Jerusalém. Depois fala que de repente a ruach se fez presente. Eles esperavam, mas não sabiam quando. Eles tinham certeza, mas não sabiam a hora.

O espírito não é companheiro de horas marcadas, anunciadas em anúncios e cartazes. Ele vem quando não esperamos. E não vem da forma que esperamos. Quem quiser andar com o espírito tem que estar preparado para surpresas, para o inesperado. Ele não falha com as suas promessas, mas não fará o que esperamos nem quando esperamos.

Quando a ruach vem ninguém se controla. Mas ele controla a todos. Naquela hora ninguém escolheu nem determinou os seus atos. Mas ninguém estava sem controle. O espírito controlava a todos. Era conforme o espírito concedia. Ser cheio do espírito não é ser como um avião sem piloto. Ser cheio do Espírito é ser conduzido por ele que na sua soberania faz o que quer quando quer e como quer. Eis o paradoxo de haShem, aquilo que contraria a crença compartilhada pela maioria.

Mas quem não tem a ruach de haShem não pode receber os dons que vêm do espírito e, de fato, nem mesmo pode entendê-los. Essas verdades são loucura para essa pessoa porque o sentido delas só pode ser entendido de modo espiritual.

A experiência do cristianismo nascente foi apresentada no livro de Atos dos Apóstolos com as imagens do vento forte de uma tempestade e de labaredas de fogo. De repente veio do céu um barulho que parecia o de um vento soprando muito forte e esse barulho encheu toda a casa em que estavam sentados. Então todos viram umas coisas parecidas com chamas... todos ficaram cheios da ruach hakadosh e começaram a falar em outras línguas, de acordo com o poder que o espírito dava a cada pessoa.

Essas imagens, ou metáforas, expressam a emoção diante de algo extremamente poderoso e o início de um movimento que envolveu todos que estavam naquela casa. Tais metáforas descrevem o movimento arrebatador, que dominou não somente o consciente de cada pessoa, mas também o íntimo de seus corações para coisas novas e nunca imaginadas. Os discípulos e as discípulas que estavam na casa foram movidos no mais profundo de suas personalidades e colocaram-se em movimento, rompendo com a inércia.

É bom lembrar que os discípulos e as discípulas até aquele momento eram pessoas amedrontadas, fechadas numa casa, escondidas. Mas a presença poderosa da ruach fez delas testemunhas audaciosas, mensageiros e mensageiras do Evangelho, que levaram as boas notícias da salvação até os confins da terra.

Essas imagens do vento e do fogo da ruach nos remetem ao amor de haShem, que dá vida e a mantém. O próprio Yeshua disse que a ruach de haShem é quem dá a vida. O espírito nos dá a vida e movimenta cada um de nós em direção à vida, por isso, se opõe à inércia e ao medo, pois o espírito que Adonai nos deu não nos torna medrosos, pelo contrário, o espírito nos enche de poder e de amor e nos torna prudentes. O vento forte e as labaredas de fogo devem se transformar num incêndio de amor em nossas vidas. Que o espírito seja vento e fogo na sua vida também. Está é a minha oração. Do seu pastor e amigo.

A ênfase sobre o monoteísmo, dada pelos escritores do Antigo Testamento, prevalece na doutrina da trindade. No entanto, os escritores bíblicos fazem uma distinção entre Adonai e a ruach do haShem, sem jamais considerar o espírito como uma mera emanação de haShem. 
 
Tome-se, por exemplo, as referências em Gênesis. Adonai criou o céu e a terra, mas a ruach do haShem pairava sobre as águas. Adonai disse que seu espírito não contenderia para sempre com o ser humano. 

Isso significa que os escritores bíblicos viam duas pessoas divinas distintas. Entendiam que o espírito era Adonai, o qual exercia funções que os escritores bíblicos expressaram em termos humanos. 
 
Isso fica claro em algumas passagens. Os levitas oraram: Tu lhes deste o teu bom Espírito para lhes ensinar o que deviam fazer. Davi perguntou: Aonde posso ir a fim de escapar do teu espírito? e Isaías escreveu que o povo entristeceu o seu espírito e Adonai tornou-se inimigo deles. 


10.

As estatísticas nos mostram que em todo o mundo morrem cerca de 90 milhões de pessoas por ano, 7,5 milhões por mês e 250 mil pessoas por dia. De certa forma, nós fazemos parte dessa estatística. Todos tivemos parentes que já se foram. E um dia será a nossa vez.

Quer queiramos ou não, sobre todos nós pesa uma decisão divina: Você veio da terra e vai virar terra outra vez. Cada pessoa tem de morrer uma vez só e depois ser julgada por Adonai. 

Nós temos um corpo terreno, material, e um espírito. Quando morremos, o corpo vai para a sepultura e transforma-se de novo em terra, de onde veio. Mas, a mesma coisa não acontece com o espírito.

Yeshua nos ensinou que na eternidade há dois lugares: um de delícias, que nós chamamos céu, e outro de separação e solidão, que chamamos inferno. Depois da morte já não há possibilidade de salvarmos nossas almas. Ninguém deixa o inferno e transfere-se para o céu. Só existe um caminho direto e garantido para aquele lugar de delícias que Adonai preparou para nós. Este caminho não é a nossa própria justiça, a caridade que fazemos ou a tradição religiosa que herdamos de nossos pais.

Yeshua foi muito claro e taxativo. Ele disse: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Somente por meio de mim é possível chegar ao Pai. 

Crucificado entre dois bandidos, Yeshua teve uma conversa muito ilustrativa com aqueles homens. Um deles xingava, praguejava e insultava a Yeshua. Mas o outro reconheceu que Yeshua era justo e que não merecia passar por aquilo. E que ele próprio, ao contrário, era um ladrão, não tinha méritos, e estava sendo punido com razão. Arrependido, clamou:

Yeshua, lembre-se de mim quando o haShem vier como Rei! E Yeshua respondeu: Eu lhe afirmo que hoje você estará comigo no paraíso. 

O marginal arrependido não foi para nenhum purgatório, nem precisou de reencarnações. O que aquele bandido fez, você também deve fazer. O que ele recebeu, você também pode receber. O que ele alcançou, você também precisa alcançar. Você precisa ser salvo.

A salvação que Yeshua dá é inteiramente grátis. O rabino Shaul explicou isso muito bem: É pela graça de haShem que vocês são salvos, por meio da fé. Isso não vem de vocês, mas é um presente dado por Adonai. A salvação não é resultado dos esforços de vocês mesmos, e por isso ninguém deve se orgulhar. 

Nunca se esqueça: tudo que era necessário fazer para que você fosse salvo Yeshua já fez quando morreu crucificado. Aceite a realidade deste presente de haShem. Feche os seus olhos, medite um pouco naquele sacrifício de haShem feito por você. Reconheça que você precisa de Yeshua para receber o presente da salvação eterna e entrar no paraíso prometido por Adonai. Isso... converse com Adonai, fale com Adonai através de Yeshua. Ele morreu por você.

Alguns, porém, o receberam e creram nele, e ele lhes deu o direito de se tornaram filhos de haShem. Eles se tornaram filhos de haShem, não por nascimento natural, isto é, como filhos de um pai humano, foi o próprio Adonai quem lhes deu vida.

Diante disso, desse seu nascimento para a vida eterna, leve com você, em seu coração, essas palavras de Yeshua: Todos aqueles que o pai me dá virão a mim. E de modo nenhum jogarei fora aqueles que vierem a mim.

Que o Adonai Eterno abençoe você e lhe guarde, que o Adonai Eterno trate você com bondade e misericórdia, que o Adonai Eterno olhe para você com amor e lhe dê a paz. Em nome de Yeshua, eu oro assim. Amém.

Certamente vocês sabem que são o templo de haShem e que a ruach vive em vocês.

Falar sobre o espírito é falar sobre nós, pois só Ele pode mostrar quem de fato somos. Assim, o que nós somos é mais bem compreendido quando a ruach atua em nossas vidas. Quem é o espírito? Para que foi Ele enviado por Yeshua?

A Criação, a Providência e a Salvação são as obras de haShem. Mas, existe também a obra subjetiva de haShem, que é a aplicação de sua salvação na vida das pessoas. E é aqui que entra a Pessoa da ruach hakadosh, pois esta obra é feita de dentro para fora no ser humano, já que Yeshua fez a obra externa.

Mas foi a nós que Adonai, por meio da ruach, revelou o seu segredo. O espírito examina tudo, até mesmo os planos mais profundos e escondidos de haShem. Quanto ao ser humano, somente o espírito que está nele é que conhece tudo a respeito dele. E, quanto a Adonai, somente o seu espírito conhece tudo a respeito dele.

Assim, podemos dizer que o pai, para nós, aparece nas obras da criação e da providência, o filho aparece na obra de redenção da humanidade e o espírito aplica essa obra redentora às pessoas, tornando real a salvação.

Na realidade, a ruach é a pessoa da trindade que se torna pessoal para aquele que crê. O espírito é a pessoa específica da trindade por meio de quem a trindade atua em nós.

Embora a compreensão da ruach hakadosh seja importante, ela é em geral um pouco difícil. E isto assim porque temos na Bíblia menos revelações explícitas acerca do Espírito do que encontramos sobre o pai e o filho. Mas ele é Adonai como o pai e como o filho.

Eu derrubo as árvores altas e faço as árvores pequenas crescerem. Eu seco as árvores verdes e faço com que as árvores secas fiquem verdes de novo.

O haShem realizou sinais e maravilhas no Egito para mostrar o seu poder ao faraó e a sua bondade ao povo hebreu. E de lá tirou seu povo, usando Moisés para abrir o mar. E em seco os hebreus passaram por ele. O HaShem guiou os hebreus pelo deserto através de uma nuvem durante o dia e de uma coluna de fogo que os iluminava à noite.

Mas o povo se rebelou e provocou a ira de haShem. Embora tenham visto os sinais e recebido os livramentos do HaShem, pensaram em voltar à escravidão no Egito. Hoje em dia, muitos de nós, quando passamos por aflições nos escandalizamos com as dificuldades e sentimos saudades dos tempos passados. Corá, Datã e Abirão não se lembraram das bondades do haShem e, revoltados, pensaram em derrubar Moisés. Mas, assim como o haShem abriu o mar para que o povo passasse, abriu a terra para que esta engolisse os rebelados.

Alguns dirão que a ação do haShem foi injusta. Porém, injustos foram os que se rebelaram, por não reconhecerem a Sua majestade, nem o Seu poder. Ao magoar Moisés, escolhido de haShem, irritaram ao haShem que o chamara. Mas Adonai não se ira para sempre e porque é bondoso enviou o seu Filho, que com misericórdia busca as pessoas e perdoa os alvos errados de nossa arrogância, de nossa soberba e de nossa autossuficiência.

Adonai é bondoso e quer que sejamos como ele. Ele está disposto a esquecer nossos alvos errados. E assim devemos ter disposição em não fazer o mal, em não prejudicar, em ser benigno. Este é o desafio que o HaShem nos faz: dispor-nos a fazer o bem, ser benevolente. Por isso, ao terminar a história do bom samaritano, Yeshua disse: Pois vá e faça a mesma coisa.

De manhã bem cedo, quando ainda estava escuro, Yeshua se levantou, saiu da cidade, foi para um lugar deserto e ficou ali orando. 


11.

O ministério da solidão

Perguntaram ao pai: Qual é o caminho estreito e apertado? Ele respondeu: O caminho estreito e apertado é este, controlar seus pensamentos e despojar-se de sua própria vontade por amor de haShem. Também isto é o significado da sentença: Senhor, eis que deixamos tudo e te seguimos.

Synclética, mãe do Deserto, disse: "No começo, há luta e muito trabalho para os que se aproximam de haShem. Mas, depois disso, há uma indescritível alegria. É como acender uma fogueira: no início há muita fumaça e seus olhos lacrimejam, mas depois você consegue o resultado desejado. Assim devemos acender o fogo divino em nós mesmos, com lágrimas e esforço."

A expressão pais e mães do deserto diz respeito aos monges e monjas, anacoretas ou cenobitas, que abandonaram as cidades helenísticas a partir da segunda metade do século terceiro e se estabeleceram no deserto egípcio. As origens do monaquismo oriental se encontram nessas comunidades religiosas. Shaul de Tebas foi quem deu início à tradição do ascetismo e da contemplação monástica. Ao final do terceiro século, Antonio Abade, o Antão do Egito, orientou colônias de monges anacoretas, eremitas, na região central. Logo se tornou exemplo do místico cristão e herói religioso para a Igreja oriental. Uma fama oriunda em parte da "Vita Antonii", biografia que Atanásio escreveu sobre ele. Mais tarde, com Pacômio de Tebaida surgiu uma nova forma de vida monástica, o cenobitismo, que diferente do anacoretismo optou pela vida e pelo trabalho comunitário. Esses primeiros cristãos monásticos influenciaram seguidores, que buscavam através de uma severa ordem de vida a salvação e a união com Adonai. Os pais e mães do deserto eram requisitados como líderes espirituais e conselheiros. Tais conselhos e reflexões foram coletados num trabalho chamado Paraíso ou Apotegmas dos Padres.

Durante muito tempo, o cristianismo místico entendeu a espiritualidade do deserto, que fez o caminho da solidão, do silêncio, da oração e do trabalho comunitário, como o caminho do coração. Isto porque, acreditavam que a espiritualidade do deserto, que em princípio exigia isolamento físico e o abandono das coisas do mundo, tornava-se uma qualidade do coração, uma disposição interior que já não era perturbada pelos que precisavam de orientação. Nesse sentido, a solidão e as outras virtudes dessa espiritualidade faziam dos crentes pessoas compassivas.

Aqui, por paradoxal que seja, o ministério da solidão, tão contrário à ética protestante, faz com que espiritualidade e compaixão se toquem. E assim, a comunhão e a compaixão tornam-se frutos da solidão e base da espiritualidade. Visto a partir desse olhar, a santificação e a transformação do crente que ocorrem na solidão manifestam-se na compaixão.

Nenhum crente, consciente dos desafios que estão implicados no fruto da ruach, subestimará a dificuldade de ser compassivo. A compaixão faz-se difícil porque exige a disposição interior de acompanhar o próximo exatamente naquilo em que ele ou ela é fraco e vulnerável. Mas, mesmo o cristão comprometido com o amor, não tem uma resposta espontânea diante do sofrimento alheio. O primeiro desejo é esquecê-lo, fugir ou encontrar uma cura rápida para ele. Por isso, para os pais e mães do deserto, é na solidão que essa comunhão solidária se desenvolve. É na solidão que o cristão percebe que tudo que é humano não pode lhe ser estranho, pois os fundamentos de todos os ciúmes, conflitos, injustiças e ódios estão lá dentro, nos corações humanos.
Assim, para os pais e mães do deserto, se quisermos cumprir as ordenanças do Sermão do Monte, amar e ser solidários com o sofrimento humano, teremos de desistir de nossas medidas de sentido, enquanto padrão da comparação do próximo. Morrer para o próximo significará, então, deixar de avaliá-lo e ficar livre para exercer compaixão.

Quando a publicidade e a mídia nos bombardeiam com exigências de beber, comer, comprar, usar, os sentidos das palavras se tornam ideológicos e perdem seu poder criador. Como resultado disso, a principal função da palavra deixa de ser percebida.

É nesse sentido que o silêncio se torna mistério do mundo e nos ensina a falar. A palavra com poder, criadora e criativa, vem do silêncio e volta a ele. Ou seja, é aí que o "seja o seu sim, sim, e o seu não, não" passa a ter sentido. E, de novo os pais e mães do deserto, através da disciplina, perguntam se as pessoas não serão mais bem auxiliadas com nosso silêncio do que com nossas palavras. Mas, acima de tudo, há aqui uma mensagem essencial: o silêncio é uma qualidade do coração, que deve permanecer em nós mesmo quando conversamos com outras pessoas.

A aparente ausência de respostas imediatas, concretas, por parte de haShem, nos levam a crer que oramos de forma errada. Aprisionados num mundo que é marcado por segundos e velocímetros, é, infelizmente, natural achar que parar para orar é coisa absurda. É perda de tempo. Preferimos falar com as pessoas, que são reais e nos respondem, a oferecer uma palavra a um Adonai, que parece estar distante, preocupado lá com os problemas dele.

Para os pais e mães do deserto, a crise de nossa vida de oração é que nossas mentes estão cheias de idéias sobre Adonai, mas nossos corações permanecem distante dele. Por isso, a verdadeira oração vem do coração. Ou como pensava Agostinho, nosso desejo deve ser nossa oração. E se você aprender a orar com o coração começou a caminhar no sentido da espiritualidade do deserto. 

A cultura e a filosofia da época, em especial o platonismo, construíram uma teologia que marcará a história da Igreja.

A Reforma protestante fez uma leitura dicotômica de Agostinho. Resgatou sua teologia, mas colocou de lado a espiritualidade do deserto, com exceção da regra do trabalho, que interpretado à luz do humanismo deixou de ser comunitário e solidário para ser base da visão individualista da ética protestante. 

Ora, falando sobre a espiritualidade do deserto, o papa João Paulo II disse ao jornal L’Osservatore Romano de 09 de julho de 1994, que mantém-se viva na comunidade de fé a memória histórica da vida eremítica, monástica, religiosa e apostólica, que surgiu primeiro no oriente com a consagração das virgens cristãs ao Senhor, com os anacoretas e com os cenobitas. São as primeiras formas de vidas guiadas pela doutrina e pelos Apotegmas dos pais e das mães do deserto e organizadas pelas primeiras regras monásticas, que a Igreja reconheceu com ritos particulares, como a consagração das virgens e a profissão monástica.

Diante do que vimos, gostaria que minhas leitoras e meus leitores pensassem comigo e procurassem responder para si próprios a três perguntas: Será que a leitura da espiritualidade do deserto e da integralidade de Agostinho possibilita um diálogo da teologia reformada com a teologia católica?

Será que a espiritualidade do deserto e a teologia aí implícita podem nos ajudar a compreender a espiritualidade católica? É possível conciliar a espiritualidade do deserto, solidão, silêncio, oração e trabalho solidário, com a ética protestante, hoje, no mundo globalizado?

E Yeshua subiu um monte a fim de orar sozinho. Quando chegou a noite ele estava ali, sozinho.

Nos tempos bíblicos, a dignidade da mulher dependia dos filhos que gerava, especialmente do número de filhos homens. Ser mãe era o que dava dignidade à mulher. Podemos ver isso na história de Ana, que era estéril e cujo marido, Elcana, casou-se com outra mulher para ter descendência. Essa segunda mulher de Elcana, Penina, gerou dez filhos e tinha enorme orgulho da sua maternidade.

Diante do sofrimento e da vergonha, Ana, numa viagem ao santuário de Siló fez a seguinte promessa: Se Adonai aceitar minha prece e me conceder um filho, eu o criarei como um nazireu, cuja vida será dedicada a Adonai. A prece sincera de Ana foi aceita por Adonai e ela teve um filho, a quem deu o nome de Samuel. Adonai ouviu. E Samuel se tornou um dos maiores profetas de Israel.

Essa pequena história nos oferece duas lições sobre a vida de uma mãe piedosa. Ela sabe que a sua vida e a de seus filhos dependem de seu relacionamento com Adonai. Mãe deve ser mulher de oração. E, em segundo lugar, sabe que seus filhos pertencem a Adonai e o melhor que pode fazer é desde pequenos apresentá-los a Adonai.

Pedimos a Adonai que cada uma de vocês possa, sinceramente, como Ana, depositar suas vidas, assim como a de seus filhos aos pés do Salvador.

Porém, quando a ruach da verdade vier, ele ensinará toda a verdade a vocês. O espírito não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que ouviu e anunciará a vocês as coisas que estão para acontecer. Ele vai ficar sabendo o que tenho para dizer, e dirá a vocês, e assim ele trará glória para mim.

Esses dons espirituais são necessários à vida e ao ministério dos que exercem a liderança na comunidade de fé. São a sabedoria, o conhecimento e o discernimento. Falar com sabedoria, ter conhecimento e discernir a origem de idéias, propostas e ações possibilitam ao cristão proclamar a palavra, liderar com humildade e harmonia, e saber escolher o que é melhor para a comunidade de fé. 

Lucas nos conta que os líderes judeus ficaram admirados com a coragem de Pedro e de João, pois sabiam que eram homens simples e sem instrução. Admiraram-se de que? Com as palavras sábias apresentadas através da inspiração da ruach hakadosh.

Ninguém é detentor de todos os dons da ruach, mas cada um recebe o dom, da forma como o espírito quer. O espírito é quem reparte. A exortação da palavra é que busquemos os dons e o façamos com equilíbrio, zelo, sem impedir que possa fluir. Pois o rabino Shaul nos diz, a cada um, porém, é dada a manifestação do espírito para o proveito comum, isto é, para o proveito da comunidade.


12.

Pescando com jumentas

Quem gosta de pescar sabe que a escolha da isca pode ser fundamental. Aliás,  um bom pescador sabe até qual isca é a preferida pelo peixe que pretende pescar. Em 1 Samuel 9 temos uma pescaria muito especial. Adonai pesca o futuro rei de Israel usando como isca jumentas.
 
O texto de 1Sm 9.1-10.6 conta como Shaul, o futuro rei, foi ungido ainda jovem e que essa unção permaneceu secreta, como a de Davi (capítulo 16). A história está centrada em Shaul e Samuel é apresentado nela não como juiz, que foi, mas como um profeta que Shaul encontra ‘por acaso’. Adonai deseja tornar Shaul o primeiro rei de Israel e o pesca.
 
As fêmeas do asno, no período de Juízes e no antigo Israel, eram montarias de famílias ricas. Eram preferidas e excediam os machos em número e valor, não somente porque eram montarias mais dóceis, mas também porque davam leite e procriavam. Por isso, não é de estranhar que Quis tenha mandado seu filho procurar as jumentas que se tinham perdido. Shaul não encontrou aquilo que procurava, mas uma coroa para sua cabeça.
 
É interessante lembrar que será sobre o lombo de um jumentinho, cria de jumenta, que Yeshua (Zacarias 9.9) entrará gloriosamente em Jerusalém, aclamado rei.
 
Logicamente, em qualquer pescaria o objetivo não é a isca, mas o peixe que se pretende pescar. O que Adonai desejava era tirar Shaul de sua casa, fazê-lo andar, ser conhecido e levá-lo até o profeta Samuel. Ungi-lo rei.

Também em nossas vidas, muitas vezes, Adonai utiliza iscas para que nos movamos, para que testemunhemos. Olhamos e só vemos que nossas jumentas desapareceram, não vemos a coroa que está guardada para nós lá no fim da estrada.
 

13.

A Adonai toda a glória!

Não me expulses da tua presença, nem tires de mim a sua ruach hakadosh. Mas eles se revoltaram contra Adonai e ofenderam o seu santo espírito. Por isso, Adonai se tornou inimigo deles e começou a lutar contra eles.

Nas línguas utilizadas no Antigo e no Novo Testamento (hebraico e grego), os termos usados para o espírito enfatizam sua santidade, embora no AT, o adjetivo santo antes do substantivo espírito aparece poucas vezes. 

No Novo Testamento a palavra santo antes do substantivo espírito está presente na maioria dos livros, especialmente no livro de Atos. Isso não significa que a ênfase ao espírito seja menor no Antigo do que no Novo Testamento. As expressões mais frequentes no Antigo Testamento são a ruach de haShem. 

Ora se Adonai não tem começo nem fim, por que Ele quis nascer? Não poderia ter simplesmente aparecido, com poder e glória, entre homens e mulheres? Não seria mais apropriado para em Ser divino uma aparição espetacular?
 
Além do mais, ninguém nasce adulto, conhecendo todas as coisas, sabendo de tudo, na plenitude da capacidade física, emocional e mental. Todos nascemos bebês. E precisamos ser cuidados.
 
Você já pensou: Adonai pequeno, Adonai sendo cuidado! De que um recém-nascido precisa? Calor, carinho, leite materno...
 
Adonai bebê, Adonai menino, Adonai adolescente. Adonai que precisava de pessoas, da mãe, dos irmãos, dos amigos. Adonai que brincava, discutia, discordava, participava. 
 
Afinal, por que Adonai quis nascer? Creio que podemos arriscar uma resposta: para ser pequeno, para depender, para ser igual a mim e a você? 
 
Um Adonai igual a mim, parado na rua, ouvindo músicas religiosas numa esquina. Um Adonai que enfrentava problemas pequenos e grandes, que conhece os desafios de ser mortal e viver num mundo cruel.
 
Ou como diz o apóstolo João, a palavra se tornou um ser humano e morou entre nós, cheia de amor e verdade. 

Eu pedirei ao pai, e ele lhes dará outro auxiliador, a ruach da verdade, para ficar com vocês para sempre. O universo não pode receber esse espírito porque não o pode ver, nem conhecer. Mas vocês o conhecem porque ele está com vocês e viverá em vocês.

Para a comunidade de fé, a unidade só é válida na variedade: nunca na uniformidade. A aceitação das pessoas com suas diferenças e particularidades é uma condição indispensável para a saúde da comunidade cristã. Por isso, há diversidade de dons, mas um mesmo é o espírito, como nos diz o rabino Shaul na sua primeiro carta aos coríntios (12.4). Assim, o amor unifica as diferentes expressões do frutificar no espírito e a liberdade no espírito possibilita a expressão dos diferentes dons.

Os dons da ruach hakadosh são evidências na comunidade de fé porque a palavra do haShem é a mesma ontem e hoje, pois passarão os céus e a terra, mas, as minhas palavras não haverão de passar, conforme encontramos no evangelista Mateus (24.35).

Sabemos que o espírito opera todas essa coisas, repartindo particularmente a cada um como quer e que a "manifestação do espírito é dada a cada um para o que for útil. 

Os dons da ruach hakadosh são os meios através dos quais os membros do corpo de Yeshua, a comunidade de fé, somos capacitados, habilitados e equipados para podermos realizar com autoridade e poder, a obra de haShem.

O rabino Shaul diz, a respeito dos dons espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignorantes. E assim somos exortados a estudar os dons da ruach hakadosh, sem os quais a Igreja, ao invés de ser um organismo vivo, cheio de graça e de unção, passaria a ser uma organização social ou apenas religiosa.

Sim, todos os dons permanecem em sua integridade ou, como diz Shaul, ora, há diversidade de dons, mas o espírito é o mesmo. Isto é, aquele espírito que deu e que repartiu, é o mesmo que dá e que reparte hoje, a cada um, como quer, para a edificação do corpo de Yeshua que é a comunidade do haShem.

Às vezes, porém, se confundem os nove dons do espírito, com fruto do espírito, que se expressa através de nove características indispensáveis à vida cristã. O cristão tem que frutificar e manifestar as nove características do fruto do espírito: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão e temperança.

O fruto do espírito molda o caráter do cristão no modelo do caráter de Yeshua, enquanto os dons são as capacitações especiais que o espírito concede aos cristãos, para com poder, graça e unção, realizar a obra do haShem.

A palavra de haShem ensina: segui o amor e buscai com zelo os dons espirituais, mas, também, a reavivar o dom de haShem que em nós. E por que isso? Porque os dons são palavras de conhecimento, de sabedoria e discernimento, unção para curar, para realizar milagres, e fé. É, ainda, capacitação para falar em línguas, para interpretá-las e para profetizar.

Você já viveu uma situação em que se sentiu contra a parede e em que não tinha a mínima idéia do que fazer? Já precisou tomar uma decisão sobre uma situação complicada e problemática, mas o problema era maior que a sua capacidade para resolvê-lo? 
 
Nessas horas é que você precisa ser sábio. Você precisa olhar para as coisas da perspectiva de haShem e saber o que fazer – isso é sabedoria. Você sabe que precisa dela, mas como a adquirir?
 
O rei Shlomo Provérbios disse que o começo da sabedoria é temer a Adonai. Ora, temer não significa ter medo de haShem, mas obedecer, respeitar e honrá-lo por tudo o que Ele é, faz e pode fazer. Temer a Adonai significa confiar nele e ter a certeza de que Ele ajuda você a tomar decisões e resolver problemas. Sabedoria é um presente de haShem. Ele dá sabedoria pela confiança que você coloca nele.
 
É interessante o rei Shlomo não para aí. Diz que para ter compreensão das coisas você precisa conhecer o Adonai santo. Conhecer a Adonai é algo muito mais profundo do que saber coisas sobre Adonai. Conhecê-lo não acontece da noite para o dia, e nunca alguém irá conhecê-lo completamente. 
 
Adonai se dá a conhecer através de sua Palavra, a Bíblia. Pelo estudo dela, você vai conhecer Adonai cada vez melhor, e Ele vai dar compreensão a você. Confie em Adonai e você será sábio. Conheça Adonai e você terá compreensão das coisas.
 
Espiritualidade quer dizer uma vida na ruach de haShem, um intenso convívio com o espírito de haShem: esse é o sentido cristão da palavra. Dessa maneira, a idéia de uma vida forte, a idéia da vitalidade de uma vida criativa a partir de haShem nos leva à espiritualidade, ou seja, a uma vida espiritualizada por Adonai. 

Por isso, podemos dizer: as pessoas procuram a Adonai porque Adonai as atrai para si. Estas são as primeiras experiências da ruach de haShem no ser humano. E Adonai as atrai como um imã atrai as migalhas de ferro. O íntimo e suave atrativo de haShem é experimentado pela pessoa em sua fome de viver e em sua busca de felicidade, que nada no universo pode satisfazer ou saciar.

A espiritualidade da vida se opõe à mística da morte. Quanto mais sensíveis as pessoas se tornam para a felicidade da vida, mais sentem a dor pelos fracassos da vida. Vida no espírito é vida contra a morte. Não é vida contra o corpo, mas a favor de sua libertação e sua glorificação. Dizer sim à vida significa dizer não à guerra e suas devastações. Dizer sim à vida significa dizer não à miséria e suas humilhações. Não existe uma afirmação verdadeira da vida sem luta contra tudo que nega a vida.

A recepção universal da ruach hakadosh foi anunciada séculos antes do derramamento do espírito no dia de Pentecostes. Adonai falou por meio do profeta Joel: E depois derramarei o meu espírito sobre toda a carne, e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos velhos terão sonhos, os vossos jovens terão visões. Até sobre os servos e sobre as servas naqueles dias derramarei o meu espírito. Joel não estava sozinho na predição do futuro derramamento do espírito.

Isaías também fez uma ilustração do HaShem derramando correntes de água sobre terras secas e sua ruach sobre os descendentes de Jacó. Por meio de Ezequiel, Adonai disse aos judeus do exílio que o HaShem os tomaria de todas as nações e os reconduziria à sua própria terra. Colocaria seu espírito sobre eles e os motivaria a obedecer à sua Lei. Adonai revelou que o Messias, quando viesse, seria cheio do espírito, que também seria derramado sobre o povo da aliança. E esse espírito permaneceria com os filhos de haShem.

A ruach é a fonte de vida e ela é comparada às fontes de águas correntes que, espiritualmente falando, fluem do interior da pessoa. O discurso de despedida de Yeshua, proferido no cenáculo, enfatizou a chegada da ruach hakadosh. Ensinou que Ele seria dado pelo pai e permaneceria para sempre com os fiéis. 

Seria outro consolador, uma pessoa que personificaria a verdade. O consolador sairia do pai, seria enviado pelo filho e testificaria sobre Yeshua. O consolador também convenceria o universo da alienação, da justiça e do juízo. O espírito guiaria as pessoas em toda a verdade, proporcionaria a revelação futura e glorificaria a Yeshua. 

Por último, em antecipação ao Pentecostes, Yeshua soprou o espírito sobre os discípulos, para auxiliá-los na tarefa que receberam de pregar o Evangelho. As referências ao espírito na primeira carta de João não diferem muito de seu evangelho. O espírito dado às pessoas cria uma consciência de que o pai vive em nós através do filho. E como somos capazes de reconhecer o espírito de haShem? Nós O conhecemos pelo reconhecimento de que Yeshua veio de haShem em forma humana: ouvimos a Adonai.

Quando o HaShem Adonai nos trouxe de volta para Jerusalém, parecia que estávamos sonhando. Como rimos e cantamos de alegria! Então as outras nações disseram: O HaShem fez grandes coisas por eles! De fato, o HaShem fez grandes coisas por nós e, por isso, estamos alegres. ó HaShem, faze com que prosperemos de novo, assim como a chuva enche de novo o leito seco dos rios. Que aqueles que semeiam chorando façam a colheita com alegria! Aqueles que saíram chorando, levando a semente para semear, voltarão cantando, cheios de alegria, trazendo nos braços os feixes da colheita.
 
Adonai faz maravilhas! Eu e você devemos agradecer a Adonai que nos envolve com  seu amor e graça, de forma acolhedora. E nos impulsiona para a vida e para a missão que é feita em nome dele.

O desafio está em olhar para o passado, para trazer de lá as maravilhas que Ele fez em nossas vidas. Não é nostalgia, é reconhecimento! Somos povo de haShem e podemos ver e dizer: grandes coisas o HaShem fez. Por isso estamos alegres! 

Este salmo é um cântico de romaria, que o povo entoava enquanto peregrinava em direção a Jerusalém. Eram canções que lembravam a história da libertação do Egito, a travessia do deserto, e animavam a caminhada do povo. E assim eles caminhavam pelo deserto com a esperança e a fé renovadas.  

A alegria nos trazem boas lembranças. A memória é fundamental para viver na emunah. A caminhada em direção à oportunidade de adorar deve ser inspiradora.
 
Por isso, devemos celebrar. Temos dois símbolos do viver diário: a chuva que cai no lugar seco, árido, e produz de novo o verde; e o ato de semear, um processo lento e árduo, onde o semeador tem um papel importante,  mas que ao final produz o alimento que necessitamos. 

Devemos celebrar quando reconhecemos o que Adonai faz em nosso meio. Somos o semeador esperando o tempo certo: temos a esperança e a certeza de que o fruto virá. 

Devemos celebrar quando percebemos o que Adonai faz em nossas vidas: dando a chuva que transforma a aridez em terreno verdejante. 

É, por isso, que adoramos não só quando tudo está bem. Temos esperança no futuro à luz das experiências que já vivemos. Somos gratos pelo que Adonai fez, faz e irá fazer! Afinal a sua fidelidade dura para sempre. 

O céu se abriu, e Yeshua viu a ruach de haShem descer como uma pomba e pousar sobre ele. 

Que a graça de Yeshua, o amor de haShem e a presença da ruach hakadosh estejam com todos vocês!

O Novo Testamento enfatiza o derramamento do espírito, seus dons, sua obra, inspiração, comunhão e habitação nos corações dos cristãos. A doutrina da trindade fica evidente no relato do batismo de Yeshua: O pai revela o filho, de quem se agrada, e o espírito desce sobre ele na forma de uma pomba 

A fórmula batismal trinitária, mostrada na conclusão do evangelho de Mateus, enfatiza essa mesma compreensão. Nas cartas, os apóstolos ensinaram frequentemente o princípio trinitariano, tanto no início como na conclusão de suas cartas. 

Além dos relatos do nascimento, batismo e tentação de Yeshua, há poucas alusões à ruach nos evangelhos de Mateus e Marcos. Comparativamente, o de Lucas está repleto de passagens que falam sobre o espírito. Mateus e Lucas relatam a concepção de Yeshua como obra da ruach hakadosh. João Batista disse ao povo que ele batizaria com água, mas Yeshua os batizaria com o espírito. Antes de Yeshua iniciar seu ministério, a ruach o levou ao deserto para ser tentado pelo adversário.


14.

Seremos levantados

A verdade é que Yeshua foi ressuscitado, e isso é a garantia de que os que estão mortos também serão ressuscitados. A palavra ressurreição, em português, é tradução do termo grego "anástasis", que significa literalmente "levantar; erguer". Esta palavra é usada no Novo Testamento com referência ao fato de que Adonai trouxe Yeshua à vida três dias depois de morto. Assim, ressurreição significa voltar à vida.

Através dos séculos, nós cristãos sempre confessamos crer na ressurreição da carne. Ou seja, cremos que quando Yeshua voltar os cristãos que estiverem mortos serão chamados à vida.

Escutem bem este segredo: nem todos vamos morrer, mas todos nós vamos ser transformados num instante, num abrir e fechar de olhos, quando tocar a última trombeta. Ela tocará, os mortos serão ressuscitados como seres imortais...

Esta confissão de fé na ressurreição dos crentes está fundamentada na ressurreição de Yeshua. Apesar da convicção da igreja na ressurreição, existem, em nossos dias, pessoas que não aceitam esta instrução. Negam a materialidade da ressurreição. Por isso, o rabino Shaul alertava: Se não existe a ressurreição de mortos, então quer dizer que Yeshua não foi ressuscitado. E, se Yeshua não foi ressuscitado, nós não temos nada para anunciar e vocês não têm nada para crer.

Yeshua ressuscitou e é o mediador entre Adonai e os seres humanos. Ele deu a vida como sacrifício por nossa alienação pecados, e é com base nesse sacrifício que Adonai perdoa os alvos errados.

A liberdade só pode ser conseguida por meio dele. Pois não há no mundo inteiro nenhum outro que Adonai tenha dado aos seres humanos, por meio do qual possamos ser salvos.

Seus inimigos pensaram que matando-O, acabariam com Ele. Mas Yeshua ressuscitou e vive! Através de sua morte e ressurreição todos os que O invocam recebem a salvação. Se você disser com a tua boca: Yeshua é HaShem e no coração crer que Adonai ressuscitou Yeshua, você será salvo.

A ação e voz da ruach são evidentes na vida dos profetas. Tornavam-se porta-vozes de haShem, quando o espírito descia sobre eles. O Isaías profetizou sobre a vinda de Yeshua e disse que a ruach do haShem estaria sobre ele. Ezequiel revelou que o espírito o levou a lugares, numa visão dada pelo próprio Espírito de haShem lhe dera. 

Embora algumas pessoas não tivessem o título de profeta, mesmo assim proferiram mensagens por meio da ruach hakadosh. O rei Davi pronunciou seu último testemunho poético antes de morrer, quando disse: O Espírito do haShem fala por meio de mim, e a sua mensagem está nos meus lábios. Quando José interpretou os sonhos de Faraó, este exclamou que o Espírito de haShem estava sobre o filho de Jacó.

Depois que Samuel ungiu a Shaul rei de Israel, o espírito do haShem desceu poderosamente sobre ele e profetizou. Adonai o transformou numa pessoa diferente, de maneira que os israelitas perguntaram: Será que Shaul também virou profeta?. Essa pergunta foi repetida quando a ruach do haShem desceu novamente sobre Shaul enquanto perseguia Davi sem trégua. O rei tirou sua túnica e profetizou. 

No acampamento de Israel, durante o Êxodo, Adonai retirou parte do espírito que estava sobre Moisés e a colocou sobre 70 anciãos: eles então profetizaram, bem como Eldade e Medade. Quando ouviu sobre isso, Moisés disse que seu desejo era que o haShem colocasse o seu espírito sobre todo o povo, para que todos profetizassem. 

O profeta Miquéias opôs-se aos falsos profetas em seus dias. Disse que estava repleto da ruach do haShem, de sua justiça e força, para convencer Israel de seus alvos errados. Moisés é o protótipo do messias, pois foi considerado um profeta e revelou o espírito do haShem. Ele predisse o advento de Yeshua, quando falou ao povo que Adonai levantaria um profeta como ele próprio, do meio deles. 

Enquanto caminhavam pelo deserto, os hebreus contavam a seus filhos uma velha história. Há quatrocentos anos, diziam eles, um homem chamado Abrão desceu lá do norte, da cidade de Ur, na Caldéia, e com toda a sua família dirigiu-se para o sul da Palestina. Era uma ordem de haShem.

Ele receberia por herança uma terra, teria uma descendência tão grande como as estrelas do céu, e através dele todas as famílias da terra seriam abençoadas. Era uma estranha promessa, afinal Abrão não tinha filhos e seu clã era nômade. Mas ele acreditou na promessa de haShem. Anos mais tarde, Adonai trocou seu nome para Abraão, que quer dizer pai de uma multidão de nações, fez um pacto especial com ele e lhe deu um filho, que foi chamado Isaque.

Como líder, Moisés tinha certeza que o acordo feito com Abraão estava sendo cumprido. Adonai dissera que a terra prometida era Canaã, e que seus limites iriam do Egito até o rio Eufrates. Explicou também que Canaã estava ocupada por povos guerreiros, mas eles seriam arados da terra, como mato bravo arrancado para permitir a semeadura.

Durante os anos de caminhada pelo deserto, Moisés foi formando uma liderança que julgou capaz de dirigir a conquista da Palestina. Entre seus homens de confiança havia um jovem chamado Josué. Tinha sido seu assistente pessoal, e quando grupos de assaltantes amalequitas começaram a ameaçar a segurança dos hebreus, Josué liderou um grupo de combatentes. Era disciplinado, ousado e muito corajoso.

Em hebraico Josué quer dizer Adonai é a salvação. Era da tribo de Efraim, filho de Num, e esteve com Moisés durante toda a peregrinação no deserto. Quando Moisés subiu ao monte Sinai, para receber de haShem os Dez Mandamentos, Josué subiu com ele. Foi quem avisou a Moisés que lá embaixo estava uma barulheira incrível, como um alarido de guerra. Mas o que ele ouvia era o povo dançando e cantando em adoração Adonai Ápis, o Adonai touro dos egípcios.

Como dirigente militar recebeu de Moisés uma missão especial: fazer parte de um grupo de espiões que deveriam se infiltrar em Canaã. As ordens eram precisas: observar a terra, o que produzia, se os campos eram férteis, como era o povo, se era organizado, numeroso, e se haviam fortalezas. Deviam também trazer frutos da terra.

Os espiões chegaram até as proximidades de Hebrom, que fica ao sul de Jerusalém, e depois de dias trouxeram a Moisés um relatório terrível:

É, na verdade, uma terra que produz leite e mel, em abundância. Vimos cachos de uvas que tinham que ser transportados numa vara por dois homens, de tão grandes. Mas o povo que habita na terra é muito poderoso, as cidades são grandes, fortificadas. Vimos gigantes e nos sentimos como se fôssemos gafanhotos, de tão pequenos diante deles.

Excluindo Josué e Calebe, os outros espiões estavam em pânico. E o medo que tinham foram transmitindo ao povo, que então rebelou-se contra Moisés.

Foi para isso que você nos tirou do Egito, para a gente morrer aqui, no deserto, para sermos massacrados a espada, nós, nossas mulheres e nossos filhos?

Josué e Calebe ainda tentaram reverter a situação. Explicaram que a terra era excelente e que se era da vontade de haShem a terra prometida seria entregue na mão deles, não importava a força dos povos ocupantes, pois a sombra protetora de haShem lhes foi tirada.

Mas a mentalidade escrava do povo prevaleceu. Não estavam preparados para lutar. E diante da rebelião, Adonai afirmou que nenhum deles entraria na terra, mas seus filhos. Assim, durante quarenta anos caminharam pelo deserto. E os filhos dos escravos foram transformados em guerreiros. Forjados sob o sol escaldante, confiantes na promessa de que a terra lhes seria entregue.

Os espiões que se acovardaram e sublevaram o povo contra Adonai e Moisés foram presos e condenados à morte. Josué por sua coragem e fidelidade a Adonai despontou como sucessor de Moisés.

Os hebreus não eram um grupo homogêneo. Mesmo sendo descendentes de Abraão, no correr dos séculos miscigenaram-se com outros povos semitas e inclusive com os próprios egípcios. Estavam, no entanto, unidos através da fé no Adonai único, e dos rituais semitas, dos quais o principal deles, nessa época, era a circuncisão.

Cada tribo recebeu o nome do patriarca de que descendia: Rubem, Simeão, Judá, Issacar, Zebulom, Efraim, Manassés (esses dois, netos de Abraão, filhos de José, que juntos formavam uma tribo), Benjamim, Dã, Aser, Gade e Naftali. Havia ainda uma outra tribo, a de Levi, que era a dos sacerdotes. Dessa maneira, a nação de Israel surgiu como uma confederação de tribos, sem governo centralizado. Seria governada por juizes, homens sábios que julgavam suas tribos a partir das leis deixadas por Moisés.

Assim, após a morte de Moisés, os hebreus conquistaram a Palestina liderados por Josué, considerado pelos historiadores um dos maiores generais da história. Formou regimentos com guerreiros jovens, que ao contrário de seus pais estavam desejosos de combater por Adonai, o senhor de Israel. Os regimentos foram organizados a partir das doze tribos que formavam a confederação hebreia.

A estratégia inicial de Josué consistiu em montar seu quartel general em Gálgala, ao oriente da cidade de Jericó, e a partir daí atacar as cidades de Ai e Gabaom. Em Gálgala já estavam estabelecidas as tribos de Rubem, Simeão e Manassés. Ali havia água em abundância, provisão para os combatentes e lugar seguro para armazenar os despojos.

Antes de iniciar o período da conquista, Josué deu combate aos grupos inimigos, nômades, que poderiam ameaçar a produção agrícola das tribos já instaladas em Gálgala. Só depois disso, tomou Jericó, fortaleza avançada do território de Canaã e conhecida na época como "a princesa do vale do Jordão".
A cidade de Jericó data, segundo pesquisas arqueológicas, do ano oito mil antes de Yeshua. Por ter uma fonte e um oásis e estar estrategicamente situada, foi ocupada por povos diferentes, como os amorreus e cananeus, e muitas vezes destruída. Antes da conquista por parte dos hebreus, foi atacada por faraós da 18a dinastia e totalmente destruída. De novo reconstruída, tinha nessa época muros altos, de pedras macho e fêmea, duas torres, e casas retangulares e espaçosas. 

Essa linda cidade, que também recebia o nome de Cidade das Palmeiras, dominava o vale do Jordão e as passagens para as montanhas do oeste. Antes de atacá-la, Josué enviou dois jovens oficiais do recém formado exército para espionar a região. Eles entraram na cidade, foram protegidos e escondidos por uma prostituta chamada Raabe, e depois voltaram ao quartel general de Josué com uma grande notícia:

Realmente Adonai nos deu toda esta terra. Os seus habitantes estão apavorados com nossa presença.

Josué então chamou os sacerdotes, que leram para os oficiais e soldados uma ordem que Adonai tinha dado a Moisés.

"Quando saírem para guerrear contra teus inimigos, se virem cavalos, carros de combate e um povo mais numeroso do que vocês, não fiquem com medo, pois com vocês está o HaShem Adonai, que tirou vocês do Egito. Quando estiverem para começar o combate, o sacerdote se aproximará para falar aos soldados e lhes dirá: 'Ouve, ó Israel! Estais hoje prestes a guerrear contra teus inimigos. Não se acovardem, não fiquem com medo, não tremam, nem se atemorizem diante deles, porque o HaShem Adonai marcha com vocês, lutando com vocês'."

Depois, os sacerdotes disseram:

Quem tem uma tenda nova e ainda não a usou? Volte para a sua tenda, para que não morra na batalha e não possa curtir sua tenda nova. Quem plantou uma vinha e ainda não colheu os primeiros cachos de uva? Volte para sua tenda, para que não morra na batalha e não coma de seus primeiros frutos. Quem acaba de casar-se e ainda não completou sua lua de mel? Volte para sua tenda, para que não morra na batalha e não usufrua sua noite de núpcias. 

E por fim os sacerdotes, perguntaram:

Quem está com medo e se considera um covarde? Volte para sua tenda para que não contagie seus irmãos.

Então, Josué destacou os oficiais e definiu o ataque.

Por ordem divina, rodearam a cidade uma vez por dia, durante sete dias. Tocavam trombetas, gritavam e saltavam. Ao sétimo dia, todo o povo, com os soldados e os sacerdotes, rodearam sete vezes a cidade, tocando trombetas e gritando. De repente, ao som mais agudo da trombeta, os muros caíram permitindo a entrada do povo. A cidade foi amaldiçoada, seus habitantes executados, com exceção de uma moça, prostituta, de nome Raabe e da família do pai dela. Os despojos de ouro e prata foram levados para o tabernáculo, que era a tenda onde estava a arca da aliança, com os Dez Mandamentos.

Foi uma guerra implacável. E diante disso, é o caso de perguntar: o extermínio realizado pelos israelitas foi um ato justificável?

Na época, Canaã estava sendo permanentemente disputada por conquistadores. Confederações de reinos, agrupados em torno de uma cidade, lançavam-se contra outros pequenos reinos. Os filisteus, por exemplo, não eram originários da região, vinham da ilha de Caftor, mais conhecida como Capadócia. Instalaram-se na região de Gaza, exterminando os Avins que viviam nesse território.

Assim, os hebreus tinham tanto direito à terra como os que foram despojados. Eram conquistadores lutando contra conquistadores.

E quanto ao seu modo de atuar nas operações de guerra? Caso tomemos os padrões guerreiros da época, os hebreus não eram nem mais sanguinários, nem mais cruéis. Os assírios, por exemplo, decapitavam os povos vencidos, fazendo pirâmides com seus crânios. Crucificavam ou empalavam os prisioneiros, arrancavam seus olhos e os esfolavam vivos. Não há casos de tortura na tradição guerreira dos israelitas.

Sem dúvida, Adonai utilizou o povo de Israel para trazer sua justiça sobre os cananeus. Seus costumes religiosos estavam entre os mais bárbaros de todo o mundo antigo. Ofereciam sacrifícios humanos e infantis a seus Adonaies. Eram idólatras, dominados por vícios vergonhosos e abomináveis. É interessante notar que antes dos hebreus se lançarem à conquista da Palestina, Adonai lhes falou:

Ó Israel, hoje vocês estão atravessando o rio Jordão para conquistar nações mais numerosas e poderosas, cidades grandes e fortificadas. Portanto, vocês devem saber que o haShem Adonai vai atravessar na frente, como um fogo devorador. É ele quem exterminará. Vocês, então, desalojarão rapidamente esses povos, os farão perecer, conforme falou Adonai. Quando Iavé os tiver removido de sua presença, vocês não devem dizer nos seus corações: 'É por causa da nossa justiça que O haShem nos fez entrar na posse dessa terra'. É por causa da perversidade dessas nações que Adonai irá expulsá-las da tua frente, conforme lemos em Deuteronômio (9:1, 3 e 4).

Dessa maneira, os cananeus estavam sendo punidos por Adonai por causa de seus crimes, sua idolatria e vida promíscua. E, também, para evitar que seu exemplo levassem os hebreus aos mesmos erros. Segundo a maneira de pensar dos antigos israelitas, Adonai responsabiliza tanto as nações como os indivíduos.

Depois da conquista de Jericó, Josué tomou a cidade de Ai, que fazia fronteira com Gálgala. Recebeu, então, a visita de embaixadores do reino de Gabaom com os quais Josué celebrou uma tratado de paz, sem consultar antes o Adonai de Israel.

Os reis de Jerusalém, Hebrom, Jerimote, Laquis e Eglom formaram uma aliança e atacaram Gabaom. Como Josué havia feito um acordo bilateral com Gabaom, teve que sair em sua defesa e lançar um ataque contra os cinco reis. Conseguiu derrotá-los e conquistou as cidades de Maceda, Libna e Laquis.

Estabeleceu um acampamento provisório perto de Eglom e daí lançou-se à conquista de mais três cidades, Eglom, Hebrom e Debir. A essa altura, já havia ocupado toda a região central e sul da Palestina.

Josué voltou então para Gálgala. Descansou meses e começou a organizou os futuros ataques ao norte de Canaã, região onde estavam localizadas cidades populosas e fortificadas.

O rei de Asor chefiava uma confederação de reinos e ficou sabendo dos planos de Josué. Reuniu, então, todas as cidades vizinhas e organizou uma confederação para enfrentar militarmente o exército hebreu. A mais violenta das batalhas aconteceu às margens do rio Merom. Josué derrotou os exércitos confederados, queimou a cidade de Asor e tomou todas as cidades dos reinos aliados. Estrategicamente, foi sua maior vitória, pois com ela quebrou o poder dos cananeus. 

Mas nem todos os habitantes da Palestina tinham sido exterminados. Cidades importantes ficaram intocadas, principalmente as da região norte da Filístia.
Foi longa a guerra da conquista, durou 45 anos.

Apesar de ser o maior general da história de Israel, Josué cometeu três erros: fez aliança com os gabaonitas, permitiu aos jebuseus permanecerem em Jerusalém e não destruiu as bases dos filisteus no litoral.

Esses erros, isolaram as tribos de Judá e Simeão do resto do país. A entrada principal para o território de Judá ficou sob controle dos jebuseus, que ocupavam Jerusalém. E toda a região permaneceu cercada pelas cidades dos gabaonitas. Esta situação criou um separatismo entre as tribos do norte e as do sul e acabou fracionando a confederação hebreia.

A repartição da terra foi feita parcialmente em Gálgala e depois em Siló, cidade para onde havia sido transportada a tenda da congregação. Essa primeira distribuição de terras foi realizada por uma comissão formada pelo sacerdote Eleazar, pelo general Josué e por dez chefes dos clãs. Havia uma lei básica, que já havia sido promulgada e que orientava a divisão. As tribos mais populosas receberiam as porções maiores. Os sacerdotes destinaram duas urnas, uma para receber o nome das tribos e outra para as regiões da Palestina que seriam sorteadas. Assim, o método de distribuição combinava a sorte - podia ser no sul, no centro ou no norte da Palestina -, com um elemento objetivo, a população de cada tribo. As questões de limites ou permanência de tribos nos lugares onde já se encontravam, como era o caso das tribos de Rubem, Simeão e Manassés, foram decididas pela comissão.
Depois de uma semana de trabalhos, a confederação das tribos de Israel estava assim distribuída:

A parte montanhosa ao sul foi entregue à tribo de Judá. A parte montanhosa ao centro, à tribo de José. Este território foi dividido entre as tribos de Efraim e Manassés, filhos de José. A parte montanhosa central coube à tribo de Benjamim. A parte excedente do território entregue a Judá, por ser grande demais, ficou com à tribo de Simeão. O território que limitava a parte montanhosa central com a região norte foi entregue às tribos de Zebulom e de Issacar. A região costeira coube às tribos de Aser e Naftali.
· Dois territórios foram entregues à tribo de Dã, um no litoral central e outro no extremo norte. Os territórios ao oriente do Jordão foram entregues as tribos de Rubem e Gade. A parte que coube a Manassés também estava do lado oriental do rio Jordão.

Era tradição no antigo Oriente Médio que o crime de sangue fosse vingado por um parente da pessoa assassinada. Através de Moisés, Adonai deu ao povo uma legislação que punia severamente os crimes contra a pessoa, fossem eles assassinatos, seqüestros ou violências sexuais. Com isso, Adonai tirava a justiça das mãos do vingador individual e a colocava sob responsabilidade social. Mas Josué sabia que muitos crimes podiam acontecer sem premeditação, por acidente ou imprevisto. Por isso, criou também as cidades de refúgio, onde pessoas que ainda não tinham sido julgadas e condenadas pela justiça recebiam o direito de asilo. Era uma forma de oferecer misericórdia àqueles que involuntariamente tinham cometido um erro. 

Nas cidades de refúgio nenhum vingador de sangue tinha permissão para entrar, e dentro dela os perseguidos tinham o direito de viver sem serem molestados. 

Terminada a guerra, Josué pediu aos dirigentes da confederação de tribos, como recompensa pelos serviços prestados, a cidade de Timnate-Sera, que ficava no alto do monte Efraim. Viveu aí seus últimos dias e morreu com 110 anos. 

Os hebreus pediram a Moisés que usasse um véu, porque não conseguiam encará-lo. E o véu, que parecia ser proteção, virou símbolo do endurecimento do coração do povo hebreu. O rabino Shaul disse que o endurecimento daquele povo permanecia até aqueles dias. Mas hoje o espírito quer retirar o véu do seu rosto. Vejamos dois tipos de véus que muitos de nós usamos.

O véu da religiosidade: muitas pessoas trocam a experiência pessoal com Yeshua pelos ritos e pela tradição. O véu da cegueira de entendimento das coisas espirituais. Ou como disse o rabino Shaul: se o evangelho que anunciamos está escondido, está escondido apenas para aqueles que estão se perdendo.

Mas como a ruach tira esses véus? Conduzindo você a um encontro pessoal com Yeshua. E  o rabino Shaul, no mesmo capítulo, diz: o Adonai que disse: que da escuridão brilhe a luz é o mesmo que fez a luz brilhar no nosso coração. E isso para nos trazer a luz do conhecimento da glória de haShem, que brilha do rosto de Yeshua.

E você não vai pedir a Yeshua que coloque um véu no rosto. Ao contrário, deve dar meia volta na vida, caminhar em direção a Yeshua e deixar que a luz dele brilhe diante de você e sobre você. Hoje o espírito está tocando o seu coração para que você lance fora os véus da religiosidade e da cegueira de entendimento. Aceite este convite e veja a luz de Yeshua brilhar na sua vida.
 
Não se achem melhores do que realmente são. Pelo contrário, pensem com humildade a respeito de vocês mesmos.


15.

A virtude dos sábios e santos

A humildade é uma virtude humilde e, por isso, é uma virtude que até duvida se é mesmo uma virtude! Daí, que quem se gaba da sua humildade mostra que não tem.

Mas isso não prova muita coisa, já que não devemos nos gabar, nem nos orgulhar, de nenhuma virtude, e é isso que a humildade ensina. Ela torna o fruto do espírito discreto, como que despercebido de si mesmo, quase negado. A humildade nos leva a uma consciência dos limites das virtudes que brotam com o fruto do espírito. E essa discrição é sinal de lucidez.

A humildade não é a depreciação de nós próprios. Não é ignorância do que somos, mas reconhecimento do que não somos. E é assim que o fruto do espírito se torna humano em nós. A humildade é uma virtude lúcida, sempre insatisfeita consigo mesma. A humildade é a virtude da pessoa que sabe que não é Adonai. Por isso, o rabino Shaul nos alerta para não deixarmos ninguém nos humilhar, afirmando que percebe melhor o mundo espiritual e insiste numa falsa humildade.

Assim, a humildade é a virtude dos santos e dos sábios. E como virtude é uma disposição para o amor, a humildade é uma virtude que está vinculada ao amor à verdade e se submete a ele. Ou seja, ser humilde é amar a verdade mais que a nós mesmos. Por isso, Yeshua disse que os humildes são pessoas felizes, pois têm plena consciência de quem são e, por isso, receberão as promessas de haShem. 

Assim Adonai criou os seres humanos; ele os criou parecidos com Adonai. Ele os criou homem e mulher e os abençoou, dizendo: Tenham muitos e muitos filhos; espalhem-se por toda a terra e a dominem. E tenham poder sobre os peixes do mar, sobre as aves que voam no ar e sobre os animais que se arrastam pelo chão. Para vocês se alimentarem, eu lhes dou todas as plantas que produzem sementes e todas as árvores que dão frutas. Mas, para todos os animais selvagens, para as aves e para os animais que se arrastam pelo chão, dou capim e verduras como alimento. E assim aconteceu. E Adonai viu que tudo o que havia feito era muito bom. A noite passou, e veio a manhã. Esse foi o sexto dia.

Nos relatos da criação, que encontramos nos dois primeiros capítulos do livro de Gênesis, o ser humano é a única criatura feita à imagem e semelhança de haShem. Mas, a história da criação não termina aí, pois na sequência Adonai aprecia toda a sua obra e descansa. Assim, o sentido do mundo e de tudo que existe nele não está no ser humano, mas está em Adonai e na sua glória.

As ameaças à sobrevivência do planeta Terra são assustadoras. Existem guerras e falta de estabilidade política em muitos países do mundo. Há indefinição sobre o controle e desenvolvimento de armas nucleares, poluição industrial da terra, da atmosfera e das águas e, também, desertificação; perda de solo, florestas e minerais. Como grande parte desses problemas não existia no período bíblico, é natural que não encontremos referências bíblicas específicas para essas questões.

Fizeste com que corressem fontes e riachos e secaste grandes rios. Criaste o dia e a noite, puseste o sol, a lua e as estrelas nos seus lugares. Marcaste os limites da terra e fizeste o verão e o inverno.

Mas, a Bíblia oferece perspectivas que não são passageiras e que dizem respeito à relação entre a humanidade e o mundo criado. Especificamente, oferece uma base para avaliar as necessidades ecológicas. Desta forma, é possível desenvolver uma perspectiva bíblica do meio ambiente e do ser humano dentro deste contexto, em todas as suas dimensões, a sua relação e dependência da criação, e a sua relação e dependência de haShem.

Sim, existe uma ecologia bíblica, que envolve o uso responsável e sustentável dos recursos da criação de haShem e a transformação das dimensões culturais, econômicas, morais, intelectuais e políticas da vida. Isto inclui a recuperação do sentido bíblico de mordomia, que implica em cuidado e administração responsável. Da mesma maneira, o conceito bíblico do sábado recorda que se deve por limites ao consumo.

Por isso, os cristãos devem usar sua riqueza e seu poder no serviço ao próximo e na preservação da criação de haShem. é um compromisso trabalhar para libertar os que possuem muitos bens da escravidão ao consumo. E libertar os despossuídos da escravidão da fome e da miséria. A esperança dos tesouros no céu livra da tirania de Mamon. E fazendo assim vamos compreender o sentido maior do cuidado da natureza criada e da vida.

Um dia o próprio Universo ficará livre do poder destruidor que o mantém escravo e tomará parte na gloriosa liberdade dos filhos de haShem.

Mas o auxiliador, a ruach, que o pai vai enviar em meu nome, ensinará a vocês todas as coisas e fará com que vocês se lembrem de tudo o que eu disse a vocês.

Yeshua disse que após sua partida, o Pai enviaria um auxiliador, o espírito. A palavra que Yeshua usou para falar da ruach hakadosh significa alguém que está ao nosso lado, um advogado, um amigo no tribunal, que ajuda o réu.

Mas, por que o pai enviou esse auxiliador? Em primeiro lugar, para que o espírito nos ensine e nos lembre dos ensinamentos de Yeshua. Através da palavra de haShem, que foi inspirada pelo próprio espírito, Ele nos ensina todas as coisas que precisamos saber para crer e viver uma vida cristã. Pela palavra Ele nos lembra o que Yeshua disse e ensinou.

Em segundo lugar, o pai enviou o espírito para colocar em nosso coração a paz de Yeshua. Em João disse, por estarem unidos comigo, tenham paz. No mundo vocês vão sofrer, mas tenham coragem! Eu venci o mundo!.

A paz deixada por Yeshua não é ausência guerra ou de violência, ou a uma tranquilidade mental inabalável. A paz de Yeshua é um bem-estar espiritual no mais alto nível: Yeshua conquistou para nós uma relação de amizade com Adonai e a vitória sobre o mundo.

Adonai nos envia a ruach para colocar em nosso coração a paz de Yeshua. É a única paz que nos livra do medo e da preocupação, mesmo quando passamos por problemas, dificuldades e sofrimentos, pois é uma paz que não depende do que nos rodeia, nem do que acontece conosco, nem do que somos e temos: é uma paz que depende apenas de Yeshua!

Em terceiro lugar, Adonai enviou a ruach para nos ensinar a amar Yeshua e obedecer à sua Palavra. Sem fé, lemos na carta aos Hebreus, é impossível agradar a Adonai. E essa fé, que nos faz agradar a Adonai e, portanto, amar a Yeshua e obedecer à Sua Palavra, só o espírito pode dar.

Que a ruach de haShem ajude você a crescer na fé e a construir uma vida cristã cheia de graça, paz e alegria. 

 O povo que andava na escuridão viu uma forte luz: a luz brilhou sobre os que viviam nas trevas.

É comum todos os anos ouvirmos estas palavras do profeta Isaías, nas comemorações do nascimento de Yeshua. E a cada ano, elas têm um novo sabor e fazem reviver o clima de esperança e alegria, que é típico do Natal.
 
Ao povo oprimido e atribulado que andava nas trevas, apareceu uma forte luz. Sim, esta luz forte, que irradia da humildade do presépio é a luz da salvação. Se a primeira luz foi a da criação, no início de todas as coisas, conforme nos conta o livro de Gênesis (1.3), muito mais luminosa e forte é a luz que traz a salvação a todo o homem de boa vontade, porque traduz o milagre do próprio Adonai feito homem!
 
O Natal é a festa da luz de haShem entre nós. No Menino de Belém, a luz primordial volta a resplandecer no céu da humanidade e dissipa as nuvens da alienação. O brilho do triunfo definitivo de haShem aparece no horizonte da história para propor aos homens um caminho novo, um futuro de esperança.


16.

Um nascimento divide a história

Então Maria deu à luz o seu primeiro filho. Enrolou o menino em panos e o deitou numa manjedoura, pois não havia lugar para eles na pensão. Naquela região havia pastores que estavam passando a noite nos campos, tomando conta dos rebanhos de ovelhas. Então um anjo do haShem apareceu, e a luz gloriosa do haShem brilhou por cima dos pastores. Eles ficaram com muito medo, mas o anjo disse: Não tenham medo! Estou aqui a fim de trazer uma boa notícia para vocês, e ela será motivo de grande alegria também para todo o povo! 

Hoje mesmo, na cidade de Davi, nasceu o Salvador de vocês — o Messias, o senhor! Esta será a prova: vocês encontrarão uma criancinha enrolada em panos e deitada numa manjedoura. No mesmo instante apareceu junto com o anjo uma multidão de outros anjos, como se fosse um exército celestial. Eles cantavam hinos de louvor a Adonai, dizendo: — Glória a Adonai nas maiores alturas do céu! E paz na terra para as pessoas a quem ele quer bem! 

Quando os anjos voltaram para o céu, os pastores disseram uns aos outros: — Vamos até Belém para ver o que aconteceu; vamos ver aquilo que o haShem nos contou. Eles foram depressa, e encontraram Maria e José, e viram o menino deitado na manjedoura. Então contaram o que os anjos tinham dito a respeito dele. Todos os que ouviram o que os pastores disseram ficaram muito admirados. Maria guardava todas essas coisas no seu coração e pensava muito nelas. Então os pastores voltaram para os campos, cantando hinos de louvor a Adonai pelo que tinham ouvido e visto. E tudo tinha acontecido como o anjo havia falado.

Natal é a festividade que comemora o nascimento de Yeshua. Celebra o nascimento do Messias, conforme estava previsto no Antigo Testamento. Após a celebração da Páscoa, o Natal é a comemoração mais importante do cristianismo. Universalmente, é visto como um dia consagrado à reunião da família, à paz, e a fraternidade ente as pessoas. Nas línguas latinas, o termo Natal deriva de Natividade, ou seja, o que é referente ao nascimento de Yeshua. No inglês, o termo utilizado é Christmas, literalmente "missa de Yeshua". Já em alemão é Weihnachten, que significa noite bendita.

A palavra grega que dá origem à palavra comunhão, em português, é eucaristia. Significa reconhecimento, ação de graças. É a cerimônia que chamamos de comunhão, ceia do senhor, santa ceia, refeição noturna do haShem ou comemoração da morte de Yeshua. É uma celebração em lembrança da morte sacrificial e da ressurreição de Yeshua. O evangelista Lucas registrou esse memorial e conta que Yeshua tomando um pão, deu graças, e o partiu dizendo: isto simboliza o meu corpo oferecido por vocês, façam isto em memória de mim. Depois de jantar, tomou o cálice e disse: este cálice simboliza a nova Aliança feita através do meu sangue, derramado em favor de vocês. 

Portanto, o pão usado na celebração representa o corpo sem alienação, que Yeshua ofereceu na cruz como resgate; e o vinho representa o seu sangue derramado para remissão da humanidade.

A mensagem que os anjos entregaram aos pastores foi uma mensagem de vida, feita por Adonai às pessoas de boa vontade. É uma mensagem de comunhão – de haShem para todos os seres humanos – que culminou com a morte e a ressurreição de Yeshua. Mas também uma mensagem de comunhão, de amor, entre cada um de nós e nossos próximos. Por isso podemos dizer que esta mensagem é maravilhosa, pois, agora, a vida eterna está ao nosso alcance. Só que essa mensagem implica em comunhão, em partilhamento da boa notícia. Entender a Natividade como um tempo de comunhão significa que cada um de nós deve se fazer algumas perguntas:

Como era minha vida antes de ouvir a boa notícia? Como eu recebi essa notícia que os anjos trouxeram? Qual é a diferença que a boa notícia faz em minha vida? Estou calado ou, em comunhão, partilho essa novidade com outras pessoas?

Nas vésperas do Natal louve com os anjos, corra com os pastores em direção à manjedoura e, em comunhão, adore, porque hoje nasceu o Salvador, o Messias, o senhor! 

Por que você está chorando? Quem é que você está procurando?
 
As palavras de Yeshua ainda calam fundo em nossos corações. Para a humanidade, o domingo de Páscoa é símbolo da procura humana por sentido. Busca do sentido de vida. Por isso, celebrar a ressurreição é aprofundar as dimensões da vida humana. É a ocasião para a renovação de nosso compromisso com a vida cristã e com Aquele que é a fonte de toda a vida.

Se a semana santa é a comemoração da paixão de Yeshua, de suas dores e morte, podemos dizer que não há paixão sem renascimento, assim ao lado do paradoxo da cruz está o símbolo máximo da fé e da redenção, a páscoa do mashiah Rei.
 
Se a morte de Yeshua é símbolo de todo sofrimento, tanto do sofrimento natural como daquele que nasce da alienação, a páscoa dá sentido novo à vida, e podemos dizer, com o rabino Shaul, “muitas vezes ficamos aflitos, mas não somos derrotados. Algumas vezes ficamos em dúvida, mas nunca ficamos desesperados. Temos muitos inimigos, mas nunca nos falta um amigo. Às vezes somos gravemente feridos, mas não somos destruídos”.(2Co 4.8-9).
 
E isso queridos leitores porque O Adonai que disse: Que da escuridão brilhe a luz é o mesmo que fez a luz brilhar no nosso coração. E isso para nos trazer a luz do conhecimento da glória de haShem, que brilha no rosto de Yeshua.
 
Este é o milagre da Páscoa: a luz do conhecimento da glória de haShem está entre nós. É o Yeshua rei! A ele toda a glória neste domingo de alegria.
 
Esse amor e essa bondade são novos todas as manhãs; e como é grande a fidelidade do HaShem!

Olhe para trás e lembre-se da fidelidade do haShem. A fidelidade é a característica daquele que é fiel, que demonstra zelo, que tem respeito por nós. Só Adonai é, de fato, leal e através de Yeshua tem um compromisso com você. Em Yeshua, Ele estabeleceu um vínculo com você e isso Ele expressou numa permanente e profunda dedicação de amor a você.

Mas vocês são a raça escolhida, os sacerdotes do rei, a nação completamente dedicada a Adonai, o povo que pertence a ele. Vocês foram escolhidos para anunciar os atos poderosos de haShem, que os chamou da escuridão para a sua maravilhosa luz.

Olhe para frente e celebre o futuro. Você é um sacerdote. Recebeu tal encargo diretamente de haShem e, por isso, deve ministrar a palavra de haShem àqueles que estão perto de você. E esta é uma escolha honrosa, uma missão nobre que o haShem lhe deu.

Então todos responderam ao mesmo tempo: Nós faremos tudo o que o haShem ordenou. E Moisés levou essa resposta ao haShem.

Olhe ao redor e comprometa-se com a comunidade. Junto com seus irmãos e irmãs na fé você faz parte da Igreja, uma comunidade que está sob o governo da ruach hakadosh, onde todos estão irmanados pelo legado que Yeshua nos deixou: sermos um. Somos pessoas regeneradas pelo sangue de Yeshua. Por isso, somos chamados a ter um compromisso vivo com esta comunidade dos salvos.

Ó Adonai, cria em mim um coração puro e dá-me uma vontade nova e firme!

Olhe para dentro e prepare-se espiritualmente. Separe um tempo: na nossa vida a duração relativa das coisas cria a idéia de presente, de passado e de futuro. Quebre a rotina que deixa Adonai de lado. Escolha um momento diário e deixe Adonai fazer a diferença nos tempos da sua vida. Faça um esforço criativo: ouça Adonai falar e você descobrirá um sentido novo em tudo que fizer. Ore diligentemente: deixe que a ruach eleve seu coração, sua alma a Adonai.

O povo ouviu os trovões e o som da trombeta e viu os relâmpagos e a fumaça que saía do monte. Então eles tremeram de medo e  caíram de longe.
 
Olhe para cima e prepare-se para um encontro com Adonai. A partir de agora você deve se mover em direção ao alto, se dirigir para o ponto máximo e especial de sua vida, aquele de seu encontro com Adonai. Olhando assim você vai poder preparar a sua casa para a visita do HaShem.

As histórias que contam o relacionamento de Yeshua com as crianças mostram que Ele tinha uma atitude amor para com elas. Recusou-se a aceitar os preconceitos da sociedade daquela época, que considerava as crianças insignificantes e sem importância. Estava disposto a segurar crianças no colo e a permitir que elas se juntassem ao seu redor. Tais atitudes demonstram que elas realmente eram importantes para Ele. Vejamos alguns exemplos:

Se vocês não mudarem de vida e não ficarem iguais às crianças, nunca entrarão no reino.

Nesta passagem, Yeshua transformou em lição a discussão que estava sendo mantida entre dois adultos, que queriam saber quem era o maior no reino. Ele mostrou que no seu reino se dá mais importância aos humildes. Yeshua identificou-se com a criança, ao dizer que quem recebe uma criança em seu nome, recebe a Ele.

Deixem que as crianças venham a mim e não proíbam que elas façam isso, pois o reino é das pessoas que são como essas criança.

Apenas alguns versículos depois, os mesmos discípulos tentaram evitar que as crianças se encontrassem com Yeshua. Uma vez mais, Ele afirmou a importância que dava a elas, ao afirmar que o reino é delas.

Adonai ensinou as crianças e as criancinhas a oferecerem o louvor perfeito.

As autoridades religiosas desaprovaram o comportamento das crianças quando elas clamaram no templo: Hosana ao Filho de Davi! Mas Yeshua saiu na defesa delas e reconheceu que possuem a capacidade de compreender e partilhar as verdades espirituais.

As ações de Yeshua reforçavam essas mesmas prioridades. Das três pessoas que Yeshua ressuscitou, uma era criança, a filha de Jairo (Marcos 5.21-43) e outra, um jovem, o filho da viúva (Lucas 7.11-17). Também trabalhou com a disposição de um menino em compartilhar a sua comida e como resultado alimentou cinco mil pessoas.

O próprio Yeshua nos dá um exemplo perfeito de desenvolvimento infantil: “O menino crescia e ficava forte, tinha muita sabedoria e era abençoado por Adonai”. (Lucas 2.40) Sem dúvida, essas palavras simples devem nos guiar ao cuidado das crianças, feitas à imagem de haShem e amadas por Ele.


17.

A espiritualidade, o lugar e o tempo

Está chegando a hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o pai na ruach e na verdade. São estes os adoradores que o pai procura. Adonai é espírito e é necessário que os seus adoradores o adorem no espírito da verdade.
 
A discussão central de todo o texto onde Yeshua conversa com a samaritana é a espiritualidade cristã. Mas, nesta pastoral vamos nos ater aos versículos 23 e 24. De forma abrangente podemos dizer que espiritualidade é aquela relação do ser humano com Adonai que dá sentido à vida. E a italiana Ada Negri nos fala dessa espiritualidade em seu belo poema "Atto d’amore".

"Não sei dizer-te quanto te amo, Senhor no qual creio, Senhor que é a vida vivente, aquela já vivida e aquela que é para ser vivida além dos confins do mundo e onde não existe o tempo."

Cada um de nós, regenerados em Yeshua, vivemos em unidade com Adonai, não de forma parcial, precária, mas plena, porque a vida na ruach, que nos marca, é sempre a totalidade da vida. O espírito, explica Yeshua, nos dá uma compreensão abrangente da espiritualidade cristã, que foi e é construída ao redor da cruz. A paixão de Yeshua é o derramar do dom da vida de haShem sobre os seres humanos. E porque a morte de Yeshua não é derrota, mas sacrifício aceito livremente, a espiritualidade cristã tem sempre dois movimentos:

Um movimento em relação ao próximo, ao desvalido, àquele que sofre. Este movimento é um chamado ao compromisso e nós o chamamos de serviço. A partir do momento em que a espiritualidade torna-se esse ouvir com atenção o amor de haShem através do serviço ao próximo, a espiritualidade cristã tem algo a dizer a todos os nossos relacionamentos, tanto pessoais, quanto culturais e sociais.

Mas a espiritualidade tem um outro movimento, que se por um lado está ligado ao rigor da fé, como vemos na oração, ele se realiza na vida de cada cristão, existencialmente, enquanto encontro com Adonai. Esse encontro, conforme nos diz Yeshua, é a adoração e está na raiz da conversão e de todo processo de santificação. É um processo que mostra nossa miserabilidade diante da insondável majestade de haShem.

Por isso, a espiritualidade cristã é profética e transformadora no encontro com o outro, com o humano, e um ato de adoração diante da majestade de haShem. A contemplação de Yeshua no irmão que sofre e a contemplação de haShem no Yeshua ressurreto são sempre frutos da ação do espírito em nossas vidas Esses dois movimentos são a base da espiritualidade cristã e fundamentam a vida na plenitude do espírito daquele que crê. Serviço e adoração são atos de amor em nossas vidas! 

Shaul foi para Jerusalém e tentou juntar-se aos seguidores de Yeshua. Porém todos tinham medo dele porque não acreditavam que ele também era seguidor de Yeshua.
 
As Escrituras mostram que o projeto da redenção é para toda a humanidade. Isso significa que mesmos aqueles que são diferentes de nós também serão chamados.  

No caminho ele viu um eunuco da Etiópia, que estava voltando para o seu país. Esse homem era alto funcionário, tesoureiro e administrador das finanças da rainha da Etiópia.
 
O etíope era uma pessoa diferente em relação a Felipe, mas perguntou como poderei entender, se alguém não me explicar?. E esse homem de cultura, cor, país diferente creu, quando o evangelho do reino lhe foi apresentado.
 
O eunuco aceitou o evangelho e foi batizado. Então, o que diremos a Adonai quando pessoas diferentes se acercam de nós? Certamente com gratidão, porque fomos chamados à comunhão e à obediência. Por isso, o rabino Shaul fala de que há um só haShem, uma só fé e um só batismo, apesar de sermos diferentes uns dos outros.

O amor de Yeshua, traduzido em comunhão e empatia, caracteriza a postura cristã em relação aqueles que pensam e vivem de forma diferente da nossa. Por isso, a comunhão deve ser um tempo de crescimento na fé, na fraternidade e na ação social, como experiência concreta com as pessoas diferentes de nossos bairros e de nossa cidade.
 
É uma oportunidade não só para a oração em prol dessas pessoas, mas também para buscar e acolher amigos e conhecidos, para que se juntem a nós na caminhada de adoração. Em nossa missão de acolher e partilhar, a comunidade de fé tece uma rede de parcerias sociais. Você pode e deve apoiar uma delas, mesmo quando a realidade dessas pessoas seja diferente da vida que você tem.

Foi o próprio Yeshua quem nos deu a diretriz: Eu sou a videira e vocês são os ramos. Quem está unido comigo e eu com ele, esse dá muito fruto, porque sem mim vocês não podem fazer nada.

Yeshua é a videira, mas os frutos da justiça brotam das comunidades que estão ligadas nele. Que todos possamos, unidos com ele, produzir frutos de justiça e dignidade reconhecidos. é isso que Yeshua espera de nós. 

 Façamos o ser humano segundo a nossa imagem, semelhante a nós.

Toda a criação de haShem é o mundo do ser humano: assim afirmam os dois relatos da criação e o Salmo 8. Mas em que sentido o ser humano é a imagem de haShem? Como Adonai confere ao ser humano essa correspondência? O livro de Gênesis e o Salmo 8 nos dão elementos para a construção de uma antropologia: 

Em primeiro lugar o ser humano é fruto de uma intervenção de haShem. Há uma concessão de encargo que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um momento sublime, especial, como um ser que coroa toda a ação criadora de haShem. Ele recebe responsabilidade.

Em segundo lugar, Adonai explica porque decidiu criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma relação especial com o restante da criação. Adonai cria e entrega ao ser humano sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de trabalho, produção e administração. O ser humano relaciona-se com a criação e através do uso e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com Adonai.

Em terceiro lugar, a imagem de haShem é traduzida na relação que o ser humano mantém com as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo produzido pelo poder criador de haShem. Mas aqui há um detalhe sutil: este direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de haShem. Ele não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação.

Mas imagem de haShem traduz abertura à transcendência. Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade factual. E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que o ser humano enquanto imagem de haShem pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de haShem, o próprio Adonai transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com Ele.

Esse ser humano de que fala Gênesis 1.26, que deve ser uma imagem de haShem, não é uma pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Assim, estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos seres humanos. Assim, ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio dada por Adonai à humanidade.

Da mesma maneira, em bereshit temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é formada por homens e mulheres. Para alguns teólogos, como Karl Barth, tal explicação de uma humanidade formada por gêneros, é apresentada por Adonai quase à maneira de definição. Logicamente, há uma intenção para que o texto bíblico aprofunde-se em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam. Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade, completando-se e complementando-se.

Se toda a criação de haShem é o mundo do ser humano, há a total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar.

E como ele consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de sujeição da natureza, e através dessa necessidade de expansão e domínio, pessoal e subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres.

O afastamento de haShem fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de haShem viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da própria natureza.

Yeshua é a verdadeira imagem do Adonai invisível e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade tornou-se impossível. Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso, indo, fazei discípulos em todas as nações. 
 
Uma família cristã é aquela em que Adonai é reconhecido como o HaShem, único digno de adoração.

Ele é a cabeça, protetor e instrutor da família. Essa comunidade é a menor unidade orgânica da igreja de haShem na terra, pois ainda que sejam dois, Yeshua está ali com eles. Mas, a família cristã é também a escola onde seus membros são professores e alunos: compartilham conhecimento e aprendem uns com os outros. A palavra de haShem e a autoridade dos pais devem ser as principais fontes de instrução na escola da família. O objetivo da comunidade familiar deve ser preparar seus estudantes para utilidade nesta vida e graduá-los para a escola do céu. “Feliz aquele que teme a Adonai, o HaShem, e vive de acordo com a sua vontade! Se você for assim, ganhará o suficiente para viver, será feliz, e tudo dará certo para você. Em casa, a sua mulher será como uma parreira que dá muita uva; e, em volta da mesa, os seus filhos serão como oliveiras novas. Quem teme ao haShem certamente será abençoado assim. Que, lá do monte Sião, o haShem o abençoe!

Que, em todos os dias da sua vida, você veja o progresso de Jerusalém! E que você viva para ver os seus netos! Que a paz esteja com o povo de Israel!
 
A família, criada por Adonai para o bem do ser humano, é a primeira instituição da sociedade.

Assim Adonai criou os seres humanos; ele os criou parecidos com Adonai. Ele os criou homem e mulher.

Depois o haShem disse: Não é bom que o homem viva sozinho. Vou fazer para ele alguém que o ajude como se fosse a sua outra metade. Depois que o haShem Adonai formou da terra todos os animais selvagens e todas as aves, ele os levou ao homem para que pusesse nome neles. E eles ficaram com o nome que o homem lhes deu. Ele pôs nomes nas aves e em todos os animais domésticos e selvagens. Mas para Adão não se achava uma ajudadora que fosse como a sua outra metade. Então o haShem Adonai fez com que o homem caísse num sono profundo. Enquanto ele dormia, Adonai tirou uma das suas costelas e fechou a carne naquele lugar. Dessa costela o haShem formou uma mulher e a levou ao homem. Então o homem disse: Agora sim! Esta é carne da minha carne e osso dos meus ossos. Ela será chamada de ixá (אשה) porque Adonai a tirou de ixe. É por isso que ixe (איש) deixa o seu pai e a sua mãe para se unir com sua ixá (אשה), e os dois se tornam uma só pessoa. Tanto ixe como sua ixá estavam nus, mas não sentiam vergonha.

Mas, se vocês não querem ser servos do haShem, decidam hoje a quem vão servir. Resolvam se vão servir os deuses que os seus antepassados adoravam na terra da Mesopotâmia ou os deuses dos amorreus, na terra de quem vocês estão morando agora. Porém eu e a minha família serviremos a Adonai, o haShem.
 
Quando estava chegando o dia da morte de Davi, ele deu conselhos ao seu filho Salomão. Davi disse: Está chegando o dia da minha morte. Portanto, seja corajoso e seja homem! E faça aquilo que o haShem, seu senhor, manda. Obedeça a todas as suas leis e mandamentos, como estão escritos na Lei de Moisés. Assim você será bem sucedido aonde quer que for e em tudo o que fizer.

Não é verdade que Adonai criou um único ser, feito de carne e de espírito? E o que é que Adonai quer dele? Que tenha filhos que sejam dedicados a Adonai. Portanto, tenham cuidado para que nenhum de vocês seja infiel à sua ixá.

Por isso, ixe deixa o seu pai e a sua mãe para se unir com sua ix, e os dois se tornam uma só pessoa. Assim, já não são duas pessoas, mas uma só. Portanto, que ninguém separe o que Adonai uniu.
 
Depois disso, algumas pessoas levaram as suas crianças a Yeshua para que ele as abençoasse, mas os discípulos repreenderam aquelas pessoas. Quando viu isso, Yeshua não gostou e disse: Deixem que as crianças venham a mim e não proíbam que elas façam isso, pois o reino de haShem é das pessoas que são como estas crianças. Eu afirmo a vocês que isto é verdade: quem não receber o reino de haShem como uma criança nunca entrará nele. Então Yeshua abraçou as crianças e as abençoou, pondo as mãos sobre elas.

No matrimônio, homem e mulher têm os mesmos direitos e deveres. Ambos são chamados à sabedoria, e a autoridade é uma construção do casal diante dos filhos e da comunidade. Yeshua é o salvador da comunidade, que é o seu corpo, portanto, assim como a comunidade de fé é obediente a Yeshua, assim marido e mulher são chamados à obediência através do amor. E como o amor é recíproco, a obediência ou ouvir a voz do cônjuge para que possam construir uma parceria na espiritualidade e na materialidade da vida a dois, também é uma via de mão dupla. É nesse sentido que a mulher sábia edifica a sua casa e o homem expressa a sua autoridade na sequência desse processo de crescimento permanente. Assim, o homem deve amar a sua esposa como ama o seu próprio corpo, porque a autoridade do homem se expressa nesta equação: o homem que ama a sua mulher ama a si mesmo, porque ninguém odeia o seu próprio corpo. Pelo contrário, cada um alimenta e cuida do seu corpo, como Yeshua cuida da comunidade de fé, pois somos membros do corpo de Yeshua. Donde, ixe deixa o seu pai e a sua mãe para se unir à ixá, e os dois se tornam uma unidade. Há uma verdade imensa revelada nessa compreensão das escrituras, e eu entendo que ela se refere a Yeshua e à comunidade de fé, mas também se refere a respeito de todos nós.

Filhos, seu dever é cuidar do seu pai e da sua mãe. Como dizem as escrituras: dê honra a seu pai e a sua mãe. Esse é o primeiro mandamento que tem uma promessa, que é, faça isso a fim de que tudo corra bem para você, e você viva muito tempo na terra. Pais, não maltratem, nem humilhem os seus filhos para que eles não se rebelem e se lancem contra você e sua comunidade. Pelo contrário, vocês devem criá-los com amor, e transmitir a eles os ensinamentos da justiça, paz e alegria.
 
O padrão do relacionamento entre o casal é o amor que Yeshua expressou em relação à comunidade de fé. Ou seja, a mulher deve viver em harmonia com seu marido. O homem deve amar a sua mulher e não ser grosseiro com ela. Os filhos devem sempre respeitar o seu pai e sua mãe. E os pais não devem levar seus filhos à rebelião, para que não se tornem violentos e derrotados. O conselho do rabino Shaul é que façamos tudo com o coração, como se estivéssemos servindo o haShem e não as pessoas. Devemos nos lembrar que o haShem nos dará como recompensa aquilo que ele tem guardado para o seu povo, pois o verdadeiro senhor que nós servimos é Yeshua. E quem faz o mal, seja quem for, pagará pelo mal que faz, pois, quando Adonai julga, ele não faz diferença entre pessoas.

E o rabino deve ser um bom chefe da sua própria família e saber educar os seus filhos de maneira que eles lhe obedeçam com todo o respeito. Pois, se alguém não sabe amar a sua própria família, como poderá cuidar da comunidade de haShem? O rabino deve ser respeitado pelos de fora da comunidade, para que não fique desmoralizado e não caia na armadilha do adversário. Do mesmo modo, os que servem na comunidade de fé devem ser pessoas de palavra e sérios. Não devem beber muito vinho, nem ser gananciosos.

Que a união matrimonial seja respeitada por todos, e que homens e mulheres sejam fiéis um ao outro, pois Adonai julgará os imorais e os que cometem adultério.
 
O propósito imediato da família é glorificar a Adonai e prover a satisfação das necessidades humanas de comunhão, educação, companheirismo, segurança, preservação da espécie e o perfeito ajustamento da pessoa em todas as suas dimensões.

Adonai os abençoou, dizendo: tenham filhos e espalhem-se pela terra e a governem, pois vocês estão acima dos peixes do mar, das aves que voam no ar e dos animais que se arrastam pelo chão.

Se o haShem não edificar a casa, não adianta nada trabalhar para construí-la. Se o haShem não proteger a cidade, não adianta nada os guardas ficarem vigiando. Não adianta trabalhar demais para ganhar o pão, levantando cedo e deitando tarde, pois é Adonai quem dá o sustento aos que ele ama, mesmo quando estão dormindo. Os filhos são um presente do haShem; eles são uma verdadeira bênção. Os filhos que o homem tem na sua mocidade são como flechas nas mãos de um soldado. Feliz o homem que tem muitas dessas flechas! Ele não será derrotado quando enfrentar os seus inimigos no tribunal.

É melhor haver dois do que um, porque duas pessoas trabalhando juntas podem ganhar muito mais. Se uma delas cai, a outra a ajuda a se levantar. Mas, se alguém está sozinho e cai, sofre porque não tem ninguém que o ajude a se levantar. Se faz frio, dois podem dormir juntos e se esquentar; mas um sozinho, como é que vai se esquentar? Dois homens podem resistir a um ataque que derrotaria um deles se estivesse sozinho. Uma corda de três cordões é difícil de arrebentar. O moço pobre mas sábio vale mais do que o rei velho e sem juízo que já não aceita conselhos.
 
Caída em virtude da alienação, Adonai provê para a família, mediante a fé em Yeshua, a bênção da salvação temporal e eterna, e quando salva poderá cumprir seus fins temporais e promover a glória de haShem.

Eles responderam: Creia no senhor Yeshua e você será salvo, você e as pessoas da sua casa.

Em seguida ele levou Paulo e Silas para a sua casa e lhes deu comida. O carcereiro e as pessoas da sua casa ficaram cheios de alegria porque agora criam em Adonai.


18.

Presentes de haShem

Porém, quando a ruach da verdade vier, ele ensinará toda a verdade a vocês. O espírito não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que ouviu e anunciará a vocês as coisas que estão para acontecer. Ele vai ficar sabendo o que tenho para dizer, e dirá a vocês, e assim ele trará glória para mim.

Três dons espirituais são muito importantes na vida dos cristãos: sabedoria, conhecimento e discernimento. Falar e agir com sabedoria, ter conhecimento da palavra de haShem e discernir a origem de idéias, propostas e ações permitem aos cristãos proclamar a palavra, liderar com humildade e harmonia, e saber escolher o que é melhor para a igreja e para sua própria vida.

Ninguém é detentor de todos os dons do espírito, mas cada um recebe estes presentes de haShem da forma que o espírito deseja dar. É o espírito quem reparte. A exortação da palavra é que busquemos os dons e o façamos com equilíbrio, zelo, sem impedir que o espírito possa fluir. E conforme nos diz o rabino Shaul na sua primeira carta aos coríntios (12.7), para o bem de todos, Adonai dá a cada um alguma prova da presença da ruach hakadosh.

Se os caros leitores e caríssimas leitoras desejam participar nas atividades e ministérios da comunidade de fé, orem e peçam ao espírito que lhes dê sabedoria, conhecimento e discernimento. E ele, com amor, mostrará como e onde devem atuar no corpo de Yeshua.

Que a sabedoria, o conhecimento e o discernimento sejam derramados sobre a vida de vocês. Essa é a minha oração. 


19.

Judeus pensam Jesus

Intelectuais e pensadores judeus nos últimos decênios iniciaram um caminho de aproximação e diálogo para entender o pensamento de um judeu chamado Jesus. Aqui vamos examinar brevemente o trabalho de três deles.

1. David Flusser. Entre esses intelectuais podemos citar David Flusser, que foi professor de Novo Testamento e Cristandade antiga na Universidade Hebraica de Jerusalém. Em 1968 foi publicado o seu texto "Jesus em Auto-Testemunhos e Documentos de Imagens", onde diz que Jesus nasceu em Nazaré, era primogênito, e teve quatro irmãos e irmãs. E que foi batizado nos anos 28/29 e morreu entre os anos de 30 e 33. É interessante que Flusser não nega a virgindade de Maria, ao menos explicitamente. Em sua biografia de Jesus, Flusser relata a formação dele, a tensão com a família, que só aceita sua pregação após a morte dele. Flusser refere-se ao batismo e a dotação do espírito como um evento histórico. Considera João, o batista, como o Elias escatológico e que, com Jesus, o reino de haShem teria começado. 

Para Flusser, Jesus não foi teórico racionalista e, embora tivesse se voltado contra a teimosia dos piedosos bitolados, ele enfatizou o lado moral dos mandamentos, mas não propôs a sua abolição. Assim, para Flusser, Jesus foi um judeu que se sentiu enviado aos judeus. Os fariseus aparecem em Flusser, outra vez, como referência simbólica, e não historicamente, e são absolvidos de qualquer culpa na morte de Jesus. Flusser coloca a mensagem Jesus como produto periférico ao pensamento dos essênios, mas sem afirmar que Jesus tenha sido essênio. A questão do reino de haShem foi um ponto central da proclamação de Jesus, na qual estavam embutidas uma constelação de valores e não somente aqueles de dimensão social. Por isso, considera que a escatologia se realiza através de Jesus.
 
Em seu o livro "A Cristandade, uma religião judaica", Flusser fala de Maria, das raízes judaicas da Cristandade, da expectativa messiânica de Jesus, de Shaul e da missão como chamado à fraternidade. Reafirma que Jesus teria visto João como Elias e que Jesus teria sido o único judeu antigo a pregar o início do reino de haShem. Ele teria se visto como Messias. E diz que nos últimos anos empregou força e diligência para mostrar, tanto em hebraico como em inglês, que Jesus se viu realmente como o Messias, o Filho de Homem por vir. Segundo Flusser, Jesus teria mudou a escatologia judaica, ao afirmar que primeiro se realiza o reino do céu e só depois vem o juízo final. Flusser enfatiza a importância da atividade terrena de Jesus, faz a defesa da messianidade de Jesus como o filho do homem, mas descarta a morte expiatória. Apresenta Jesus como judeu, antes e depois da ressurreição. E, assim, apresenta o judeu Jesus como único, divino, messias. Flusser, dessa maneira, cria a possibilidade de diálogo.

Se você quer saber mais sobre David Flusser, veja, Jesus, São Paulo, Editora Perspectiva, 2002.

Nesse texto, Flusser utiliza a mais moderna metodologia científica no campo da análise textual, filológica, documental e arqueológica na qual a leitura dos Evangelhos se faz à luz dos Manuscritos do Mar Morto, da literatura pseudo-epigráfica e apocalíptica em conjunto com a do Velho Testamento, da tradição oral judaica, da cristologia e das fontes greco-latinas da historiografia clássica, este livro do historiador David Flusser apresenta um painel da reconstituição do semblante verossímil do judeu de Nazaré e a feição objetiva da realidade que lhe foi subjacente e o projetou na transcendência - a do judaísmo do século primeiro nas suas correntes conflitantes de pensamento religioso.

E também David Flusser, Judaísmo e as origens do Cristianismo, vols. 1 e 2, São Paulo, Imago, 2001.

No primeiro volume, Flusser objetiva eliminar preconceitos inatos e promover uma melhor compreensão das antigas fontes das duas religiões universais: o judaísmo e o cristianismo. Dentro desta perspectiva, o autor fixa como objetivo principal tratar de alguns problemas relativos ao judaísmo antigo e ao cristianismo primitivo. E no segundo volume, mostra que como o cristianismo surgiu entre os judeus, foi, portanto, um dia, parte do judaísmo. É esta busca por uma melhor compreensão das antigas fontes de duas religiões universais que encontramos neste livro. O autor elimina os preconceitos analisando a influência e essência dos ensinos de forma direta a partir de Jesus. O livro ainda traz alguns artigos eruditos que foram publicados em periódicos.

2. Geza Vermés. O judeu Geza Vermés, historiador britânico, estudou o Jesus histórico. Começou as suas exposições com dados sobre a pessoa de Jesus, e o apresentou como carpinteiro, professor, curador taumaturgo e exorcista, que atuou na Galiléia. Analisou também os títulos de realeza de Jesus: profeta, filho de homem, filho de haShem. E acabou por entrar no debate sobre a pessoa do mashiah. E fez isso a partir da literatura do intertestamento e dos rabinos. Para Vermes, é difícil dizer se, de fato, Jesus aceitou os títulos messiânicos ou se essa apropriação se dá posteriormente com o surgimento da igreja cristã. 

Para Vermes, em todo o caso, Jesus poderia ser enquadrado num amplo espectro das personagens judaicas de seu tempo. Vermés não faz conjecturas sobre a motivação dos cristãos de apresentarem Jesus como o Messias, mas considera que esse seria um processo natural, já que o Evangelho era perfeito, mas a obstinação dos judeus em recusá-lo como Messias, a maior de todas as promessas divinas a Israel, foi o ponto alto de um erro, e este foi o motivo principal para que seus privilégios fossem transferidos aos não-judeus.

E quem foi o responsável por esta transição foi Shaul, pois a partir do momento em que foi reconhecido como apóstolo dos gentios (Rm 11.13; At 9.15), e sua missão dirigida aos não-judeus foi aprovada pela liderança da igreja em Jerusalém (At 15), a orientação original da atividade de Jesus foi radicalmente transformada. Não-judeus entraram na comunidade de fé em grande número, e ela fez, em conformidade com o modelo de conversão existente no Judaísmo daquela época, o seu melhor para satisfazer as novas exigências. Outra transformação decisiva, que tocava na substância em conseqüência do transplante do movimento cristão ao solo gentílico, atingia o status da Torá, que representava para Jesus a fonte da inspiração e o critério do seu modo de viver. Apesar de não ser esta a posição de Jesus, ela foi declarada não só facultativa, mas abolida. A Torá, que ele compreendia com simplicidade e aprofundamento, e que transpunha com integridade, foi definida por Shaul como um instrumento de alienação e morte. E Shaul se tornou por uma virada que criou o grande abismo entre Judaísmo e Cristandade.

Assim, para Vermes, a do mashiah centrismo contra o teocentrismo de Jesus separaria, então, os cristãos dos judeus, mas não os judeus de Jesus. Pois Jesus de carne e sangue, visto e ouvido na Galileia e em Jerusalém, intransigente e persistente no seu amor a Adonai e ao próximo, estava convencido de que poderia contagiar os seus semelhantes pelo exemplo e ensino, com o seu apaixonado relacionamento ao pai no Céu. E com o pássaro do tempo o judeu simples dos Evangelhos passou para o segundo plano e cedeu lugar à magnífica e majestosa figura do mashiah na comunidade de fé. 

Se você quer saber mais sobre Geza Vermes, leia Jesus e mundo do judaísmo. São Paulo: Loyola, 1996.

Os estudos contidos neste livro levam mais longe a investigação realizada nos livros de Geza Vermes, Jesus, o judeu e Os Manuscritos do Mar Morto e lançam luz sobre muitas questões importantes e controversas do período. Os tópicos incluem a importância dos Manuscritos do Mar Morto para os estudos judaicos e os estudos do Novo Testamento; a necessidade dos estudos judaicos para a interpretação do Novo testamento; e a compreensão que Jesus tinha de si mesmo. Este volume contém em particular as Conferências Riddell Memorial, "O Evangelho de Jesus, o Judeu", que representam uma continuação de Jesus, o judeu.

Geza Vermes, As várias faces de Jesus, São Paulo, Editora Record, 2006. Vermes reorienta o conhecimento comum sobre Jesus com essa pesquisa provocante. Sua obra propõe uma nova abordagem, conferindo o mesmo peso ao Novo Testamento e aos escritos judaicos não-bíblicos. O objetivo é explorar os diferentes perfis do personagem que definiu dois milênios da fé cristã para analisar como e por que aquele palestino carismático foi elevado à condição divina de Jesus. O autor nos remete aos primórdios do cristianismo, permitindo a compreensão das condições históricas ocultas nos textos dos evangelhos mais antigos ao privilegiar o evangelho mais recente, o de João. 

O autor de As Várias Faces de Jesus considera Jesus, a Igreja primitiva e o Novo Testamento como parte de uma interpretação do judaísmo. Ao despir as interpretações teológicas do contexto dos evangelhos, ele procura revelar a verdadeira identidade, a figura humana de Jesus, e esclarece como os Seus ensinamentos foram passados da versão original à nossa civilização.

e também Geza Vermés, O autêntico Evangelho de Jesus, São Paulo, Editora Record, 2006. O autor relaciona, compara, classifica e examina diferenças entre os ditos atribuídos a Jesus nos Evangelhos Sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) ao longo de nove capítulos. Assim, analisa temas essenciais do cristianismo como a oração, a Última Ceia, os momentos próximos à morte e a ressurreição de Jesus, as maldições, o exorcismo e as bem-aventuranças preservadas em formas distintas pelos evangelistas.

3. David H. Stern. O rabino David H. Stern publicou nos Estados Unidos uma tradução do Novo Testamento introduzindo anotações a partir das raízes judaicas presentes nos textos. Em seu trabalho, o conceito “promessa e cumprimento” tem importância central. Jesus cumpriu as promessas do Antigo Testamento. Textos como os de Gn 3.15; 12.3; 17.19; 21.12; 28.14 ou Nm 24.17-19 e ainda muitos outros, remetem a Jesus. O Novo Testamento é visto, então, como a Nova Torá. O fim desta Torá é o Messias, que oferece justiça a cada um que confia nele. 

Leia David H. Stern, O Novo Testamento Judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007. Porque esta versão do Novo Testamento difere das demais? Porque este Novo Testamento Judaico deixa transparecer sua judaicidade originária e essencial. Todas as outras versões do Novo Testamento em português — há literalmente dezenas — apresentam sua mensagem na abordagem lingüística, cultural e teológica dos não-judeus cristãos. 

E o que há de errado com isso? Nada! Ainda que o Evangelho seja de origem judaica, ele não existe só para os judeus, mas também para os não-judeus. O próprio Novo Testamento deixa isso muito claro, portanto, é apropriado que sua mensagem seja comunicada aos não-judeus de forma a lhes impor o mínimo possível de outra bagagem cultural. E esta abordagem tem sido bem-sucedida: milhões de não-judeus depositaram sua confiança no Adonai de Avraham, e Yitz’chak e Ya‘akov e no Messias judeu, Jesus. 

O Novo Testamento é um livro judeu. Entretanto, chegou o tempo de restaurar a judaicidade do Novo Testamento. Pois o Novo Testamento é de fato um livro judeu — escrito por judeus, que trata majoritariamente de judeus e que tem por público alvo judeus e não-judeus. É correto adaptar um livro judeu para a melhor apreciação dos não-judeus, mas não ao preço de suprimir sua judaicidade inerente. O Novo Testamento Judaico evidencia suas características judaicas a partir do título, da mesma forma que o nome Judeus por Jesus une duas idéias consideradas incompatíveis e completamente dissociadas por algumas pessoas. Entretanto, essa separação não pode existir. A figura central do Novo Testamento, Jesus o Messias, Era um judeu nascido de judeus em Beit-Lechem, cresceu entre os judeus em Natzeret, ministrou aos judeus na Galil, morreu e ressuscitou na capital judia, Yerushalayim — tudo isto em Eretz Yisra’el, a terra dada por Adonai ao povo judeu. 

Além disso, Jesus ainda é judeu, porque ainda está vivo, e em nenhum lugar a Escritura afirma ou sugere que ele tenha cessado de ser judeu. Seus doze seguidores mais íntimos eram judeus. Durante anos todos os seus talmidim eram judeus, alcançando o número de “dezenas de milhares” só em Yerushalayim. O Novo Testamento foi escrito inteiramente por judeus (Lucas era, ao que tudo indica, um prosélito do judaísmo); e sua mensagem é dirigida “especialmente ao judeu, mas também ao não-judeu”. Os judeus levaram o Evangelho aos não-judeus, e não o inverso. Sha’ul, o principal emissário aos não-judeus, foi durante toda a sua vida um judeu praticante, como evidencia o livro de Atos. De fato, a principal questão no início da comunidade messiânica (“igreja”) não era se um judeu poderia crer em Jesus, mas se um não-judeu poderia se tornar cristão sem se converter ao judaísmo. A expiação vicária do Messias tem sua raiz no sistema sacrificial judaico. A ceia do HaShem origina-se da Páscoa judaica. A imersão (“batismo”) é uma prática judaica. Jesus disse: “A salvação vem dos judeus”.
 
A própria Nova Aliança foi prometida pelo profeta judeu Jeremias. O próprio conceito do Messias é exclusivamente judeu. A bem da verdade, o Novo Testamento completa o Tanakh, as Escrituras hebraicas outorgadas por Adonai ao povo judeu; de forma que o Novo Testamento sem o Antigo é tão possível quanto o segundo pavimento de uma casa sem o primeiro, e o Antigo sem o Novo é como uma casa sem teto. Além do mais, muito do que está escrito no Novo Testamento é incompreensível à parte do contexto judaico. Eis aqui um exemplo, extraído de muitos outros. Jesus disse literalmente no Sermão do Monte: “Se o seu olho for mau, todo o seu corpo estará em trevas”. O que é um “olho mau”? Alguém que desconheça o pano de fundo judeu poderia supor que Jesus estivesse falando sobre algum tipo de encantamento. Todavia, em hebraico, possuir um ‘ayin ra‘ah, “olho mau”, significa ser sovina; ao passo que ter um ‘ayin tovah, um “olho bom”, equivale a ser generoso. Jesus está simplesmente incentivando a generosidade e desestimulando a avareza. E esse entendimento combina muito bem com os versículos do contexto: “Onde estiver seu tesouro, aí também estará seu coração [...] você não pode ser escravo de haShem e do dinheiro”. 

Contudo, a melhor demonstração do caráter judaico do Novo Testamento é também a prova mais convincente de sua veracidade, ou seja, o número de profecias do Tanakh — todas muitos séculos mais velhas que os acontecimentos registrados no Novo Testamento — cumpridas na pessoa de Jesus de Natzeret. A probabilidade de que qualquer pessoa pudesse se encaixar em dezenas de condições proféticas por mero acaso é infinitesimal. Nenhum candidato farsante ao messiado, como Shim‘on Bar-Kokhva ou Shabtai Tzvi, cumpriu mais que umas poucas. Jesus cumpriu todas as 52 profecias referentes à sua primeira vinda. As restantes serão cumpridas quando ele retornar em glória. Dessa forma, o Novo Testamento Judaico considera normal pensar no Novo Testamento como algo judeu. 

Há três áreas adicionais nas quais o Novo Testamento Judaico pode ajudar em relação a tikkun-ha‘olam (“conserto do mundo”): o anti-semitismo cristão, a recusa judaica de receber o Evangelho e a separação entre a igreja e o povo judeu. 

O anti-semitismo cristão. Inicialmente, um círculo vicioso de anti-semitismo cristão se alimenta do Novo Testamento. O Novo Testamento não contém nenhuma forma de anti-semitismo, mas desde os primeiros dias da igreja, os promotores desse conceito têm distorcido o Novo Testamento para justificar-se e se infiltrar na teologia cristã. Alguns tradutores do Novo Testamento, ainda que não tenham sido anti-semitas, absorveram a teologia anti-semita e produziram traduções antijudaicas. Os leitores dessas traduções acabaram assumindo posturas anti-semitas e hostis ao judaísmo. Alguns desses leitores se tornaram teólogos que refinaram e desenvolveram o caráter anti-semita da teologia cristã (eles poderiam até mesmo não ter consciência desse sentimento); ainda outros se tornaram ativistas em prol do anti-semitismo e perseguiram os judeus, pensando agradar a Adonai enquanto procediam assim. Este círculo vicioso precisa ser quebrado. O Novo Testamento Judaico é uma tentativa de remover erros teológicos anti-semitas multisseculares e destacar positivamente sua judaicidade. 

A desconfiança judaica em relação ao Evangelho. Em segundo lugar, apesar de mais de cem mil judeus messiânicos habitarem em países de língua inglesa, é óbvio que a maior parte do povo judeu não aceita Jesus como Messias. Ainda que as razões possam incluir a perseguição cristã aos judeus, as cosmovisões seculares que cedem pouco espaço para Adonai ou um messias, e a recusa de se arrepender dos alvos errados — o motivo principal é o sentimento de que o Evangelho lhes é irrelevante. Este sentimento se origina parcialmente do modo pelo qual o cristianismo representa a si mesmo, mas também da alienação induzida pela maior parte das versões do Novo Testamento. Com a ornamentação cultural cristã gentílica e suas justificativas teológicas antijudaicas, fizeram com que muitos judeus pensassem ser o Novo Testamento um livro não-judeu sobre uma divindade dos não-judeus. 

O Jesus apresentado por eles diz pouco a respeito da vida judaica. Torna-se difícil para o judeu experimentar Jesus o Messias como ele realmente é — amigo de todo judeu. Ainda que o Novo Testamento Judaico não consiga eliminar todas as barreiras entre os judeus e a confiança no seu Messias, ele remove alguns obstáculos lingüísticos, culturais e teológicos. O judeu que ler o Novo Testamento Judaico poderá experimentar Jesus como o Messias prometido pelo Tanakh ao povo judeu; e poderá perceber que o Novo Testamento é tão importante para os judeus quanto para os não-judeus; e será confrontado com a mensagem integral da Bíblia, os dois Testamentos juntos, como verdadeiros, importantes e dignos de aceitação, a chave para a salvação pessoal e de seu povo. 

A separação entre a comunidade messiânica e o povo judeu. Em último lugar, séculos de rejeição judaica de Jesus e de rejeição cristã em relação aos judeus produziu a situação na qual nos encontramos: cristianismo é cristianismo, e judaísmo é judaísmo e os dois jamais se encontrarão. Além disso, muitos judeus e cristãos estão satisfeitos com essa situação. Entretanto, não é vontade divina a existência separada de dois povos de haShem. Os cristãos não-judeus que reconhecem sua união a Yisra’el, e não sua substituição, e os judeus messiânicos plenamente identificados com o povo e o Messias judeu, Jesus, devem trabalhar conjuntamente para reunificar o grande cisma da história mundial, a divisão existente entre a igreja e o povo judeu. O Novo Testamento Judaico tem um papel a desempenhar na grande tarefa de reunir os dois grupos de forma a preservar a identidade judaica na comunidade messiânica, na qual judeus e não-judeus honram a Adonai e seu Messias de acordo com o Tanakh e o Novo Testamento. 


20.

Culpa e perdão
 
O que é culpa e ofensa? Quando é que nos tornamos culpados e ofendemos? Tem culpa ou é culpado aquele tem uma conduta negligente que causa dano. É culpado aquele que falta voluntariamente a uma obrigação. Por isso, culpa é sinônimo de delito e crime. E biblicamente culpa é sinônimo de transgressão da vontade de haShem. É alienação, distanciamento. E ofensa é injúria, afronta, desconsideração. É também postergar responsabilidade, violar mandamentos, e, por extensão, também é transgressão e alienação. Assim, somos culpados quando mascaramos a verdade, quando manipulamos pessoas e fugimos às nossas responsabilidades.

1. Traição e culpa: o exemplo de Judas Iscariotes. Quando Judas, o traidor, viu que Jesus havia sido condenado, sentiu remorso e foi devolver as trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e aos líderes judeus, dizendo: Eu pequei, entregando à morte um homem inocente. Eles responderam: O que é que nós temos com isso? O problema é seu. Então Judas jogou o dinheiro para dentro do Templo e saiu. Depois foi e se enforcou.

Traição é o crime de quem, perfidamente, entrega, denuncia ou vende alguém ou alguma coisa ao inimigo. É perfídia, deslealdade e infidelidade. Judas traiu sangue inocente. Pecou e foi se enforcar. Segundo Atos, cheio de remorso ele se enforcou, a corda rompeu-se e Judas caiu no abismo, tendo as entranhas derramadas no solo. Culpa sem arrependimento, é remorso e leva à morte.

Traição e arrependimento: o exemplo de Pedro, o pescador. Quando eles acabaram de comer, Yeshua perguntou a Simão Pedro: Simão, filho de João, você me ama mais do que estes outros me amam? Sim, o haShem sabe que eu o amo, HaShem! - respondeu ele. Então Yeshua lhe disse: Tome conta das minhas ovelhas! E perguntou pela segunda vez: - Simão, filho de João, você me ama? Pedro respondeu: Sim, o haShem sabe que eu o amo, HaShem! E Yeshua lhe disse outra vez: Tome conta das minhas ovelhas! E perguntou pela terceira vez: Simão, filho de João, você me ama? Então Pedro ficou triste por Yeshua ter perguntado três vezes: "Você me ama?" E respondeu: O senhor sabe tudo e sabe que eu o amo! E Yeshua ordenou: Tome conta das minhas ovelhas. 

Neste diálogo vemos o arrependimento de Pedro e o perdão de Yeshua.

Arrependimento é contrição, profunda insatisfação pela nossa conduta moral. Por isso, o arrependimento leva à aceitação do castigo e à disposição de não repetir o erro. E o perdão de Yeshua é um perdão para a ação: cuida das minhas ovelhas!

Arrependimento e perdão: o conselho do apóstolo João. Se dizemos que não temos alvos errados, estamos nos enganando, e não há verdade em nós. Mas, se confessarmos a nossa alienação a Adonai, ele cumprirá a sua promessa e fará o que é correto: ele perdoará a nossa alienação e nos limpará de toda maldade. 

Quando há arrependimento e confissão da alienação, Adonai é fiel e justo para nos perdoar de todos nossos alvos errados.


21.

O espírito é quem me tem
 
Certamente vocês sabem que são o templo de haShem e que a ruach vive em vocês. 

Quando eu converso com o pai, em oração, e falo sobre a minha vida, o espírito se faz presente e conversa com nós dois, porque só Ele sabe de fato quem eu sou. Assim, eu posso compreender melhor o que eu sou, minhas limitações e possibilidades, ouvindo o espírito que atua em minha vida. Quem é o espírito? Por que foi enviado a nós?

A criação, a providência e a libertação são obras do Adonai trino. Mas, existe também a obra interna, subjetiva, de haShem em nós, que é a aplicação da salvação na minha vida e na sua. E é aqui que entra o espírito, pois esta obra é feita por Ele, de dentro para fora no ser humano.

Mas foi a nós que Adonai, por meio do espírito, revelou o seu segredo. O Espírito examina tudo, até mesmo os planos mais profundos e escondidos de haShem. Quanto ao ser humano, somente o espírito que está nele é que conhece tudo a respeito dele. E, quanto a Adonai, somente o seu espírito conhece tudo a respeito dele.

Assim, podemos dizer: vemos o pai nas obras da criação e da providência. Vemos o filho na obra da redenção da humanidade alienada. E vemos o aspírito nessa obra redentora, subjetiva, interna, nas pessoas, tornando real e palpável a salvação em cada um de nós.

A ruach é a pessoa da trindade que torna a salvação pessoal para aquele que crê. O espírito é a pessoa da trindade por meio de quem o Adonai trino atua em mim e em você. Por isso, podemos dizer: o espírito é quem me tem. Sou propriedade de haShem, marcado e selado pelo espírito. Que possamos a cada dia, neste ano de 2008, viver essa realidade, alegrando o espírito que habita em nós.

O espírito é radical, e sua missão também é, mas também é comunicação e presença do evangelho. Com isso queremos dizer que essa teologia correlaciona comunicação e presença, sem colocar um sinal de igualdade entre essas realidades e sem declarar que necessitam sempre ser levadas a termo juntas. Na missão, a comunicação tem consequências sociais porque convoca pessoas e comunidades ao arrependimento e ao amor pelos outros em todas as áreas da vida. 

A missão vê compromisso social como comunicação e presença, que tem consequências para a proclamação da boa nova que se dá através do testemunho da graça do mashiah. Quando há silêncio e cruzar dos braços diante dos sofrimentos do mundo, a palavra é traída, já que nessas circunstâncias não há o que oferecer ao mundo. 

A missão tem como um de seus pilares a diaconia, que em seu sentido cristão significa serviço ao próximo. Diante da alegria pelo que Adonai tem feito, ao abençoar as vidas, a Missão Integral propõe como resposta a promoção da diaconia. Nesse sentido, Missão Integral e diaconia são expressões que não podem vir separadas.

Nas primeiras comunidades cristãs, a diaconia teve característica singular de testemunho de fé por meio da vida solidária, já que, como disse Shaul, se um membro sofre todos sofrem com ele. O fundamento dessa ação solidária repousa nos ensinos e prática de Yeshua. Por isso, para a missão, o amor a Adonai só é possível se este alcança o próximo. Na prática, amar ao próximo consiste em propiciar dignidade humana e reintegração na sociedade. Por seu ministério e morte, Yeshua assumiu a fraqueza humana e sofreu o poder de morte do mundo para, então, superá-los. Assim, a Missão desafia ao testemunho do amor de haShem, enquanto ação solidária. 

A missão é sentido e luta incondicional pela justiça, entendendo que a justificação pela graça, através da fé, não se refere apenas a fé posicional, mas existencial. É uma instrução de que falamos de Yeshua na vida da comunidade de tal maneira que a justificação se transforma em vida aberta. E, assim, é fé material, política, e espiritual, já que transformação da pessoa e transformação estrutural estão correlacionadas. Ser, fazer e dizer, então, estão no coração da missão.

A missão é uma teologia da centralidade em Yeshua, pois a vida de serviço sacrificial de Yeshua é o paradigma. Em sua vida e por meio da sua morte, Yeshua estabeleceu o modelo de identificação com os excluídos e o exercício da inclusão. Na cruz, Adonai revela a seriedade com que Ele olha para a justiça e reconcilia consigo integrados e excluídos, ao cumprir com os requerimentos de sua própria justiça. No caminhar com os excluídos de bens e possibilidades, serve-se no poder do haShem por meio do espírito e encontra-se a esperança em submeter todas as coisas a Yeshua. 

É uma teologia da graça de haShem, que concede impulso à comunicação permanente onde todo e qualquer locus é campo privilegiado. Como receptores do amor somos pessoas agraciadas pela generosidade e aceitação dos demais. Tal graça define a justiça frente à situação-limite vivida pelo povo brasileiro, não somente como contrato que deve ser honrado, mas como serviço àquele que se encontra à margem, caído.

É uma teologia do espírito, um convívio com o espírito, já que este é o sentido cristão da palavra espiritualidade. Dessa maneira, a idéia de uma vida forte, a idéia da vitalidade de uma vida criativa a partir de haShem nos leva à espiritualidade, ou seja, a uma vida espiritualizada por Adonai. 

Por isso, podemos dizer: as pessoas procuram a Adonai porque a ruach as atrai para si. Estas são as primeiras experiências do espírito no ser humano. E o espírito as atrai como um imã atrai as limalhas de ferro. O íntimo e suave atrativo de haShem é experimentado pela pessoa em sua fome de viver e em sua busca de felicidade, que nada no universo pode satisfazer ou saciar.

A espiritualidade da vida se opõe à mística da morte. Quanto mais sensíveis as pessoas se tornam para a felicidade da vida, mais sentem a dor pelos fracassos da vida. Vida na ruach é vida contra a morte. Não é vida contra o corpo, mas a favor de sua libertação e sua glorificação. Dizer sim à vida significa dizer não à guerra e suas devastações. Dizer sim à vida significa dizer não à miséria e suas humilhações. Não existe uma afirmação verdadeira da vida sem luta contra tudo que nega a vida.

A ruach é o acontecer da presença atuante de haShem, que penetra até o mais íntimo da existência humana. Ele atua como força de vida no ser humano e transforma aqueles que se encontram sob o haShemio de Yeshua.

Cria espaço, põe em movimento, leva da estreiteza para a amplidão. Cria o horizonte e nas nossas vidas amplia o horizonte. Na experiência com a ruach, Adonai não é experimentado somente como pessoa da trindade, mas também como aquele espaço e tempo de liberdade onde o ser humano pode se desenvolver.

E onde está o Espírito há liberdade. Com essa experiência do espírito, Shaul falou sobre a liberdade cristã. Mas para falar da liberdade no espírito é necessário começar pela fé.

A fé é geralmente entendida como uma concordância formal com a doutrina da igreja ou como uma participação na fé da igreja. Mas a fé que liberta é mais do que isso, é uma fé que nos envolve pessoalmente. A fé que me faz livre não é somente a fé com a qual eu concordo, mas aquela que me leva a partir e repartir o pão e o vinho. Tal fé pessoal é sempre comunitária e o início de uma liberdade que renova inteiramente a vida e vence o caos.

Essa fé é uma experiência que não abandona aqueles que a vivenciam realmente: é libertação do medo para confiança, reviver para uma esperança viva, amor incondicional à vida.

Para a fé que parte e reparte pão e vinho, a liberdade não consiste nem na compreensão de uma necessidade histórica, nem na autonomia sobre si próprio e sobre a propriedade, mas sim no ser tocado pela necessidade do outro que sofre. Fé significa assim, posicionamento existencial, ser criativo diante dessas gentes brasileiras, com suas comunidades, com Adonai e na sua ruach. Crer leva a uma vida criativa e vivificante pelo amor. Crer, por isso, significa ultrapassar os limites da realidade determinada pelo passado marcado pela escravidão e pela exclusão e buscar as possibilidades da vida que não se realizaram. E é essa fé que livra da força do mal, da lei das obras e do poder da morte e leva a uma comunhão direta com o meu próximo e eterna com Adonai. Essa é a base e o fundamento da liberdade no espírito. 

É teologia da imagem de haShem, e nesse sentido uma teologia para os excluídos, que como todos os humanos são portadores da imagem de haShem Criador. Pessoas e comunidades excluídas de bens e possibilidades têm conhecimentos, habilidades e recursos. Tratar tais pessoas com dignidade significa propiciar condições para que sejam arquitetos de mudança em suas comunidades. Trabalhar com elas envolve a construção de relações que conduzem a uma mudança mútua. 

É uma teologia para a comunidade de fé, porque Adonai por sua graça tem dado as comunidades de fé o desafio da comunicação. O futuro da comunicação se define em termos de expansão do reino de haShem, capacitando as gentes para que transformem suas comunidades. As comunidades de fé devem gerar espaços e tempos de inclusividade, como fruto natural do chamado que receberam. As pessoas e mesmo as comunidades são atraídas por este fazer de amor das comunidades cristã. E é a partir daí que são impactadas pela mensagem cristã. 

É uma teologia para o reino, comunitária, porque a experiência de caminhar com as comunidades excluídas deixa uma interrogação sobre o que significa ser comunidade de fé. A igreja pode ser mera instituição ou organização, mas é nas comunidades de fé no messias que se concretizam os valores do reino. A participação dos excluídos na vida das comunidades de fé possibilita o encontro de novas maneiras de ser igreja no contexto da cultura brasileira, ao invés de ser simples reflexo dos valores da subcultura dominante. A comunicação tem credibilidade na medida em que adota uma aproximação encarnada. Com frequência as comunidades de fé têm-se dedicado à obtenção de dinheiro, êxito e influência. A comunidade que Yeshua denominou seu pequeno rebanho faz parte do reino. As tradições eclesiásticas não podem dificultar o que a Igreja já fez pela expansão do reino. A igreja pode enfrentar o problema da miséria quando trabalha com os miseráveis e, a partir daí, pressiona atores sociais com a sociedade civil, os governos e o setor privado, sobre a base do respeito mútuo e o reconhecimento do papel de cada participante. 

É uma teologia social, de apoio às transformações sociais que favoreçam os excluídos e caminhem na direção de acabar com a miséria no Brasil. Vejam de onde vierem essas ações transformadoras. Tais atividades se ampliam para incluir avanços em direção à transformação de valores, o reconhecimento da dignidade das comunidades e a cooperação em questões de justiça. Com sua presença ao lado dos excluídos, as comunidades de fé colocam-se numa posição singular que favorece o trabalho para restaurar a dignidade concedida por Adonai, apresentando valores para que produzam recursos próprios e criem redes de solidariedade.
 
É uma teologia da cidadania, de consciência de direitos e deveres de cada pessoa como integrante de uma coletividade, entendendo-se essa coletividade em todas as instâncias do reino de haShem e de sua presença no mundo. Isso pressupõe a igualdade, que transpõe barreiras de nível sócio-econômico, de etnia, de faixa etária, de sexo, de cultura, de situação civil, de deficiência física, de instituição e, também, pressupõe a unidade na pluralidade, pois trata da existência humana sobre a face da terra, e seu direito à vida, à liberdade, à propriedade, ao trabalho, à educação, à saúde, ao entretenimento e à cultura. É uma teologia por si só inclusiva, pois se contrapõe à opressão, à omissão, à rejeição e à massificação. É também uma teologia espacial, pois considera o mundo como oikos, precisando ser preservado, cuidado, adaptado, sinalizado, para usufruto e bem estar do ser humano; o que integra as demais criaturas de haShem, como parte de seus direitos e deveres, de coroa da Criação. 


É uma teologia ecológica, que envolve o uso responsável e sustentável dos recursos da criação de haShem e a transformação das dimensões morais, intelectuais, econômicas, culturais e políticas da vida. Isto inclui a recuperação de um sentido bíblico de mordomia. O conceito bíblico do sábado recorda que se deve por limites ao consumo. Os cristãos integrados no Brasil devem usar sua riqueza e seu poder a serviço dos demais. É um compromisso de trabalhar para libertar os ricos de sua escravidão ao dinheiro e ao poder. A esperança de tesouros no céu livra da tirania de Mamon.
 
É uma teologia do amor, da paz e da reconciliação, porque num mundo de conflitos e tensões étnicas tem-se falhado na tarefa de construir pontes. A Teologia de Missão Integral trabalha pela reconciliação entre comunidades divididas etnicamente, entre integrados e excluídos, entre opressores e oprimidos. Reconhece o mandato de falar por quem não pode clamar por si mesmo e, também, a necessidade de defensoria tanto para tratar da injustiça estrutural, como para resgatar o próximo necessitado. Essa teologia clama por outra globalidade, solidária, pois a globalização excludente é o domínio de culturas que têm o poder de promover seus produtos, tecnologias e imagens além de suas fronteiras. A luz deste fato, as comunidades de fé com sua rica diversidade desempenham um papel singular por ser uma comunidade verdadeiramente global. 

E, por fim, nessas reflexões da missão para mundo, diremos que é uma teologia da solidariedade, que faz a crítica da globalização selvagem e chama pessoas e comunidades cristãs à uma solidariedade com os povos em situação de exclusão, construída ao redor de propostas e ações de justiça e paz. A missão considera que os países desenvolvidos devem reconhecer seu papel no desenvolvimento de uma economia global solidária, onde estão incluídas novas formas de pensar e agir em relação aos deserdados da terra. 

A missão reconhece o valor do planejamento, da organização, da avaliação e de outras ferramentas similares, mas afirma que estas devem estar a serviço do processo de construção de relações e valorização dos excluídos no mundo, sejam eles pessoas ou comunidades.

Dessa maneira, a missão faz um chamado à solidariedade, entendendo que pessoas e comunidades cristãs devem ajudar aqueles que clamam pelos direitos de produção e reprodução da vida, e apoiar aqueles que se dedicam a melhorar as condições de vida e possibilidades das populações em situação exclusão.


22.

O sonho, a vigília e o pesadelo

Imagine uma conversa transversa entre o sonho, a vigília e o pesadelo. Não uma conversa que deve levar a leituras definitivas, mas a matutar percepções sobre a espiritualidade, a razão e a paixão. Assim, o sonho diz: vivo sem viver em mim, e de tal maneira espero, que morro porque não morro 

A vigília considera a leitura, um pensar sobre a eternidade que nasceu com os longevos, uma reflexão primeira, que se justifica enquanto construção precária da realidade. Acha que o encontro das últimas causas não acrescenta nada à compreensão da natureza. E, que, só quando a humanidade para de olhar para cima e olha para si própria e ao seu redor pode pensar o conhecimento. Acho que você vai gostar da vigília, mas penso que ela está enganada ao colocar a leitura fora do conhecimento. Na verdade, se olharmos a leitura e, por extensão, o sonhar apenas como formas sobrenaturais, eles se mostram, sem dúvida, superficiais. 

Vivo já fora de mim depois que morro de amor; porque vivo no eterno, que me quis para ele; quando lhe dei o coração coloquei nele um letreiro: morro porque não morro. 

Há algo no pensar da vigília que é desnorteador, em parte por sua veracidade: o comportamento do humano deve ser explicado de modo semelhante ao dos demais comportamentos na natureza. E a partir daí vai fundo, radicaliza: a princípio, não há liberdade, nem responsabilidade no comportamento humano. O fazer humano, até o mais íntimo, deve ser explicado por suas causas mecânicas, como fenômenos da natureza. Assim, bom é simplesmente aquilo que dá prazer; e mal o que causa dor. Mas, o que isso significa, amigo que vigia? 

Esta divina prisão do amor com que eu vivo fez do eterno meu cativo, e livre meu coração; e causa em mim tal paixão ver ao eterno meu prisioneiro, que morro porque não morro. 

Gostaria que aquele que vigia lesse as confissões do sonho, traduzidas na vida de uma jovem monja carmelita, Teresa d'Ávila, no livro de sua vida, onde contou seus momentos de êxtase: Vi nele uma comprida lança de ouro e sua ponta parecia ser um ponto de fogo. Parece que ele a enterrou muitas vezes em meu coração e perfurou minhas entranhas. Quando retirava a lança, parecia também retirar minhas entranhas e me deixar toda em fogo do grande amor do eterno. A dor era tão grande que me fazia gemer, porém, a doçura dessa dor excessiva era tal que eu não podia pensar em ficar livre dela... A dor não é corporal, mas espiritual, embora o corpo tenha sua parte e mesmo uma grande parte. É uma carícia de amor tão doce, que então acontece entre a alma e o eterno, que rogo ao eterno em sua bondade faça com que seja experimentada por quem possa pensar que estou mentindo.

Vamos ouvir agora o pesadelo, que vem traduzido no pensar de um maldito, George Bataille. Para o pesadelo a espiritualidade está marcada pelo prazer. O prazer de viver. E é esse tropismo ao prazer que leva à superação da ideia acentuada de separação, com sua culpa infindável. Mas, aqui estamos diante de um paradoxo, pois a tradição enfrenta esta pedra de tropeço, pois enquanto construção simbólica pesa sobre ela a sombra de um instrumento de tortura do qual pendeu um fundador. De todas as maneiras, mesmo sem negar a culpa, a experiência do pesadelo recupera o prazer de viver e nos leva ao êxtase, através do prazer de saborear as frutas que a vida oferece, amargas e doces.  

Ai, que longa é esta vida! Que duros estes desterros, esta cárcere, estes ferros em que a alma está metida! Só esperar a saída me causa dor lancinante, que morro porque não morro. 

É por isso que o sonho, em meio à solidão da cela, fala da liberdade do êxtase: Durante os dias em que isso acontecia, ficava meio abobada; não queria ver nem falar, mas ficar abraçada com meu sofrimento que para mim era a maior glória. Isto ocorria algumas vezes, quando o HaShem queria que me viessem estes arrebatamentos intensos, que mesmo estando entre pessoas, não podia resistir. Antes que esse sofrimento de que falo agora comece, parece que o HaShem arrebata a alma e a põe em êxtase, e assim não há lugar para dor e padecimento, porque logo vem o gozar. 

E o pesadelo, ao falar do sonho, que está presente em todos os movimentos da vida, mesmo os mais conservadores, diz que, como a proibição criou, na violência organizada dos transares, o erotismo inicial, ao proibir a transgressão organizada, por sua vez aprofundou os graus da expressão sensual. E dá como exemplos as noites dos shabats, ou da solidão das celas, onde, por exemplo, o marquês escreveu os dias de Sodoma: a única e suprema volúpia do desejo jaz na certeza de fazer o mal. Homem e mulher sabem que é no mal que se acha a volúpia.

Ai, que vida tão amarga de quem não goza a eternidade! Porque se é doce o amor, não é a esperança longa. Tira-me o eterno esta carga, mais pesada que o aço, que morro porque não morro. 

Se o prazer se liga à transgressão, como explicar o êxtase do sonho que não produz culpa? E aí é onde o pesadelo dá um show de bola, e completa aquele que vigia, quando critica o pensar da leitura. Para o pesadelo, o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal leva a errar o alvo e isso é o que chamamos de separação. E será do errar o alvo que poetas futuros falarão. Da mesma maneira, as narrações dos shabbats falam de uma procura pelo alvo errado. Mas, o poeta maldito e o sonho negam o mal e a separação, embora trabalhem com a ideia da irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. 

Só com a confiança vivo de que hei de morrer, porque morrendo, o viver assegura minha esperança. Morte do viver se alcança, no tardes, te espero, que morro porque não morro. 

O fundamento nega o caráter sagrado da atividade erótica encarada na transgressão. E os que sonham negam a negação desses fundamentos. Nessa negação, os fundamentos, com o tempo, perdem então o poder de evocar a presença demoníaca: perdem-na na medida em que o inimigo deixou de estar na base de qualquer perturbação. Hoje, os movimentos de poder estão a fazer o caminho inverso. Mas, o certo é que aqueles que sonham, aqueles que são marcados pela experiência da leitura do êxtase, deixam de acreditar no mal. Desse modo, encaminham-se para um estado de coisas em que o erotismo, deixando de ser uma separação, deixa de ser uma certeza de fazer o mal. Na experiência da vigília, somos chamados à atenção: o erotismo é pura mecânica animal. Mas, a partir dos sonhos, como aqueles de Teresa de Ávila, há um ultrapassar, sem que isso signifique voltar ao ponto de partida. 

Olha que o amor es forte, vida, não me seja molesta; olha que só me resta para ganhar-te, perder-te. Venha já a doce morte, o morrer venha ligeiro, que morro porque não morro. 

E por quê? Porque, nos explica Bataille, aquele que traduz o pesadelo, há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição nossa voltada para nós mesmos. As ações dos corpos podem, na lucidez, abrir-se à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cujos aspectos não deixarão de estar disponíveis. Veremos, então, que, por caminhos não prescritos o erotismo se reencontra. Chegamos, então, ao erotismo dos corações, ao erotismo mais ardente, quando, aparentemente, o erotismo dos corpos já sucumbiram. E voltamos aos versos nascidos no fogo do amor.

Vida, que posso eu dar de meu ao eterno, que vive em mim, se não é o perder-te a ti para melhor a ele gozar? Quero morrendo alcançá-lo, pois tanto a meu amado quero, que morro porque no morro. 

Ou como diz a canção de um poeta da Torá, o desejo é poderoso como a morte, e a paixão é forte como a sepultura. O desejo e a paixão explodem em chamas e queimam como fogo furioso. 


23.

 Ateu? Mesmo?

Karl Marx não está teoricamente morto, mas, ao contrário, seu pensamento produzirá um novo impulso no pensamento filosófico e mesmo teológico. Marx, luterano de origem judia, se preparou para ser 
professor-adjunto de Bruno Bauer em Bonn, onde este era professor de teologia. Dessa maneira, se Marx não tivesse deixado a universidade, teria sido um professor de 
teologia. Aliás, a 
teologia não estava fora do horizonte existencial de 
Marx, porque o protestantismo da região renana, que influen
ciou a região de Tréveris, cidade natal de Marx, recebeu influência pietista.

Ainda no segundo grau, Marx conheceu o pensamento pietista através dos ambientes hegelianos de Berlim e da filosofia vigente na época. Schelling, Hoelderlin e outros da mesma geração também foram marca
dos pelo pietismo. E nessa tradição situam-se o 

idealismo alemão e o Iluminismo. Assim, as posições antropológicas, éticas, filosóficas, e históricas de Marx estavam relacionadas aos problemas teológicos colocados na época. 

A partir de tal leitura, vemos que Marx apresentou soluções para problemas teológicos. Por isso, não é de admirar, que se possa descobrir posturas teológicas no pensa
mento de Marx. Uma dessas questões colocados por Marx é a doutrina do anti-Cristo, presente no 
pietismo alemão, que dava prioridade à práxis, e que Marx utilizou para se opor em primeiro lugar ao Estado luterano e posteriormente para lançar sua crítica 
contra o capital. Donde o título deste texto: Manifesto Contra-Mamon. Assim, Marx trabalhou com duas premissas, a primeira delas diz: se um cristão é capitalista; a segunda premissa é: se o capital é a bes
ta do Apocalipse, o demônio visível. Na tradição de Israel, Adonai é transcendente, donde uma divindade visível é satânica, idolátrica, não pode ser Adonai. E a conclusão é: esse cristão se encontra em con
tradição prática. 

O cristianismo da primeira premissa é 
o cristianismo existente, cotidiano, enfim, o cristianismo protestante, luterano, puritano da Europa na época de Marx. O capitalismo é igualmente o 
realmente existente, compreendido cotidianamente por 
todos. A segunda premissa apresenta o capital como Mo
loch, fetiche, o demônio visível, como desenvolvimento da doutrina do anti-Cristo pietis
ta. 

O cristão se encontraria numa contradição cla
ra, porque o exercício cotidiano da práxis no siste
ma capitalista envolveria eticamente uma ação demoníaca. E tal construção lógica é verdadeira, o cristão só tem quatro maneiras de livrar-se dela: (1) 
afirmando seu cristianismo e renunciando ao 
capitalismo; (2) afir
mando o capitalismo e renunciando ao cristianismo; (3) inven
tando uma religião fetichista, com o nome de cristã, 
modificada de tal maneira que não seja contraditória 
com o capital; e, por último, (4) interpretando de tal 
maneira o capital, a fim de que 
não apareça como contradição diante do cristianismo profético. 

As possibilidades 1 e 2 não necessitam nenhuma crítica porque solucionam a contradição objetivamen
te. Mas, com respeito à possibilidade 3, exige uma crítica da reli
gião fetichista, questão que Marx não desenvolveu in
tegralmente, mas sobre a qual deixou sugestões e que foi entendida pela tradição marxiana e não-marxiana como crítica da religião. Essa crítica da religião feti
chista é perfeitamente aceitável para uma consciência cristã autêntica, profética. Poder-se-ia dizer de Marx, o que disse Justino, no século II contra os 
grupos hegemônicos do império romano: “Daí que nos chamem também de ateus. E quando se trata desses supostos deuses [romanos] confessamos ser ateus”. 

Com respeito à possibilidade 4, Marx dedica a ela toda sua obra, especialmente O 
Capital, impossibilitando ao cristão escapar da contradição, ao mostrar que o capital é mais valia acumulada, e como mais valia é objetivação do trabalho não pago, ou seja, não se pode esconder a visão crítica da não-eticidade do capital. Mas, por outra parte, para desenvolver seu argumento, Marx mostra também que o capital procura esconder essa não-eticidade 
através da pretensão de criar o lucro a partir dele mesmo. 

Essa pretensão é interpretada 
por Marx como fetichista. O caráter fetichista do 
capital é a outra cara da interpretação econômica, po
lítica, ideológica, que oculta a essência não-ética do ca
pital: é a afirmação do capital como “Absoluto”. A 
crítica do caráter fetichista do capital é, em termos epistemológicos, uma tarefa econômico-filosófica. 
E o argumento de Marx, 
como todo argumento, parte da premissa menor “e se o capital é anti-Yeshua, o demônio visível”. 

Esse enunciado pode soar como se quiséssemos torcer o discurso de Marx para apresentá-lo como teólogo, mas, ao contrário, nos alerta para o fato de que essa 
contradição do cristão com o caráter fetichista do capital não foi ainda analisada, em termos 
filosófico e econômico, pela teologia cristã. Mas, Marx, sem dúvida, desenvolve, de maneira metafórica, o tema nos capítulos quatro e cinco de O Capital, ao utilizar expressões como fetiche, demônio e besta do Apocalipse, Moloch, Mamon filosófico-econômico e Baal. Essas metáforas produzem como resultado um discurso paralelo dentro do discurso econô
mico-filosófico central de Marx. E Dussel chama esse 
discurso paralelo de teologia metafórica 
de Marx. 

metáfora e o símbolo não produzem um novo conhecimento 
filosófico-econômico, mas abrem um horizonte teológico. Caso fossem metáforas soltas, caóticas, puramente fragmentárias, se poderia falar, no máximo, que existem metáforas teológicas na obra de Marx. Mas como as 
metáforas têm uma lógica, então pode-se falar de uma prototeologia ou de uma teologia implícita em Marx. 

Na verdade, Marx não teve a intenção de produzir uma teologia explícita e, por isso, no sentido estrito do termo, não podemos dizer que tenha sido um teólogo. Mas abriu caminho para uma teologia. Um exemplo é especialmente importante para balizar essa apreciação: nos Grundrisse, falando do dinheiro, Marx diz que 
“[O dinheiro] de sua figura de servo, que antes se apresentava como simples meio de circulação, se torna de repente soberano e Adonai do mundo das mercadorias”. Aqui Marx está se referindo ao texto do rabino Shaul, em Filipenses 2.6-7, quando diz:  “Ele, apesar de sua figura divina, não procurou ser igual a Adonai, ao contrário, alienou-se a si 
mesmo e assumiu a figura de servo”. 

Sem dúvida, Marx utiliza o Novo Testamento de 
maneira sútil e consciente. Mostra o dinheiro como o inverso do mashiah, como Anti-Yeshua. Enquanto 
Yeshua era “figura divina” que se alienou assumindo a 
“figura de servo”, o dinheiro, em movimento contrario, 
sendo “figura de servo”, se transforma em “Adonai”, em fetiche. Yeshua se humilhou, o dinheiro se exalta, se divi
niza. Trata-se de uma inversão. Essa maneira metafóri
ca de usar temas bíblicos e teológicos, obriga o leitor cristão de Marx a uma leitura oblíqua, tanto econômica e filosófica, como teológica. Só 
uma leitura aberta, que procure descobrir a lógica do 
discurso econômico-filosófico Marx, pode traduzir as significações do 
caráter fetichista do capital. 

Esse é o caminho proposto por Dussel, e que nós levantamos neste Manifesto, não somente para a compreensão do discurso metafórico, teológico implícito de Marx, mas para dizermos em alto e bom som: Contra-Mamon!  


24.

O poder e a secularização

Em 1983, o cientista político italiano Giacomo Marramao lançou Potere e secolarizzazione, em que de forma contundente trabalha a controvérsia sobre tempo pagão e tempo cristão e, como consequência, a questão das imagens do mundo e as representações do tempo.

No Brasil de hoje e, sem dúvida, no mundo da globalidade, podemos falar de uma multidimensionalidade do tempo na cultura. Ora, antes, sem dúvida, o tempo deveria ser distintamente diferente para crentes e não-crentes, mas agora com a criação e combinação dos tempos artificiais produzidos pela tecnologia, os ritmos e tempos se interpenetram.

O conceito secularização não é apenas uma metáfora, que expressa o distanciamento progressivo da esfera religiosa enquanto poder, já que seu significado semântico continua em permanente construção. Para Marramao, "a impossibilidade de reconduzir essa noção a uma concepção unitária não depende meramente, como no caso de outros termos característicos da modernidade, da sua polissemia ou polivalência semântica", mas necessita de uma "estrutural ambivalência de significado, a qual dá lugar a premissas antitéticas ou diametralmente inversas".

Assim, o paradoxo maior da secularização mostra-se enquanto conflito Igreja versus secularidade, já que a Igreja assume uma caráter burocrático e a secularidade, cada vez mais, discute, opina e legisla sobre questões religiosas. Ou seja, há ou não um interseccionalidade de valores? A igreja, e aqui estamos a falar dos evangélicos brasileiros, posa enquanto institucionalidade estatal e  a secularidade cria características religiosas.

Assim, é de se entender que a secularização, enquanto fenômeno interseccional, possui significado de afirmação e de oposição entre o espiritual e o secular. Dessa maneira, a secularização se apresenta hoje, na hipermodernidade sob três formas, o princípio da ação eletiva, o princípio da diferenciação/especialização progressiva, e o princípio da legitimação. E se falamos do princípio da ação eletiva, estamos a falar da emersão progressiva da pessoa na busca do significado do seu "eu" e da "consciência de si mesmo". Por isso, para Marramao, "este aspecto comporta um modo cultural particular de estabelecer a linha de demarcação entre subjetividade e objetividade e, portanto, de construir a realidade social."

Já o princípio da diferenciação/especialização progressiva nos mostra que quando o princípio eletivo se torna afirmativo, a adoção do critério de escolha fica em aberto. Esse critério de escolha está no âmbito da racionalidade instrumental, assim, Marramao nos dirá que "a consequência disto é a política estreitamente biunívoca que a se instaurar entre secularização e  aumento de complexidade do mundo social."

Ao analisar a politica evangélica no Brasil, dois autores traçam linhas bem demarcadas, sobre como se lançaram contra os direitos civis, democráticos, seculares. Para Benjamin Arthur Cowan, “a direita política evangélica no Brasil tornou-se presuntiva, mas foram prefiguradas durante os processos simultâneos de redemocratização nacional e de politização evangélica na década de 1970. Nesta encruzilhada, os líderes de várias denominações religiosas adotaram a linguagem de uma crise moral aguda, lançando as bases para uma direita evangélica. A própria crise moral tornou-se “nosso terreno”, o ponto de inserção dos evangélicos de direita na esfera política, e uma das várias questões-chave que dividem evangélicos reacionários e seus correligionários progressistas. Até o momento da Constituinte, a posição dos batistas e assembleianos, como vozes dos conservadores que apoiaram amplamente o regime militar e se opuseram às iniciativas de justiça social do ecumenismo de esquerda e ao comunismo, tinha sido estabelecida após anos de pronunciamentos que ligavam essas questões à crise moral.”

E para Henrique Carneiro, a formação da Assembleia de Deus por missionários suecos trouxe o que já se chamou de uma mistura do pietismo sueco com o patriarcalismo nordestino. E isso levou ao rigorismo do crente, abstinente de prazeres e austero no vestuário. E que os novos cultos pentecostais produziram um aggiornamento.

Para Carneiro, a diversidade traz as mais diversas atitudes, mas permanece a identidade comum de abstinência. Quando essa atitude se torna um lobby político com a intenção de impor à sociedade os critérios dessas igrejas estamos diante de um tipo de fundamentalismo religioso. 

O evangelicalismo descambou para a direita, constata Carneiro, ao longo do período ditatorial e pós-ditatorial, constituindo uma nova direita baseada na reação moral e cultural. 

Mas temos que ver, a partir de Marramao, que tal realidade se expressa de forma imagológica na política, fazendo com que as propostas evangélicas interseccionadas enquanto governamentais, quer no que se relaciona à pessoa, à família ou às comunidades, se entrelacem e produzam, mutações na vivencia e qualidade desses tempos. Assim, a bancada evangélica, presente hoje no Congresso brasileiro, expressa produções imagológicas de tempos, que apesar de suas volatilidades, acumulam de forma caleidoscópica mudanças no momento presente.

Em seu livro Passagem ao Ocidente, filosofia e globalização, de 2003, Marramao faz uma análise do pensamento contemporâneo e como este se debruçou sobre a investigação da globalização. Mas procura evitar a ocidentalização da abordagem, delineando uma política global.

Assim fez leituras de Fukuyama e Kojève e, consequentemente, ao fim da História e à universalidade do individualismo competitivo. Atravessa, então, o conflito de civilizações que, após o colapso do Muro de Berlim, viu o globo mergulhado num conflito intercultural mundial. E, chegou com S. Latouche, à concepção da expansão planetária de dominação da tecnologia sob o controle da razão instrumental.

Mas, para Marramao, a globalização deve ser vista como pressuposto típico da modernidade, na transição de um mundo fechado a um universo circum-navegável, que possibilita o encontro, mas também o choque de culturas, levando a sociedade a ser transformada por esse encontro diário, que se espraia a partir das megalópolis, mas que permanentemente desafia a nossa identidade.

No percurso dessa compreensão da globalidade, vai além da crise do Estado-nação, agora personificada pelo Leviatã democratizado de John Rawls. Aqui temos a reconstrução do princípio de universalidade da diferença, que se dá em esfera global, onde o mundo aparece como presença-imagem da racionalidade técnica e econômica, que influencia tudo e todos através da criação de um modelo único de sociedade e pensamento. E que, ao mesmo tempo, tira proveito da riqueza das diferenças para construir uma globalidade cosmopolita, onde todos podemos cultivar nossos politeísmo de valores.            

Mas globalidade e temporalidade estão imbricadas. E para chegar à sua construção da temporalidade da globalização, é necessário fazer a reconstrução das concepções de tempo nascidas na reflexão ocidental a partir de Platão, até chegar às discussões sobre a flecha do tempo na física. E construir uma reflexão sobre temporalidade e identidade, onde se busca os pontos de contato entre as abordagens focadas na pessoa e na sociedade.

Assim, se faz a crítica da sociedade contemporânea, onde o presente é dominado pelo movimento incessante, onde ninguém consegue saborear o presente. E se reconstrói a etimologia do tempo latino, onde são colocados o sentido interno de tempo, a síndrome temporal da pressa e a busca insana para se recuperar a posse da existência.

Donde, o tempo kairós, tão caro à escatologia judaico-cristã, se apresenta como interseção entre a realidade divergente de tempo privado e tempo público. Isto porque o tempo privado deixa de ser humano e passa a  depender de condições e variáveis que incluem desde a situação mundial às situações físicas e psíquicas, plasmando tempos esmagam pessoas e comunidades.

Dessa maneira, a síndrome da pressa, do tempo que falta, tornou-se parte do projeto moderno, numa racionalização da escatologia judaico-cristã, onde se busca o fim último do domínio da razão instrumental. Essa homogeneização, que se procura planetária, responde à síndrome da pressa repetindo, eternizando, a mesma cena neurótica, por não ser capaz de parar, considerando normal chegar sempre fora do tempo certo, tarde demais, vivendo a angústia e o trauma permanente da perda da oportunidade certa.

Michael Löwy trabalha esta questão a partir de uma leitura weberiana, o que matiza os contornos aparentemente demoníacos da presença evangélica na política brasileira. Para ele, os evangélicos são uma religião mágica, acreditam que, fazendo rituais e orações ou mesmo dando dinheiro terão seus problemas resolvidos. Mas considera que devemos reconhecer que os evangélicos, pela ética protestante, calvinista, impõem uma série de proibições aos fiéis: não podem consumir álcool, drogas, ir a prostíbulos, jogar cartas. E isso melhora a situação da família. Por outro lado, essas comunidades são conservadoras, intolerantes, fundamentalistas. E desenvolvem uma teologia que faz elogios ao capitalismo, ao neoliberalismo, ao mercado e ao consumo. 

Mas o projeto moderno está em crise, considera Marramao, e devemos olhá-lo com distanciamento. E superar Weber, já que a racionalidade instrumental é um fenômeno típico do Ocidente, que não surgiu em nenhuma outra cultura, nem mesmo na China. É com este distanciamento que devemos analisar o capitalismo, nos debruçando sobre outras culturas, humildes na certeza de que têm algo a dizer e que podem nos ensinar a escapar da sociedade contemporânea e aprender a viver no presente, debruçados sobre um presente escatológico, renunciando à idéia de que lá na frente algo bom e definitivo deve acontecer.


Ou seja, podemos, caso utilizemos critérios modernos de análise, falar em tempo da mentalidade conservadora versus tempo da mentalidade progressista. Mas tais critérios de análise, embora sejam aparentemente agradáveis e facilitadores, já não cabem na multidimensionalidade do tempo na cultura, que nos leva, a partir de Marramao, a falar de conflitualidade endêmica do mundo e, como consequência, dos dilemas que traz para a política e para a religião. 

Ou como diz Paulo Barrera Rivera, a oposição mecânica entre a efervescência religiosa e o conceito de secularização leva ao erro de negar o processo de secularização. A discussão de secularização, desencantamento do mundo e saída da religião mostram que é nas sociedades secularizadas onde se tornou possível a pluralidade religiosa. O que evidencia o enfraquecimento do poder religioso.


25.

Pensar a política ...

Política e religião não são realidades estanques, isto porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Pensamento político é a expressão de um ser político, de uma situação social. Não se pode entender o pensamento quando se subestimam as realidades sociais das quais vem o pensamento político. 

As raízes do pensamento político não podem agir com uma força igual em todo momento e em todo grupo. Um ou outro pode predominar, depende de uma situação social, grupos ou formas de dominação determinadas, pois dependem de estruturas sócio-psicológicas, da interação com a situação social objetiva. Assim, o primeiro referencial é o ser. Nesse sentido, é a partir de uma fenomenologia política, quando se analisa questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, que se pode trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político, expõe Paul Tillich, em La Décision Socialiste. E a questão do ser, presente na ontologia, leva a uma antropologia existencial. Ora, a questão existencial é traspassada pela religião, que é a dimensão da profundidade, o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano. A metáfora profundidade significa que o aspecto ontológico aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do ser humano, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano. Assim, a religião constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do ser humano. 

Nem sempre é necessário perguntar pelas raízes de um fenômeno social, mas quando a existência está sob risco, então é necessário perguntar quais são suas raízes? É necessário procurar pelas raízes do pensamento político no próprio ser humano. Sem uma imagem do humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento e do ser político. Sem uma teoria do humano, não se pode construir uma teoria das orientações políticas. Mas, o ser humano, diferente da natureza, é um ser dividido. Não importa saber onde termina a natureza e onde começa o humano, não importa que a passagem entre os dois se faça através de lentas transições ou por um salto. O importante é que em determinado momento, a diferença ficou clara. Há, no entanto, um processo vital indiviso, que desdobra a natureza sem interrogar nem requerer, um processo que está ligado àquilo que se encontra nele e faz parte do que ele é. Assim, existe um processo vital que deseja saber sobre o humano, e que coloca algumas questões para ele: já não é indiviso, mas também dividido. É idêntico a si mesmo quando diante de si mesmo, no ato de pensar e de conhecer. Mas não apenas isso. 

O ser humano tem consciência de si mesmo, ou em outras palavras, distingue-se da natureza enquanto ser que se desdobra, tornando-se ser consciente de si mesmo. A natureza ignora esta divisão. Por isso, o humano não é uma combinação de duas partes autônomas, tais como natureza e mente, ou corpo e alma, mas um só ser, porém fendido em sua unidade. Estas determinações gerais levam a algumas considerações no que se refere à pesquisa do pensamento político. Elas negam qualquer dedução do pensamento político enquanto puro movimento de pensamento, de exigências ético-religiosas, ou considerações ditadas por determinada cosmovisão. 

O pensamento político vem do ser humano enquanto unidade. Está enraizada no ser e na sua consciência, mais precisamente em sua unidade indissolúvel. É por isso que não se pode entender um sistema de pensamento político sem contextualizar seu enraizamento no ser humano enquanto ser social, ou seja, o imbricamento de pulsões e interesses, os constrangimentos e as aspirações constituintes do ser social. Mas também é impossível separar o ser de sua consciência, ou ver o pensamento político como simples subproduto do ser. Assim, a consciência estrutura todo o ser do homem, todo o ser social, em cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes mais primitivas. 

Quando se tenta desfazer laços passa-se ao largo da primeira e mais importante característica da essência humana, o que produz uma distorção no quadro geral que ele faz de si próprio, de que há uma consciência inadequada ao ser, uma falsa consciência, mas que não invalida a unidade do ser e da consciência. Isto porque, afirma, o conceito de falsa consciência não é possível quando a coisa que se designa é não conhecível. Assim, a consciência justa é uma consciência que emerge do ser e ao mesmo tempo o determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o humano é uma unidade na divisão, e desta unidade nascem as duas raízes de todo pensamento político. O ser humano se encontra enquanto realidade dada, assim como seu ambiente. Mas estar no mundo enquanto realidade significa que não vem de si mesmo, que não é sua própria origem. Conforme diz Heidegger, o humano é um ser lançado. Esta situação leva o ser humano a colocar-se o problema da fonte. O que mais tarde vai aparecer como questão filosófica. Mas tal discussão é uma construção, e o mito apresenta a primeira resposta, enquanto determinante para a discussão de conjunto. 

A origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo novo, que não existiu antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. A realidade que somos está colocada, mas também é algo próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio. Mas, a origem não nos liberta. Não se pode dizer que era e que não é mais. Constantemente somos puxados pela origem: ela nos faz emergir, nos segura firme. É ela que nos estabelece como algo, enquanto essência. Dessa maneira, ser-posto no mundo supõe caminhar para a morte. 


26.

Nossa irmã, a mãe Terra

O tema dos excluídos de bens e possibilidades sempre esteve presente no agir e pensar do atual papa Francisco. Jon Sobrino, teólogo da libertação, conta que Francisco desde a época em que era arcebispo da Arquidiocese de Buenos Aires acompanhou os processos eclesiais periféricos dando força aos padres das favelas e dos bairros marginais, e apoiando os padres que atuavam em ministérios que não eram vistos como muito dignos.

Ou seja, para ele, a ação da igreja deveria dar-se na comunidade, porque é onde as pessoas se aproximam livremente, se sentem responsáveis, descobrem e atuam nas diferentes áreas de interesse comum. Tal ação deve ter a paroquia como o ponto de partida e de chegada, pois aí estão os elementos formadores, aglutinadores e os métodos de ação. Mas essa ação tem que partir das bases, pois a comunidade tem como princípio fundamental o relacionamento primário de pessoas que se conhecem, que se estimam, se ajudam mutuamente. Por isso, nos anos 1960 e 1970 organismos católicos receberam o nome de comunidades eclesiais de base e tinham como tarefa se preocupar com os problemas cristãos e participar dos processos de autonomia da consciência cristã. Tinham a preocupação de integrar as pessoas no processo social, como direito e dever da pessoa, e de levá-la à participação consciente e crítica.

Mas para participar do processo social, as pessoas precisam de instrumentos políticos eficientes. Entre esses instrumentos estão os sindicatos, organizações de classe e os partidos. Os sindicatos e as organizações de classe devem ser órgãos de participação na defesa dos direitos das pessoas, a serviço dos trabalhadores como comunidade de trabalho que constrói a nação e não a serviço de grupos do poder. Mas, infelizmente, o Estado brasileiro sempre procurou corromper a filosofia dos sindicatos e organismos de classe, reduzindo-os a instituições de beneficência e lazer, por isso partidos de trabalhadores que correspondam às correntes de pensamento dos trabalhadores se fazem necessários. Mas partidos desse tipo deveriam estar de fato nas mãos dos trabalhadores e não serem manipulado pelas aristocracias, sejam elas operárias, sindicais, ou desejem apenas conquistar o poder em benefício próprio.

Ao lado desta realidade, nas décadas de 1970 e 1980, os grandes movimentos migratórios ocorriam em função da mecanização da agricultura e a consequente expulsão da mão de obra. Atualmente, esse movimento continua ocorrendo, porém em uma intensidade menor, devido aos programas sociais dos últimos governos, que ajudam a manter a população em suas cidades de origem. De todas as maneiras, segundo o IBGE, a região Sudeste foi a que mais perdeu população rural, cerca de 5,7 milhões, seguida pelas regiões Sul e Nordeste. O Brasil é hoje o quinto maior produtor agrícola do mundo, com produção somando cerca de US$ 100 bilhões, segundo dados do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais. 

Se estas informações parecem alvissareiras, a introdução de transgênicos na agricultura brasileira expõe nossa biodiversidade a sérios riscos, como a perda ou alteração do patrimônio genético de plantas e sementes e o aumento dramático no uso de agrotóxicos. Além disso, o uso crescente de transgênicos torna a agricultura e os agricultores reféns de poucas empresas que detêm a tecnologia, e põe em risco a saúde de agricultores e consumidores. Organizações internacionais, como Greenpeace, por exemplo, defendem um modelo de agricultura baseado na biodiversidade agrícola, que não utilize produtos tóxicos, pois só assim poderemos ter uma agricultura saudável a longo prazo. 

Tanto a questão dos excluídos de bens e necessidades, como a questão da terra, que estão intimamente ligados, são temas que nos remetem à questão do reino. Muitos, porém, dirão que essas questões não têm nada a ver como o reino. E outros dirão: esta é uma compreensão espúria do reino. Só se decide o poder que tem um conceito de estruturar e de reestruturar o real quando ele mesmo já é esta realidade. 

E é a esta decisão que submetemos os conceitos do reino, quando anunciamos o risco e pedimos ajuda àqueles que querem conosco se lançar sobre aquilo que vem, sem tentar fugir da realidade presente. Mas por que falar de reino como risco? Porque o reino é vivo, e tem força para se projetar por ele próprio sem se perder. E porque o reino tem a vitalidade suficiente para ser o fundamento, a força e o objeto de uma transformação do presente orientada para o futuro. 

Nesse sentido, é bom importante voltar ao papa Francisco, que em sua primeira carta circular aos católicos desde que iniciou seu pontificado, no dia 24 de maio de 2013, criticou o uso dos transgênicos por seus impactos agrários, sociais e econômicos, e falou da necessidade de um debate amplo sobre o tema, que não se limite à esfera científica.
 
Sua encíclica, Laudato si, “Louvado sejas”, em italiano antigo, faz referência ao título de um cântico de são Francisco de Assis que diz: “louvado sejas, meu Deus, pela irmã nossa Mãe Terra, a qual nos sustenta, nos governa e produz diversos frutos com coloridas flores e ervas”. É a primeira encíclica na história dedicada à situação ambiental e à reflexão sobre a casa comum da humanidade, o nosso planeta. O documento reconhece a falta de comprovação contundente sobre os danos que os transgênicos podem causar aos seres humanos, mas destaca que existem problemas importantes que não devem ser relativizados.
 
“Em muitos lugares, após a introdução desses cultivos, se constata uma concentração de terras produtivas nas mãos de alguns poucos, devido à progressiva desaparição dos pequenos produtores, obrigados deixar a produção direta, como consequência da perda das terras exploradas”, afirma a encíclica.

Laudate sí protesta e nos remete à força do reino como intervenção real no pensar e agir social, pois aqueles que têm o reino como objetivo devem ter como práxis a indissolúvel aliança interior que coloca na espiritualidade o sentido da existência, de uma existência, muitas vezes, espoliada de sentido. Uma espiritualidade assim fundada tem suas raízes num conhecimento muito mais profundo do que aquele enraizado no dogma. Mas, esta fé unida à ação e à decisão é ela própria um risco.

A emunah na força do reino está enraizada no fato de ser percebida incondicionalmente naquilo que o reino é. Eis porque todos os conceitos últimos nos quais o reino tem depositado seu sentido são símbolos e não representações demonstráveis. As possibilidades de uma sociedade justa, livre e pacífica são símbolos do reino. Alguns desses conceitos vão além daquilo que enunciam. O conteúdo de um conceito muda e deve mudar com a situação cultural e espiritual onde está sendo aplicado. Aquilo que é visto como um fim, inacessível, não muda nunca. E se não muda, esclerosa. Por isso, a idéia de reino implica na idéia de espiritualidade, mas não podemos dissolver a comunidade local e o cristianismo no reino. Mas, também não podemos, ao contrário, em nome da comunidade local e do cristianismo negar a realidade do reino.

Ora, o reino deve então nos levar a compreender a comunidade e o cristianismo de maneira nova e concreta, pois um movimento que não tem a profundidade necessária para apresentar uma resposta à questão do sentido da vida não poderá obter um sim incondicional. O reino pode apresentar uma resposta se trabalhamos para que essa resposta não se torne prisioneira do provisório, mas direcione ao que é fundamental. Dessa maneira, em lugar de falar de justiça, de liberdade ou de paz, pode-se falar da exigência de uma sociedade onde será possível a cada pessoa e a cada grupo satisfazer o sentido da vida. A questão do sentido da vida se faz presente em todas as esferas da sociedade, principalmente, em política, àqueles que estão excluídos. É a questão mais profunda e ao mesmo tempo a mais global: todos estão inseridos nela. E nesse caminhar, Laudate sí é um alerta a ser levado em conta.


27.

A escolha é uma liberdade

O livre arbítrio é um princípio do judaísmo desde a construção dos textos antigos. Assim, Deuteronômio nos diz e você vai praticar o que é certo e bom aos olhos de Eterno, para alcançar a felicidade.  Tal princípio é uma idéia-chave na tradição judaica, um pilar da Torá e está presente nos trabalhos do exegeta judeu Moisés Maimônides -- Mishnah torah hilkhote teshuvah 5.3.

Na verdade, é a pedra angular de todos as correntes judaicas, pois compreende que o Eterno deu essa liberdade ao ser humano quando o criou, fornecendo a ele o poder de saber escolher entre o certo e o errado. Confiante na sua criatura, Ele espera que o ser humano naturalmente escolha o bem, ou como diz Eclesiastes, "o Eterno criou o homem certo" (7.29). Mas se em relação a toda a criação, o Eterno disse ki tov -- porque é bom – em relação ao humano omitiu tal afirmação. Esta omissão atesta a idéia de que o humano tem em si a possibilidade de escolha de fazer o bem ou o mal, e de reparar os erros cometidos, por ato de desejo intenso, e assim se livre dos grilhões que impedem o seu ser de crescimento, ao fazer dele escravo de sua própria natureza. O conceito de teshuvá, de voltar para o que você deve ser e para o Eterno, traduz esse princípio judaico.

Mas se o ímpio se converter de todos os alvos errados que cometeu... praticar a lei e virtude, viverá. E Simeão ben Zoma diz: quem é forte? aquele que domina suas paixões? Quem domina suas paixões supera o guerreiro que domina uma cidade. (Provérbios 16.32 e A ética dos Pais 4.1).

Assim, o Eterno sabendo que Abel corria perigo, após a recusa de ofertar como Caim, apelou para a consciência do irmão mais velho. Se você fizer o melhor, o bem vai até você, se hata'ah jaz à sua porta, ele deseja a chegar até você, mas você, deve saber dominá-lo (Gênesis 4.7).

De acordo com Maimônides, "dois caminhos se encontram nas mãos do homem e ele é livre para ir aonde ele quer, nada impede, nem homens nem anjos". E o Gaone Vilna explica que o livre-arbítrio implica exceder nossa natureza, o que é possível na contínua luta entre forças opostas. E tal idéia está explícita quando o Eterno nos diz "Eu dou hoje uma bênção e uma maldição" (Deuteronômio 11.15). Um primeiro nível de conhecimento do bem e do mal está no coração humano e o leva à sabedoria, onde saber distinguir entre o bem e o mal se torna o prêmio no conhecimento iluminado pelo Eterno.

Mas não nos enganemos. A moralidade não é escolher entre o bem e o mal. Todo mundo decide ser bom, mesmo as pessoas que são más e desprovidas de sentido moral. Hitler tinha concluído que os judeus eram os inimigos da humanidade e, portanto, em sua mente, pensando assim fazia o que era bom. Mas, na verdade, o livre arbítrio é a escolha entre a vida e a morte. Como está escrito na Torá, "Eu pus diante de ti a vida a morte... Escolhe a vida e viverás, então, tu e tua descendência". (Deuteronômio 30.19)

Mas os sábios judeus se fizeram uma pergunta, o humano é completamente livre em seus pensamentos, palavras e ações? Ele pode reivindicar a conquista da felicidade perfeita? Não! Ele está sujeito, por um lado, às restrições internas adquiridas pela educação e ditados pelo subconsciente escravizado por necessidades triviais, e em segundo lugar, pelas normas impostas pelo ambiente. Por isso, livre arbítrio é uma chamado para que ele domine suas forças internas e impulsos.
 
E na sequência perguntaram: quais os limites do livre-arbítrio? E porque o Eterno não intervém para por fim à iniquidade e parece indiferente à dor humana? "Por que você me deixa ver a iniquidade, e porque testemunha à injustiça?" (Habacuque 1.3). E a ética dos Pais 3.15 diz: "Quando violamos a justiça humana em face do Altíssimo, quando o é mal feito para o homem no seu pleito, o HaShem não vê isso? Quem vai dizer que algo acontece sem que o HaShem ordene? Não é a vontade do Altíssimo fazer surgir o mal e o bem?"

Como a vontade divina, que gera a história deste mundo, está conciliada com a idéia do livre arbítrio? E mais uma vez a Ética do Pais nos orienta: "O mundo é julgado com benevolência e tudo depende da maioria das obras" (3.15). Ou seja, se a liberdade de ação dos seres humanos parece absoluta, a escolha a preferir a vida à morte, de fato, nos é ordenada pelo Eterno: escolha a vida.

Assim, as questões éticas no judaísmo repousam menos sobre a questão do determinismo, ou como o filósofo judeu Yitzchak ben Yehuda Abravanel esclarece, apoia-se em um caminho que conduz à melhoria do ser humano. Toda a bondade e a perfeição do ser humano repousam sobre o livre-arbítrio e sua habilidade sincera em reparar a falha cometida. A culpa de Caim, depois que matou seu irmão Abel, reside na sua recusa em aceitar a oportunidade oferecida pelo eterno, de arrependimento, de reconhecimento do erro e confessar, de acordo com o princípio do livre arbítrio, a sua responsabilidade. Caim, sujeito à sua natureza cruel, ao contrário, levanta a questão: sou eu o guarda do meu irmão?

Paradoxalmente, a perfeição, longe de ser o resultado de uma vida sem falhas, é sim uma expressão do poder do livre-arbítrio para distinguir o certo do errado. "Dependo do Eterno, exceto do medo do Eterno" (O tratado das bênçãos, Bérakhote 33). "O homem foi criado apenas para deleitar-se com o Eterno e apreciar o esplendor da sua presença", disse o sábio Chaim Luzzatto, em sua Méssilate Yesharim. Na verdade, escravo é aquele que, privado de toda a liberdade de pensamento, está proibido de ação autônoma.

Vejamos um exemplo, o faraó, negou o conhecimento primeiro, ignorou essa tselem Elohim, a imagem de haShem nos filhos de Israel e no humano em sua dimensão universal, por isso foi punido, perdendo o direito ao livre-arbítrio. Gênesis 1.26. Isto se dá porque nas primeiras cinco pragas do Egito, o Eterno diz claramente ao faraó que ainda há tempo para libertar os filhos de Israel. Mas foi em vão, porque o faraó endureceu o seu coração. E no correr das outras cinco pragas, faraó se torna escravo de si mesmo. "Meu rio é meu, sou eu que me fiz". Ele afasta de si a sua própria consciência e não retorna a ela. Nega sua imago Dei, rechaça sua consciência, faz sua opção pelo mal... E esta realidade é traduzida com a expressão, o eterno endureceu o coração de faraó.

Onde o homem decide ir, o eterno o conduz. Ele paga a cada um segundo os seus caminhos e de acordo com o mérito de suas obras, conforme nos diz o profeta Jeremias (32.19). Assim, os filhos de Israel provaram sua maturidade e mostraram sua grandeza ao firmar a decisão de deixar a escravidão. Esse é o ponto de referência. E no seu livre-arbítrio, tomaram para si um cordeiro, e o sangue foi um sinal para todo o povo. Dessa maneira, o eterno nunca impõe aos seres humanos a liberdade; eles têm a responsabilidade de aceita-la e impô-la. O Eterno elege aqueles que optam por agir como serres humanos livres.

E como conclusão, recorremos a Maimônides, quando diz que o homem tem o poder absoluto para agir naturalmente por seu livre arbítrio e sua vontade (Guia dos Perplexos 3.17). E porque a felicidade decorre do esforço humano (A ética dos Pais), o livre-arbítrio é o esforço que só os seres humanos são capazes de fazer e que lhes permite distinguir a vida da morte. 

Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em política uns aos outros com espírito de fraternidade.


28.

Eterno, eternamente

A eternidade é o estado do eterno diferente do tempo duração com alterações e sucessão de momentos. A eternidade é duração sem sucessões, nela não há alienação. A eternidade especializa a existência.

Para os relatos das origens nos textos antigos da tradição judaica, o humano, construído à imagem e semelhança do eterno é síntese e projeção das forças da criação. E ao ter livre-arbítrio, um atributo da eternidade, tal imagem e semelhança se apresenta enquanto arquétipo conceitual e faz dele humano primordial.

hadam kadmon é uma expressão que traduz a idéia de humano primordial. Faz parte da compreensão de que aquele hadam era matrix, e nele estavam presentes os moveres originais da criação. Assim, hadam kadmon é diferente do hadam ha-rishon, o primeiro. Em hadam kadmon estava a consciência, a-vida, presente a partir daí na espécie. Estes moveres originais de hadam kadmon são os atributos ostensivos que a eternidade deu ao humano, ser coroa da criação, ter vontade específica e atuar no plano da criação a fim de construir seu destino.

A leitura dos textos antigos da tradição judaica não tem como função ou meta a compreensão científica do mundo físico, mas a construção da consciência. Dessa maneira, a revelação do Eterno ao ser humano, através dos textos antigos da tradição judaica, não é de como funciona o mundo e sua realidade, mas como devemos, enquanto pessoas e comunidades, colocar-nos sob missão do Eterno.

Os códigos culturais e de linguagem hoje são diferentes daqueles das épocas onde os relatos das origens surgiram. Assim, a melhor aproximação é  analisarmos os relatos das origens nos textos antigos da tradição judaica em comparação com os relatos e tradições presentes nas culturas antigas das épocas referidas.

Existe uma leitura humana de seus relatos arquetípicos, onde se considera as metáforas das suas tradições religiosas como fatos. E como os relatos arquetípicos fundamentam a cultura e a linguagem, passamos a ter então culturas e linguagens que demonizam e segregam pessoas, grupos de pessoas, segundo a origem nacional, raça-etnia, religião e sexo, entre outros características. 

Uma dessas grandes metáforas é a de hawa, que conhecemos como Eva. E a metáfora hawa traduz os encontros e desencontros de hebreus e povos palestinos nos séculos que antecederam à era comum. E mais tarde, os primeiros cristãos deram sequência a este movimento quando viveram, eles também, encontros e desencontros com as religiões de mistério do mundo greco-romana, com seus cultos à mãe-terra. 

O primeiro cristianismo, que surgiu como facção do judaísmo, por questões de inserção e sobrevivência absorveu elementos da cultura e linguagem do mundo helênico. Estes cultos greco-romanos se inseriam em contextos religiosos e sociais muito antigos e, entre outros elementos, exprimiam a veneração da cor vermelha associada ao sangue menstrual. Na mitologia grega, a mãe dos deuses, Reia, Cibele para os romanos, traduzia a veneração ao próprio conceito de reia, que significa terra ou fluxo. Assim, dentro desta compreensão arquetípica, o humano fora formado a partir do barro vermelho.

A identidade da religião com a mãe-terra, a fertilidade, a origem da vida, aparece enquanto santidade da terra. Assim, ao formar o humano, nas leituras sincréticas cristãs a eternidade parte do vermelho da terra e sopra a vida no corpo formado. A eternidade não é corpo, não está presente na forma, mas a mãe-terra está dentro e, também, na totalidade do mundo existente. O corpo de cada um, de cada uma, então, seria feito do corpo dela. Nessas leituras arquetípicas dá-se o reconhecimento da identidade universal de todos humanos.

No capítulo um do livro das origens, macho e fêmea são criados à imagem do eterno. Algumas interpretações rabínicas consideram esta primeira criação um andrógino, porque a eternidade criou o humano à sua imagem, macho e fêmea. Na maioria das traduções ocidentais lemos que "o eterno criou o homem à sua imagem, à imagem do eterno o criou; ele criou homem e mulher (Gênesis 1:27). De fato, no texto hebraico a passagem está no plural: o eterno criou da-terra à sua imagem, no sentido genérico de humano. Em seguida, o texto diz macho e fêmea foram criados. Não temos aí os pronomes próprios hadam/Adão e hawa/Eva, mas macho e fêmea.

Só no texto seguinte, no segundo capítulo do livro das origens, outro relato da criação, é que hawa, que tem vida, aparece. E a metáfora se fez relato factual, histórico, que ganhou força no judaísmo e, posteriormente, entre cristãos e muçulmanos. Assim, a metáfora arquetípica, lida a partir de hermenêuticas patriarcais, no correr dos últimos dois mil anos transformou-se em fato fundante das culturas monoteístas. E hawa passou a ser um pedaço de hadam. 

“Então o haShem Adonai fez cair um sono pesado sobre hadam, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar. E da costela que o haShem Adonai tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a hadam. E disse hadam: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada. Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma só carne”. (Gênesis 2: 21-24). 

Os estudos da psiquê, desenvolvidos a partir do século vinte, trabalham com a idéia de que a humanidade, em certa medida, guarda em seu psiquismo os arquétipos das origens enquanto espécie. E as metáforas das origens e de seus desdobramentos calam fundo nas emoções e percepções humanas de forma aparentemente instintiva. E todos entendemos o recado, o ser humano paga um preço ao optar por construir sua liberdade. Nesse sentido, hadam e hawa representam a condição humana, são arquétipos de nossa força e fraqueza enquanto humanos, seduzidos sempre por fatores aparentemente externos, como o desejo da conquista do mundo, do poder e do sexo, que nos seduzem de forma paradoxal, tanto para a expansão de limites, o que seria um bem, como para a limitação de nossas possibilidades, o que seria um mal.

Théodore Monod disse que não somos meio termo, mas complemento. Não somos cinza, mas preto e branco. Na verdade, os escritos judaicos da Era Comum nos dizem que o Eterno construiu o ser humano e, em seguida, retirou-se para que este humano pudesse ocupar com liberdade o seu lugar. Dessa forma, o ser humano é autônomo por natureza, tem livre-arbítrio e, portanto, responsabilidade. 

Os escritos judaicos, entregues no caminhar da diáspora, entendem que o Eterno aposta na perfectibilidade do ser humano. A criação, vista dessa forma, não está completa, o ser humano continua a criação. Por isso, a construção da espiritualidade é a chave para o futuro humano. É o que leva à criação perfeita. Textos, como os da Cabala, quando falam do acesso ao mundo da ruach, perguntam: Você se tornou o que você é? 

O ser humano é criador de si mesmo. Sua vida é uma viagem com a finalidade do tornar-se. Ele deve saltar do conhece a ti mesmo para tornar-se quem ele é e descobrir para que serve. É a viagem que leva à perfeição, e a liberdade é uma viagem dentro de si mesmo, que deve ser realizada através do corte da pedra, símbolo do ser humano, do material em direção ao espiritual. 

O caminho religioso não pode estar separado da reforma radical e permanente do espírito humano, já que o sentido do renascimento promissor e a revolução permanente do espírito são desafios universais. Ambos negam todo dogmatismo totalitário que confronta o pensamento livre. 

Duas noções fundamentais, a do ser e a do devir, estão intimamente ligadas às ideias de caminho religioso e revolução permanente do espírito. Só o eterno é único. Na tradição judaica, quando falamos "ser" estamos a falar do eterno. Mas os humanos caminham no sentido de se tornarem ser. Precisam caminhar sua viagem, simbólica, do material e religioso em direção ao espiritual, a fim de integrar, interiorizar a simplicidade sublime do Ser Eterno. É nesse sentido que o caminhar deve gerar harmonia, paz que leva à coexistência de progresso e tradição. 

Nesse sentido, a comunidade religiosa, enquanto associação de grupo, não deve ser obstáculo para o caminho espiritual, ao contrário, compreendido o conceito de comunidade, de estar junto para repartir o pão, tal comunhão não deve desenvolver ambição, orgulho ou reflexo xenófobo, mas abertura para o mundo. Seu significado não é excluir a fraternidade, mas estendê-la da comunidade em direção a todos os humanos. O objetivo é difícil, mas não há esperança se não perseveramos em direção ao sucesso.
 
Aprender a liberdade é o primeiro momento dessa construção, comemorada na Páscoa, enquanto caminhar em esperança. Caminhamos em direção ao outro e para cima. Esta tradição foi transmitida aos judeus pela Torá, e está presente nos 613 mandamentos, em que se baseiam a coesão da comunidade judaica. 

O caminhar associado a revolução permanente do espírito deve levar a uma espiritualidade sem dogmas. É um caminhar baseado na fraternidade universal. Donde, tradição e progresso pode fazer sentido na existência do humano, enquanto elo da cadeia da vida. 

Nesse caminhar descobrimos, conforme nos foi revelado, que o Eterno é  impensável, incognoscível, impenetrável, mas presente no universo em todos os seus planos. O Eterno não pode ser nomeado. A única designação autêntica é precisamente a rejeição de qualquer definição é ein Sof, aquele que não tem fim, Eterno. O espírito absoluto é essência por si só. O Eterno é o único, única manifestação visível do invisível. Mas a harmonia universal resulta da complementaridade dos opostos. A vida é um ponto na eternidade. 

Em sua carta aos Romanos (5.12), o querido rabino Shaul, o rabino Shaul dos cristãos, explicita esse processo de construção do humano ao afirmar que a hamartia entrou na vida humana por um primeiro e com a hamartia, a consciência da morte. Ora, hamartia era uma expressão militar dos gregos que se referia ao ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Shaul utiliza a expressão no sentido de que vivemos sempre sob a possibilidade de errar os alvos existenciais. Por isso, a compreensão de hamartia está sempre ligada à ausência, separação, alienação, já que implica em distanciamento do objetivo existencial. 

Errar o alvo, ou seja, hamartia ou peccatu, reforça este estado da existência, que chamamos alienação, e nos leva à origem da consciência humana. E Shaul fala, então, da consciência matricial da morte. Para o apóstolo, o estado de ausência, separação e alienação na existência produz esta consciência matricial, a consciência da morte. 

A partir da consciência da morte temos a consciência do divino, a consciência da diversidade, já que não somos bichos e, por extensão, não somos apenas natureza, a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que coisas e ações podem ser boas ou não. Dessa maneira, hamartia implica em consequências: necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência, e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.

Devemos ser, todos nós humanos, aqueles que esperam pelo mundo do espírito. O amor é a chave para a vida, mas a morte a passagem esperada. Amar uns aos outros é reconhecer a centelha divina dentro do outro, e ajudá-lo a entender e a exaltar o sentido pleno da vida. Mas a passagem esperada, para que seja em paz precisa do amor vivido.

Nesse sentido, o amor permite reconhecer a dignidade do humano. Semeia as sementes da revolta contra a injustiça e a opressão, inclusive religiosa. Reconhece o fato de que o sofrimento é um desequilíbrio do mundo. Mas, temos consciência, de que o amor não pode ser rebaixado, enquanto concepção que degrada a dignidade do ser humano. Ou seja, amar uns aos outros, não é fé, não é destino, é ato de encontrar o entusiasmo da partilha com todos e todas.

É isso aí. O judaísmo permanece presente na construção do pensamento ocidental, leigo e religioso.


29.

Gramsci e Tillich

 “A democracia não acredita na harmonia natural, mas crê possível submeter a natureza à razão. Ela crê numa harmonia metafísica, que se instaura necessariamente do processo histórico”. Paul Tillich, “Écrits contre les nazis”.

Quando pensamos no Brasil, e por extensão na América Latina, nos vemos obrigados a pensar a teologia como alavanca para transformações que confrontem as estruturas de classe que mantêm o status quo da mundialização do capitalismo, gerador de vítimas e de excluídos de bens e direitos. Dessa maneira, entendemos a teologia como geradora de ações culturais, políticas e sociais, desencadeadas pela comunidade de fé, consciente e crítica, com vistas à transformação radical, a fim de produzir mudanças estruturais no regime e construir uma nova ordem social tanto brasileira, como latino-americana. A teologia tem, dessa maneira, como parceira organizações não-eclesiásticas, partidos e organismos de classe de trabalhadores e solidários. E tais ações fazem da teologia práxis que leva o cristianismo para além da comunidade de fé, que a faz confrontar desigualdades, exploração e miséria. Tal teologia terá de confrontar e enfrentar, assim, a oposição dos inimigos da justiça, paz e alegria do povo. 

Por isso, este diálogo entre Antonio Gramsci e Paul Tillich ganha importância, pois possibilita caminhar para a teologia pública brasileira e latino-americana que, levando em conta as assimetrias, mas também as aproximações do pensar político dos dois pensadores, a fim de construir uma teologia da práxis, social e libertária.  

Gramsci e Tillich têm muito em comum. Ambos foram militantes políticos e fundamentaram parte de suas concepções em Karl Marx. Por isso, consideramos importante ver que aproximações e assimetrias existem em suas elaborações teóricas. Cristianismo, democracia, e vida são temas que atravessam seus estudos, e que aqui vamos confrontar. Desejamos, dessa maneira, acrescentar elementos novos numa discussão cada vez mais acirrada em nossa América Latina: ainda é possível a construção de regimes que favoreçam a plenitude do sentido da vida?

Nos últimos anos, como fruto da crise da esquerda mundial, mas também como fruto da instalação de governos nacionalistas no continente, renasceu a busca pela reflexão de pensadores marxianos. Assim, em várias universidades brasileiras, Antonio Gramsci, por exemplo, passou a ser estudado como nunca fora antes.

Ora, a busca pelo pensamento de Gramsci situa-se nesse contexto de garimpagem do marxismo marginal, dito também não-ortodoxo. Aqui, nos interessa pensar Gramsci em correlação com um filósofo, nada ortodoxo, Paul Tillich. Aliás, o pensamento social de Tillich é praticamente desconhecido no Brasil, apesar de ter trabalhado quase duas décadas sobre questões políticas analisadas a partir do que ele chamou de socialismo religioso.

Gostaríamos de começar essa discussão com uma idéia exposta por Tillich, de que a busca pelo sentido pleno de vida, que ele vai chamar de socialismo, traduz um anseio que brota da consciência crítica, transformadora, num mundo autônomo e racional. Assim, tal substância profética, ou seja, a consciência crítica e transformadora, se exprime na práxis e, por isso, a relação entre profecia e racionalidade é essencial. 

Como a linguagem tillichiana é teológica, ao lê-lo nos vemos na obrigação de traduzi-lo. Assim, o que significariam as expressões profético e profecia? Tillich parte de uma compreensão peculiar do profetismo vétero-testamentário. Vê nele, tanto um clamor, como uma ação, um movimento em prol da justiça, da paz e da alegria, que dariam conteúdo, seriam a essência da religião de Israel e, por extensão, do cristianismo e da Reforma protestante. Por isso, movimento profético é práxis de crítica social, que na modernidade levou à racionalidade da autonomia. Mas, para Tillich, justiça, paz e alegria, ou seja, socialismo, implica em correlação permanente e necessária entre consciência crítica e racionalidade na autonomia. Assim colocada a questão, vemos que Tillich se afasta das correntes socialistas que repousam exclusivamente no racionalismo, em especial do bolchevismo, como daquelas correntes que veem a possibilidade de uma expansão crescente da autonomia, via democracia. É essa preocupação de Tillich em correlacionar razão e autonomia que possibilita esse diálogo crítico com Gramsci.  

De Gramsci podemos dizer que recriou a linguagem da tradição marxiana e codificou teoricamente seus conceitos, ao falar de estado regulado, filosofia da práxis, grupo social, hegemonia, sociedade civil, estado ampliado, intelectual orgânico e moderno Príncipe. Mas, neste texto, nos interessa analisar suas idéias sobre o cristianismo, o intelectual e a democracia.

Marx partiu do fato de que o pensamento judaico/cristão torna o ser humano estranho a si mesmo e desdobra o mundo em um mundo imaginário. Por isso, considerava que o trabalho do teórico consiste em dissolver o imaginário judaico/cristão em sua base terrena. Vai dizer, então, que Feuerbach não percebe que, findo o trabalho da crítica da herança judaico/cristã, o principal ainda está por fazer. O fato de que a base terrena se separe de si mesma e se estabeleça nas nuvens, como reino independente, só pode ser explicado pela dissociação interna e pela contradição dessa base terrena consigo mesma.

O que deve, portanto, ser feito antes de qualquer coisa é compreendê-la em sua contradição e depois remover essa contradição. Assim, por exemplo, após descobrir que a família terrena é o segredo da Sagrada Família, é a família terrena que deve ser criticada teoricamente e revolucionada. Marx explica a fé cristã por meio das contradições da sociedade humana e de suas dissociações, que induzem o ser humano a projetar fora do mundo, em um paraíso, a realidade na qual desejaria viver. Mas como afirma Lucio Lombardo Radice, na quarta tese sobre Feuerbach, Marx afirma de modo explícito que a forma judaico/cristã reflete um conteúdo histórico. Por estar impotente, o ser humano imagina uma potência divina, por estar abandonado cria uma providência. 

Gramsci verá o pensamento de Marx como herdeiro de dois movimentos culturais, a Reforma protestante e a Revolução francesa. Ou como nos diz Hugues Portelli, a filosofia da práxis pressupõe um passado cultural, o Renascimento, a Reforma, a filosofia alemã, a revolução francesa, o liberalismo laico e o historicismo. Ou seja, a filosofia da práxis é o coroamento do movimento de reforma intelectual e moral e por isso está imbricada à Reforma protestante e a Revolução francesa. 

Marx pode, então, ser entendido como desenvolvimento que se dá a partir de três correntes da Reforma protestante: a luterana que legou Hegel, a calvinista que legou Ricardo e a economia clássica, e a huguenote que criou o jacobinismo. A estas fontes originais, Gramsci bebeu da tradição cultural italiana, principalmente de Maquiavel, e também de Croce que deu continuidade ao historicismo alemão.

Dessa forma, para Gramsci, a Reforma foi não somente uma reforma ao nível da economia, filosofia e política, mas também uma revolução cultural, no sentido de que procurou forjar uma nova humanidade. Para Gramsci a consciência religiosa cristã, que se traduziu em revolução cultural no século XVI, teve um caráter de suma importância na construção do pensamento contemporâneo. Ou, nas suas palavras, a partir do rústico intelectual da Reforma, e está falando de Lutero, passando pela filosofia clássica alemã e pelo vasto movimento cultural nasceu o mundo moderno.

Podemos dizer que Gramsci, no que se refere ao cristianismo, faz uma ponte entre Émile Durkheim e Max Weber. Durkheim considera a religião a partir da idéia de vínculo social. A religião constituiria uma comunidade moral na os adeptos comungam um mesmo ideal. A palavra chave aí é solidariedade. E a solidariedade leva a uma memória coletiva, que organiza lembranças, ritualiza a crença. Os estudos de Durkheim sobre as sociedades têm o intuito de dar rumo a sua análise na qual a divisão do trabalho foi anteriormente sua preocupação central. Mais tarde, o diálogo com a antropologia será privilegiado e o universo da religião será pensado como consciência coletiva, abordagem que ele estende ao entendimento da nação, enquanto todo no qual os indivíduos partilham a mesma memória coletiva. 

Weber trabalha em sentido diferente. O cristianismo é instituição, é igreja, que atua como empresa de salvação das almas. É necessário, então, conhecer os meandros de sua doutrina, a organização de seu clero e a disputa entre visões e interesses distintos no quadro das crenças religiosas. Daí a atenção que dá ao pensamento divergente, as rupturas no interior de uma mesma ordem ideológica, e sua política com o poder de Estado. 

Assim, Durkheim busca o que une e Weber realça o que separa. Mas Gramsci está interessado nas duas dimensões, no que une e no que divide. O cristianismo, para ele, é uma concepção de mundo que elabora versões sobre a realidade, o que possibilita aos fiéis atuar segundo determinada ética, mas também os une no interior da mesma comunidade. Essa idéia atravessa as páginas dos Cadernos do cárcere, sintetizada na afirmação de que o catolicismo é o intelectual orgânico da Idade Média.

Partindo de uma leitura do contexto europeu medieval, Gramsci estudou o papel dos intelectuais católicos: seu cosmopolitismo, incentivado pelo poder de Roma, em política à fragmentação do poder feudal e sua intolerância diante do pensamento divergente que ameaça a unidade da Igreja. Mas, na qualidade de orgânico, o catolicismo funcionaria como cimento cultural entre diferentes setores de uma sociedade hierárquica. Assim, o catolicismo integra o que se encontra separado por lutas de interesses e discordâncias doutrinárias. O catolicismo, no entanto, é parte de uma superestrutura mais ampla, a ideologia. É uma cosmovisão, tem valor cognitivo, interpreta o mundo ético, orienta a ação, e constrói uma moral que baliza a solidariedade dos fiéis. As ideologias possuem potencialidades diferentes destas, por isso Gramsci faz distinção entre filosofia e cristianismo católico, e entre cristianismo católico e senso comum, mas, ainda assim, todas as ideologias podem ser pensadas a partir dessa mesma matriz teórica.

Dessa maneira, as análises de Gramsci rompem com a tradição marxiana, já que a ideologia, mas do que falsa consciência é entendida como elemento cognitivo, concepção de mundo que brota da vida social. Para ele, como concepção de mundo, o cristianismo não seria alienante, mas deve ser entendido como ideologia presente na história. Exemplo disso foi o catolicismo, que possuía valor positivo, era orgânico, e construiu vínculo social entre as classes e os grupos sociais. Mas, no correr da Idade Média perdeu essa positividade, ao perder sua função de solidariedade, e passou a atuar como força reativa diante das mudanças.
 
E se Gramsci se mantém marxiano no que se refere à crítica da transcendência e, por extensão, da natureza humana, a conclusão que se impõe é que não há sociedade sem ideologia. Gramsci prepara, assim, o caminho para outros teóricos do pensamento marxiano, como Althusser e seu "animal ideológico", e Lévi-Strauss e seu "animal simbólico".

Mas Tillich teve uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê o movimento de massas em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Há uma divergência entre os dois pensadores: a crítica intelectual não se limita ao intelectual orgânico, é um processo maior que gera a massa orgânica, com dupla ação: de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite. 

Na perspectiva tillichiana, a passagem da heteronomia à autonomia se deu através de ciclos que atravessaram épocas. Assim, os movimentos dinâmicos das massas estão presentes nos movimentos religiosos do jovem cristianismo, no movimento político da migração dos povos, no movimento religioso da Reforma, no movimento anabatista e no movimento solidário. Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, estão presentes em diferentes esferas da cultura, mas sempre como movimentos de liberdade: as massas dinâmicas são parteiras de escravos, de povos, de trabalhadores.

Por isso, segundo Tillich, não podemos ver o pensamento de Marx como algo que já se esgotou, se nos propomos a fazer a crítica consciente e transformadora, pois a justiça não é justificativa ideológica das democracias, nem idealismo progressivo ou sistema de harmonia autônoma. A busca incondicional da justiça dentro do espírito da crítica profética e com os métodos do marxismo transcende o mundo. Mas até que ponto a metodologia marxiana e uma conquista do poder político poderiam dar sentido à vida? Só se a busca incondicional da justiça levar em conta que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano.

O teólogo da vida deve entender que as forças demoníacas da injustiça e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica. Precisa compreender que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano. Por isso, explica Tillich, como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista. 

Por isso, a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida. De todas as maneiras, para Tillich e para Gramsci há uma busca comum de respostas entre aquele que encarna o espírito crítico e a ação consciente do intelectual orgânico. Ou como diz Gramsci, se a política entre intelectuais e povo, dirigentes e dirigidos, governantes e governados, é dada por adesão orgânica, onde a paixão torna-se compreensão e saber, é  então que a política se faz representação. E aí se produz o intercâmbio de elementos entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes. E é aí onde se realiza a vida social. Cria-se então o bloco histórico.

Para Gramsci, o intelectual quando representa determinada comunidade têm função superestrutural, ou seja, cultural, mas, apesar de sua organicidade, precisa exercer autonomia em política às pressões sociais que sofre. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder. 

A partir de Tillich e Gramsci podemos dizer que o princípio da crítica intelectual é expressão humana e verbal do incondicionado, e resgata a tradição do profetismo bíblico, que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética. O profetismo era ao mesmo tempo revolucionário, mesmo quando voltado para o passado, e conservador, mesmo quando impulsionado pela paixão do porvir. Nada fazia sem invocar a tradição, no entanto, sua mensagem eram os novos tempos. Os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos pareciam ter algo em comum: uma atitude realista. A pregação do futuro não constituía o essencial de seus clamores; era antes, o fruto e o resultado final de um conhecimento aprofundado no mundo adjacente, da atualidade e do passado. Ora, essa função profética está presente na compreensão crítica de Gramsci e de Tillich do intelectual orgânico.

Mas, não podemos esquecer que para Tillich há limites para a ação do intelectual, pois a razão não é global. Ao contrário, cada criação do espírito é necessariamente afetada pelos limites da situação que a viu nascer. O espírito está sempre ligado a uma classe. No espírito está implícita uma situação particular de luta, de dominação ou de opressão, que conforma a própria consciência. Entendido assim, o espírito não é universalmente o mesmo em cada pessoa, exprime um ser social particular. A passagem à cultura não se faz simplesmente pela transmissão de bens culturais universais, mas pela formação inculcada por uma sociedade e uma situação de lutas determinadas, em meio a obras que exprimem ou exprimiram no passado esta possibilidade humana particular.

Numa leitura cristã protestante, Tillich considerou a busca pelo sentido pleno de vida produto do desenvolvimento econômico e espiritual, que preparou e se impõe com a Renascença, a Reforma e o surgimento do capitalismo. Visão compartida por Gramsci. Assim, a busca pelo sentido pleno de vida surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média, sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos, e só pode ser compreendida a partir desta evolução: sua permanência está ligada a esse desenvolvimento. Mas não devemos esquecer, porém, que foi do interior do cristianismo que brotaram as idéias modernas de justiça. 

Para a construção de seu pensamento, Gramsci foge das construções ontológicas, e analisa a sociedade como conjunto de forças, imersas na história e marcada por interesses diversos. Podemos ver isso quando em carta à sua cunhada Tatiana Schucht. de dezembro de 1931, expõe seu conceito de Estado ampliado: 

“Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção e a economia a um dado momento); e não como equilíbrio entre a sociedade política e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercidas através de organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.)”.

Ora, em geopolítica, hegemonia significa a supremacia de uma nação sobre outras, seja por sua presença militar, de coerção, seja pela presença política e cultural. Mas na política, o conceito formulado por Gramsci descreve a dominação ideológica de uma classe sobre outra, no caso da burguesia sobre os trabalhadores.

Em Gramsci não é possível o domínio bruto de uma classe sobre as demais, a não ser nas ditaduras, ou seja, no Estado-coerção. Mas uma classe dominante para ser dirigente deve articular um bloco de alianças e obter o consenso passivo das classes e camadas dirigidas. Nessa busca de alianças, necessárias, a classe dominante sacrifica parte dos seus interesses materiais imediatos, vai além do horizonte corporativo, com a finalidade de construir uma hegemonia ética e política.

Ao estudar os mecanismos de construção desta hegemonia, Gramsci chega a um conceito fundamental na sua teoria política, a saber, o conceito de Estado ampliado. O Estado moderno na Europa analisada por Gramsci não seria, para ele, apenas instrumento de força a serviço da classe dominante, mas força revestida de consenso, ou seja, combinaria coerção e hegemonia. O Estado ampliado pode, então, ser entendido como sociedade política mais sociedade civil. E, nas sociedades de tipo ocidental, a hegemonia, que se decide nas inúmeras instâncias e mediações da sociedade civil, não pode ser ignorada pelos grupos sociais subalternos que aspiram a modificar sua condição e a dirigir o conjunto da sociedade.

O sentido de progresso civilizatório que a teoria gramsciana implica, reside no fato de que todo o movimento deve acontecer no sentido de uma absorção do Estado político pela sociedade civil, com o predomínio crescente de elementos de autogoverno e autoconsciência. A partir dessa teorização, Gramsci formula nos Cadernos do cárcere uma crítica ao stalinismo, a partir dos traços de hipertrofia do Estado soviético, que chama de estatolatria, considerando que tal estado de ditadura sem hegemonia não subsistiria por muito tempo. 

Assim o Estado se compõe de dois segmentos distintos, porém atuando com o mesmo objetivo, que é o de manter e reproduzir a dominação da classe hegemônica: a sociedade política, estado-coerção, a qual é formada pelos mecanismos que garantam o monopólio da força pela classe dominante, burocracia executiva e policial-militar; e a sociedade civil, formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias, composta pelo sistema escolar, Igreja, sindicatos, partidos políticos, organizações profissionais, organizações culturais: meios de comunicação e de massa. 

E aqui merecem destaque os meios de comunicação, pois para sua época estavam ainda em sua fase embrionária, e a televisão nem sequer fazia parte dos projetos futuros. Isto só seria possível no início da década de 1950. É exatamente através dos meios de comunicação da alta modernidade, que se dá a canalização da direção intelectual e moral, difundindo as ideologias da classe hegemônica vigente. 

Assim, o Estado é a sociedade política gramsciana. E esta sociedade civil representa a nova determinação apresentada por Gramsci. Esta sociedade civil assume crescente dimensão no começo do século vinte, com os partidos de massa, sindicatos de trabalhadores e outras formas de organizações sociais. É após seu desenvolvimento histórico que a sociedade civil pôde ser capturada teoricamente. Antes disso, o estado-coerção era muito superior em sua base material para se permitir tal percepção. 

O que chama a atenção no modelo do Estado ampliado, desde o Leviatã de Hobbes até Marx, é o sentido unitário do Estado. Ou seja, até Marx, o Estado era entendido como algo diferente da sociedade civil, que seria extinto quando se extinguisse a divisão de classes dentro da sociedade, uma vez que era esta divisão que produzia a necessidade do Estado. 

Em Gramsci, porém, quando agrega a sociedade civil ao Estado-coerção, nada fica de fora do Estado. Este todo, entretanto, não é homogêneo, é rico em contradições e é mantido pelo tecido hegemônico que a cada momento histórico é recriado em processo permanente de renovação. 

Assim, a luta pela construção de uma sociedade plena de sentido de vida, torna-se mais complexa e difícil do que imaginava Marx. Não basta ser classe dominante, tem que ser também classe hegemônica, dirigente. Desta forma, o campo da luta entre as classes se amplia. E a democracia necessária ao sentido pleno de vida será construída pelo bloco histórico hegemônico. Neste momento, a sociedade civil terá atingido uma base material superior a base material do Estado-coerção, atingindo o que Gramsci chama de sociedade regulada. 

Com a gradativa absorção da sociedade política pela sociedade civil, que atua através dos seus aparelhos de hegemonia, o estado-coerção será substituído pelo estado-ético. E esta figura remanescente do estado-coerção, torna mais factível o modelo social voltado para a democracia de bens e direitos e menos utópico em política ao que planejara Marx.
 
Nesta concepção de Estado, as democracias ocidentais possibilitariam o sentido pleno de vida. Mas fica uma questão: se a supremacia da sociedade civil se dará pelo consenso contra a coerção, onde fica o conceito de luta de classes, momento celular do pensamento marxiano? 

Na verdade, para Gramsci a extinção da coerção do estado se dará pela absorção deste pelo estado-ético, ou seja, pela sociedade civil. Esta sociedade civil está inserida no estado ampliado e, por isso, não se pode falar de extinção do estado, mas de uma reorganização do estado onde um de seus componentes, está atrofiado por disfunção ou necessidade, já que os conflitos passaram a ser administrados pela base material do consenso.

Há, porém, dois níveis superestruturais nas sociedades democráticas: o estado ampliado, que é a sociedade civil, ou o conjunto dos aparelhos privados de hegemonia; e a sociedade política, ou o estado no sentido restrito do termo, composto pelos organismos de coerção do aparelho burocrático-militar de dominação política. 

Nesse espaço a sociedade civil como espaço do domínio da ideologia, portador material da hegemonia, encontra a possibilidade de legitimidade, de consenso, através dos aparelhos privados de hegemonia que propagam valores ideológicos. 

Assim, o conceito de estado ampliado procura apreender a configuração de forças sociais e políticas resultantes dos estados ocidentais do século vinte, idéia que confronta a proposta de Trotsky de revolução permanente a partir da concepção de hegemonia civil. Tal proposta-conceito parte da idéia de guerra de posição, que exige uma frente de combate no campo cultural, unida às frentes econômicas e políticas para a conquista da hegemonia pelas classes subalternas. A fórmula hegemonia civil propõe a participação das maiorias sociais nos aparelhos privados de hegemonia (sindicatos, partidos, escolas, igrejas, imprensa), que constituem as trincheiras de luta para obter posições de direção no governo da sociedade.

A proposta de extinção do estado, no entanto, nunca é plena, pois sempre restará o governo para cuidar da sociedade civil. É claro que se entendermos assim podemos dizer que na distinção de função entre as pessoas que governam e as que vivem a vida da sociedade de consenso está presente ainda a dominação entre as classes e, portanto, os restos da coerção do Estado se farão presentes.

Em Gramsci está presente uma utopia que atravessou todo pensamento solidário: sonhar com o bom selvagem de Rousseau, em oposição ao homem é o lobo do homem de Hobbes. Esse Estado ético é uma idealização do ser humano, que poderia viabilizar a construção de uma sociedade ética, igualitária e justa. 

Mas, mesmo questionando Gramsci, podemos utilizar seus conceitos de estado ampliado e de hegemonia civil como estruturas de pensamento válidas para a análise social, não como proposta da utopia solidário, mas como ferramenta para delimitar e compreender o desenvolvimento das sociedades ocidentais contemporâneas, principalmente aquelas que se propõem democráticas. 

A busca pelo sentido pleno de vida e os movimentos de liberdade sempre estiveram ligados, mas isso não significa que não existem tensões entre o momento universal e o momento particular. O momento universal pode formular exigências que ameaçam absorver o momento particular. A busca pelo sentido pleno de vida se tornará, então, uma idéia geral, desprovida de raízes sociais e perderá sua força histórica. Este é o perigo de uma luta pela justiça restrita à intelectualidade. Esse perigo provém da situação burguesa e de seu pensamento político particular, que procura elaborar uma ordem social fundada sobre a justiça, mas deixando de lado a situação proletária real. Seja qual for o valor que se atribua a esta tentativa, ela não será de fato justiça social. A luta contra o intelectualismo utópico se apoia sobre a ligação indissolúvel que Marx viu entre sentido pleno de vida e proletariado, que não pode ser quebrada por essa harmonia metafísica proposta pela globalidade burguesa.

Para Paul Tillich existe na esfera política uma política entre razão e autonomia. Toda estrutura política pressupõe poder e um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da razão política. Assim, a teologia e a política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Teologia e política, no mundo ocidental, estão imbricados, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia. 

Tal compreensão da realidade ocidental no pós-guerra levou Tillich a se debruçar sobre projetos que tiveram início ainda na sua fase alemã, como a sua reflexão sobre a cultura. Mas a maioria de seus companheiros, que esperavam a realização da vida social plena de sentido, diante do visível abandono dos direitos civis e humanos, assim como a descoberta da existência de Gulags nos países comunistas, se desiludiu. Ou como publicou mais tarde – veja, Paul Tillich, Teologia protestante nos séculos dezenove e vinte:

“O movimento marxista não foi capaz de se criticar por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que chamamos agora de stalinismo. Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. Em nosso século vinte temos tido a ocasião de melhor perceber a trágica realidade da alienação humana no campo social”.

Tal política comunista fez com que Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que o amanhecer de uma nova era criativa se distanciava da humanidade. Assim, alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista de que, em nome da busca pelo sentido pleno de vida, sociedades mergulhassem no totalitarismo, já que não aceitavam a pluralidade de partidos políticos e as liberdades civis, que ele e os socialistas-religiosos defendiam. Mas é interessante ver que descartava qualquer possibilidade de hegemonia permanente, quer por parte do bloco soviético, quer por parte do bloco ocidental, ao dizer que novos centros de poder podem aparecer levando à separação ou à transformação radical do todo. Isto porque o poder inicia sempre uma nova luta, e o período de determinado império mundial será tão limitado quanto foi o período de paz”. 

E afirmou que um mundo sem as dinâmicas do poder, sem a tragédia da vida e da história não é o reino, nem a finalidade do ser humano, pois o fim está limitado à eternidade e nenhuma imaginação pode atingir o eterno. Mas as antecipações fragmentárias são possíveis. Assim, falar de teologia da práxis significa entender que a busca pela incondicionalidade da justiça e, por extensão, da paz e alegria, traduz a defesa do sentido último do significado profundo das raízes do humano e que, no mundo contemporâneo, diante do trovejar dos canhões e da ameaça à existência, deve levantar-se como voz profética de um mundo novo.


30.

A vida além da vida

No mundo renovado, Ele ressuscitará os mortos, os elevará para a vida eterna, reconstruirá a cidade de Jerusalém, restaurará seu templo, removerá da terra os cultos idólatras, retomará o serviço celestial, e o Santo, abençoado seja Ele, reinará em sua realeza e seu esplendor.

O pensamento solidário e, mais especificamente, o marxismo, em sua elaboração sobre as religiões e sobre o cristianismo teve a sua formulação mais aguda num manuscrito escrito por Karl Marx, em 1845, quando estava exilado em Bruxelas, que ficou conhecido como as Teses sobre Feuerbach. Nesse momento, vamos nos ater à quarta tese, por sua importância para o desenvolvimento da pesquisa e para a discussão metodológica do trabalho. Nela, Marx disse que Feuerbach partiu da alienação religiosa, da duplicação do mundo no mundo religioso, representado e não real. Ele não viu que depois de completada tal crítica, ainda ficou por fazer o principal, já que se a base mundana se destaca de si própria e se fixa num reino autônomo, nas nuvens, só se pode explicar por sua própria divisão e pelo contradizer-se a si mesma. É esta mesma base, portanto, que tem de ser revolucionada por meio da eliminação da contradição.

Dessa maneira, Marx parte do fato de que a religião torna o ser humano estranho a si mesmo e desdobra o mundo em um mundo religioso, imaginário, e um mundo real. Por isso, considera que o trabalho do teórico consiste em dissolver o mundo religioso em sua base terrena. Por isso vai dizer que Feuerbach não percebe que, findo este trabalho, o principal ainda está por fazer. O fato de que a base terrena se separe de si mesma e se estabeleça nas nuvens, como reino independente, só pode ser explicado pela dissociação interna e pela contradição dessa base terrena consigo mesma. O que deve, portanto, ser feito antes de qualquer coisa é compreendê-la em sua contradição e depois remover essa contradição. Assim, por exemplo, após descobrir que a família terrena é o segredo da sagrada família. É a família terrena que deve ser criticada teoricamente e revolucionada. Marx explica a crença religiosa por meio das contradições da sociedade humana e de suas dissociações, que induzem o ser humano a projetar fora do mundo, em um paraíso, a realidade na qual desejaria viver. 

Mas como afirma Radice, na quarta tese sobre Feuerbach, Marx afirma de modo explícito que a forma religiosa reflete um conteúdo histórico. Por estar impotente, o ser humano imagina uma potência divina, por estar abandonado cria uma providência. E aonde levam essas visões? Aqui está a redescoberta pelo pensamento marxista oficial, no final dos anos 1960, da importância da consciência religiosa. Em seu décimo congresso o Partido Comunista Italiano diria que é necessário compreender como a aspiração a uma sociedade socialista não só possa abrir caminho em homens que têm uma fé religiosa, mas que tal aspiração pode encontrar em uma sofrida consciência religiosa um estímulo frente aos dramáticos problemas do mundo contemporâneo.

Dizemos redescoberta da importância da consciência religiosa porque Gramsci algumas dezenas de anos antes do décimo congresso do PCI já havia afirmado que a religião cristã, foi e continua a ser uma necessidade, uma forma necessária de racionalidade do mundo e da vida. O mais interessante é que Gramsci afirmou ser o marxismo, como já vimos, herdeiro de dois movimentos culturais, a Reforma protestante e a Revolução francesa e que a filosofia da práxis é o coroamento de todo movimento de reforma intelectual e moral, dialetizado no contraste entre cultura popular e alta cultura. E trata-se de uma filosofia que é também uma política e uma política que é também uma filosofia.

Dessa forma, para Gramsci, a Reforma foi não somente uma reforma no nível da economia, filosofia e política, mas também uma revolução cultural, no sentido de que procurou forjar uma nova humanidade. Para Gramsci a consciência religiosa cristã, que se traduziu em revolução cultural no século dezesseis, teve um caráter de suma importância na construção do pensamento contemporâneo. 

Mas vamos dar um salto. Vamos partir do imediato da materialidade, da política como projeto de construção de uma nova humanidade, para a vida que vai além da vida, conforme pensaram alguns rabinos.

O rabino Moshe Chaim Luzzatto, mais conhecido como Ramhal, certa vez nos convidou a manter um diálogo entre nosso espírito e nossa psiquê. E nesse diálogo o espírito pergunta: é o meu desejo entender o texto de Devarim/Deuteronômio 4.39, que diz: você deve saber em seu coração que o HaShem é Adonai. Ora, este é um princípio da emunah, da fé como posicionamento. E diante da pergunta, a psiquê respondeu: para onde você quer ir? E a partir daí o diálogo aconteceu, onde o espírito constatou que os princípios da fé são válidos para ele também no que se refere a direção a tomar. No entanto, alguns são válidos e outros não. Afinal, estaria ele ainda circunscrito às leis da emunah?

Donde a psiquê perguntou quais eram verdadeiros para ela, ruach, e quais ela compreendia. O espírito respondeu, a existência de haShem, sua unidade, sua eternidade, o fato de que é incorpóreo e separado de toda a materialidade. E aceito também a criação do universo, a profecia, a profecia de Moisés, a imutabilidade da Torá e sua origem divina. Todos esses princípios fazem parte da emunah e eu os entendo e não preciso de explicação. Por outro lado, a providência, o princípio de recompensa e punição, a vinda do mashiah e a ressurreição dos mortos ... Eu tenho a emunah para o dever religioso, no entanto, desejo encontrar uma explicação satisfatória para eles.

Essa pergunta do espírito foi respondida pelo rabino Shaul, o rabino Shaul dos cristãos, que por muitos judeus é considerado um traidor, faz excelentes midrashim, interpretações e leituras da Torá. Ele disse aos coríntios, em sua primeira carta (13.11-13): 

« Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; desde que me tornei homem, dei de mão às coisas de menino. Pois, agora, vemos como por um espelho, em enigma; mas, então, face a face; agora, conheço em parte, mas, então, conhecerei plenamente, assim como fui plenamente conhecido. Mas, agora, permanecem estas três: a fé, a esperança, a caridade; porém a maior destas é a caridade. »

É isto o que o espírito leva, o amor e as obras de amor. Mas o estudo desse tema nos mostra que estamos diante das diferentes leituras que fazemos enquanto pessoas e de nossas experiências neste mundo do aqui e agora. Por isso, podemos dizer, como já o fizeram alguns rabinos, que o Olam habam, o mundo vindouro, é fruto de nossos esforços e nossos trabalhos neste Olam haze, neste mundo aqui. Por isso, o kadish nos direciona no sentido de sermos consagrados para servir a haShem com todo o coração, com toda a sua nefesh e com todos os nosso meios. A recompensa acontecerá no Olam habam de nossas boas ações terrenas, a única riqueza que carregamos. Isso é garantido e certo, e a recompensa no Olam habam será o ser levantado para a vida eterna. Essas foram palavras do rabino Shimone Zini.

Mas podemos falar de dois mundos futuros. Um é o mundo além do tempo messiânico, aquele que Adonai permitiu para todas as pessoas que Ele criou: para aperfeiçoar limites e reparar fraquezas. Segundo o Talmude, algumas pessoas conseguem isso por sua piedade, outras pelo arrependimento e outras pelo sofrimento. O tempo que Ele estabeleceu é de seis mil anos, de acordo com as palavras dos sábios. Então Ele renovará o Seu mundo para que os homens sejam como anjos e não como burros; eles vão ser despojados de sua matéria e as seus limites: a inclinação para o mal e seus resultados, conforme o rabino Ramhal, no Daat Tebunot.

O Talmude ensina que o mundo vai durar seis mil anos. Serão dois mil anos de idolatria para nos ensinar o obscurantismo e impacto devastador sobre a Terra e o universo; dois mil anos de Torá para nos ensinar a verdade e sua importância  para a condição humana e dois mil anos do tempo do mashiah, que intercalará tempos de escuridão paradoxal e luz dar, para dar às pessoas uma última chance de desfrutar de seu livre arbítrio, a fim escolher livremente o bem, e para cada povo ter a sua oportunidade de escolher a verdade divina. Mas durante o sétimo milênio de história este mundo será destruído. Um mundo cuja forma grosseira desaparecerá em favor de uma forma sutil que se tornará refinada nos milênios que se seguem e que constituem o essencial da eternidade porvir, o Olam habam nos fala Daat Tébounoth, 3.40.

Se tomamos o Olam habam em seu primeiro sentido, o além imediato, enquanto continuidade da morte terrena, ou em seu segundo sentido, de além do fim dos tempos messiânicos, a noção de vida após vida, corresponde no judaísmo à fé na imortalidade da pessoa. 

Esta compreensão é, sem dúvida, a parte mais complexa da tradição judaica. Mas tal fato não é frustrante para um fiel sefardita, pois aceitamos com humildade a submissão livre a haShem, ao reconhecer nossas limitações à condição humana. Assim, o jardim do Éden, o tempo do mashiah, a ressurreição dos mortos, são conceitos que, com abordagens diferentes e sentidos diferentes, nos falam da vida além da vida, deste ir além.

Deve ficar claro que há um cosmo, uma dimensão da vida além da vida e que toda ação humana tem repercussões para além do aqui e agora. O ruach, o sopro do haShem em nós, colocado ainda no jardim do Éden, é centelha de haShem em nós, é um sopro da eternidade em nós. Quando o espírito deixa a matéria, permanece em relação com este corpo, desde que não seja colocada no chão. O espírito flutua acima do corpo, contempla, vê e ouve tudo o que está acontecendo ao redor da antiga matéria. Então viaja ... Tal concepção da vida após a vida permite considerar a vida neste Olam haze de forma madura e séria, especialmente quando em uma idade jovem é ensinado aos descendentes que aqueles que nascem vão morrer.

Os dias da nossa existência terrena não podem ser desperdiçados como fósforos que são queimados e depois jogados. As alegrias humanas muitas vezes são propósito legítimo, quando repousam sobre a dignidade, a pureza e santidade. Mas são alienação quando se distanciam do real significado e propósito da existência neste Olam haze. É por esta razão que Shlomo, rei de Israel, foi considerado sábio por excelência, e nos disse que é melhor ir a uma casa onde há lamentação, do que à uma casa onde há festa, porque na primeira casa vemos o desenlace e daí extraímos importantes lições. 

A lição é que não se deve sentir angústia ou medo da morte. Esta é uma passagem esperada, para a qual todos devemos nos preparar, mas que por si só não envolve nada de dramático para aquele ou aquela que continua sua viagem. Fica no entanto, a saudade legítima para aqueles queridos que estão no Olam haze, por causa da separação. Por isso, bereshit nos diz que haShem viu tudo o que havia feito e considerou que era eminentemente bom. E o rabino Meir disse que o era eminentemente bom significa que aqui estava a morte e ela era boa. Portanto, não é a morte como tal que é temida, mas sim o modo de preencher nossa Olam haze. Por isso, dizemos que como ninguém sabe o dia em que dará início a sua travessia, vivamos o bem no eterno., pois uma hora de arrependimento e boas ações vale mais do que toda a vida do mundo futuro. E uma hora de felicidade no Olam habam vale mais do que toda a vida deste mundo.

E o rabino Eliezer Hakappar nos disse que aqueles que nascerem eventualmente morrerão, e os mortos serão ressuscitados, os vivos serão julgados, saberão, ensinarão e reconhecerão que Ele é aquele que é haShem, Adonai que forma, Adonai que cria, Adonai que compreende, Adonai que é Juiz, Adonai que é Testemunha, Adonai que é Parte no Julgamento, Adonai que pronunciará a sentença. Antes dele não há iniquidade, nem esquecimento, nem aceitação de pessoas, nem corrupção, porque todas as coisas são dele. Saiba que tudo é levado em conta. E que sua propensão não lhe tranquiliza fazendo você acreditar que o túmulo constituiria para você um refúgio. Pois é a despeito de você que você foi formado e sem o seu consentimento que você nasceu. E é a despeito de você que você vive, sem o seu consentimento você morrerá e apesar de você terá que prestar contas de seus atos perante o "Rei dos reis dos reis", o Santo abençoado seja ele, nos diz Pirké Aboth, na última Michna 4.

Se entendemos a permanência da ruach é para melhor capacitar-nos a apreender a vida terrena. Apesar de seus limites, desapontamentos, enfermidades,  provações, a vida humana constitui a passagem única e indispensável da preparação neste Olam haze, tornando possível merecer a vida no Olam habam.

"Quando chegar a hora em que seremos cortados como espigas de milho, vamos cair sem medo, pois o campo de nossa ruach, fertilizado pelo penhor da dor e do orvalho do choro, nos enriquecerá com a colheita. mais precioso do que o dos campos terrestres”, disse o rabino Daniel Renassia.

Esta emunah no Olam habam é uma força vital em nossa rota terrestre, repleta de limites. Além disso, como descobrir um homem de fé chamado Jó, é fonte reconfortante em de desamparado diante das injustiças humanas, ciúmes, mentiras e ódio.

A vida tem sentido e valor. Mas este sentido e valor cresce quando a motivação é norteada pelo viver os mandamentos da Torá, mas não morrer por eles. A Torá é para a vida que se projeta no além da vida. É por isso que os justos, mesmo quando estão mortos neste aqui e agora, são chamados de vivos no Olam habam, enquanto os injustos, mesmo quando estão vivos no aqui e agora são chamados mortos no Olam habam.

Há uma ideia muito bonita no judaísmo que diz que este mundo é como se fosse um vestíbulo do mundo futuro. Por isso devemos nos arrumar no vestíbulo para poder entrar no palácio. 

Pessoas e povos afirmam que existem outras formas para acessar o Olam habam, com ou sem haShem. Essas compreensões, tipicamente humanas, são vistas como aboda zara, a adoração da idolatria. E de acordo com a Torá, a falha original do primeiro homem feito à imagem de Adonai, era de que não deveria comer do fruto conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que comesse, morreria. E, interessante é que depois que comeu, hadam começou a perceber que, de acordo com as previsões anunciadas pela serpente, ele havia se tornado capaz de criar mundos, permitindo-lhe discutir, desafiar ou mesmo se opor à vontade de haShem, sem que Adonai o cortasse da sua vida terrena. Este erro de julgamento de hadam foi a punição por sua transgressão, mas também o ponto de partida das justificativas morais que darão origem a todas as  diferentes formas de idolatrias.

A vida é também vida além da vida. Vida além da vida tem uma primeira relação com a materialidade humana, mas contém também o ruach, componente de eternidade central do humano. Assim, seu destino, que repousa sobre seu livre arbítrio, na conclusão de sua missão terrestre, é a travessia em direção ao mundo eterno.

A travessia pode ser parto doloroso, mas também passagem gloriosa, que preside à inauguração de uma nova vida. Essa noção de durabilidade é reforçada pela esperança, que nasce da emunah, na ressurreição dos mortos, conforme nos diz o profeta Daniel 12.2.

Se o Olam habam parece difícil de ser alcançado e merecido, é certo que Adonai nunca apresenta desafios que o humano não possa enfrentar e vencer. Para aqueles que não pertence ao povo da estrela, haShem definiu as leis de Noé, que tem como central uma ideia: que o humano se guie pela integridade de sua consciência, e respeite esses sete preceitos que representam os próprios fundamentos da moralidade humana: (1) Não praticar idolatria, (2) não blasfemar contra Adonai, (3) não cometer homicídio, (4) não roubar, (5) não cometer adultério e não manter relações incestuosas, (6) estabelecer tribunais e (7) não molestar os animais, ingerindo um órgão retirado em vida.

É interessante que o rabino Shaul, o rabino Shaul dos cristãos, escrevendo aos judeus romanos (2.3-10), ele nos fala dos nãos judeus: 

« Tu, ó homem, que julgas os que praticam tais coisas e fazes as mesmas, pensas que escaparás do juízo de Adonai? Ou desprezas tu as riquezas da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Adonai te conduz ao arrependimento? Mas, conforme a tua dureza e coração impenitente, entesouras para ti ira no dia da ira e da revelação do justo juízo de Adonai, que retribuirá a cada um segundo as suas obras: dará a vida eterna aos que, perseverando em fazer o bem, buscam glória, honra e incorrupção; porém haverá ira e indignação para os que são facciosos e que não obedecem à verdade, mas obedecem à injustiça. A tribulação e a angústia virão sobre toda alma do homem que obra o mal, do judeu primeiro, depois do grego; mas a glória, a honra e a paz sobre todo o que obra o bem, sobre o judeu primeiro e depois sobre o grego. »

E fica uma lição, o humano foi criado para a alegria no haShem e para apreciar o esplendor da Sua presença, porque essa é a verdadeira delícia e o maior prazer, superior a todos os prazeres existentes. O propósito deste prazer é o mundo porvir, que foi criado e preparado para esse propósito. No entanto, o caminho que nos conduz com segurança parte deste mundo, nos disse o rabino Ramhal.

Assim, a Torá ensina que o dia virá quando o HaShem reinará para sempre, Shemot, Êxodo 15. E Adonai será rei sobre toda a terra. Naquele dia Adonai será Um e Seu Nome será Um, conforme nos disse o profeta Zacarias (14).

Mas esta leitura deve ser aprofundada, enriquecida. Ou, “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”.

O fazer da existência vale a pena. A eternidade aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada ser na história dos fazeres humanos. É por isso que bereshit, o primeiro texto na Torá, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-ser não é uma fratura do tempo, é tempo da história. 

Kohelet, para os cristãos Eclesiastes, que eu chamo simplesmente de Qoh, meu apelido dado por Sara, não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão de Qoh é que temos de ser no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-ser. E a partir de Qoh vamos a Shaul, o rabino de Tarso.

Pede-se ser levantado.  “Você está falando de bens materiais, de coisa frágil. Se você tem certeza de que esses bens ficarão sempre com você, fique com eles sem partilhar com ninguém. Mas se você não é o haShem absoluto deles, se tudo que você tem depende mais da sorte do que de você mesmo, por que este apego a eles?”. 

Fuks conta que Freud, um dia depois do sepultamento do pai, sonhou com um cartaz onde estava escrito: “Pede-se fechar os olhos”. Mais tarde, em carta a Fliess, o pai da psicanálise falou dos sentidos subjetivos da frase: “era parte da minha autoanálise, minha reação diante da morte de meu pai, vale dizer, diante da perda mais terrível na vida de um homem”. 

Não vou entrar nos detalhes das leituras que o próprio Freud fez da frase que apareceu em seu sonho. Diria ao leitor que vale a pena ler Freud e a Judeidade. Pretendo aqui levantar uma proposta de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. É a partir dessa hermenêutica, que vamos ler trechos do final da primeira carta de Shaul aos Coríntios. 

“... Foi sepultado e foi despertado do sono no terceiro dia, de acordo com o escrito”. 

A frase acima, e a continuação do texto, é uma das mais importantes sobre a egeiro e anástasis, duas expressões gregas não substancialmente diferentes, que sintetizam a teologia da anástase dos cristãos do primeiro século. As traduções posteriores, e creio que dificilmente poderiam ser diferentes, criaram um padrão de imagem que dificultam a experiência do ir além. Por isso, fomos obrigados antes da tradução transversa fazer a desconstrução histórico-filosófica da anástase.
 
As leituras da anástasis e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatos axanástasis, anhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por ficar de pé, ser levantado e voltar à vida, foram fundamentais para a construção do conceito anástase, amplamente utilizado pelas ciências do espírito. Mas é com Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário. 

Platão, em Fédon, num diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a idéia da imortalidade da alma. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas, que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio, quente, frio, noite, dia, noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria. 

E dirá através de Sócrates em Fédon: perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa? Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber? 

O rabino Shaul, o apóstolo Paulo, cristão, conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate teológico. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial, como vimos em Qohélet. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes na teologia de alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/ helênica da anástase. E por isso disse:

“Somos arautos de que o ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que falamos e também inútil a nossa crença. Somos então testemunhas falsas, porque anunciamos que Adonai ergueu o ungido. Mas se ele não foi levantado, os mortos também não são erguidos. E se os mortos não são erguidos, o ungido também não o foi. E, se o ungido não foi erguido, a nossa crença é inútil e vocês continuam a vagar sem destino. E os que foram colocados para dormir no ungido estão destruídos”. 

Outras fontes de Shaul foram o profeta Daniel e literaturas do período helênico, que trabalharam com a idéia de despertar subitamente do sono. Chifflot e De Vaux situam o livro de Daniel no período helênico, por entender que é uma edição de antigos fragmentos do período babilônico, compilados, organizados e contextualizados ao momento histórico descrito no capítulo onze. Nesse capítulo, as guerras entre lágidas e selêucidas, assim como as investidas de Antíoco IV Epífanes contra Jerusalém e o templo são narradas com riquezas de detalhes. Ao contrário do que acontece nos livros proféticos anteriores, aqui o autor cita fatos aparentemente insignificantes, numa interessante viagem do futuro para o passado. Dessa maneira, a edição que conhecemos do livro de Daniel pode ser situada no período da grande perseguição de Antíoco IV Epífanes, possivelmente entre os anos de 167 e 164 antes da era comum. A partir desse enquadramento, os capítulos 7 a 12 de Daniel, enquanto edição são chamados de vaticinia ex eventu, dado que o texto é contemporâneo aos acontecimentos descritos. Esses capítulos expressam a reação contra a helenização da Judéia e das perseguições em curso, mas, paradoxalmente, é uma forma de pensar afetada pela civilização helênica.

A partir da segunda metade do livro, o autor trabalha sobre dois temas registrados na primeira metade: que o judeu deve ser fiel a Adonai em meio à tentação e à provação; e que Adonai defende o servo leal que prefere morrer a violar os mandamentos. Nos seis capítulos finais, o sábio (ou grupo de sábios, cujos escritos foram compilados por um redator) retoma o conteúdo das visões que teve em política à profanação do templo, em 167 antes da era comum. 

Durante o período helênico idéias novas afloraram em meio à vida judaica, entre elas a esperança da recompensa escatológica apresentada pelas profecias apocalípticas, como em 2Macabeus 7, Daniel 12:2-3 e o Escrito de Damasco 4:4, que se traduzem concretamente na anástase.

Assim, os elementos novos da compreensão paulina da anástase já aparecem delineados no profeta Daniel, quando disse que muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. E que que forem sábios resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente. Shaul, porém, somará um componente existencial à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela espécie humana, será privada de força.

“Caso o ungido só sirva para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz nova vida. Como morre a espécie, no ungido ela recebe vida. E isso acontece numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido, quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a Adonai e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”. 

É interessante que Shaul em seu texto sobre a anástase cita o dramaturgo, filósofo e poeta grego Menandro (342-291 antes da era comum), que num verso disse que as más companhias corrompem os bons costumes. E voltando ao Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado. Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém enterradas”. 

Tudo indica que Shaul gostava de teatro e de comédias.

Que Shaul recorreu à tradição profética fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as tuas pragas? Onde está ó morte a tua destruição?”. Mas há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida nesta carta de Shaul. Isto porque, como afirma Fuks, o leitor desconstrói, pois ler não é repetir o texto: é um modo de criação e de transformação. Por isso, digo que ler é um ato de anástase. E Shaul trabalhou de forma brilhante o termo, tanto nas suas leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito.

“Que farão os que se batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto contra a morte de cada dia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos. Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”.

Na sequência da tradição hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão na análise conceitual do real, herança dos gregos”, Shaul está preocupado com o corpo, com a vida.

“Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Adonai dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psiquê, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psiquê , também há corpo espiritual”. 

Para Shaul, anástase leva à uma teologia da existência que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material, tanto que em certo momento Paulus diz que “deveremos ser a imagem do homem do céu”.

“Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro, é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”. 

O pensamento grego, platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Shaul admite aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psiquê, e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem próximo a Platão, o bem e o mal. 

“E agora digo que a carne e o sangue não podem herdar o reino, nem a corrupção herdar a eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a lei. Mas a alegria que Adonai dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por aquele a quem pertencemos”. 

Caso voltemos à análise do conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios, tomando como ponto de partida o desafio de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”, vemos que Shaul traduziu para as novas gerações o desejo judaico-helênico, humano, da anástase: “Pede-se ser levantado”.


31.

Terror


O sangue derramado
me alucina 
escorre pela cabeça
pela barba negra e rala,
olhos inchados, 
corpo doído,
corpo caído
chão sem estrelas e esperança.
Sangue de gente querida,
os de antes, os de agora
e não quero para os de depois.

Quem foi eletrocutado, se lembra
quem foi fuzilado, sabe
a direita matou e disse
não chia, nem pia.

Auschwitz não é lembrança
caminho do nada de gente amada,
querida e para sempre lembrada
estádio nacional, curvas amargas de Petrópolis, 
cidade e hortênsias do príncipe roubadas pela ditador
debaixo do altar, as almas dos mortos
de amor e testemunho
em voz grande, até quando, 
verdadeiro e santo Adon, não julga e vinga
o sangue?

A correr pela neve, noite a dentro
O latido dos cães, os tiros
A correr pela neve, o céu me confunde
Não existe antes, nem atrás, 
Correr pela neve, para diante, em frente,
Até avistar outras estrelas, que abrem os braços,
Brodivisky, camarada

Quem foi eletrocutado, se lembra
quem foi fuzilado, sabe
a direita matou e disse
não chia, nem pia.

Felizes os mortos,
o ruach do Eterno diz, descanse das obras e trabalhos,
correr pela neve, noite, noite, noite,
cães, latidos, latidos, 
Appenzell, enfim.


32.
Uma conquista humana

O pensamento solidário é o produto da evolução econômica e espiritual, que foi lentamente preparado e que se apresentou como pensamento político a partir da Renascença, da Reforma e com o surgimento do capitalismo. Ele surgiu em oposição ao pensamento autoritário da Idade Média e sedimentou suas bases nas criações culturais dos últimos séculos.

A ideia da busca da construção de sociedades mais justas e solidárias só pode ser compreendida a partir desse desenvolvimento e seu surgimento esteve ligado diretamente a esta evolução. Deve-se reafirmar, porém, que foi do interior do cristianismo que brotaram as ideias de economias e políticas solidárias e que um pensar solidário sem estes pressupostos é um equívoco. Aqueles que defendem uma economia, uma política, enfim, uma sociedade solidária devem compreender sob que princípios tal socialismo repousou.

A organização econômica e religiosa da Idade Média estava fundada sobre um sistema de centralização da autoridade que, ancorado em leituras do sobrenatural, associava a natureza e o transcendente numa unidade que submetia pessoas e instituições.

A Reforma protestante, surgida a partir do pensamento humanista, que brotou a partir da Renascença, golpeou o sistema de autoridade, trouxe a fé pessoal, livre de amarras, para o plano formal, ao recorrer à autoridade das Escrituras. E, no plano material, valorizou a subjetividade da consciência.

Assim, apoiada formalmente sobre as Escrituras, a religião protestante produziu novas contradições, apesar do sistema centralizado da autoridade medieval já estar em frangalhos. Coube, a partir daí, às pessoas decidirem a que grupo queriam ligar-se: aos católicos ou aos protestantes.

Tal situação, no entanto, por razões geopolíticas, levou às guerras religiosas, fazendo com que as ideias de construção de sociedades livres e solidárias vivessem um processo lento, pois de cada lado, católicos e protestantes viviam a falsa esperança de que poderiam chegar a uma vitória exclusiva. Com o fim dos combates o que se viu foi que as oposições às confissões se tornaram permanentes. Dessa maneira, brotou a consciência autônoma nos mais variados campos, que se plasmou como consciência europeia ocidental, passando assim a atacar as muralhas autoritárias das religiosidades. E não deixou subsistir sob o solo protestante nada mais que os destroços do constrangimento autoritário.

E, ao nível do pensamento e da metodologia da produção científica, René Descartes deu o golpe decisivo no autoritarismo eclesiástico ao afirmar que a certeza que temos de nós mesmos é o princípio de toda certeza objetiva. E que, embora a autoridade não possa me livrar da dúvida, é em mim mesmo, na minha pessoa, somente, que se enraíza a certeza. Temos então, o Iluminismo, que constata como conclusão definitiva: toda tradição deve ser submetida à crítica. Está dada a partir desse momento, no plano teórico, a possibilidade da busca da construção de sociedades justas e solidárias.


33.

Um político deve saber

Devemos nos distanciar do marxismo lido a partir do ateísmo e da religião que faz a legitimação da dominação. E a partir desse distanciamento, procurar definir caminhos para a militância política das comunidades cristãs. E aqui, sem dúvida, encontramos uma complementaridade fundamental e necessária à teologia: a atividade militante dos cristãos no interior das comunidades religiosas é motivada por diferentes opções históricas, tanto a legitimação da dominação, que pode ser chamada de religião superestrutural, como a crítica da dominação, ou seja, da religião infra estrutural. Entre os dois extremos situa-se o campo religioso, naturalmente ambíguo, já que a instituição religiosa necessita tanto do organizador como do profeta. E é a partir da análise dessa ambiguidade que devemos traçar questões que envolvem realidade brasileira e dão concretude à práxis do militante cristão, que deve levar em conta:

1. O momento analético é a afirmação da exterioridade: não é somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade. É a superação da totalidade a partir da transcendência interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. Como já vimos, o momento analético é crítico por isso: é a superação do método dialético negativo. Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, o imprevisível para a totalidade, aquilo que surge a partir da liberdade não condicionada, revolucionária e inovadora. Como consequência, a analética é prática: é uma economia, uma pedagogia e uma política que trabalham para a realização da alteridade humana, alteridade que nunca é solitária, mas a epifania de um sexo, de uma família, de uma classe social, de uma geração, de um tempo e da espécie humana.

2. Discutir a religião como infraestrutura e superestrutura é superar a visão de que as lutas de emancipação no Brasil e na América Latina tiveram origem nos movimentos milenaristas, que se adaptaram e organizaram movimentos políticos ou retrocederam convertendo-se em religiões alienantes no sentido mais limitado do termo. A religião é a primeira consciência que o ser humano tem de si mesmo, e as relações morais, do filho com os pais, do marido com a mulher, do irmão com o irmão, do amigo com o amigo, enfim do ser humano com seu próximo, são relações religiosas.

3. A religião, enquanto conjunto de mediações simbólicas e rituais, como doutrina explicativa do mundo e que se posiciona a partir da referência ao Absoluto, participa do fechamento do sistema sobre si mesmo. Essa totalização do sistema é um processo de divinização, que cumpre a função de ocultar a dominação. A noção de religião superestrutural traduz esse processo de divinização do sistema europeu e depois norte-americano na Modernidade: significa (des)historificar a totalidade social, (des)dialetizar um processo que tem origem, crescimento e plenitude. A divinização leva a um outro processo, à fetichização, que apresenta uma constituição (a)histórica da totalidade social vigente. A fetichização consiste, então, na identificação da estrutura atual com a natureza, ou seja, ela está aí, está colocada por vontade divina.

4. As massas, enquanto oprimidas e passivas, vivem a ideologia das classes dominantes, pois o sistema apresenta de forma ambígua ideais utópicos que oferecem respostas às suas necessidades. Ao aceitar a religião superestrutural da classe dominante enquanto rito simbólico do triunfo dos dominadores e derrota dos dominados, as massas vivem sob a resignação passiva, a paciência derrotista e a humildade aparente.

5. A miséria religiosa é expressão da miséria real, entretanto, é também uma forma de protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da pessoa oprimida, o coração de um mundo sem coração, e o espírito de uma situação sem espírito. A necessidade da religião em abandonar as ilusões sobre sua própria situação é a exigência de que abandone uma situação que necessita de ilusões. Por isso, a crítica da religião é a crítica deste vale de lágrimas que a religião apresenta como expressão de santidade. A crítica da religião não elimina as correntes de flores imaginárias para que o ser humano suporte as correntes reais, mas para que ele se livre delas. A crítica da religião desmitifica para que o ser humano pense, para que atue e transforme sua realidade como ser humano consciente.

6. A tarefa do cristianismo solidário consiste, uma vez que desapareceu o mais além da verdade, em verificar a verdade que está aqui. E é tarefa do cristianismo solidário, que se encontra ao serviço da história, uma vez que está desmascarada a santidade da auto-alienação humana, desmascarar a auto-alienação em suas formas não santas. De tal modo que a crítica do céu se transforme em crítica da terra, e a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política.

7. A expressão religião (infra)estrutural indica a anterioridade da responsabilidade prática que se tem com o oprimido dentro do sistema. Essa anterioridade não diz respeito exclusivamente à superestrutura de um sistema futuro, mas diz respeito também à sua infraestrutura. O ser humano religioso transcende o sistema vigente de dominação e vê como responsabilidade sua o serviço ao excluído. A religião nesse caso é a instauração de uma nova práxis. E o fato de que a práxis religiosa infra estrutural possa se tornar superestrutural não nega o fato de que a profecia continua a irromper na história. Essa presença de responsabilidade social com o excluído mostra a vigência do clamor profético e funciona como freio das pressões alienantes e superestruturais.

8. O ateísmo, enquanto negação dessa necessidade de essencialidade, perde sentido, pois, ao negar Adonai, afirma mediante a negação a existência do ser humano. Mas o cristianismo solidário não necessita dessa mediação, pois surge enquanto consciência sensível, teórica e prática do ser humano e da natureza como essência. É autoconsciência positiva do ser humano, não mediada pela superação da religião, do mesmo modo que a vida real é realidade positiva para o ser humano, não mediada pela superação da propriedade privada. O cristianismo solidário surge como negação da negação da emancipação e da recuperação humana, é o princípio dinâmico do porvir, mas não é em si a finalidade do desenvolvimento humano, a forma última e única da sociedade humana.

9. A militância religiosa faz parte de uma luta mais ampla, onde a religião infra estrutural cumpre papel de aliado estratégico, levando o militante religioso a assumir tarefas, práxis nos níveis político, econômico e não apenas ideológico. O ateísmo, por isso, é ocultamento, pois fecha as portas ao aliado estratégico, à religião infra estrutural, que se fará presente enquanto houver seres humanos obstinados pela responsabilidade diante do excluído, sentido incondicional de justiça, esperança de um novo kairós.       

10. Assim, para o cristão a história universal é produção humana a partir do trabalho humano, que transforma a natureza e produz o nascimento do ser humano em sociedade. É nesse processo permanente que o ser humano constrói sua essencialidade: do ser humano em direção ao ser humano, como existência da natureza, e da natureza para o ser humano, como existência do ser humano. 

O êxito nesse processo depende das condições de possibilidade, ou seja, é impossível separar teoria e prática. Por isso, uma teologia da práxis deve saber integrar os princípios enunciados na escolha de fins, meios, e métodos que devem levar à práxis crítica do sujeito histórico, aqueles que estão excluídos do sistema-mundo. Este sistema-mundo, ou modernidade, ao impossibilitar a produção e reprodução da vida semeia doenças, fome, terror e morte. As vítimas são os seres humanos, cujas dignidades e vidas são destruídas. A modernidade e sua globalidade levam a um assassinato em massa e ao suicídio coletivo. Porém, a práxis do solidarismo caminha sempre sobre o fio da navalha: de um lado está o anarquismo contrário à instituição e de outro o reformismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem ser enquadrados dentro de princípios gerais, ético e crítico, a fim de que com factibilidade ético-crítica se possa negar as causas da negação da vítima. Essa é uma luta (des)construtiva, que exige meios proporcionais àqueles contra os quais a luta é travada. Mas, se a práxis traduz uma ação desconstrutiva, promove transformações construtivas: leva à uma nova ordem com base num programa planejado que é realizado progressivamente, mas nunca totalmente.


34.

O que nos dá liberdade

Uma das temáticas do humano é a presença do espírito e sua correlação com o messias, pois a humanidade é emancipada por esta correlação. Temos, através do espírito, uma humanidade emancipada, esperançosa e exultante. Traçado o curso da humanidade, no qual o presente triunfa, os humanos experimentam o livramento da alienação, por isso a morte é passageira esperada. 


Ou como canta Maciel Melo, em Até naqueles dias: “eu não consigo viver sem seu dengo, meu amor, é bom demais estar com você, acho bonito, acho muito lindo ver você sorrindo, ouvir você dizer, que eu sou dengoso e meio desligado, que sou descarado e não sabe o porquê me ama com tanto xamego”.

O desejo de eterno pode ser sintetizado na ceia do messias, no seu sofrimento, mas também na alegria do reino. Quando o humano cresce no presente se reveste de semelhança. Comer o pão juntos, na comunidade da fé, é ato afetivo e de cuidado com a humanidade machucada. Por isso, quando o mashiah olhou a humanidade ficou com misericórdia porque ela estava abandonada e aflita. Daí que vamos bailar algumas idéias sobre a ceia do messias e o sentido da morte como passagem.

A teologia diz que há vida plena para aqueles que estão no messias. O espírito da vida no mashiah é a vida liberta do destino de acabamento e alienação. De fato, o eterno enviou o seu mashiah em humanidade semelhante a nós e disse não à alienação no humano, a fim de que um novo destino se cumprisse no humano segundo o espírito. Com efeito, os humanos que vivem no espírito amam as coisas que são do espírito.

Daí o amor-companheiro para fazer o bem bom sem olhar se judeu ou grego, pois o eterno mostrou o seu prazer. O mashiah se acaba quando o humano dorme e acorda na alienação. O amor-companheiro fala com os que estão caídos e diz que o rabino de Nazaré preferiu não estar assentado, mas entregou a vida pela humanidade. O amor-companheiro traz paz aos caídos, porque não pesa a mão, ao contrário quer pessoas novinhas em folha. Sigam os meus passos, manejem e treinem do meu jeito, porque tenho amor-companheiro e estou agachado, ao lado. Só assim vocês vão dormir folgados, disse o messias. É isso mesmo, no mashiah o humano não vive no rabo de arraia, mas na sapiência. É mestre sim, mas do bem, de delicadeza.

Temos, então, um alinhamento igual à esquerda e à direita pela certeza, a exclusão temporal de alguns e a inclusão da humanidade. Ao analisar o alinhamento igual à esquerda e à direita vemos que o ir além do humano repousa sobre a certeza, proveniente do presente no mashiah. Essa misericórdia do haShem não depende do escrito, porque o humano não tem como responder às exigências do escrito, que expressa o eterno que está do lado. Assim, o presente chega com o mashiah, que na sua dor e prazer dá o indulto às alienações humanas. A liberdade diante do escrito não depende do humano aqui, mas do humano para lá de humano, daquele que sorri para a morte porque está em paz. Assim, há um ir além nessa correlação entre o escrito e o presente. 

E voltamos a Maciel Melo: “Me chama de nego, quando quer xodó, Aí começa aquela agonia, Que faz a gente levantar do chão, A gente esquece a hora e passa o dia, E a noite vem sem prestar atenção, Que prós amantes, tanto faz, O que importa é o impulso, é o desejo, é a paixão”.

Uma toada linda é a animação, que não pisa a fraqueza da humanidade. Quando alguém é apanhado com a faca na mão, no momento do golpe vil, humanos desarmam, mas não esquecem a amor-companheiro do espírito. Ajudam e obedecem à lei do messias. Por isso desobriga e é desobrigado pelo haShem. A desobrigação da pena foi cantada pelo mashiah, porque esquecer o dinheiro que foi levado é difícil, mas é o que eterno faz comigo e você. E é o que nos leva à rede, na varanda, no fresco da tarde. É resultado do amor-companheiro, da desobrigação e do gozo, quando a comunidade da certeza acende o farol alto e mostra à humanidade que a rede e a taba são possíveis, mesmo quando o mar não está para peixe.

O mashiah fala de liberdade. Para ser livre não basta a certeza, é necessário permanecer. Mas o que é isso? É continuar na certeza. No humano para lá de humano não deve haver cera. Permanecer é constância e ser humano no messias. Mas para ser livre é preciso também conhecer o axioma. E o que é conhecer? É gostar de dormir com, mesmo que tenha que comer sal juntos. Depois, então, é que se vai descobrir, inteirar. É a partir daí que o humano caminha em direção à liberdade. E a liberdade passa a ser a vida distante da azáfama da alienação.

O eterno acorda e dorme no partir do pão. Gente é parecença chamada a viver a experiência humana como comunidade da certeza. Pode beber e comer bênçãos nas celebrações de todos juntos. Gente é convocada a conviver na consistência do mashiah.

“Eu te amo quando é de manhã, Eu te amo quando é meio-dia, Eu te amo quando é de noite, Eu te amo todo santo dia, Eu te amo de qualquer maneira, Eu te amo até naqueles dias, Que por qualquer besteira você briga, E se intriga sem qualquer razão, Eu te amo, eu te quero, te desejo, Eu te dou meu coração”. É isso aí Maciel Melo.

Liberdade no Yeshua é ir para a cama sem a faina da alienação, das coisas que amarram e impedem o movimento do espírito. Descobrir o significado de duas toadas, conhecer e ficar, na celebração do mashiah leva ao axioma e ao livramento da azáfama da alienação, acabamento e escombros.


35.

Somos bichos?

Até que ponto o comportamento humano é tão diferente do comportamento dos animais? Logicamente, responder a esta pergunta nos leva a discutir se de fato há liberdade e responsabilidade no comportamento humano. Se voltarmos, por exemplo, a Baruch Spinoza o comportamento humano deve ser descrito em termos de causas mecanicistas, como os demais fenômenos da natureza. Spinoza dedica ao problema moral e à sua análise os livros III, IV e V da Ethica. No livro III faz uma história natural das paixões, isto é, analisa as paixões teoricamente e cientificamente, e não desde um ponto de vista moral. 

O filósofo deve humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere; assim se exprime Spinoza no proêmio ao II livro da Ethica. Tal atitude científica, em Spinoza, é favorecida pela concepção determinista da realidade, em virtude da qual o mecanismo das paixões humanas é tão necessário como o mecanismo físico-matemático, e as paixões devem ser tratadas com a mesma serena indiferença que as linhas e superfícies das figuras geométricas. E bom passa a ser apenas uma palavra para descrever coisas que nos dão prazer e mau coisas que nos causam dor. Na verdade, foi o marquês de Sade (1740-1814), antes de Nietzsche, a dizer que o que move a ação do ser humano é o bom e o ruim. E o bom, para Sade, é tudo o que causa prazer ao indivíduo, ao passo que o ruim não é o que causa desprazer, mas antes o que vai contra à Natureza. Por isso, podemos chegar a Bataille partindo de Spinoza e passando por Sade, para quem a essência do bom é uma inversão de valores, que visa transformar o mundo em outro que se acredita melhor.

Talvez seja necessário partir daí, da experiência marcada pelo prazer. O prazer de viver. Tal leitura procura superar a acentuação de uma teologia da alienação, com a consequente culpa infindável, que perpassa a tradição cristã, no mínimo, pós-agostiniana. Aliás, a tradição cristã traduz este tropeço, uma vez que em sua metanarrativa fundante pesa a sombra de um instrumento de tortura, a cruz. Mas sem negar a dor e o mal, talvez seja possível, mesmo no cristianismo, recuperar o prazer de viver. Ou, como disse Gonzaguinha, "viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será. Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita". O que é o que é, Gonzaguinha.

Assim, prazer, do latim placere, traduz a idéia de emoção agradável que resulta da atividade satisfeita, inclusive de gozo sensual, mas por oposição nos lembra dor e aflição. Nesse sentido, costumamos chamar aquele prazer que envolve a sexualidade de erotismo, já que aí está implícita a idéia de amor sensual. Por isso, erotismo pode ser considerado a indução ou tentativa de indução de sentimentos, mediante sugestão, simbólica ou alusiva, da questão sexual, o que nos leva ao prazer erótico. João Ubaldo Ribeiro, em entrevista ao jornal português Diário de Notícias, de 22/1/2000, conta que uma cadeia de supermercados portuguesa recusou-se a vender seu livro, A Casa dos Budas Ditosos, invocando o fato de esta ser pornográfica. Para o escritor tal atitude traduz o fato de que na cultura cristã, “há um sentimento de culpa ligado ao prazer, que tem marcado o pensamento ocidental. A ponto de Epicuro (...) passar a ser olhado com uma certa reserva, por ser o filósofo do prazer. (...) Numa sociedade que suspeita do prazer. É comum nós, cristãos, ou pelo menos de formação cristã e católica, sentirmo-nos desconfiados no momento em que estamos felizes”.

Georges Bataille, 1897-1962, nasceu em Billon, Puy-de-Dôme, França. Filósofo e escritor francês, ficou conhecido como o metafísico do mal. Sua obra está marcada por três experiências centrais: a experiência cristã de sua formação católica e jesuítica, a experiência estética no âmbito do surrealismo e a experiência política de esquerda. Escreveu sobre sexo, morte, degradação e as potencialidades do prazer. 

Considerava que o objetivo de todo intelectual, artista e teólogo, deveria ser a aniquilação da racionalidade em um ato violento, transcendental de comunhão. Bataille cursou teologia, com a intenção de ser padre, participou do movimento surrealista, mas acabou por se dedicar à sociologia, religião e literatura. Fundou e editou jornais. Foi o primeiro a publicar pensadores como Barthes, Foucault e Derrida. Casou-se duas vezes. Primeiro com Sylvia, que depois de divorciar-se de Bataille casou-se com o psicanalista Jacques Lacan. Em 1946, Bataille casa-se com a princesa Diane Kotchoubey de Beauharnais, filha do príncipe Eugene Kotchoubey de Beauharnais e Helen Pearce. Georges e Diane tiveram uma filha, Julie Bataile, que nasceu em 1949.

Uma de suas obras mais polêmicas é a Histoire de l´oeil (1928), que foi filmada, e que influenciou, entre outros, a filmografia do diretor japonês Nagisa Oshima (Império dos Sentidos) e a produção do cantor pop islandês Björk Guödmundsdóttir. Outras obras importantes são Le bleu du ciel (1945), L´abbé (1950). No campo da religião produziu um clássico chamado O Erotismo. Sua bibliografia é muito vasta e influenciou alguns dos principais pensadores modernos, que não lhe poupam elogios, como Jürgen Habermas, Barthes, Foucault e Derrida. Um ano antes de sua morte, em 1961, Pablo Picasso, Max Ernst e Juan Miró organizaram um leilão de pinturas para ajudar Bataille a superar suas dificuldades financeiras. Bataille morreu em Paris no dia 8 de julho de 1962. 

Em O Erotismo, Bataille apresenta uma chave de análise dos aspectos fundamentais da natureza humana, o ponto limite entre o natural e o social, o humano e o inumano. Bataille vê a experiência do prazer como aquela que permite ir além de si mesmo, superar a descontinuidade que condena o ser humano. E a partir dessa constatação, se propõe tratar da questão sob três perspectivas, o prazer dos corpos, o prazer dos corações e o prazer sagrado, já que o desafio é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda. 

Quando, devido à secura das vidas, os ascetas monásticos sentiam que o seu maior inimigo, a sensualidade, os abandonava, eles inventavam outro inimigo. Desta forma, mantinham à frente daqueles que não eram santos a imagem de seres especiais, em luta contra o mal. E, assim, tudo que era natural, as sensações de prazer, a sensualidade era apresentada como má, pecaminosa, fazendo com que as pessoas vivessem num mundo de medo, inseguras e desconfiadas ao lidar com as emoções. Por isso, para Nietzsche, até nos sonhos revelava-se a consciência atormentada dos santos. Essa associação do natural com o pecado, equívoco dos ascetas, dos sacerdotes e dos metafísicos, levou a um resultado pior do que o pretendido. Ao acreditar que o ser homem era mau e pecador por natureza, ao invés de melhorá-lo, considerava Nietzsche, a herança monástica tornava o humano pior.

Tal mal-estar, oriundo das culpas imaginárias, acumulava impressões pesarosas, fazia com que se acreditasse que o pecado era tamanho que somente uma força sobrenatural poderia arrancá-lo daquele sofrimento, da sensação de sentir-se perdido. Essa vida, que na verdade era morte, criou o clima para que os herdeiros do monasticismo saíssem em busca da salvação, já que induzidos pelo engano, acreditavam estar irremediavelmente extraviada. Por isso, Nietzsche vai constatar que o que provoca a angústia nos cristãos, assim como a redenção pretendida de modo algum "corresponde em absoluto a uma pecaminosidade real, e sim a uma falta imaginária". Os cristãos, considerava Nietzsche, lutam o tempo inteiro contra os fantasmas criados pelos ascetas, pelos sacerdotes e pelos metafísicos. Espectros que ficavam pairando ao redor deles como se fossem assombrações das quais eles jamais conseguiam se livrar. E esses fantasmas assombraram o jovem jesuíta Georges Bataille.  

“Se alguém se confessa angustiado, é preciso mostrar o vazio das suas razões. Ele imagina a solução para seus tormentos: se tivesse mais dinheiro, uma mulher, uma outra vida... a frivolidade da angústia é infinita. Ao invés de ir até a profundeza de sua angústia, o ansioso tagarela, degrada-se e foge. E, no entanto, a angústia era a oportunidade: ele foi escolhido na medida dos seus pressentimentos. Mas que desperdício, se ele se esquiva: sofre da mesma maneira, humilha-se, torna-se estúpido, falso, superficial. A angústia evitada faz de um homem um jesuíta agitado, mas em vão. (...) o homem não é contemplação (ele só possui a paz, fugindo), ele é súplica, guerra, angústia, loucura”. 

Mas se o monasticismo e a cultura do corpo mau eram herança presente, devemos nos remeter também ao pensamento libertário herdado por Georges Bataille. E vamos fazê-lo a partir do Marquês de Sade (Donatien Alphonse François de Sade, 1740-1814) e de Friedrich Nietzsche.

Sade foi um precursor da moral que ganhou espaço no mundo contemporâneo depois do Maio francês de 1968, ou seja, foi precursor da revolução sexual, incluindo nessa leitura a homossexualidade. Em Os 120 Dias de Sodoma satiriza o domínio do pensamento heterossexual e a condenação à morte de pessoas acusadas de comportamentos desviantes. É interessante, que este romance, onde nobres abusam de crianças raptadas e fechadas num castelo, num clima de violência, com coprofagia, mutilações e assassinatos, foi produzido durante sua prisão, manuscrito em letras miúdas num rolo de papéis colados, e teve sugestões dadas por sua mulher, Renné. Ela, aliás, passou parte da vida a defender o marido nos tribunais e só se separou dele quando o marquês foi libertado da cadeia, por breve intervalo de vida livre depois da Revolução Francesa.

Clássico maldito, o surrealismo e a psicanálise encamparam a visão da política prazer e dor que a obra de Sade expõe. Vemos sua influência nos filmes de Luis Buñuel, quando em A Idade do Ouro, retrata a saída de Yeshua e dos libertinos do castelo das orgias de Os 120 Dias de Sodoma. De igual modo nas imagens em que a navalha cega o olho da mulher em O Cão Andaluz. Também vemos referências em A Bela da Tarde e em Via Láctea, na cena em que Sade converte uma menina ao ateísmo. A influência de Sade pode ser notada também na obra de Jean Genet, dramaturgo, homossexual, ladrão e presidiário, que retomou muitos dos temas do marquês (O balcão, Os negros e Os biombos). Mas, sem dúvida, a obra que melhor retratou em toda sua crueza o paradoxo do prazer e da dor, ou seja, do erótico em Sade foi Saló ou Os 120 Dias de Sodoma, de Píer Paolo Pasolini. O filme situa-se na Itália fascista, durante a Segunda Guerra Mundial, e apresenta cenas de tortura e degradação de um grupo de adolescentes.

Bataille, admirador de Sade, entendeu a linguagem erótica como liberdade que viabiliza a negação da transgressão que gera a proibição. Ao realizar tais explorações, como possibilidade de vida, Sade e Bataille fazem a crítica explícita da tradição cristã e expõem os princípios que negam o humano. Eles se impõem à tarefa de ouvir a voz humana dos algozes, considerando o que para a sociedade são as suas não-razões, de forma a construir uma cumplicidade no conhecimento do mal. Nesse sentido, Bataille tem uma explicita admiração por Sade. Em A literatura e o mal, o chama de gênio:

"À primeira vista, a Revolução marca na literatura francesa uma época pobre. Propõe-se uma importante exceção, mas ela diz respeito a um desconhecido (que teve uma reputação durante a vida, mas deplorável). Se bem que o caso excepcional de Sade não infrinja de modo algum uma opinião que ele logo iria confirmar. É preciso dizer em primeiro lugar que o reconhecimento do gênio, do valor significativo e da beleza literária das obras de Sade é recente: os escritos de Lean Paulhan, de Pierre Klossowski e de Maurice Blanchot o consagraram; é certo que uma manifestação clara, sem insistência, evidente não foi dada antes de uma opinião tão vasta, que suscitou homenagens ruidosas e que se impôs lenta, mas seguramente". Georges Bataille, A literatura e o mal.

E o peso libertário de Nietzsche não foi menor, mas nessa abordagem queremos partir de uma mulher: Lou Andréas-Salomé (1861-1937). Feminista, no sentido revolucionário da expressão, e psicanalista freudiana, em seu ensaio Reflexões Sobre o Problema do Amor, de 1900, analisou como a feminilidade e o sentimento amoroso encontram eco em nossas experiências contemporâneas. Nesse sentido, a palavra vida, no sentido apaixonante do termo, o de usufruir com vontade e ardor a existência, é central no pensamento de Lou. E no correr dessa vida apaixonada/ apaixonante, ela encantou e foi encantada por personagens exuberantes como os filósofos Paul Rée, Friedrich Nietzsche e o poeta Rainer Maria-Rilke. E o que nos interessa aqui, é que para essa pensadora, nascida em uma abastada família russa como Ljolia von Salomé, na São Petersburgo de 1861, amor era sinônimo de libertação.

Nietzsche foi o homem que ousou apaixonar-se por Lou e que, depois de um período de amizade, de onde resultaram livros capitais de ambos, teve seu amor recusado. Através das cartas trocadas entre Nietzsche e o objeto de sua paixão, podemos acompanhar o processo de enlouquecimento de um homem que, roído de dor e ciúme, acompanha os desvarios da irmã Elisabeth, que organiza uma campanha de difamação pública contra Lou ao ver o irmão mergulhado num caminho sem volta. 

Lou, Rée e Nietzsche, logo no início dessa criativa amizade, quase viveram juntos, sob o mesmo teto, à maneira de uma santíssima trindade. Não podemos nos esquecer que Paul Rée, também apaixonado por Lou, pôs fim à vida, atormentado pela ausência de Lou. 

Lou casou-se com um homem quinze anos mais velho, Carl Andreas, seu companheiro durante mais de quatro décadas, fidelidade que talvez seja explicada pelo fato de nunca ter imposto a ela as obrigações de esposa no contexto do século 19, e que aparentemente fechou os olhos aos admiradores que Lou colecionou no correr da vida.

A única paixão de Lou começou em 1897 quando, já com 36 anos, casada com Carl, conheceu o poeta René-Marie Rilke, de 22 anos. Foi uma política fecunda para ambos: Rilke cresceu como poeta e Lou escreveu A humanidade da mulher e Reflexões sobre o problema do amor (1899 e 1900), sob o impacto da intensa experiência vivida. Até a morte de Rilke, em 1928, e muitos anos depois, até a sua própria morte, em fevereiro de 1937, aos 73 anos, Lou faria do poeta a razão de sua existência e afeto.

Em 1910, Lou escreveu o ensaio O Erotismo, que encontrou ressonância no pensamento de Georges Bataille. No ensaio, propõe aos leitores a necessidade de correlacionar experiência e o conhecimento. Lou Andréas-Salomé colocou-se assim como interlocutora de Nietzsche e, por extensão, de Bataille. 

A religiosidade primitiva, para Bataille, extraiu das proibições o espírito da transgressão, enquanto, a religiosidade cristã se opôs ao espírito de transgressão. A visão de bom e mau, prazer e pecado, nos limites do cristianismo está ligada a esta relativa oposição.

Há no cristianismo um movimento duplo. Nos seus fundamentos o cristianismo quis abrir-se às possibilidades dum amor que era princípio e fim. Quis encontrar em Adonai a continuidade perdida, invocar os delírios rituais para além das violências reguladas, o amor total e sem cálculo dos fiéis. Os homens, transfigurados pela continuidade divina, eram chamados, em Adonai, a amarem-se uns aos outros. 

Assim, o cristianismo jamais abandonou a esperança de levar este mundo de descontinuidade ao reino da continuidade, abraçado pelo amor. O movimento inicial da transgressão derivou no cristianismo na visão duma superação da violência, que foi. transmutada no seu próprio contrário. Há neste sonho algo de sublime e trágico.

A transgressão é a desordem organizada, ao introduzir num mundo organizado algo que o ultrapassa. Mas essa organização, fundada no trabalho, tem por base a descontinuidade do ser. O mundo organizado do trabalho e o mundo da descontinuidade são o mesmo mundo. Se os utensílios e produtos do trabalho são coisas descontínuas, aquele que se serve do utensílio e fabrica produtos é também um ser descontínuo e a consciência da sua descontinuidade aprofunda-se na utilização e criação de objetos descontínuos.

E é no mundo descontínuo do trabalho que a morte se revela: já que para quem trabalha a descontinuidade se faz presente, com poder, através da morte. Ela é tragédia elementar que evidencia a inanidade do ser descontinuo. 

Ao reduzir o sagrado, o divino, à pessoa descontínua de um Adonai criador, o cristianismo foi longe e transformou o outro mundo num local onde se prolongavam todas as almas descontínuas. Povoou céus e infernos de multidões condenadas à descontinuidade eterna de cada ser isolado. Eleitos e condenados, anjos e demônios, transformaram-se em fragmentos, para sempre divididos, para sempre distintos uns dos outros, para sempre desligados dessa totalidade do ser à qual era contudo necessário religá-los.

Assim, o dilema está colocado: como continuar religioso sem perder o prazer? Tal como a proibição criou, na violência organizada das transgressões, o prazer inicial, proibindo a transgressão organizada, o cristianismo aprofundou os graus da perturbação sensual. 

E o prazer se ligou à transgressão. Mas o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. É o pecado de que fala Baudelaire, já que segundo Otto Maria Carpeaux, Baudelaire era espiritualista porque levou às últimas consequências o pecado como condição da alma, ora enfatizando audazmente a dissolução, ora padecendo pelo que a consciência lhe dita. Daí o ser denominado poeta do tormento humano. As narrativas dos sabbats, por exemplo, correspondem a uma procura da alienação. Sade negou o mal e o pecado, pois ser arrebatado não é sempre resultado do objeto duma paixão. O que destrói um ser arrebata-o também. O arrebatamento é a ruína de quem antes se colocou os limites do mal.

Mas teve que introduzir a idéia de irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. Teve de recorrer à blasfêmia. Sentiu que a profanação era inócua, se o blasfemo negava o caráter sagrado do bem, que pretendia macular. A necessidade e a impotência das blasfêmias de Sade são significativas. A Igreja negou o caráter sagrado do prazer, encarado como transgressão. 

Por isso, filósofos e poetas negaram o que a Igreja considerava sagrado. Por isso Nietzsche disse que onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na terra, nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual. Nessa negação, a Igreja perdeu em parte o poder religioso de evocar uma presença sagrada: perdeu-o quando o diabo deixou de estar na base duma perturbação fundamental. Ao mesmo tempo, os espíritos livres deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o prazer, deixando de ser um pecado, deixava de poder encontrar-se na certeza de fazer o mal, o que implica a destruição da sua própria possibilidade. Num mundo profano só haverá mecânica animal. A consciência da alienação pode manter-se, mas só se mantém ligada à consciência de um logro. 

Ultrapassar uma situação não pode significar regressos ao ponto de partida. Há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As ações dos corpos podem, na lucidez, abrir-se, apesar dum empobrecimento, à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cujos aspectos não deixarão de estar disponíveis, afirmou Bataille. 

O prazer dos corações, o prazer mais ardente, ganhará aquilo que o prazer dos corpos tiver perdido, o que nos remete à fêmea do louva-a-Adonai como heroína sadiana. Didier Ottinger, Retrato da fêmea do louva-a-Adonai como heroína sadiana, nos conta que “em maio de 1934, a revista Minotaure traz efetivamente um estudo de Roger Caillois: "La mante religieuse, de la biologie à la psychanalyse", em que o autor fornece aos futuros exegetas do louva-a-Adonai as chaves de sua interpretação sadiana. Um ano mais tarde, o artigo desenvolvido constituirá um capítulo da obra de Caillois, O mito e o homem. 

Se lhe aplicássemos as apreciações típicas de André Breton, o louva-a-Adonai pertenceria sem dúvida alguma à categoria dos obcecados. Caillois nos ensina que o inseto é um matador apenas por lubricidade. Cita o entomólogo Raphael Dubois, de acordo com quem um acridídeo, se decapitado, executa melhor e mais demoradamente os movimentos reflexos e espasmódicos próprios da cópula. Os biólogos F. Goltz e H. Busquet, a partir dessa constatação, se indagam se a fêmea do louva-a-Adonai, ao decapitar o macho antes do acasalamento, não teria por finalidade obter, mediante a ablação dos centros inibidores do cérebro, execução mais prolongada e melhor dos movimentos espasmódicos do coito, de tal forma que, em última análise, fosse o próprio princípio do prazer que lhe ordenasse a morte do amante.

O prazer nos deixa na solidão. Prazer é aquilo sobre que é difícil falar. Por razões que não são meramente convencionais, o prazer, principalmente o dos corpos, é definido pelo segredo. Não pode ser público. Tal experiência prazerosa situa-se fora da vida de todos os dias. No conjunto da nossa experiência, permanece separada da comunicação que fazemos das nossas emoções. Trata-se de tabu. Evidentemente que nada é completamente tabu, há sempre transgressões. Mas o tabu intervém para que se possa dizer que o prazer, sendo intensa emoção, já que nossa existência está presente sob a forma de linguagem, existe como se não existisse.

Há em nossos dias uma atenuação deste tabu, mas, apesar de tudo, o prazer ficará sempre como algo de exterior, algo que só é possível sob uma condição: sair para mergulhar na solidão, numa separação do mundo em que estamos. Assim, a experiência prazerosa leva ao silêncio.

Não sucede a mesma coisa com a santidade. A emoção experimentada na experiência da santidade pode ser expressa no discurso, pode ser objeto dum sermão. A experiência prazerosa, contudo, talvez seja vizinha da santidade. 

Isto não quer dizer que prazer e santidade tenham a mesma natureza. Mas que uma e outra experiência têm uma intensidade extrema. Quando se fala da santidade, fala-se da vida que determina a presença em nós de uma realidade sagrada, de uma realidade que pode nos perturbar completamente. A emoção da santidade e a emoção do prazer, quando traduzem uma intensidade extrema, nos aproximam de outras pessoas e nos afastam delas, nos deixam na solidão.

A passagem do prazer à santidade tem sentido, afirma Bataille. É a passagem do que é maldito e rejeitado ao que é abençoado e bendito. O prazer é crime solitário, que não salva senão opondo-nos a todos os outros, que não salva senão na euforia de uma ilusão, uma vez que aquilo que no prazer leva ao extremo grau da intensidade atinge-nos ao mesmo tempo com a maldição da solidão. Já a santidade faz sair da solidão, com a condição de aceitar este paradoxo -- felix culpa! -- cujo próximo excesso resgata. 

Só um desvio permite nestas condições regressar aos nossos semelhantes. Este desvio merece sem dúvida o nome de renúncia, uma vez que no cristianismo não podemos simultaneamente operar a transgressão e gozar dela, e só outros podem gozar dela na condenação da solidão. O acordo com os seus semelhantes só é encontrado pelo cristão sob condição de nunca mais gozar daquilo que o liberta, daquilo que nunca é mais do que transgressão, violação das proibições sob as quais repousa a civilização.

Se seguirmos o caminho indicado pelo cristianismo, considera Bataille, podemos não apenas sair da solidão, mas aceder a uma espécie de equilíbrio, que escapa ao desequilíbrio primeiro e que nos impede de conciliar disciplina e trabalho com a experiência dos extremos. A santidade cristã abre-nos pelo menos a possibilidade de levar até ao fim a experiência desta convulsão final, a morte. Aquele que compreende a importância do prazer apercebe-se que esse valor é o valor da morte. Talvez seja um valor, mas a solidão abafa-o.

Por isso, para Bataille, o santo vive como se morresse, mas vive a fim de encontrar a vida que é a vida. A santidade é sempre um projeto. Talvez não o seja em essência. A intenção da vida eterna liga-se à santidade como se liga ao seu contrário. Como se, na santidade, só um compromisso permitisse entregar o santo à multidão, entregar o santo a todos os outros: à multidão, ou seja, ao pensamento comum.

O mais estranho é que possa haver ligação entre a transgressão deliberada e a condição de não se falar dela. Este acordo é encontrado nas religiões arcaicas. O cristianismo inventou um caminho aberto à transgressão que permite se falar da transgressão. Reconhecemos assim que o pensamento, que no cristianismo vai além, tende a negar tudo o que se assemelha à transgressão, a negar tudo o que se assemelha à proibição. 

Na palavra do prazer erótico há uma recusa de viver o tempo que produz desprazer, que leva à angústia. Esse tempo é morto, sacrificado na linguagem do erótico, que substitui a angústia pelo tempo subjetivo: evita assim que a pessoa se torne refém das exigências externas ao se submeter ao desejo do outro. Mas, a morte do tempo que produz desprazer leva à ressurreição, leva a um novo tempo. Por isso, na linguagem do prazer erótico, como a vê Bataille, há libertação porque na seqüência gozo, angústia, desejo, o gozo não é mais atemporal, mas temporal. 

Assim, no plano do prazer, temos a palavra do prazer, que é negação da proibição, negação da transgressão que gera a proibição. Aqui, a linguagem do prazer é negação que define o humano em oposição ao animal.


36.

A fé e a política

Faz com que nos deitemos em paz, eternidade, e que nos levantemos plenos de vida boa e para a paz. Estende sobre nós a tenda a paz e favorece-nos com bons conselhos.

É necessário reconstruir o caminho do diálogo da convicção com a política, já que somos a potência de ser, mesmo em seu sentido metafórico. E o poder da ancestralidade longeva supõe um objeto sobre o qual possa exercer seu poder. Assim, a política tem uma essência: o uso do poder. E o poder determina os caminhos da sociedade. E esse poder político recorre à autoridade social instituída e possibilita ao estado exercer coerção em nome do direito dos cidadãos. Mas as convicções pessoais sobre a eternidade e sua soberania têm implicações no pensar a política. Ao optar por uma convicção espiritual privatizada, ofusca-se caminhos e mascaram-se práticas, às vezes, não éticas, mas de atitudes aparentemente piedosas. E dessa maneira, a política não é por essa espiritualidade negativa, que apresenta propostas de uma ordem política onde o amor sem poder supere o poder sem amor.
 
Quando se propõe uma teoria social que contrapõe as relações de poder ao amor, é impossível integrar política e estilo de vida. Então, as comunidades de convicção rejeitam qualquer forma de poder representado na ordem econômica e política sob o poder do Estado. Mas ao rejeitarem as relações de poder da sociedade, aceitam, por exclusão, já que a política também se faz por omissão, o uso do poder que está instituído, pois, ao não defenderem uma retirada do mundo, colocam-se sob o poder presente. Neste sentido, diferem do separatismo radical, que historicamente propôs a separação entre as comunidades de convicção e o Estado em nome da liberdade de consciência. Este separatismo acreditava que o fracasso das relações de poder são impedimentos para a manifestação da eternidade. Era um fundamento de cunho liberal, fazia a crítica da política e propunha o distanciamento físico dos poderes do mundo. O que nos obriga a admitir que traduzia uma atitude política consciente. 

Hoje, a espiritualidade dos brasis é separatista e foge do mundo: acredita ter uma missão moral de transformação, mas, muitas vezes, nega a possibilidade da diversidade de leituras, por temer a práxis solidária. Ora, se a comunidade cristã tem uma ética de política, deve utilizar os meios que possibilitam chegar aos fins que busca. Rejeitar o poder é rejeitar relações. Tal rejeição pode até ser aceita, desde que seus agentes tenham consciência do que estão fazendo e, coerentemente, proponham o abandono do mundo. Quando uma comunidade acredita que a omissão diante da política e do poder favorece à instalação do reino do eterno, tem-se a negação da política como política cristã, o que fortalece aqueles grupos que buscam o poder em benefício próprio. E, ao contrário do que crê o negativismo, tal postura não estabelece o reino da eternidade. 

Se não é possível falar de política sem falar de poder, outra questão se coloca: amor e poder são compatíveis? A pergunta procede porque a espiritualidade remete à prática do serviço ao próximo, mas, em nome da espiritualidade e do amor ao próximo, comunidades cristãs negam a possibilidade de todo e qualquer poder. Tal postura apresenta-se como equívoco, pois o poder não é uma identidade morta, mas um movimento reflexivo, onde o ser se separa dele para depois retornar a ele de novo. O poder, dessa maneira, é tão maior quanto maior for a separação vencida. E o movimento que reúne aquilo que estava separado é o amor. Mas se há um amor unificador, há o não-ser vencido e há o poder de ser, por isso, o amor é a base e não a negação do poder. Tal amor é um ato da vontade, porém, não se pode forçar uma pessoa a amar alguém. Já os atos políticos contêm elementos não voluntários, porque o poder do Estado está associado a ações que podem estar fora da vontade da pessoa, enquanto o ato de amor está associado a ações do querer. Outro fato importante é que o amor deve ser mediado pessoalmente. Como a natureza voluntária do amor necessita da existência de uma pessoa que o ative, o amor sempre necessita de um agente moral livre. O Estado, como qualquer outra ordem social instituída, tem uma existência objetiva e alcança seus fins indiscriminadamente. A política da pessoa com o Estado é uma política cidadão/instituição, em lugar da política eu/você, que possibilita a mediação pessoal que ativa o amor. Além disso, o amor tem um caráter sacrificial. Ou seja, possibilita ações que a despeito dos interesses particulares, imediatos, responde ao bem-estar do outro. Conscientemente, é um perder para que outro ganhe. Sacrificam-se direitos, sem estar forçados por obrigação legal, para que o outro seja beneficiado. 

Por ser livremente determinado, o amor vai além de uma obrigação moral ordinária. Cumprir obrigação moral é responder à necessidade moral, é um ato de dever em lugar de um testemunho moral livre. É importante entender que esse processo de ir além da obrigação moral envolve, como paradoxo, uma vontade moral implícita. É por isso que o amor pode se transformar segundo as exigências concretas das pessoas e das instituições sociais, sem perder a dignidade incondicional. Assim, podemos dizer que o amor é voluntário e livremente entregue, que envolve volição moral, deve ser mediado pessoalmente, é sacrificial. E, finalmente, que o amor vai além do dever ou da obrigação moral, embora implique, paradoxalmente, em obrigação moral ou realização de um dever de origem.  

A política implica em servidão não voluntária, já que sua natureza baseia-se no uso da coerção e da força para alcançar seus fins. É organização formal e opera impessoalmente, e os políticos, mesmo quando são trabalhadores e solidários, se ocupam de ações que levam terceiros ao sacrifício, por isso a necessidade da força e da coerção e, em última instância, do próprio Estado. Nessas condições, a maioria da população geralmente se considera satisfeita quando vive sob uma ordem política, seja ela dirigida por trabalhadores e solidários ou não, que responde às exigências de sua obrigação moral. E quando isso não acontece podem levantar um chamado à rebelião contra o Estado, a fim de exigir dele a realização daquilo que é sua obrigação moral. Fazendo assim atuam no sentido de que não se torne totalitário, ou seja, negue os limites de seu poder de Estado ou passe por cima das obrigações que tem com as pessoas. Não obstante, mesmo para um governo dos trabalhadores, usar o poder do Estado como meio de realizar o amor entre as pessoas é um contra-senso, pois moralmente não se pode coagir ninguém ao amor. Tal coerção destruiria também a obrigação moral do Estado, que baliza a diferença entre poder limitado e governo totalitário.
 
Dado a dualidade entre poder e amor e o conflito aparente entre poder sem amor e amor sem poder, como a comunidade cristã, evangélica ou não, deve se situar frente à política? Colocada a questão nestes termos, de fato é difícil escolher entre ser massa, mas cidadão do reino, e ser um militante atuante à margem da salvação. Como seguir o caminho cristão sem rebaixar a nobreza do amor no altar do poder político? A alternativa de reconciliação entre poder sem amor e amor sem poder é o conceito de justiça. E justiça, num sentido amplo, significa dar às pessoas aquilo que por direito lhes pertence. Mas aqui outra questão se levanta: o que por direito lhes pertence? Uma possibilidade de resposta é entender a justiça como a maneira através da qual o poder deve ser realizado. Nesse caso, a justiça deve estar em sintonia com o movimento do poder, deve ser capaz de dar forma ao encontro da pessoa com outra pessoa. O problema da justiça no encontro surge do fato de que é impossível dizer como se organizará a política de forças nesses encontros. A cada momento existem inúmeras possibilidades. E cada uma dessas possibilidades exige uma forma particular de justiça. Assim, as reivindicações da justiça só podem ser operacionais numa comunidade se forem definidas com um grau significante de particularidade, pois a justiça requer julgamentos diferentes diante de reivindicações contraditórias. Donde, não basta justiça como generalidade. É necessário trabalhar a compreensão de justiça no particular, para não cair no moral/mente, quando não se tem nada a oferecer por se falar de forma idêntica em tempos, espaços e situações particulares diferentes.
 
Muitas vezes a rede das transformações, em especial sua corrente cristã, considerou que fazer justiça significava dar a cada pessoa aquilo que lhe é por direito, mas essa afirmação colocava algumas questões: se todas as pessoas têm igualdade moral, então essa igualdade deve se estender a todo grupo social, às relações econômicas e relações em que se fazem presentes. E se as pessoas são desiguais nas contribuições que fazem à sociedade, então essas desigualdades devem se traduzir nos grupos sociais e nas relações econômicas e relações. Ambos os argumentos, sem dúvida, têm suas razões de ser. E fazem parte dos debates políticos entre os cristãos e o solidarismo das redes de transformação. 

Por encontrar dificuldades na formulação prática do conceito de justiça, as correntes cristãs fundamentalistas têm rejeitado o conceito de justiça enquanto ordem possível na humanidade. A justiça enquanto ordem possível na humanidade traduz a idéia de que o ser humano tem um conhecimento universal do bem e por isso compreende a necessidade de justiça. O novo conceito defendido pelas comunidades fundamentalistas é o de que a justiça é uma ordem apenas possível através da redenção e, por isso, não existiria um conhecimento seguro de justiça fora da revelação. Dentro dessa leitura teológica, só houve justiça na origem. Assim, ao rejeitar a possibilidade de uma ordem universal fora da revelação, tal compreensão teológica leva a um problema de episteme, pois afirma que a razão não tem nada a dizer fora da revelação. Essa visão teve e tem consequências práticas na elaboração de estratégias para a ação política, porque define que só a partir da fé se pode falar com autoridade sobre justiça. Ou seja, os cristãos não poderiam, como consequência, militar politicamente com não-cristãos, pois não há base secular para o envolvimento político dos cristãos. Desse modo, ao negar o conhecimento natural do bem político, a única alternativa é omitir-se, porque política é coisa mundana, ou estabelecer uma política cristã sectária. 

Por isso, o fundamento nas terras dos brasis buscou impor normas retentivas, favorecendo o distanciamento dos fiéis da política, ao contrário daqueles que defendem uma teologia do conhecimento universal do bem, que rechaça o negativo das ordenanças da redenção por isolar, alienar e separar a pessoa e a comunidade da prática política. Ora, numa leitura teológica do conhecimento universal do bem, a justiça deve estar baseada em reivindicações universais de direito, pois estabelecer justiça em base de autoridade sectária é violentar a compreensão de que todas as pessoas têm um conhecimento do bem: donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça. Assim, a justiça deve ser definida dentro do contexto de uma determinada ordem social e deve ser aplicada em termos de particulares, pois fundamentar o argumento da justiça apenas na pessoa não é o bastante. E devido à universalidade das normas de justiça e à universalidade da consciência de justiça, uma pessoa pode ter procedimentos e práticas que aprofundem relações e programas que favorecem a justiça. É exatamente isso que os direitos cidadãos buscaram trazer para as alegrias representativas. É o reconhecimento de que os meios empregados não devem violentar os fins procurados. É necessário, ainda, reconhecer que as normas de justiça são objetivas e que existem independentemente da volição humana. Consequentemente, podem ser feitas reivindicações em nome da justiça e podem ser rejeitadas reivindicações em nome da justiça. 

Considerando que o amor deve ser querência entregue, justiça exige reconhecimento independente da vontade humana. Essa discussão sobre a justiça, nos leva à questão da alegria. A partir da revolução dos francos de 1789, as declarações de direitos passaram a se abrir com o enunciado de que os seres humanos são livres e iguais. Foi assim que a terra dos euros assumiu a realidade da dimensão universal do direito à liberdade e à igualdade, que mobilizou os movimentos de libertação de escravos, mulheres e povos. A constatação desse direito à liberdade e à igualdade legitimou as revoluções burguesas, e a alegria representativa apresentou-se como a forma política através da qual essas liberdades se exprimiriam. Mas, a alegria representativa enquanto expressão da justiça entrou em crise, porque cultura da modernidade burguesa se encontrava em crise. Na terra dos brasis, recentemente, tal situação foi presenciada e mobilizou milhões de pessoas em atos e tratos. Mas, diante do possível desmoronamento iniciou-se um processo onde a alegria representativa funcionou não como forma política de expressão dos direitos à liberdade e igualdade, mas como elemento de controle e restrição dessas liberdades. E as eleições surgiram, então, como alternativa para que o fim do regime militar não desembocasse numa derrocada de fragores e a mobilização das gentes levasse a uma ampliação da alegria participativa. Essa alegria de amplo espectro, participativa, que surge à galope do movimento das gentes dinâmicas, é o que chamamos de revolução democrática. E nas terras dos brasis a revolução democrática, entendida como etapa anterior ao socialismo e defendida pelos democratas radicais e reformistas, já tinha sido abortada, e o foi de novo, quando ficou claro que as mobilizações conduziriam à extinção do autoritarismo. 

A terra brasilis brasis arrancou na direção da alegria de participação, e assim voltaram a surgir condições para uma expansão da alegria de participação, onde a classe trabalhadora, com as redes de transformação, poderia marchar em direção ao governo. A Constituição abrira essa possibilidade, e as mobilizações das massas, surgidas a partir da deterioração da ordem legal, davam às pessoas e aos movimentos o lugar de atores sociais. De fato, as eleições possibilitaram a conquista de espaços democráticos representativos, e permitiram que a voz social e política dos trabalhadores fosse ouvida nacionalmente. E, possibilitou também que as intervenções dos trabalhadores fossem num crescendo diante do enfraquecimento da política liberal. Assim, os trabalhadores começaram a enfrentar seus adversários no próprio campo da luta eleitoral, conquistando espaços democráticos representativos, mas essas vitórias foram aos poucos, junto às redes sociais, fortalecendo as teses de que o objetivo era a revolução democrática, nesta etapa da democrático-burguesa da revolução, e não a conquista do poder e a construção de uma nova sociedade solidária.

A alegria representativa não é fim em si, mas instrumento de mediação das relações de poder. Isto pode ser compreendido quanto se constata que a alegria representativa enquanto objetivo da revolução burguesa encontra-se em crise, porque se tornou escrava das leis de mercado. Assim, como toda a sociedade burguesa, ela está submetida à economia. Essa enfermidade crônica da alegria representativa levou os trabalhadores a viverem num mundo sem garantias. Logicamente, se há crise cabe perguntar se pode haver transformação, embora se saiba que transformar não signifique necessariamente restaurar valores que já não respondem às necessidades de trabalhadores e excluídos. Fazer assim seria heteronomia, que só reafirma o autoritarismo. Transformar o princípio de liberdade e igualdade significa reinventar a alegria, o que se traduz na idéia solidária do incondicional da justiça. Os valores podem ser reinventados, mas isso significa dizer que as gentes em movimento, autônomas, devem tomar essa alegria representativa de assalto, pois ela só permanecerá se mudar, porque não é um estado natural da sociedade, é sempre um ensaio. 

Por isso, necessita ser reinventada sempre, e diante da ditadura das leis do mercado, dos fundamentos e das mídias controladas pelos grandes grupos, a alegria tem que ser liberdade e igualdade para aquela maioria que não tem voz e vez. Se a alegria é mediadora, embora não seja um fim em si, não basta que as pessoas votem, elejam governantes, e permaneçam distante das ações do poder: a alegria reinventada implica em participação. Mas a alegria não pode ser recriada se partir daquilo que é pré-estabelecido. Dizer que a alegria é uma mediação fundamental nas relações entre classes e redes, não significa que em todos os lugares ela será igual. Se os seres humanos podem ser livres e iguais, as sociedades têm que se articular para a maioria excluída, e está é a realidade global, os direitos à liberdade devem levar aos direitos sociais, à igualdade. Mas se não existirem as mesmas condições de possibilidade não pode funcionar a alegria, pois se não garante a realização da liberdade não se pode esperar que funcione enquanto mediação fundada sobre os princípios da justiça social. E não basta os mitos fundadores da alegria afirmarem o caráter universal de que todos os seres humanos são livres e iguais: esta só pode se realizar enquanto comunidade global ativamente participante. Essa é a base da globalidade defendida pelos trabalhadores e solidários e tem sido uma das bandeiras levantadas pelas redes de transformações. E tal discussão nos remete, mais uma vez, à questão da eternidade da justiça.

Se a eternidade da justiça está correlacionada à eternidade do amor, em termos teológicos amor e justiça não podem ser contrapostos. O amor pode ir além da justiça, mas nunca pode buscar menos que a justiça. O amor pode inspirar reverência à justiça, mas nunca pode ser desculpa para esquecer as reivindicações da justiça. E se a justiça é uma qualidade objetiva que estabelece direitos e obrigações, projetos podem e devem ser desenvolvidos pelas pessoas e comunidades para criar ações que sirvam às reivindicações da justiça. Dado o fato que nem todas as pessoas buscam a justiça de boa vontade, o poder pode ser usado legitimamente quando serve à causa de justiça. Isso significa dizer que o amor não pode usar o poder para alcançar seus fins, mas que a justiça têm que usar o poder para alcançar seus fins. Tais distinções são necessárias porque não se pode dizer a um governo dos trabalhadores que ame, porque suas ações têm por base o poder, e porque as reivindicações do amor estão arraigadas em reconhecimento pessoal e particular ao invés de normas universais de justiça. 

Mas como os cristãos sociais proclamam, dentro e fora das redes de transformações, as boas notícias da autonomia, sensibilizam as comunidades para as demandas da justiça. Consequentemente, permanece a justiça enquanto serviço de amor. Assim, usar o Estado como um instrumento de amor está fora do objetivo d a rede de transformações, pois levaria a um Estado sectário, quando não totalitário. Por causa disso, as normas distintivas da justiça serão usadas pela rede para delimitar o que é meu e o que é teu. Negar a justiça em nome do amor seria negar os direitos das pessoas, que são a base de qualquer alegria representativa e participativa.  

O conceito de justiça, então, aliado aos de amor e poder apresentam as alternativas para as comunidades cristãs ao pensar a ação política n a rede de transformações. A política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve as reivindicações da justiça. Amar, sem rejeitar o poder, indo além dos direitos e deveres estabelecidos pela justiça, possibilita um testemunho de justiça e uma motivação moral que coroam o ato justo. Amar, através da mediação pessoal, complementa a justiça em suas demandas objetivas. Por isso, podemos como síntese dizer que fome é exclusão da cidadania, da economia, da educação, da renda, do salário, da terra, da vida. Porque, quando uma pessoa chega a não ter o que comer, tudo o mais já lhe foi negado. Ou seja, é morte em vida. Nesse sentido, a alma da fome é política e o ato solidário é um movimento no sentido oposto a tudo o que se produziu até agora, é uma mudança de paradigma: olhar vesgo, diverso, para todas as relações, bases da construção radical. A exclusão produziu, a união destruiu, a cidadania será geral e irrestrita.
 
Quando a justiça é negada, a política torna-se escrava do poder. Perde o eixo da vida da ação política, já que a injustiça só será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa, e essa é uma tarefa política. Para conquistar tal dignidade, o poder deve ser exercido. Assim, a síntese deste diálogo pertinente entre política e religião é a justiça. Esta é razão de ser da rede de transformações. Mas para entender tal política é necessário compreender o mito fundador e o que ele representa para o futuro da rede. O mito de origem da rede de transformações é o solidarismo, traduzido principalmente na experiência da transformação das relações de produção. Essa realidade pode ser vista na preocupação sempre presente de defesa da revolução, de seus líderes e de suas ações relações, mesmo as mais discutíveis.   
 
A origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo que não existia antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. A realidade daquilo que  a rede de transformações é está colocado, mas também é algo que lhe é próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio, já que a origem não liberta. Não se pode dizer que a rede de transformações era e que não é mais. Isto porque, a origem puxa, faz emergir, segura firme: é ela que estabelece a rede de transformações como algo, mas, ser-posto no mundo significa amadurecer, envelhecer e, inclusive, morrer.

O comando já havia informado que haveria nova chuvas de estrelas. Na segunda semana de abril foi lindo e triste. Bem de manhã, uma névoa cobria o campo e as casas dos superiores, que não ficavam muito distante do castelo. Todos gritavam. Junto com a garoa fina caiam as bombas. De uma das rampas da casa, por entre o verde, corriam meus irmãos, vivos e mortos, com estrelas no coração.

Fogos de artifício de carne e sangue desenhavam flores no céu. Eu e aquela que não via, de mãos dadas, ouvíamos o dum-dum dos tambores e a festa vermelha do fim dos dias. De repente, veio a ordem de debandar. Saíram os carros negros, limpos, fugindo para não sei onde. Os guerreiros corriam e desapareciam, como se fossem névoa, apenas névoa. E aqui no castelo, eu e aquela que não via caminhávamos no vazio. Mais uma vez estávamos sós. Fomos caminhando devagar para longe do prédio. Era melhor deixá-lo morrer sozinho, comido pelo mato, vendo suas paredes caírem de cansaço e de velhice. Igual a mim, eu acho.

Não, valorosos guerreiros, não sei o nome de ninguém. Nunca me preocupei com nomes. Nunca me lembrei de guardá-los. Do comandante-em-chefe sei que era imponente, mas triste. Gostava de ouvir os pássaros de manhã e à tarde escutava uma ninfa tocar cítara. Era triste e só. Ah! O meu monstro. Foi meu apenas durante algumas horas. Também não sei dos meus irmãos. Ouvi dizer que os piedosos subiram aos céus, mas disso nunca se fala. Não sei. É muito difícil saber dessas coisas, embora eu seja uma longeva sábia.


37.

Lições de amor

As pessoas são tocadas pelo amor. Nada sensibiliza mais o humano, talvez por isso o rolo dos Cânticos compare a paixão à força da morte, já que os dois estados se nos apresentem como definitivos. Caso você já tenha estado apaixonada sabe como é.

Num domingo de janeiro preparei esta leitura de manhã a partir daquilo que chamei lições de amor. Foi um pensar na gratidão ao eterno, um jeito de dizer a ele que o amo. E pensando, me remeti a um filme, Uma lição de amor, que conta a história de um pai com deficiência mental e uma filha, de sete anos, que começa a ultrapassá-lo intelectualmente. No filme, uma assistente social quer levar a menina para um orfanato, alegando que o pai não tem condições de criar a filha. Foi nesse momento que me deparei com dois textos, o dos Cânticos, e outro, também belíssimo, de um profeta mal compreendido e meio abandonado, Oseias.

Minha leitura da eternidade como um delírio, não faz o efeito que o materialismo esperava. Na verdade, me leva a uma outra leitura: faço uma ponte entre as lições de amor da eternidade e a minha paixão por ela. E foi assim que surgiu esse pensar, num discurso sobre as minhas provas da existência da eternidade, que divido em três: o Noturno Opus 9, no. 2 de Chopin, a roda e a raiz quadrada de menos 1. Talvez, você esteja achando que estou louco, o que pode não ser mentira, mas se tiver curiosidade e paciência, vai entender o caminho que trilhei. E esse caminho, que vai na contramão do que o materialismo diz, nos ajuda a entender porque estamos enamorados pelos temas centrais da fé cristã, criação, alienação e essencialização da vida. Enfim, as lições de amor e essas minhas provas da existência da eternidade se correlacionaram e levam a uma teoria da existência.
 
Eternidade e amor estão entrelaçados, e vejo isso quando sou obrigado a pensar uma teoria da existência. E, metodologicamente, a primeira coisa que devo me perguntar é se uma coisa existe ou não existe. E isso significa trabalhar com variáveis: uma coisa existe; uma coisa não existe; uma coisa não existe, mas já existiu, deixou de existir e não existe mais, porém poderia existir.
 
Devo pensar também, e essa questão é um pouco mais complexa, que a existência existe. E ainda que eu diga que existência é espaço/tempo, como não temos espaço apenas, ou tempo apenas, a existência existe. Não dá para dizer que a existência não existe, ela é realidade no cosmo, produz diferença no mundo. Caso não existisse a existência, então, nada existiria.
 
Mas, outra questão deve ser colocada: se posso falar numa teoria da existência, preciso entender que posso apreendê-la enquanto atos de conhecimento. E ato de conhecimento é uma ação consciente sobre algo que existe ou uma realidade. Por isso, os atos de conhecimento nos remetem a pessoas que são conscientes e podem conhecer a existência através de seus processos e modos.
 
As pessoas são tocadas pelo amor. Nada sensibiliza mais o ser humano do que o amor, como dissemos acima. E, por isso, o amor e a morte se nos apresentam como estados definitivos. Caso você já tenha estado apaixonado ou apaixonada sabe como é. 

E Oseias contou que o Eterno disse: “Vou seduzir a minha amada e levá-la de novo para o deserto, onde lhe falarei do meu amor. Ali, eu devolverei a ela as suas plantações de uvas e transformarei o vale da Desgraça em porta de esperança. Então ela falará comigo como fazia no tempo em que era moça, quando saiu do Egito. Mais uma vez ela me chamará de meu marido, em vez de me chamar meu senhor (meu baal). Nunca mais deixarei que ela diga o nome Baal, nunca mais ela falará desse Adonai. Sou eu o haShem quem está falando. Naquele dia, farei a favor dela uma aliança com os animais selvagens, com as aves, com as cobras, para que não ataquem a minha amada. Quebrarei as armas de guerra, os arcos e as espadas. Não haverá mais guerra e o meu povo viverá em paz e segurança. Israel, eu casarei com você, e para sempre você será minha legítima esposa. Eu tratarei você com amor e carinho, e serei um marido fiel. Então, você se dedicará a mim, o haShem. Naquele dia, serei  o eterno que atende: atenderei o pedido dos céus, os céus atenderão o pedido da terra, dando-lhe chuvas. E a terra responderá produzindo trigo, uvas e azeitonas. Assim, eu atenderei as orações do meu povo de Israel. Plantarei o meu povo na Terra Prometida para que eles sejam a minha própria plantação. E eu amarei aquela que se chama Não-Amada, e para aquele que se chama Não-Meu-Povo eu direi: Você é meu povo e ele responderá: Tu és o meu eterno. 

Agora, vamos descontrair o texto de Oseias e relacioná-lo com a teologia da existência.
 
Deslumbrar e fascinar são desafios da existência e isso está expresso do texto de Oseias, quando o eterno diz: “Vou seduzir a minha amada e levá-la de novo para o deserto, onde lhe falarei do meu amor”. A travessia do deserto, quando os hebreus fugiram do Egito, foi um tempo de intimidade com a eternidade, uma porta de esperança, diferente do vale da desgraça, onde o soldado Acã foi condenado à morte por traição.

Assim, nessa correlação entre eternidade e amor, podemos discutir a existência a partir dos noturnos de Frederico Francisco Chopin. Esses noturnos eram cantos livres, que traduziam as experiências pessoais de Chopin e expressavam sua espiritualidade. Diria que os noturnos desse músico são o deserto do profeta Oséias, espaço/tempo de intimidade com a eternidade.
 
Particularmente, sou apaixonado pelo Noturno Opus 9 no. 2, que tem a propriedade de ser uma obra de criação e pertença de um humano sensível. É peculiar, diria inédita e exclusiva. E ao dizer essas coisas, afirmo não apenas que existe, mas sou obrigado a falar de sua natureza, de sua essência. Ou seja, saber que o Noturno Opus 9 no. 2 de Chopin existe, significa dizer que não existem outros Noturnos Opus 9 no. 2. Só existe esse.
 
Baal e ixe (איש) são outros dois desafios da existência. E as lições de amor nos trazem de volta a Oseias, quando o eterno diz: “Ela me chamará de meu marido”. E Isaías conta que o eterno disse: “Não temas, porque não serás envergonhada; não te envergonhes, porque não sofrerás humilhação; pois te esquecerás da vergonha da tua mocidade e não mais te lembrarás do opróbrio da tua viuvez. Porque o teu Criador é o teu marido; o HaShem dos Exércitos é o seu nome; e o Santo de Israel é o teu redentor; ele é chamado o eterno de toda a terra”.
 
E mais uma vez a correlação entre amor e eternidade me remeteu a outro processo da existência, que vou analisar a partir de uma das mais simples máquinas que construímos: a roda. Todos conhecemos as suas aplicações e sabemos que crescem a cada dia: vão do uso nos transportes à utilização nas mais diferentes máquinas mecânicas. Mas é simples: caracteriza-se pelo movimento de rotação em seu interior. Em mecânica diz-se que o seu fato mais importante é determinado pela a transmissão de força, velocidade e distância, que se dá pela política entre o diâmetro da borda da roda e o diâmetro do eixo.
 
Ora, a roda nos remete ao trocadilho que Oseias fez com a palavra baal, que era o Adonai da fertilidade dos cananeus, mas cuja palavra significava também haShem e marido. Oseias não quer que sua amada o chame de baal, mas de îche, homem, que por extensão poderia significar também marido e herói.
 
Esse exemplo, o da roda, nos ajuda a entender a questão da existência, que não é uma propriedade que pertence, mas é o pertencimento a uma propriedade. Pense na roda, no conceito roda e em todas que existem ou podem existir. A existência da roda consiste em participar de relações de predicados. Assim, a existência da roda significa que pertence a propriedades ou é parte de propriedades. Nesse sentido, a existência é sempre participação na política de predicados. Como baal ou îche.
 
Celebrar a imagem que transcende é o desafio fundador da existência. “E para sempre você será minha legítima esposa”, disse o Eterno sobre sua amada. Oseias utiliza esse recurso para falar de uma aliança que transcende os predicados definidos pela existência. 

Ou como o eterno disse ao profeta Jeremias: Quando esse tempo chegar, farei com o povo de Israel esta aliança: eu porei a minha lei na mente deles e no coração deles a escreverei; eu serei o eterno deles, e eles serão o meu povo. Sou eu, o haShem, quem está falando. Ninguém vai precisar ensinar o seu patrício nem o seu parente, dizendo: Procure conhecer a eterno, o HaShem. Porque todos me conhecerão, tanto as pessoas mais importantes como as mais humildes. Pois eu perdoarei os seus pecados e nunca mais lembrarei das suas maldades. Eu, o haShem, estou falando.
 
Aqui entra o meu terceiro exemplo dessa correlação entre eternidade e amor e os desafios de uma teologia da existência: a raiz quadrada de menos 1 (√-1). Como vimos, as coisas que existem tem suas propriedades. Quando alguma coisa não tem condições de ter existência comprovada ou não tem pertença/predicados, ela fica fora das leis fundamentais da lógica e da existência dos atos de conhecimento. Por isso, em matemática falamos em unidade imaginária i, enquanto solução da equação quadrática: x2+1=0, da qual decorre x2=−1.
 
Ou, dessa séria questão existencial x=√-1, onde a unidade imaginária é i=√-1. Dentro da lógica matemática não posso dizer que este número exista, ele é imaginário porque é um recurso da minha imaginação, pois não há número real cujo quadrado seja negativo. É isso é um fato. Imagina-se, então, que haja números especiais, dotados de propriedades que satisfaçam essa exigência da imaginação. E assim a matemática criou uma classe de números: os imaginários, que não são reais.
 
E, agora, voltemos ao filme. O que os amigos do pai deficiente mental entendiam, e a assistente social não, era que havia entre o pai e a filha uma aliança maior, que transcendia em muito suas deficiências intelectuais, uma aliança de amor.
 
Dessa maneira, nessa correlação tresloucada entre eternidade e amor digo que uma teologia da existência parte de três fundamentos: (1) a diferença entre existir e não existir, e que essa diferença não é um atributo, não é uma propriedade; (2) a existência não faz parte da essência de cada coisa, mas cada coisa, todas as coisas mostram diferenças entre natureza e existência; (3) a mente transcende, produz representações que agregam conhecimento e constroem sentido para a existência. É o que o materialismo não entende, já que é carência, e que, por isso, no esfacelar-se do caminhar devemos deixar que a própria eternidade testemunhe amor e paciência.
 
Assim, na correlação eternidade/amor, a existência deslumbra e fascina; é baal e ixe (איש); transcende e cria a imagem que alucina.


38.

Podemos explorar o humano?

Bendita seja a eternidade, que traz as sombras da noite, abre os portais, modifica os momentos, troca os períodos e organiza as estrelas. Bendita seja a eternidade, que traz as sombras da noite.

Violência, tema recorrente dos tempos bicudos da pós-modernidade. Tal realidade midiática nos leva a pensar e a viver como se a vida não tivesse a menor importância ou valor. E em nome de doutrinas, relações e religiões muitos são transformados em bombas humanas, assassinos seriais, legais ou não, que espalham a dor, o sofrimento e a morte. Nesse clima de ódio e violência, é importante dizer que o primeiro pensar das Escrituras judaico-cristãs, construído para o ser humano no bojo dos relatos da criação, é a leitura da vida.

A eternidade construiu o humano como semelhante, cheio de parecença, para curtir o fundão criado, fazer sexo, ter filhos, produzir criativamente. E a eternidade contou isso aos humanos e um dia isso foi registrado lá em bereshit, o livro primeiro das escrituras judaicas. E é interessante que quem registrou a história que ouviu dos antepassados disse que a eternidade curtiu a beça tudo aquilo. Achou genial o que tinha feito, tanto que deu por terminado o seu trabalho e foi descansar.

As histórias se multiplicam. Há histórias que falam da importância da vida nas Escrituras judaicas, e há histórias sobre a vida e sua singularidade nas tradições de gentes e povos. Na tradição judaica, conta-se que quando os escravos fugiram do Egito com os soldados egípcios correndo atrás deles e já estavam atravessando o Mar Vermelho, anjos resolveram cantar um hino de gratidão, mas a eternidade não permitiu e disse: Eu criei o ser humano, cada um deles é criação minha, como poderei cantar se muitos vão se afogar neste mar? Eis a universalidade da vida: todos fomos construídos pelo Eterno, todos somos parecença, quer escravos hebreus ou soldados egípcios. As leituras judaicas da vida nos levam a isso: a vida é direito universal porque a eternidade ama a vida de pessoa, de todas as pessoas -- foram feitas por ela e têm o jeitão dela.

Nesse sentido, a partir das leituras da vida podemos dizer que há não diferença entre as gentes, cada pessoa ocupa um lugar especial no coração da eternidade, para ela é como se todos fôssemos únicos. O respeito pela vida de cada um e de todos e a negação do ódio e da violência dirigem a leitura da vida. Criar e educar pessoas traduz-se em ensinar, em primeiro lugar, que quem destrói uma única vida destrói todas e a própria criação. E quem cuida e salva uma única vida salva o mundo. Cuidar e salvar uma única pessoa é semear a paz para que ela reine entre os seres humanos. Para que ninguém possa dizer: o meu pai é maior do que o teu pai.

Voltando ao primeiro livro das escrituras judaicas, vemos que ele se descreve como o livro da história humana. E é interessante o que esse livro fala da criação e da história de um primeiro casal: ele era o da-terra e ela a-vida. Este é sentido dos nomes Adão e Eva. A construção dessas duas pessoas, da-terra e a-vida, ao se dar no final da construção do universo, mostra o valor que têm para o eterno e sua eternidade: são menores, aparentemente pequenos, mas valem mais, pesam tanto quanto todo o universo. A história humana é a história de uma pessoa, de duas pessoas, de todas as pessoas. 

E será que eu posso fazer da minha mulher, escrava. Ou, em outras palavras, posso explorá-la? Não, não posso. Será que posso fazer dos meus pais, escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los? Não, não posso. Será que posso fazer de meus filhos escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los? Não, não posso. E por que? Porque devo amar o humano como semelhante, como igual. Esteja ele ao lado ou distante, é sempre próximo. Este princípio é fundamental na leitura da vida. As relações humanas implicam em reciprocidade, deve levar ao companheirismo, ao fundamento de origem: da-terra e a-vida estão por trás de toda a humanidade.

As escrituras judaicas nos falam da obrigação de amar o estrangeiro, ou seja, aquele que nos parece diferente. Esse é o princípio da paz entre os povos. Por isso, as leituras judaico-cristãs da vida propõem que a paz prevaleça, seja formulada como lei a obrigação de cuidar e proteger os diferentes e as minorias. Este é o sentido maior da justiça.

Assim, se perguntarem: um homem pode explorar pai, mãe, mulher, filhos? Sabemos que a resposta é não. E de novo a pergunta: um homem pode explorar aquele que é diferente dele por credo, raça, sexo ou sob qualquer outro aspecto? Muitos acharão que sim. Mas quando tenho em minha frente uma pessoa, tenho um igual e, por mais diferente que seja, é meu irmão. Ser justo é reconhecer a liberdade dele, seus direitos e cuidar para que tenha uma vida digna, como humano que é.

O respeito e o cuidado por tudo aquilo que é humano, pelo ser e por sua terra e vida, é leitura radical, que nasce da compreensão de que somos semelhantes, cheios de parecença com o eterno. A imagem está em um, em dois, em todas as pessoas.


39.

As boas obras

O mal banal, que de fato nunca é banal, quebra o movimento da vida, cria a trombada. Produz um choque de nossas existências. E essa construção do mal consentido e omisso não acontece de uma hora para outra. São necessários alguns milhares de segundos, tijolo por tijolo, argamassa e muita falta de imaginação. E a falta de imaginação é trilha assassina.

E paro aqui com uma frase de Ezequiel: se uma pessoa de coração deixar de fazer o bem e começar a fazer o mal cotidiano será que ele vai viver? Meu primo agiu quieto, sentado sobre o punhal. Cara batuta, desafiando a justa.

"Por amor à verdade e no empenho de elucidá-la, discutir-se-á o seguinte em Wittenberg, sob a presidência do reverendo padre Martinho Lutero, mestre de Artes e de Santa Leitura e professor catedrático desta última, naquela localidade. Por esta razão, ele solicita que os que não puderem estar presentes e debater conosco oralmente o façam por escrito, mesmo que ausentes. Em nome do nosso eterno Senhor Jesus. Amém".

Eis a apresentação das 95 teses de Lutero em Wittenberg. E como nessas leituras o tema é a vida, dirigem pensar e sentir, achamos por bem começar pela tese número 41 de Lutero: "Deve-se pregar com muita cautela sobre  as indulgências apostólicas, para que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras do amor". 

As boas obras do amor. Mas o que é isso? É a construção de um processo. Mas que a compreensão do amor depende das relações que se mantém com os outros e das experiências que se tem. Assim, o processo do amor pode favorecer o desenvolvimento particular do ser humano, mas é lento e gradual. Compreende aprendizados, ações e interpretações para a dotação de sentido que os seres humanos constroem em comunidade. Ou seja, amor inclui outros. Mas e as tais boas obras, como surgem? 

Em Kierkegaard, as boas obras do amor traduzem uma ética que se estabelece no dever de amar. A partir do amor enquanto dever surge o conceito de próximo. O dever de amar o próximo critica o amor egoísta. Assim, o amor, fundamentado no outro, muda o olhar. E é o olhar transformado que possibilita não errar o alvo. Ser ético é isso: não errar o alvo em política ao outro, agora próximo, pois olhamos com um olhar transformado, de amor.

Ao contrário do que muitas pensam, e como vimos em Lutero, a misericórdia da eternidade não descarta a importância das obras do amor. Na verdade, as obras do amor são consequência dessa misericórdia. 

Em 1521, em seu polêmico Magnificat, um comentário sobre a oração de Maria, Lutero critica aqueles que só olham para os céus “em busca de honra, poder, riqueza, conhecimento, bem-estar e tudo que é grande e elevado”. Ou seja, não olham para baixo “onde existe pobreza, ignomínia, miséria, desgraça e angústia”. Assim, abandonados pelo pecado da usura e do egoísmo, os pobres “permanecem na condição de humilhação e desprezo”.

Na verdade, as obras do amor e seu contrário, as obras do egoísmo, são uma constante nos sermões de Lutero. Ao falar sobre o Comércio e a usura, Lutero condenava aqueles que depositavam seu amor no dinheiro e por esse motivo praticavam os atos mais vis. Segundo o reformador, “praticam livremente todo tipo de tramoia e astúcia, e inventam outras diariamente. Assim tudo fede a ganância. Tudo está afogado e mergulhado num grande mar de lama.”

“Eles deram um jeito de ter lucro certo e eterno da mercadoria incerta e arriscada. Mesmo assim precisam sugar o mundo inteiro. Todo o dinheiro tem de entrar e flutuar para o bolso deles.”

“São todos uns ladrões, assaltantes e agiotas públicos.”

Talvez por isso, Lutero mostrou-se preocupado com a economia e a política, e procurou soluções criativas para os problemas sociais. No Estatuto para uma Caixa Comunitária, escrito em 1523, Lutero propôs o armazenamento de grãos e ervilha, para que, em época de inflação, os preços pudessem ser regulados. A manutenção dessa caixa comunitária viria da produção de pomares, campos, pastagens, assim como de pedágios, aluguéis e juros. De doações, coletas, contribuições, esmolas e de heranças “espontâneas, feitas em estado saudável e por testamento no leito de morte, em espírito cristão, para honra e glória do eterno e por amor ao próximo, sejam em bens, dinheiro, joias e provisões”. E tudo isso, para garantir a vida de pobres, idosos, viúvas, órfãos, cidadãos endividados e estrangeiros que estivessem mudando para Wittenberg.

Essa cooperativa de consumo seria administrada por provedores eleitos por assembleia geral da igreja, com representação na nobreza, do conselho paroquial, dos habitantes da cidade e dos camponeses. Os recursos financeiros seriam guardados num cofre, guardado em lugar, na comunidade de fé, fechado e quatro chaves, distribuídas entre os administradores. Entre outras coisas, esse dinheiro seria empregado no pagamento dos salários dos professores. 

Talvez essa cooperativa proposta por Lutero nos faça entender melhor o que o reformador entendia por boas obras do amor.

40.

O mundo e o gemido

Onde nos leva a liberdade quando não temos consciência do que ela significa? A vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer justiça.

Ao reconhecer a existência de uma situação-limite, de ameaça à vida e à existência, devemos entender que: não podemos virar as costas ao mundo; aquilo que é eterno deve ser expresso em política à situação presente; a realidade da misericórdia deve ser expressa com ousadia e risco; e o poder transformador das boas novas deve expressar uma convicção e posicionamento não superficiais, que vai à raiz.

O príncipe dos pregadores fez um sermão que ficou conhecido como Apressando a Ló. O centro da mensagem é que uma cidade que vai arder, certos e tortos devem ser apressados. 

O certo deve ser apressado em política ao que é melhor para sua família, a deixar a loucura e ouvir a voz suave do eterno. E o torto deve ouvir do perigo iminente e da necessidade de tomar uma decisão imediata. O pano de fundo do sermão é que a cidade vai arder.

Décadas mais tarde, um poeta do norte novo, de ascendência bretã, escreveu sobre um mundo que já ardeu. Seus poemas traduzem a angústia profética diante da guerra e do drama humano.

Terra Desolada é um dos mais impressionantes poemas dele. É um gemido diante de um mundo árido, onde sobreviventes se arrastam e agonizam. É o mais terrível poema do século.

Mas, em meio ao desespero, podemos ver o sentido de eternidade que brota na Terra Desolada desse cristão agoniado diante do destino humano. No final da terceira parte do poema, chamado O Sermão do Fogo, terror e êxtase se complementam: "A Cartago então eu vim, ardendo ardendo ardendo ardendo, Ó Deus Tu que me arrebatas, ó Deus tu que me arrebatas, ardendo".
 
O primeiro verso foi tirado das confissões do bom Agostinho, quando o pensador diz: "A Cartago então eu vim, onde todos os amores ímpios, como num caldeirão, cantavam em meus ouvidos".

E o verso seguinte faz parte do Sermão do Fogo, do bom Buda, que é tão importante para o mundo do oriental quanto o Sermão da Montanha para nós cristãos. E volta às Confissões de Agostinho, com o verso: "Ó Deus Tu que me arrebatas".

Eliot afirma que "a inserção destes dois representantes do ascetismo oriental e ocidental no ponto culminante desta parte do poema não é fortuita", já que através de uma leitura cheia de ecumenicidade transmite ao leitor toda a angústia diante de um mundo que arde.

Três anos mais tarde, Eliot lançou Os Homens Ocos onde, ainda em meio ao mundo desolado, fala de homens vazios, empalhados. E é aqui, neste poema, que a eternidade transborda, apontando para um sentido profundo de conversão.

”Entre o desejo e o espanto, entre a potência e a existência, entre a essência e a descendência, tomba a Sombra, porque teu é o reino, porque teu é, a vida é, porque teu é o”.

E numa estrofe sublime, genial, completa: Assim expira o mundo, assim expira o mundo, assim expira o mundo, não com uma explosão, mas com um suspiro”.

Diante de uma cidade que vai arder, de um mundo que já ardeu, ficam a urgência e a esperança... "e como ele estava demorando, os anjos pegaram pela mão Ló, a sua mulher e as suas filhas e os levaram para fora da cidade..."


41.

Os códigos das relações humanas

A mulher de preto entra pela janela fechada e traz para a sala toda a raiva humana, cheia de beleza. Rasgo o peito para acompanhar com o coração, sento no chão bem perto dela. Como é triste a raiva humana, como é bela a tristeza humana. Como é humana a raiva, a tristeza e a beleza.

Você já valsou ao som de Dvorak? Já reparou no toque delicado da cabeça que se dobra? É um valsar ou um ato transcendente de adoração? É corpo ou som? É a alma que, liberta, comanda com doçura os movimentos do corpo. E a gente vai subindo no caminhar de Dvorak. 

Agradeço à eternidade por este encarnar-se, por fazer-se música no peito, som que faz gente de bem-querer. E lá vamos nós, pisando nuvens, docemente, porque a eternidade  deu o som de uma dança eslava, onde firme o cello marca presença sem cobrir o rodopiar dos violinos. Mais-valia, vale, e, sem dúvida, continuará a valer... Život!

Ao percorrer os caminhos encontramos as raízes que explicam a miséria. As bandeiras da emancipação e da justiça clamarão no futuro como em épocas passadas. O direito à liberdade, diante da ideologia do oculto, se faz presente. Olhe a globalização das gentes sem direitos de bens e oportunidades. Ela mostrou a escravidão, que não constituirá um fenômeno a mais. A escravidão formará nações. Será a instituição que iluminará a compreensão do passado. E será a partir dela que se definirão a economia, a organização social, a estrutura de classes, o estado, o poder político e a própria cultura. A escravidão será a protagonista por excelência da história. Historiadores, sociólogos e antropólogos começarão a entender assim; porém, os que anunciam, raramente reconhecerão essa dívida. O autoritarismo, a dificuldade na construção da cidadania e a exclusão social estarão intimamente ligadas a milhares de anos de escravidão e serão as heranças trágicas da humanidade. Assim, a escravidão vai continuar a gerar exclusão e miséria.

As culturas do futuro serão relacionais, o que significa que as relações entre as gentes aparecerão de forma difusa, sobre a base de relações aparentemente não intervencionistas diante de uma sociedade incipiente, onde a interação entre o público e o privado se figura flexível e amorfo. Por isso, nas culturas futuras, as relações dentro das classes e, muitas vezes, entre elas se mostrarão mais gratas do que os motivos e fins que deram origem a essas relações. Nessas culturas relacionais, os códigos deverão ser entendidos a partir de uma chave dupla: é necessário partir das matrizes antropológicas, mas não se podem esquecer as pressões globais. E as matrizes antropológicas serão construídas a partir da polaridade de dois mundos e de duas realidades que têm suas origens com a escravidão: a casa do senhor, enquanto dimensão social permeada de valores, de espaços exclusivos e lugar moral, e a rua, o que está fora, mas é social, enquanto tripálio. 

O tripálio deu origem à palavra trabalho. É um instrumento de três piquetes usado para fixar animais quando se pretendia fazer intervenções veterinárias ou marcá-los a ferro. Foi utilizado pelos romanos, depois na Idade Média, e posteriormente utilizado nas fazendas para conter os escravos quando castigados ou marcados a fogo. Essa situação traduz a política existente entre senhores e escravos. Teremos assim um inferno para os escravos, um céu para os senhores e um purgatório para a massa tecnocrata, pelo papel mediador que lhes será confiado.

Assim, o purgatório será definido como resultante de um relacionamento cultural. Local do humano ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. Serão estes homens e mulheres que romperão a dualidade cultural, tão típica das comunidades futuras. 

A expressão purgatório estará associada à identidade ambígua e levará a momentos de sínteses que traduzirão culturas relacionais. Tais culturas relacionais esconderão os limites sociais e a opressão sexual, que filtradas pelas culturas relacionais levarão a uma ilusão, a uma mentira, como se todos tivessem optado pela construção do mundo. A verdade é que senhores exterminarão gentes e povos. E dessa maceração de cores, culturas e etnias surgirão as gentes presentes em cada canto do mundo, com diversidades e riquezas particulares que formarão a nova multicultura humana.  

Os códigos relacionais traduzirão equivalências entre prazeres e sexualidade, que apresentarão novos parâmetros para cru e cozido, que relacionam alimento, comida e sexo. Para a multicultura humana, alimento será o que mantém os seres vivos, a comida, aquilo que dá prazer, e o sexo um tipo de comida. O alimento será geral e universal, mas a comida dará identidade e, como consequência, quem come terá o controle. O alimento cru será algo de pouco sabor, sem maiores atrativos, diferente da comida. O alimento será difícil de engolir, já a comida será uma das sínteses das humanidades. Herdeiros das culturas extintas, onde outrora o cuidado pela preservação da vida da comunidade cabia à mulher, na multicultura humana é ela, que por prazer, fará a mistura e dará a comida.

Na nova multicultura relacional humana, o tempo vivido disputará com tempo lembrado. O tempo vivido será o que está fora, o movimento, o tripálio. O tempo lembrado será o sonho, o que foi e que deveria continuar a ser. O tempo vivido era o suor e o cansaço. Mas a festa será a ruptura do tempo vivido. Será o momento em que o corpo deixará de ser gasto e gozará o prazer. Talvez por isso, o maior acontecimento relacional será o momento do contrário. Vai-se trocar o dia pela noite, a casa pelo que está fora. A regra será o excesso. Não uma festa de máscaras, mas de fantasias. Será uma leitura da liberdade considerada fim das convenções e regras. Vai-se viver o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho. Será a utopia em versão pós-humana, onde todos somos iguais diante da possibilidade do prazer. Ou como dirá canção: “Não existe pecado do lado de baixo do Equador, vamos fazer um pecado rasgado, suado a todo vapor, me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho, diacho, riacho de amor. Vê se me usa, abusa, lambuza, que a tua cafuza não pode esperar, quando a lição é de escracho, olha aí, sai de baixo, que eu sou professor, deixa a tristeza pra lá, vem comer, vem jantar, sarapatel, caruru, tucupi, tacacá, vê se me esgota, me bota na mesa, que a tua holandesa não pode esperar, deixa a tristeza pra lá, vem comer, vem jantar, sarapatel, caruru, tucupi, tacacá”.

Esses códigos caminham ao lado da questão racial. A solução relacional para a injustiça será a miscigenação e para a opressão sexual, o sincretismo. A oposição entre as culturas não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma diversidade de sínteses, à multicultura humana. Essa multicultura será entendida como a maneira de viver a vida, o gosto pela festa, pela música, pela dança, pela comida e pelo sexo. Será uma forma de viver em que a vida não é algo acabado e definido, mas que se vai construindo no concreto do cotidiano vivido. Essa será uma característica muito especial da multicultura relacional humana, na qual a vida tem de ser elaborada a cada dia. Não são formas multiculturais fixas, mas vão-se modificando conforme se vai vivendo. Esses dados são fundamentais para se entender a questão da identidade, que não existirá como algo dado. Também a identidade será sendo construída e os elementos externos e as pressões mais novas, isto é, globais serão e vividas no hoje que se vive.

O concreto e imediato da vida levará ao ser relacional. Mais do que estar situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se como ser se dará através do relacionar-se. Assim, não se considerará prisioneiro do destino, das forças das coisas ou da natureza. Será um ser que vai procurar aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. Essa procura de alianças será chamada de amizade. Donde, se este novo humano pode relacionar-se com seus pares, também o poderá fazê-lo com o eterno. Para o novo humano, o relacionar-se com o eterno jamais significa uma negação do humano. Daí a intimidade que aparenta terá com a eternidade. 

Dessa maneira, tanto o ideal de liberdade como outras características do humano traduzem uma profunda dimensão coletiva. Isso não elimina ou massacra a pessoa, mas, na maioria dos casos, lhe permite reafirmá-la. E o massacre não acontece porque o humano é coletivo e comunitário, mas porque não sobrevalora as estruturas sociais. Assim, ao desprezar as estruturas, ao negar qualquer redução ao papel de simples engrenagem, reafirma a amizade e a solidariedade como formadoras do coletivo. Para ele, a liberdade, a amizade e a solidariedade acontecem na comunidade. É difícil imaginar o humano solitário. Ao contrário, a imagem cultural e social que temos dele, e que toda a multicultura popular reflete, é a do homem e mulher cercados de amigos, conhecidos e parentes. A sua religiosidade é sempre coletiva. E sua espiritualidade tem um forte matiz comunitário, quer falemos da afro ou do cristianismo popular. 

Para o humano, a religião não pode ser vivida individualmente. A ideia de que a religião é questão de foro íntimo é uma abstração branca, calvinista ou tridentina. Ao contrário, na multicultura humana todos discutem a religião do outro, opinam e querem vê-lo junto na mesma comunidade. E em política às festas não poderia ser diferente. E festa implica comida, música e dança. Em condições normais, o humano não come, nem bebe sozinho. A comunidade é o espaço onde pessoa e criatividade atingem os níveis mais altos.

Razões geográficas, históricas e raciais, nos últimos três séculos, levaram ao mergulho no desconhecido e plasmaram no humano essa atração pela aventura e pelo risco. O humano ama o desafio, não como futuro planejado, mas como espaço para a criatividade. Para ele, desafio é sempre se lançar à aventura da ruptura de regras, é dizer não às convenções e sobreviver pela coragem. Quando enfrenta esses desafios, que vai da sobrevivência no trapézio da economia informal ao transformar-se em herói nos gramados do mundo, está de fato modelando sua identidade. Brasil ou afro, não teme mergulhar nos desafios da cultura anglo-saxã  globalizada. 

Aventura implica a possibilidade do fracasso. E fracasso faz parte do risco. Mas ao viver a dialética desse movimento, o humano constrói sua identidade, ainda que a um preço muito alto. Na verdade, é fazendo assim que ele sente-se livre e dá asas à sua criatividade, sem se preocupar com a construção do futuro. E se não fosse assim não estaríamos diante do humano. A dificuldade em globalizar o humano repousa aí: na visão de que a vida humana deve ser entendida como aventura e risco. Como algo que não pode ser planejado, organizado, dimensionado, mas vivido. Dessa maneira, viver é estar aberto ao novo, ao desafio, ao que ainda não foi vivido, nem mesmo se planejou viver. A ação antropológica do afro nasce da possibilidade de escolher a vida que sonha viver, que ele tem liberdade para escolher viver. 

Todos vivemos as aventuras e as possibilidades da utopia. Mas ermanece o sonho negro da liberdade!


42.


O fundamento da existência

Vamos ver a correlação entre as leituras judaico-cristãs e a vida plena. As leituras judaico-cristãs são construções que levam em conta dois fundamentos, os relatos das experiências do povo hebreu com o Eterno único e os relatos das experiências dos discípulos com o rabino de Nazaré. No correr dos séculos da era comum, rabinos partiram dos textos fundadores e construíram duas religiosidades que deram origem ao Ocidente, o judaísmo talmúdico e o cristianismo católico. Ambos desenvolveram diversidades e hoje se nos apresentam com uma riqueza de formas e ideias difícil de se imaginar no início de suas histórias.

As leituras judaico-cristãs entregam, assim, a partir dos dois fundamentos, um conteúdo transcendente e outro humano, que procuram contextualizar as experiências com o rterno e as experiências com o rabino de Nazaré, e responder aos desafios do tempo presente, armando e fortalecendo as comunidades de fé, tanto judaicas, como cristãs. Apesar desse importante serviço, as leituras judaico-cristãs são sempre passageiras e parciais. 

A vida é fundamento da existência humana, mas também motivação que anima a existência, que lhe dá entusiasmo e nesse sentido é espírito, alma e corpo. Não é apenas razão filosófica ou leituras judaico-cristãs, mas correlação entre o céu e a terra.    

Quando correlacionamos o céu e a terra surgem questões difíceis de serem respondidas. Entre essas questões podemos citar o esvaziar-se do homem e o ser levantado. Outra questão difícil, por implicar esse cruzamento do eterno e com a finitude, é a própria leitura da vida.

Nesse sentido, há leituras que olham esta questão a partir da eternidade. E há outras leituras que olham esta questão a partir do finito. Mas há outra maneira de olhar a questão da vida, a partir do reconhecimento de que estamos diante de um cruzamento das coisas ditas do céu com a realidade da terra. É esta perspectiva que orienta nossa leitura judaico-cristã da vida.

Para entendermos a correlação céu e terra começaremos a partir da leitura de que a violência não pode ser limitada a um período particular. Nessa leitura, a eternidade vem até aqui embaixo e a liberdade começa quando é entregue ao ser humano, que vive sob os limites da lei. O movimento em direção ao humano resulta em convicção e posicionamento. Ocorre, então, uma troca: a eternidade toma a natureza humana e entrega aos homens e mulheres o fim dos limites. Dentro dessa leitura, devemos fixar nosso olhar na novidade, de maneira que possamos reconhecer nossos alvos errados. Depois, lutar contra tais alvos que fizeram com que perdêssemos o sentido da vida. E, por fim, sob a sombra da violência, descobrimos a providência e o conforto que ela oferece. Assim, o que vem de cima é uma esperança. Pois, nos momentos de sofrimento e morte é a providência que dá garantia da presença da misericórdia nas vidas. 

Dessa maneira, o caminho começa com o ato de ouvir, com o reconhecimento dos alvos errados, mas também da misericórdia eterna. Continua no correr da vida com a luta contra os alvos errados e, finalmente, quando debaixo da violência e do sofrimento, é a providência da eternidade manifesta que garante a esperança. 

Mas podemos inverter a leitura. Acabamos de ver que o ser humano não tem como discutir e mergulhar na compreensão da soberania da eternidade, por isso a esperança é entregue, vem da eternidade nos momentos de dificuldades e sofrimentos. Se invertermos, a base é a escolha eterna. Assim, a esperança embora venha da eternidade não acontece como fim, mas é começo. Tal leitura tem por base a soberania da eternidade. Olha sempre do ponto de vista da eternidade, descarta a leitura de que o humano é imagem. 

Essa leitura da eternidade pode ser definida em três palavras: absoluta, dupla e particular. É absoluta porque não está condicionada a nenhuma contingência finita, é dupla porque p Eterno, para o louvor de sua misericórdia, elegeu uns para a eternidade benfazeja e, para o louvor de sua justiça, outros para a eternidade maldita; e é particular no sentido que pertence a pessoas e não a grupos. 

Quando tal leitura correlaciona céu e terra, pode ser entendida no sentido de que a vida depende do decreto eterno. E de que a convicção e o posicionamento traduzem esta escolha feita na eternidade. E de que se alguém crê, tem a vida porque já foi escolhido.

A leitura da eternidade absoluta enfrentou oposição, mas deve ser entendida como um esforço de demonstrar que existe garantia para os momentos de provação. É uma confissão de confiança na misericórdia da eternidade.

Uma leitura da terra parte da imagem da eternidade e de suas necessidades. É uma leitura que fala da degradação humana e diante dela realça a misericórdia. Mas, como sua visão é telúrica e negativa realça também a possibilidade de perda da vida. Assim, a vida é condicionada pela fé. Numa leitura da terra, os seres humanos têm a liberdade aceitar ou recusar a vida. E que o mashiah morreu pela vida existente em todas as épocas e lugares. E que os seres humanos podem perder a vida caso não permaneçam na fé.

A leitura da eternidade não define os seres humanos para o não-ser, mas decreta a vida e o não-ser dos humanos em particular com base na onisciência divina da convicção e perseverança de cada pessoa.

A tensão da discussão entre eternidade absoluta e finitude relativa gira ao redor da compreensão da vida. Quando se diz que a eternidade não demora a fazer o que prometeu, como alguns pensam. Pelo contrário, ele tem paciência porque não quer que ninguém seja destruído, mas deseja que todos se arrependam dos seus alvos errados. 

Há uma chave para que a função misericórdia e função vida sejam plenamente exercidas. E essa chave está em que todos deem a volta por cima. A misericórdia da eternidade absoluta deve ser somada à mudança existencial, produzindo então vida. Ou seja: misericórdia mais sentido existencial é igual a vida. A misericórdia da eternidade absoluta sem o sentido de vida produz justiça. Ou seja: misericórdia sem sentido de vida é igual à violência manifesta. Assim, o valor da violência ontológica não é limitado, mas sua aplicação sim. A finitude condicional remete à vida através do sentido pleno da vida. Por isso, a eternidade define a vida e o não-ser com base no conhecimento divino da convicção e perseverança de cada pessoa.

A leitura da terra ressalta a liberdade humana. Como tal leitura é telúrica e negativa, vê a alienação humana como alvo errado de origem, a vontade humana como degradada e incapacitada para produzir qualquer bem maior. 

A leitura do céu parece confrontar a leitura da terra. Mas, as abordagens de ambas as leituras levam a uma leitura dialética: a leitura judaico-cristã da vida, que trabalha a tensão existente entre eternidade absoluta e finitude relativa.

A tendência minimalista olha a questão a partir da eternidade e nega a possibilidade da liberdade humana, de consciência livre e escolha. A tendência maximalista olha a questão a partir da finitude e não vê limitação à possibilidade do humano responder de forma livre à eternidade.

Mas há uma dialética nessa política, é a leitura da vida. Esta entende que o humano pode apoiar sua resposta à proposta de vida em sua liberdade de ação e consciência, assim como no uso da razão. Mas tal processo deve ter como ponto de partida a eternidade absoluta. Nesse sentido, vida é escolha feita pela eternidade absoluta, a partir da misericórdia. É ação de escolha, chamado e comissionamento. Ainda que baseada na eternidade absoluta, a vida está em perfeita consonância com a liberdade de comunidades e pessoas. Viver de forma plena implica em consciência do ato e ação de viver. 

Existe uma tensão entre eterno e finito. E o que resolve essa tensão é a própria ação de viver. Para os leitores da vida, a vida é síntese que equilibra a tensão. Dessa maneira, a eternidade absoluta em sua misericórdia cria e mantém a vida, em e através do messias, de comunidades e pessoas sob escolhas, chamados e comissionamentos desde o eterno, à luz da presciência, e de acordo com a liberdade de cada comunidade e de cada pessoa. 

Entre o céu e a terra está a vida. Por isso, a vida é para todos e acontece em e através do mashiah por ação graciosa da eternidade absoluta. A eternidade é presciente e de acordo com a liberdade da finitude relativa entregue ao humano, colocou sob escolhas, chamados e comissionamentos a vida e os viventes.

A vida implica em geração e regeneração, política dialética que é ato inicial em que a eternidade faz crescer o humano. É obra da eternidade. Mas geração e regeneração implicam em sentido pleno da vida e fé. Sentido pleno da vida é mudança na raiz da vida humana. E fé é a confiança e aceitação da vida como comissionamento. Nessa experiência de vida radical o humano pisa na terra, mas se eleva em direção ao céu. E o céu se derrama em direção à terra através do humano.

Assim, a partir da consistência ontológica do humano, somos levados à necessidade de uma análise da vida como leitura radical. Quando descartamos a reflexão sobre o ser humano a quem a eternidade fala, temos um discurso meramente ideológico, distanciado do homem e da mulher verdadeiros e da realidade em que vivem e transformam. Temos, então, um ser humano-mito, onde naturalidade e historicidade transformam-se em alegoria.

Ao falarmos do reino devemos levar em conta aspectos históricos, os grandes movimentos ideológicos, pois tal metodologia é relevante para a compreensão do contexto a partir do qual se constrói a ética do reino. Mas reino significa também a chamada a um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da violência histórica, o que deve levar a comunidade de fé a elaborar uma mensagem de esperança para o mundo. Nesse contexto, definir o ser humano da alta modernidade como autônomo implica em compreender que, apesar da insegurança típica da contemporaneidade, ele já experimentou a realidade do protesto e esta é uma experiência que une aquele que protesta àqueles que já conquistaram a autonomia.

O conceito de situação-limite, que se traduz como ameaça final ao sentido da vida é o diferencial do princípio protestante, pois a existência é a elevação do ser humano à dimensão da liberdade. Quando o ser humano se liberta das cadeias da necessidade natural, torna-se princípio e adquire liberdade de questionar a si mesmo, o seu ambiente, de questionar a verdade e o bem e de decidir a seu respeito. Entretanto, há nessa liberdade certa falta de liberdade, pois somos todos compelidos a decidir. Essa inevitabilidade da liberdade, de ter que decidir, cria e aprofunda a inquietude da existência: é por esse meio que a existência passa a ser ameaçada. Tudo isso, porque somos confrontados por uma exigência incondicional de escolher o bem e de realizá-lo, na mesma medida em que isso não pode ser alcançado. Consequentemente, explica James Luther Adams, o ser humano, na sua dimensão espiritual carrega em si uma ruptura, que também se manifesta na sociedade. Não é possível fugir dessa exigência. Ao enfrentá-la jamais se reveste de segurança absoluta. Esta é uma situação-humana: todas as seguranças que construímos são questionadas e as possibilidades humanas alcançam e descobrem seus limites. 

A expressão situação-limite nasceu em torno do dogma reformado da justificação pela fé. Lutero aplicava essa doutrina apenas ao âmbito religioso-moral: o pecador, não obstante ser injusto era justificado. Mas tal conceito, em filosofia da religião, pode ser aplicado à esfera intelectual e social, já que nenhuma autoridade tem o direito de exigir a aceitação de qualquer crença correta de quem quer que seja. A devoção à verdade é suprema. 

Segundo Adams, existe um elemento sagrado na integridade que conduz à dúvida mesmo sobre Adonai e a religião. Se Adonai é a verdade, ele é a base e não o objeto das questões a seu respeito. Qualquer lealdade à verdade será sempre religiosa, mesmo quando acabar constatando a falta de verdade. Parafraseando Agostinho, a pessoa que duvida com seriedade terá de dizer: duvido, logo sou religioso.
 
A vida na autonomia significa a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer justiça. Assim, o reconhecimento da existência de uma situação-limite deve traduzir-se em julgamento e transformação e se opõe a qualquer religiosidade que faz a defesa da hierarquia e da tradição. A justificação pela fé deve ser entendida, então, a partir da situação-limite. Mas, sem uma relação universal com a essência, a noção de chamado e vocação pessoal não é a medida correta para se construir uma ética. Ou seja, não se pode fundar uma ética do princípio protestante apenas sobre o terreno da pessoa. É importante, porém, entender que não existe uma interpretação absoluta da essência, já que essência não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, não se pode subscrever a construção de uma ética social absoluta.

Para Tillich, em Rapport au Consistoire, toda compreensão da essência e como consequência toda ética real são concretas. Essa essência se situa no kairós, naquele momento temporal determinado, pleno, embora sua universalidade comporte riscos concretos. Ela não se move num universal abstrato, separado do tempo e da situação atual, pois o que é válido para a pessoa deve ser também para a consciência ética da comunidade. Exatamente por isso, toda realidade essencial comporta dois aspectos: aquele que leva de volta à origem, ao fundamento e abismo de todo ser, e um outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude. 

A realização da essência deve, assim, se orientar em direção a ela própria, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é eterno. Ela exprime o que lhe é próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, a ética transporta ao eterno e ao mundo, que em última instância são o bem decisivo da existência concreta. Dessa maneira, ao nos posicionarmos por uma ética que parte da essência, nos posicionamos por uma ética da vida. E tal compreensão leva-nos estudar o desenvolvimento criativo e estratégico desta essência enquanto vida que brota na história.

A espiritualidade judaico-cristã é em essência uma experiência transcendente ao nível da materialidade humana, uma experiência que acontece em todos os tempos e em todas as situações e é em si mesma independente de formas sociais e econômicas. Por isso, tal espiritualidade não pode ser identificada com um tipo determinado de organização social, em detrimento de seu caráter transcendente e universal. Mas, ao mesmo tempo, é portadora de poder e oferece à humanidade uma mensagem de vida, de conhecimento e de verdade, tanto para a pessoa como particularidade, como para a sociedade como um todo. Exatamente por isso, apresenta-se debilitada toda forma de espiritualidade que se fecha na pura interioridade. Não se pode dizer que a espiritualidade judaico-cristã é um movimento que parte mecanicamente da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ela dá forma às expressões culturais e toma novas formas a partir delas. Dessa maneira, tal espiritualidade está imbricada às formas de consciência filosófica, ao ideal ético de pessoalidade e aos grandes modelos sociais e econômicos. 

É verdade, que o cristianismo tem mais afinidades com determinadas formas de organização social. A ética da solidariedade leva o cristianismo a ter uma postura crítica diante da ordem social que se apoia na opressão e na exclusão. A ética da solidariedade faz a crítica da ordem social que está erigida sobre o egoísmo político/econômico e proclama a necessidade de uma ordem na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social. A ética da solidariedade denuncia o capitalismo selvagem da globalização e dos governos que capitulam a tais propósitos, que levam à expropriação de muitos em benefícios de poucos, e propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura enriquecer através da exploração de seu próximo, e as consequências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Mas a ética da solidariedade nega também a afirmação do princípio da luta de classes e propõe a supressão das classes, o fim dos privilégios na educação e a supressão da exploração de setores profissionais por outros. A ética da solidariedade condena também a internacionalização da violência, que justifica as guerras sobre continentes, nações e povos. Assim, a ética da solidariedade prega a submissão dos povos, sejam ricos ou pobres, à idéia da justiça e propõe à construção de uma consciência solidária, soldada sobre a paz, que leve a uma mundialização real a partir das nacionalidades.

Muitos dirão que eliminar o egoísmo como forma de estímulo econômico diminuirá o desenvolvimento e reduzirá a produção. No entanto, a partir do amor vemos que o ser humano não foi criado para a produção, mas a produção para suprir necessidades humanas. Por isso, o objetivo da ética na economia não é a produção da maior quantidade de bens para uma classe em particular, e sim a produção de bens necessários à vida para o maior número de pessoas.

É importante entender que na história, uma ruptura espiritual vem sempre acompanhada de uma ruptura econômica, da mesma maneira que um processo de unidade espiritual vem associado a um processo de unidade econômica. Isto porque a alma da unidade espiritual é a religiosidade humana. O fracionamento espiritual característico de determinadas épocas traduz sempre um fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. E naquelas épocas em que temos um processo cultural de unidade temos também uma nova base de unidade, de solidariedade social e econômica. Nesse sentido, há um processo de desenvolvimento que se realiza de forma desigual na história, que combina mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais. Diante de tais circunstâncias, o cristianismo é exortado pela ética a fazer uma escolha: ou participa do processo, inspirando e atuando a favor desse desenvolvimento ou se retrai e entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades nas quais está inserido.

Seja qual for a opinião ética sobre a relação entre cristianismo e reino, um fato deve ser ressaltado: é possível e necessário para o cristianismo manter um relacionamento com as formações econômicas e sociais, já que a rejeição do princípio da expansão do reino em nome do cristianismo contradiz a universalidade do cristianismo. E se o cristianismo não somente pode, mas deve manter uma ação dirigida à expansão do reino, devemos perguntar se o reino pode e deve ter um relacionamento construtivo com o cristianismo?

Para muitos, o materialismo e o agnosticismo presentes nas sociedades da alta modernidade negam a possibilidade dessa aproximação. Mas se entendemos que estas concepções são culturais e mostram uma relação de causalidade entre fundamento cultural e organização espiritual das sociedades, tal fundamento dá às ciências uma possibilidade metodológica fecunda, que vai além de uma leitura estritamente materialista ou agnóstica. Quanto ao reino é necessário ver a relação de sua expansão com o cristianismo e também a relação das estruturas hierárquicas da igreja com a expansão do reino. A história da igreja tanto no passado, como no presente, é passível de muitas críticas. Suas opções e alianças fizeram como que se afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades. Tal situação facilitou e potencializou a pregação do materialismo e do agnosticismo. Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que o materialismo e o agnosticismo sejam fenômenos constitutivos da alta modernidade. Antes, são presenças da cultura burguesa. Essas presenças são atuantes na alta modernidade sob a crença de que ajudam a afugentar o fundamentalismo religioso e abrem o caminho para a construção de um mundo mais racional. Embora, haja razões históricas para criticar a igreja, a alta modernidade erra quando nega a existência da base solidária do ideal cristão, tão próxima daquela proposta pelas comunidades cristãs dos primeiros séculos. Por isso, não procede a hostilidade contra o cristianismo que setores da intelectualidade expressam. Mas, de conjunto, as idéias da alta modernidade não traduzem oposição essencial ao cristianismo e às religiosidades que vivem o princípio protestante, por isso, os cristãos podem ter uma atitude positiva em relação a este momento da modernidade.

Atitude positiva deve ser entendida como a realização do princípio da solidariedade, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico e de ações para a construção de uma ordem social que, sem deixar de ser globalizada, inclua periféricos e excluídos. Isto porque a expansão do reino não é apenas tarefa de cristãos e religiosos, mas ideal ético que deve traduzir anseios e esperanças dos mais variados setores da sociedade.
 
Olhado historicamente, no correr da modernidade, o reino se deu como produto do desenvolvimento espiritual e econômico que foi preparado e que se impôs com a Renascença, a Reforma e o surgimento do modo de produção capitalista. Ele surgiu em oposição à cultura unitária da Idade Média e sedimentou suas bases nas criações culturais dos últimos séculos. Por isso, na alta modernidade, o Reino só pode ser compreendido a partir desta evolução e sua expansão está ligada diretamente a este desenvolvimento. Deve-se reafirmar, porém, que foi do interior do cristianismo que brotou o reino nas sociedades ocidentais modernas.

A organização espiritual e econômica da Idade Média estava fundada sobre um sistema de centralização da autoridade que, ancorado no sobrenatural, associava a natureza e o supranatural numa unidade poderosa, à qual os povos e as pessoas estavam sujeitas. A Reforma, sustentada pela visão humanista que surgiu com a Renascença, golpeou o sistema de autoridade, trouxe a fé para o plano formal e no plano material valorizou a subjetividade da consciência pessoal. Apoiado formalmente sobre as Escrituras, o protestantismo engendrou novas contradições, mas o sistema centralizado de autoridade já estava em frangalhos: as próprias autoridades anularam a autoridade. Coube, então, às pessoas decidirem a que grupo queria se ligar. Por causa das guerras religiosas, essa realidade viveu um processo lento transmitindo a cada lado a esperança de que poderia chegar a uma vitória exclusiva. Mas, com o fim dos combates, o que se viu foi que as oposições às confissões se tornaram permanentes. Dessa maneira, brotou o princípio autônomo nos mais variados campos, a consciência europeia ocidental atacou as muralhas autoritárias das confissões e não deixou subsistir sob o solo protestante nada mais que os destroços do autoritarismo.

A partir do Iluminismo, no domínio espiritual, político, econômico, nada pode ficar de positivo que não fosse pensado e confrontado com a consciência pensante. Os sistemas de fé, as formas de Estado, as definições econômicas sofreram o assalto da autonomia, que não tiveram nenhum respeito pelas autoridades humanas. Lamentou-se a perda do sistema de autoridade ou festejou-se tal acontecimento como um passo em direção à maturidade cultural. De todas as maneiras, há o reconhecimento de que a vida cultural não pode ser pensada sem autonomia e que o reino está presente em todos os lugares. Líderes e camponeses tiveram o mesmo sentimento, conquistaram a liberdade das mãos do autoritarismo irracional, fosse ele imanente ou dito transcendente.

Do lado positivo, a autonomia significou o reinado da razão. Pela primeira vez na história, depois de um milênio e meio, a razão humana não viu limites para seu poder. Através da análise penetrou as profundezas da vida cultural e social e através da síntese dos elementos descobertos apresentou um sistema novo, racional. Depois de séculos de arbítrio, os seres humanos foram possuídos por uma vontade de dar forma ao mundo de maneira racional. E a vida econômica também foi formulada racionalmente. Não era mais o prazer de certas pessoas ou nações que deveria fazer a lei, mas eram comunidades inteiras, que se tornaram sujeito e objeto dos processos econômicos, quem deveriam fazê-lo a partir de critérios racionais. A mesma autonomia que substituiu a autoridade, a partir da razão precisava construir um mundo sem arbítrio.
 
Mas, o pensamento histórico objetivo não pode ser separado da compreensão do reino, ao dizer que a razão precisa ser separada da decisão humana e colocada ao nível das necessidades objetivas. O processo dialético é racional e a fé nele é uma fé na razão: uma fé que adquire uma força enorme graças à sua amarração metafísica objetiva e que se tornaria o dogma fundamental de milhões de pessoas. Foi o processo da própria história que fez o mundo conformar-se à razão e levou este combate a tornar-se vitorioso. E foi essa vitória que deu cara ao mundo que conhecemos como moderno.

A fé na razão está fundamentada sobre os resultados conquistados pelas ciências. Mas atrás das ciências da natureza veio a cultura moderna. Preparada de várias maneiras a partir do fim da Idade Média, surgiu com uma força irresistível na Renascença e conduziu a uma afirmação deste mundo, que durante muito tempo foi negado e desdenhado por um outro mundo místico. Mas, os outros mundos empalideceram diante da validade universal das leis da natureza, diante da consciência de unidade do finito e do infinito na filosofia da natureza. É assim que a imanência ressoa no humanismo e na filosofia das Luzes da mesma maneira que o reino se une à consciência da autonomia e à fé do poder formador da razão na construção de um sentimento unitário da vida e do mundo.

Por ser o reino, nesse sentido, uma expansão na cultura universal, ele tem uma originalidade que não se restringe aos conceitos, mas à experiência vivida. O conceito de humanidade, que manifesta a vitória da idéia de solidariedade, não teve no desenvolvimento das novas classes da sociedade burguesa mais que uma realização acidental, pois a consciência de humanidade foi neutralizada pela divisão em classes, pela educação para uma elite e a formação dos estados nacionais. A humanidade se colocou no campo das confissões, sob formas contrárias a idéia de uma transformação racional do mundo. Mas pela pressão sobre os trabalhadores nos primeiros decênios do moderno capitalismo nasceu uma consciência solidária, no coração do qual está presente o sentimento universal de humanidade, que se opôs àquele que vê no ser humano um meio e não um fim. O combate contra o feudalismo, o nacionalismo e o capitalismo constituiu a expressão negativa da consciência incondicional de humanidade, que deveria derrubar barreiras e reconhecer o ser humano em cada pessoa.

Autonomia e Reino são processos históricos que se complementam, mas que não são idênticos. O processo de autonomia vivido pela sociedade européia no período que se abriu a partir do Iluminismo e que pôs em xeque a tradição e o autoritarismo servirá de base para a ação do Reino. Autonomia é o momento supremo da razão e da imanência, e é a partir daí que o Reino vai construir um sentimento unitário da vida e do mundo, embora sua originalidade não se limite aos conceitos, mas à experiência vivida. A luta dos cristãos e da religiosidade humana contra a alienação e exclusão social vão gerar consciência solidária e sentimento universal de humanidade. Mas, ainda assim, ao se limitar ao campo da autonomia, sem uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se da própria autonomia, o Reino não se realiza como transistórico, fica então aberto o caminho para o autoritarismo e o arbítrio.  

Os elementos formadores do movimento de expansão do Reino são fundamentais para a compreensão das relações entre as leituras judaico-cristãs e Reino. Eles abrem a possibilidade para um diálogo construtivo entre tais leituras e Reino. Já os sistemas religiosos erigidos sobre o princípio da autoridade centralizada só podem se opor ao movimento autônomo de expansão do Reino, pois são opositores exatamente por se afirmarem enquanto sistemas de autoridade. Eles se colocam como opositores mesmo quando tal sistema aceita as exigências do Reino em matéria de economia política. Assim, para o catolicismo da contra-Reforma continua a ser determinante a ética social do tomismo, estabelecida de maneira autoritária, em estreita relação com a dogmática. Ela permite uma ampla margem de manobra, mas a unidade desse catolicismo impõe limites definidos, que uma doutrina econômica autônoma não pode reconhecer.

O protestantismo quebrou o sistema de autoridade em seu princípio-base e deu voz à autonomia. De todas as maneiras, é um erro considerar de forma heterônoma as palavras de Yeshua ou dizer que o comportamento da comunidade de Jerusalém em Atos dos apóstolos conduz a uma política econômica do Reino. Do ponto de vista histórico, os fatos não são simples, porque Yeshua não levantou um programa de reforma social, mas, convencido de que o Reino estava a brotar apresentou aos seus discípulos as consequências éticas do mandamento do amor. Se fizermos uma abstração histórica, devemos reconhecer que no terreno da autonomia, a justiça de uma ética social, ou a verdade de uma doutrina, não depende de sua aparente conformidade com as Escrituras, pois, o Reino pode ter por base, num determinado contexto, um sólido apoio psicológico a seu favor, enquanto convicção pessoal, que não nasce da autoridade imposta. Ou seja, quando os laços do cristianismo com o Reino estão fundamentados de maneira heterônoma sobre as Escrituras não há um protestantismo autêntico, mas uma legalidade sectária. Isto porque o protestantismo como essência é autônomo. E por isso que podemos dizer que os conceitos pela graça somente e pela fé somente trazem vida ao domínio do conhecimento e rejeitam o legalismo da posse da verdade absoluta e de querer impor tal verdade aos outros.

A religiosidade e o princípio autônomo podem tornar-se um e é somente quando isso se dá que a autonomia se instala e deixa de cair sob o arbítrio. Diante da decomposição da cultura burguesa, o Reino propõe criar uma nova vida cultural e social unida sobre a base de uma economia solidária, mas isso só será possível se a autonomia caminhar em direção a uma teonomia, uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se de todas as coisas. A idéia de dar forma racional ao mundo fez oposição à concepção do cristianismo que via o mundo como essencialmente antidivino e a razão como corrompida e que via a redenção não como ação que dá feitio ao mundo, e o conhecimento não como razão, mas como revelação. Talvez por isso, nos últimos séculos, a filosofia protestante propôs-se a superar a oposição entre razão e revelação, através da idéia de uma história universal da revelação, humana e imanente, que é a história do espírito em geral e da religião em particular. Essa concepção elaborada pela cultura protestante considerou que a pessoalidade livre e ética é impossível sem o fundamento natural de sua individualidade, com suas particularidades lógicas, fisiológicas e biológicas e que o valor da pessoalidade consiste em ir além, elevar-se acima dessa naturalidade. Tal concepção de mundo, que repousa sobre o absoluto, fundamento de toda liberdade moral, não é um estado ideal, pois seria onírico, desprovido de liberdade verdadeira e de mérito interior. Assim, o cristianismo traduziu a vontade de dar forma ao mundo de maneira imanente: o Reino vem ao mundo. Mas, ao mesmo tempo, tal concepção apresenta limitações: já que o dar feitio está situado no âmbito da técnica, não no da ética, no âmbito da categoria de meio e de fim e não dos juízos e do mérito. 

Fazer é técnica, mas a técnica não é o fim em si, não é um fim último. Mesmo que toda economia fosse uma produção racional, a organização jurídica englobasse todos os povos, a vida material estivesse livre do imprevisível, restaria ainda o mérito da pessoalidade, a revelação do espírito e a idéia criativa que traduzem graça e brotam das profundezas do fazer. É importante que o olhar lançado nas profundezas do ser não seja turvado, que a fé enquanto experiência do eterno apoie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio de uma simples expansão técnica.

Podemos então dizer que foi com a experiência da imanência que surgiu o paradoxo entre Reino e cristianismo, já que o cristianismo está comprometido, enquanto religiosidade, com o lá em cima, e o Reino voltado para a expansão do que está aqui embaixo. Mas esta oposição não é correta, porque antes nos remete a uma metáfora: profundidade. E o que significa profundidade? 

O aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do ser humano, é incondicional e infinito. Assim, religião é a preocupação última e se manifesta em todas as funções criativas do espírito humano. Manifesta-se na esfera moral com a seriedade do imperativo ético. Quando alguém rechaça a religião em nome da função moral do princípio humano, rechaça a religião em nome da própria religião. Manifesta-se no reino do conhecimento com a busca apaixonada de uma realidade última. Quando alguém rechaça a religião em nome da função cognitiva do princípio humano, rechaça a religião em nome da própria religião. Manifesta-se na função estética do princípio humano como o anelo infinito de expressar um significado último. Quando alguém rechaça a religião em nome da função estética do princípio humano, rechaça a religião em nome da própria religião. A religião constitui a substância e a profundidade da vida espiritual do ser humano. 

Lá onde está a profundidade última da experiência religiosa, onde a experiência da incondicionalidade é pronunciada sobre todas as coisas e sobre todos os méritos, é onde acontece a supressão da oposição entre o que está em cima, absoluto, perfeito, e o está em baixo, relativo. Sim e não são pronunciados sobre o aqui embaixo, sobre a única realidade. É no coração das pessoas que acontece a separação, o julgamento paradoxal que torna tudo absoluto e relativo, perfeito e vazio, eterno e terrestre. É assim que se deve entender o “somente pela fé”, que não admite nem perfeição absoluta, nem conhecimento absoluto, nem estado absoluto, mas que vê brotar o absoluto em todo relativo.  

Temos aqui o fundamento da compreensão positiva que o cristianismo nos dá sobre a questão da imanência. Mas também o cristianismo deve oferecer ao Reino alguma coisa sem a qual ele não pode existir: a experiência vitoriosa da incondicionalidade em tudo que está condicionado, imanente, na totalidade do real. Existe uma atitude profana e uma atitude religiosa no olhar o mundo. Essas atitudes se tornam nulas num estado puro, exclusivo. Num, a primeira predomina fortemente, noutra, a segunda. Pode-se conceber um fazer profano, a ciência, a moralidade, a vida jurídica e econômica, a política nacional e exterior e se pode concebê-las de maneira religiosa. Pode-se vê-las como atividades úteis e agradáveis, necessárias e desagradáveis, mas pode-se ver o espírito agir nelas e ver a vida nelas se revelar, e por isso aproximar-se de tais coisas com respeito sagrado.

Tal princípio religioso está vivo no movimento de expansão do Reino: é uma vibração espiritual que circula através das comunidades. Mas há também inumeráveis presenças profanas no movimento. A santificação da vida cultural no geral e no Reino em particular, é a marca deixada pelo cristianismo no Reino. A santificação da vida cultural não será possível sem uma concentração dos elementos religiosos mais expressivos da cultura e da sociedade, sem a constituição de comunidades que estejam imbuídas em levar e transmitir a experiência religiosa às gerações futuras. É para isso que servem as idéias expressivas, as formas e as instituições que existem com toda a sua riqueza e sua vitalidade no seio das confissões, e que a partir da força de uma tradição provada aliam um vigor popular em oposição a uma pluralidade confessional racionalista e artificial.  

Apesar de toda aparência de que estamos apresentando uma nova confessão, com suas verdades e suas formas absolutas que suprimem a comunhão com os fiéis de outras crenças, vamos insistir na necessidade de falar sobre a experiência humana universal. Esta experiência tem seu fundamento no próprio cristianismo, já que podemos ver na cruz não somente a negação do judaísmo, mas também do cristianismo, quando este se absolutiza como confissão. As igrejas cristãs não podem deixar essa consciência tomar-se efetiva, pois é sobre este terreno que se deram as condições para as sangrentas guerras religiosas. Em relação a isso o princípio deve ser autônomo. O caminho da cultura cristã é entender esta consciência como elemento agregador de culturas e confissões, sem aboli-las, inspirando um sentimento de comunhão mais profundo que as barreiras concebíveis. O cristianismo confere assim seu próprio conteúdo à experiência humana do Reino, pois a solidariedade nascida da pressão exterior deixa de existir quando a pressão cessa.

Não devemos entender o cristianismo como confissão exclusiva, mas como brotar da fé absoluta, única incondicionalidade, que vê uma só humanidade, sem as barreiras internas e externas que caracterizam as comunidades. Esta fé não se mostra hostil a não ser com os domínios econômicos, políticos e religiosos, que se colocam eles próprios contra os outros. Nesse sentido, é a teonomia, que traduz a experiência da profundidade última, a incondicionalidade do sim e do não sobre todas as coisas e méritos, e a supressão entre o em cima absoluto e o em baixo relativo, que pode levar transcendência ao Reino. O princípio religioso que existe no Reino, enquanto vibração de graça e fé que circula nas comunidades, não deve ser negado, nem execrado pelo cristianismo. Ao contrário, o cristianismo pode fecundar a autonomia do Reino. Estes são os fundamentos de uma unidade entre o cristianismo e o Reino, que deve ser mais que uma associação, que traduz um desenvolvimento de ambos através de uma nova forma de fé e vida. E qual é o papel das comunidades de fé neste desenvolvimento do Reino? 

Antes de pensar esta questão, é necessário ver que relação existe entre a alta modernidade e o princípio profético. Falar da situação espiritual na alta modernidade pode significar duas coisas. Pode querer dizer que vamos de uma situação contingente em direção a um ponto de vista superior. A alta modernidade seria, então, parte de uma situação mais geral, já que o momento presente estaria enquadrado no caminhar do processo histórico. 

E para fazer a leitura dessa alta modernidade pode-se recorrer à análise histórica, à avaliação crítica ou à construção filosófica. Algumas vezes, porém, alguns desses elementos falham. Por isso, não basta observar a alta modernidade. Estamos ligados a ela, o que nos pode levar a escorregar para um julgamento do ser humano enquanto presente no aqui e agora e esquecer que devemos estar voltados para o futuro. O momento é importante, mas transformar o exame da situação espiritual da alta modernidade em apreciação subjetiva é realizar uma redução, é ver a situação como totalidade e permanência. Quando olhamos assim colocamos a situação num patamar elevado e a perspectiva que temos é aparentemente ampla e global, apesar de seu caráter individual e limitado. Tal análise do momento pode levar a uma ampla aprovação e tocar emocionalmente setores expressivos da sociedade e comunidades inteiras. Oswald Spengler, em A decadência do Ocidente, por exemplo, partiu da profunda crise da Alemanha no primeiro pós-guerra e como conclusão considerou que a cultura ocidental chegara ao fim. Esta era uma maneira de ver. Ela poderia ser qualificada como irresponsável, mesmo quando apresentava análises de conjuntura e perspectivas para o futuro. Mas por que então irresponsável? Por não aceitar suas responsabilidades. Por não reconhecer os limites do observador, assim como de seu próprio horizonte.

Mas se existe um nível mais elevado do que o analisado pelo observador, somos levados a falar da situação espiritual da alta modernidade, possibilidade que pode ser qualificada de responsável. E é possível chegar a tal patamar de observação? Bem, caso exista um ponto de vista mais elevado, a partir do qual se posicione um atalaia da alta modernidade, como deve ser este mirante? Deve estar numa altura inacessível. Por isso, só o absolutamente incondicionado, livre das amarras do historicismo, pode ser de fato responsável. Quando partimos dessa realidade, podemos dizer que existiram pessoas que interpretaram a partir do absolutamente incondicionado a situação espiritual de uma época dada. Eis aqui a possibilidade de um ponto de intersecção entre a alta modernidade e o princípio profético. Seguindo a trilha aberta por Ernst Troeltsch no combate ao historicismo é possível afirmar que o mandato profético, de compromisso incondicional com a justiça, traduz inquietude em relação aos acontecimentos sociais e religiosos concretos. Há uma busca ética de respostas entre aquele que encarna o mandato profético e a ação consciente do intelectual. 

Ambos representam determinada comunidade, têm função superestrutural e, apesar de sua organicidade, precisam exercer autonomia em relação às pressões sociais que sofrem. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder. Embora o profetismo bíblico não responda às necessidades atuais de análise de situações-limite mostra que não basta o exame da situação espiritual da alta modernidade como totalidade e permanência, ao contrário, mostra que é necessário compreender as exigências colocadas pelo absolutamente inacessível, mostra que é preciso estar livre das amarras do historicismo. Tal compreensão, que faz parte do mandato profético, expressão humana e verbal do incondicionado, é encontrada no profetismo bíblico, que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética, pois eram revolucionários voltados para o passado e conservadores impulsionados pela paixão do porvir. Os profetas nada faziam sem invocar a tradição, no entanto, sua grande mensagem eram os novos tempos, sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos pareciam ter em comum uma atitude realista. Abominavam a eloquência abstrata e ao contrário dos profetas falsos estavam interessados no mundo real. A pregação do futuro não constituía o essencial de seus sermões, antes era o fruto e o resultado final do conhecimento aprofundado do mundo circundante.

Mas isso não basta: o mandato profético na alta modernidade não pode ser apreendido apenas a partir da leitura dos profetas bíblicos e nem somente das Escrituras cristãs. 

Segundo Tillich, os evangélicos radicais atacavam a doutrina de Lutero a respeito da Escritura. Adonai não falara apenas no passado, tornando-se mudo no presente. Sempre falou; fala nos corações ou nas profundezas de qualquer ser humano preparado para ouvi-lo por meio de sua própria cruz. O Princípio habita nas profundezas do coração, não o nosso, naturalmente, mas o de haShem. 

Thomas Müntzer, o mais criativo dos evangélicos radicais, acreditava que o Princípio podia sempre falar por meio dos indivíduos. No entanto, para se receber o Princípio era preciso participar da cruz. Lutero, dizia ele, prega um Yeshua doce, um Yeshua do perdão. Devemos também pregar o Yeshua amargo, o Yeshua que nos chama a carregar sua cruz. A cruz, diríamos, representava a situação limite. Era externa e interna. Surpreendentemente, Müntzer expressa esta idéia em termos existencialistas modernos. Quando percebemos a finidade humana, desgostamo-nos com a totalidade do mundo. E nos tornamos pobres de princípio. O ser humano é tomado pela ansiedade de sua existência de criatura e descobre que a coragem é impossível. Nesse momento Adonai se manifesta e ele é transformado. Quando isso acontece, o ser humano pode receber revelações especiais. Pode ter visões pessoais não apenas a respeito de teologia como um todo, mas sobre assuntos de vida diária. 

Porque se procuramos um lugar que não possa ser abalado, essa interpretação não pode estar pousada sobre experiência própria e nem mesmo da igreja. Pois, para fazer a leitura deste mandato profético na alta modernidade devemos ver quem nela de forma apaixonada levanta as bandeiras da justiça e da vida criativa. E também procurar onde se encontra o mandato protestante, que se expressa de forma paradoxal, ao fazer a crítica de pontos de vista estabelecidos. Crítica do movimento de expansão do Reino e crítica da tentativa de limitar a profecia a um ponto de vista particular.

Submetido a este tribunal, a alta modernidade ganha em profundidade. E esta negação do tempo a partir da eternidade tem uma consequência fatal. Recusa-se a ser um simples ponto de vista. Considera que tudo depende, então, do grau de proximidade existente entre um clamor e o que acontece no mais íntimo de uma época. Tudo depende do grau de concretude e do tipo de força em seu interior disposto a anunciar o sentido da alta modernidade. 

O Adonai do tempo é o Adonai da história, afirma Tillich. Isso significa em primeiro lugar, que é o Adonai que atua na história com destino a uma meta final. A história segue uma direção, algo novo há de criar-se nela e por intermédio dela. Essa meta designa-se de várias maneiras: bem-aventurança universal, vitória sobre os poderes demoníacos representados pelas nações imperialistas, chegada do Reino na história e, mais além da história, transformação da forma do mundo, etc. Os símbolos são muitos, mas em todos o tempo dirige, cria algo novo, uma nova criatura, como chama Shaul. Em sua tentativa de criar uma consciência humana indivisa, as missões têm um caráter universal. O tempo alcança plenitude na história e a história a alcança no Reino universal de haShem, o reinado da justiça e da paz.

Quando analisamos o mandato profético a partir desta leitura, vamos constatar que ele não testemunha em benefício do presente, diferentemente da profecia clássica dos hebreus. Ele profere um não à alta modernidade, um não amplo, já que não critica a alta modernidade em concreto, de forma particular, pelo simples fato de que não aceitar os símbolos das forças demoníacas de nosso tempo. Ao renunciar a um não concreto à situação presente, apresenta um sim a esta situação. O não abstrato torna profanas todas as oposições e as rebaixa de tal modo que deixam de ter importância última. E por isso a paixão profética perde sua razão de ser. O individualismo religioso é, quando consideramos a situação da alta modernidade, movimento reacionário. E é terrível ver que, muitas vezes, está sob a proteção de um falso profetismo, cuja mensagem consiste em congregar tudo sob o mesmo não. Assim, o combate profético concreto perde força e fica amarrado diante das forças demoníacas da época. 

Ao contrário, o mandato profético, que nesse sentido é princípio, está envolvido na situação histórica concreta, tem a coragem de decidir e colocar-se sob julgamento, ao nível do particular. Sem esquecer que sua relação aponta ao incondicionado e que o ponto mais elevado que é possível alcançar no tempo está submetido ao não, mas nem por isso deverá perder a audácia do não e do sim concretos. E é a partir dessa compreensão do que significa o princípio do clamor profético na alta modernidade, que voltamos ao kairós, mas agora com novos conteúdos, construído enquanto responsabilidade irrecusável. 

O rabino Shaul, o apóstolo Paulo dos cristãos, fala de kairós, para descrever o sentimento de que o tempo estava maduro. Kairós nada tem a ver com o tempo quantitativo, mas se refere ao tempo da ocasião, o tempo certo. Kairós é o agora, o tempo certo para agirmos. Foi nesse sentido que Shaul e as primeiras comunidades de fé falaram de tempo certo para o estabelecimento definitivo do Reino. 


42.


Quem nos alimenta?

No universo existem dois modos de se viver – ter o coração quente e a cabeça fria ou fazer para ver no que vai dar. Ora, não fazer dá trabalho ao contrário do que a gente pensa, e é por isso que todos somos atraídos pelo fazer. Donde inativo, inativo, ninguém é e muito menos gosta de ser taxado assim. E esses modos de fazer, nós chamamos de funções do ser, que variam conforme cada um, e acabam virando meta da vida. 

Mas, ainda ao contrário do se pensa, quem faz, quem faz acaba acorrentado e por estar acorrentado torna-se inativo, pois coração e cabeça giram ao redor do que faz, do que se faz.

Mas o coração quente e a cabeça fria colocam as coisas nos seus devidos lugares. Não basta o coração quente, não basta a cabeça fria, mas juntas colocam desejos e fazeres no caminho da alegria, da justiça e da paz. Repare bem, fazer é necessário, afinal todos temos que comer, mas fazer também faz das gentes, gente. E ao fazer assim, juntos, com o coração quente, o desejo do coração solitário fica de lado, e nasce a alegria do trabalho comum. E é assim que nasce a abundância certa. É assim que nós multiplicamos e produzimos para os pequenos, os grandes, os experientes e para a própria natureza, que sempre nos chama à permuta.

E quem nos alimenta? São os deuses? Não. É o acordo solidário entre gentes e natureza, que sempre quer trocar, permutar com todos. Afinal é assim que ela vive. Ou, como diziam os antigos, animais e vegetais vivem na terra, vivem das terras, os frutos dos animais e dos vegetais são geradas pelo hálito quente da terra, mãe e útero, e pela água fria do céu, mas também pelo suor de todos nós, que é fazer e alegria.

E quem com o coração quente e a cabeça fria participa do ciclo da vida, curte os segundos deliciado e cheio de prazer, vive. Encontrou a alegria, é feliz em seu coração, e não despreza o trabalho, mas o faz com todas as forças do seu ser.

Repare, aqui há a experiência de um velho que atravessou décadas, em todo trabalho há um segredo escondido, mas este só se revela quando chega ao coração e às mãos das gentes. Pode parecer, aparecer como de um só, individual, mas quando todos sentam e juntos participam da ceia com alegria, o que era individual, na aparência, realizou a obra do fazer, atingiu o objetivo maior e o segredo se revela a todos. Assim nasce o com panus, o companheirismo solidário que faz de um, todos, do fraco, forte, e do forte de coração quente, amigo e irmão.

Shlomo, que quer dizer pacífico em hebraico e que traduzimos por Salomão, foi rei de Israel. Seu reinado está contado no Livro dos Reis. Era filho de Davi com Bate-Seba e, segundo a tradição, foi o terceiro rei de Israel, governando quarenta anos, de 966 a 926 antes de Yeshua.


43.


Shlomo e a sabedoria


Quando falamos de Shlomo vem a mente estórias de sabedoria, riqueza e poder. Ele não era o filho mais velho do rei Davi e, por isso, não deveria herdar o trono. Na verdade, o Segundo Livro de Samuel (3.4) conta que na linhagem sucessória ao trono estavam Amnon (filho de Davi e Ainoã), Absalão (filho de Davi e Maacá) e Adonias (filho de Davi e Hagite). Mas com a morte de Amnon e Absalão, e as intrigas palacianas pela sucessão, já que cada pretendente ao trono era filho de uma mulher de Davi e tinha seus apoiadores no palácio, o rei Davi decide descartar definitivamente Adonias e promete a Bate-Seba que Shlomo seria o escolhido. Quando o rei Davi, já velho, adoece e fica prostrado na cama, a família real, que já vinha conspirando para que Adonias tomasse o poder, resolve comemorar o futuro reinado de Adonias. E Shlomo toma posse em segredo.
 
Assim, muita gente do palácio não sabia o que estava acontecendo. E o profeta Natã, que já tinha sido informado por Davi de que deveria empossar Shlomo e cuidar para que o jovem não fosse assassinado, foi chamado por Bate-Seba. Sem perder tempo, o profeta abençoou o jovem Shlomo, que teve que enfrentar, desde o início de seu reinado, conspirações e tempos turbulentos. 


Apesar de todos esses problemas, o Shlomo deixou um legado de escritos de sabedoria. E agora vamos ver algumas lições que podemos aprender com ele, em seu livro chamado Qoheleth, ou “aquele-que-sabe”, ou simplesmente "mestre". E que nós chamamos em português de Eclesiastes. 


Muitas vezes, a sabedoria de Eclesiastes parece um pouco densa, mas se fizermos uma síntese dessas páginas podemos dizer que o resumo é: os nossos esforços para alcançar a felicidade, distantes de um repousar sobre a espiritualidade, são inúteis.


E assim esse rei planejou e organizou a construção do primeiro templo da história de Israel, escreveu três mil provérbios, mil e cinco canções, além do livro de Eclesiastes, considerado um dos textos filosóficos mais importantes da literatura judaica.


Shlomo enfrentou anos difíceis e enormes desafios. Na verdade, durante seu reinado possibilitou o crescimento econômico e a expansão do comércio e da indústria. Ele havia criado uma indústria naval, embora os hebreus não fossem navegadores, nem tivessem intimidade com o mar. Ao contrário, era gente da terra firme, que sabia enfrentar as vicissitudes da aridez dos desertos. 


Mas Shlomo era um visionário. E, assim, contratou os seus vizinhos fenícios, esses sim, homens amantes das viagens marítimas. E instalou com a contratação dessa mão-de-obra especializada estaleiros no norte de Israel e ali construiu navios com o melhor da tecnologia marítima da época. 


Sim, eram tempos de crescimento econômico e expansão do comércio. Mas isso exigia trabalho duro e ele sabia disso. Foi por isso que trouxe para Israel um costume egípcio que não era muito bem visto. Passou a exigir dos jovens, o trabalho forçado obrigatório por dois anos seguidos, que muita gente dizia ser escravidão. Não, não era escravidão, mas fazia com que a força jovem das famílias deixassem os campos e fazendas para trabalharem para o governo de Shlomo no norte do país. 


E como se não bastasse, os jovens mais espertos eram convidados pelo governo de Shlomo a integra-se na força tarefa que se lançava nos mares a fim de realizar o comércio com outras nações do além-mar.


É verdade, eram tempos de trabalho duro, mas de conquistas e sonhos ousados. Mas havia outra questão e ele, como rei de Israel, sabia disso muito bem: não era só necessário pensar grande e trabalhar duro. Era necessário investir, afinal o governo precisava captar recursos para que o sonho pudesse se tornar realidade.


E foi assim que ele fez chegar a todo o povo de Israel uma campanha que dizia, lança o teu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias o acharás.


E depois no corpo da campanha, explicava que os investidores não deviam aplicar apenas em uma mercadoria, ou apenas num investimento -- reparte com sete e ainda com oito --, porque na economia há imponderáveis que, às vezes, é impossível prever. E fazia um alerta importante, quem fica esperando que tudo dê certo antes, nunca vai arriscar ou investir, ou seja, quem observa o vento não semeará e quem atenta para as nuvens não ceifará. E Shlomo aconselha, semeia de manhã a tua semente e, de tarde, não deixes repousar a tua mão, pois não sabes qual das duas prosperará, se esta ou aquela ou se ambas serão igualmente boas. 


Que campanha genial, que marketing brilhante! E todo o povo de Israel entendeu o recado do rei Shlomo. Vamos investir no comércio marítimo, no trigo e outros bens. E vamos importar também, cedro do Líbano e madeiras nobres, ouro e prata. A gente investe agora, diversifica os investimentos, pois sabemos que há riscos e não podemos prever tudo, mas apostamos junto com o governo de Shlomo, que é de crescimento econômico e prosperidade. Investir nos projetos do rei é uma atitude sábia e recompensadora, apesar dos riscos da empreitada. 


A campanha significava apostar nas safras de trigo e de outros bens agrícolas, investir no comércio exterior, e importar madeiras, ouro e prata, ou seja, lançar o pão sobre as águas e esperar, porque depois das viagens distantes, receberiam a recompensa de um ou mais dos investimentos feitos. Mas esses não eram investimentos de curto prazo, era necessário aplicar com tranquilidade na produção agrícola, nas viagens das naus de Shlomo, nas importações e esperar.


Eis as lições que podemos tirar deste sábio conselho presente no livro de Eclesiastes, uma coletânea de textos de sabedoria do rei Salomão.


Devemos, mesmo nos tempos de crise e de trabalho duro, investir, poupar, diversificando nossos investimentos. Sabendo que a longo prazo seremos recompensados, receberemos os dividendos, teremos o lucro dos investimentos realizados.

Shlomo amou muitas mulheres, além da filha de Faraó, moabitas, amonitas, edomitas, sidônias e hetéias. Segundo a tradição, foram setecentas princesas e trezentas concubinas, ou seja, mulheres com as quais não formalizou suas relações. Shlomo, possivelmente para agradar suas esposas, já na velhice, construiu altares para Camos, Adonai dos moabitas, e para Milcon, Adonai dos amonitas. E junto com elas, queimava incenso e sacrificava a esses deuses. 

É importante notar, porém, que ter um harém era um sinal de riqueza de um reino e também da virilidade do rei. Afinal, um rei com potência sexual era considerado um sinal de bênção para o reino. E o fato de Shlomo casar com princesas estrangeiras fazia parte da diplomacia, porque os acordos entre cidades e reinos eram ratificados com a troca de princesas, que eram consideradas um capital econômico que regularizava as relações sociais. Por isso, tanto política como para manter a paz familiar, Shlomo devia respeitar as crenças de suas mulheres e, logicamente, construir locais de culto para os deuses delas.

Talvez essa situação toda tenha pesado no coração de Shlomo e no livro de Eclesiastes ele considerou que deveria dar um conselho especial aos jovens. 

Vai e goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida vã que ele te deu debaixo do sol, por todos os dias da tua vaidade. Pois essa é a tua porção na vida e no teu trabalho com que te afadigas debaixo do sol.

Shlomo está dizendo para os jovens que não adianta ter muitas mulheres se você não ama nenhuma delas. Entre todas, você deve escolher aquela que ama e atravessar a vida com ela. E como a vida é passageira, como a névoa que se dissipa pela manhã, você deve viver com intensidade cada momento. Afinal é isso que o eterno deu a você, a oportunidade de viver e as lutas da vida.

Shlomo entendeu que as posses são importantes, mas não bastam. E compreendeu também que gozar a vida é fundamental, mas viver com plenitude não se resume a isso. Vai, então, ensinar aos jovens uma outra lição:  Este é o fim do discurso. Tudo já foi ouvido: teme ao eterno e observa os seus preceitos, porque isso é o tudo do homem. Ou seja, a vida em plenitude é um momento especial da espiritualidade, que possibilita às pessoas desfrutarem aquilo que conquistam e viverem com intensidade os dias da existência.


É um presente poder comer, beber e desfrutar o produto de nosso trabalho, e isso é um dom do eterno. O encontro entre o ser humano e a transcendência eterna, essa comunhão profunda da espiritualidade, Shlomo nos conta que é fruto do escutar com atenção o que o universo nos fala. Não é fruto de uma liturgia exterior, mas a celebração no cenário complexo e paradoxal da vida. É a celebração com o corpo, onde a corporalidade assume o papel de tradutor dos mistérios do eterno. 

Eu vi ainda debaixo do sol que a corrida não é para os ligeiros, nem a batalha para os fortes, nem o pão para os sábios, nem as riquezas para os inteligentes, nem o favor para os homens de destreza; mas tudo depende do tempo e do acaso. Pois o homem não sabe a sua hora. Como os peixes que são apanhados numa rede cruel e como os pássaros que são presos no laço, assim os filhos dos homens são enlaçados no tempo mau, quando este dá sobre eles de improviso. Vi também este sinal de sabedoria debaixo do sol, que me pareceu grande.


Os frutos do trabalho e de seus investimentos, a sexualidade e o erotismo fazem parte do entendimento de Shlomo sobre os ganhos e os prazeres da vida. As palavras sábias de Shlomo lançam por terra uma compreensão superficial da vida. Os problemas da existência, o infortúnio e o mal não são inerentes ao mundo, não são frutos da alienação, nem maldição do eterno, mas são manifestações das contingências e das fragilidades humanas. E por medo, o tolo não pode apreciar a beleza do mundo e a finalidade do esforço humano. Por isso, não se deve viver sem sabedoria. E este é o presente maior do eterno.


Shlomo, aquele-que-sabe, o mestre sábio, construiu um cenário onde as pessoas desempenham na existência o papel que lhes é entregue pelo grande dramaturgo. Assim, comédia, drama e tragédia estão presentes no repertório teatral que cada pessoa escolhe. 


Mas, através da sabedoria horizontes estreitos são ampliados. Estar aqui, agora, quer rindo ou chorando, é um presente da eternidade. Estar aqui hoje é o dom que Adonai me deu. Sem o aqui e agora de cada dia, meu desejo de ter, meu desejo de poder controlar o amanhã de acordo com o esforço de hoje não procede. A vida plena tem que acontecer hoje, pois não sabemos o dia de nossa morte. Tudo o que temos é a série de eventos agradáveis ​​e dolorosos que compõem a força da espiritualidade do nosso agora.

É verdade, não queremos estar sozinhos, sempre, existência a fora, por isso se você entendeu estas primeiras palavras, você tem que agir. E quem age assim, com o coração quente e a cabeça fria, vai ter outras gentes que desejarão segui-lo. Por isso, deixe de lado, o pensar bobo, que esquenta a cabeça e esfria o coração, que é pensar não tenho nada para fazer, não tenho nada a conquistar ... e ainda estou no trabalho.

Porque se eu for incansavelmente ativo, sem alegria e prazer, todas as gentes que olham o meu caminho, derrotadas, vão perecer. Transformei meu fazer em caos, sou um destruidor de gerações.  Os que não são sábios estão unidos entre si por seus fazeres, mas o sábio, mesmo quando aparentemente solitário, constrói o universo. 

O universo é solidário e seu fundamento é o amor que liga natureza, gentes e mundos numa sinfonia em construção. E todos os fazeres possíveis estão cheios de atributos, que faz de cada um e todos, autores. Por isso, a verdade é saber que eu sou o autor, e que o bailar da sinfonia, a dança dos atributos com os atributos é o compartilhar. 

E esta não é uma lei do outro, que vem de fora. Ela está dentro porque a sinfonia do universo toca no coração aquecido. E de dentro se espraia. Por isso, cuidado com a lei do outro, porque ela leva a errar o alvo. É ferrugem que corrói o ferro, força estrangeira, fumaça que cobre o fogo, fúria que guerreia no mundo, paixão que nasce do instinto. A lei do outro, estrangeira, é chama insaciável, sempre muda de forma. Os sentidos, a mente, a razão quando colocados sob a lei do outro, estrangeira, geram desordem e ignorância.

Conecta os seus sentidos, porque se os sentidos são poderosos, se a mente é mais forte do que os sentidos, se a razão é mais forte do que a mente, há algo mais forte do que a razão. É a sinfonia do universo.

Quem não entende, quem não faz assim, não faz uma boa viagem, navega triste para um porto sem esperança. Por isso, na sinfonia do universo falta uma nota ... 

As gentes, eu e você precisamos bailar ao som dos instrumentos que temos e tocamos nesta sinfonia do universo. Se eu murmuro, não consigo ouvir a nota que sou, perco a harmonia. A sabedoria para ouvir e participar da sinfonia do universo é essa, não deixar que o coração esfrie, nem que em chamas mergulhe no desejo de destruição, da ira e ódio. O coração do sábio não está sob o império dos sentidos.

O pressuposto fundamental dessa reflexão teológica da vida traduz a verdade de que a compreensão da eternidade leva à compreensão do humano e de sua existência. Não se trata de conhecer o humano para conhecer a eternidade, porque o finito relativo não é eterno absoluto. Nesse sentido, a leitura da vida parte da eternidade absoluta. 

Se as experiências com o eterno único e as experiências com o mashiah são conversas entre eterno absoluto e finito relativo, é a partir desse diálogo que temos os elementos fundamentais para conhecer a vida, embora ela própria no diálogo adquira características específicas. É nesse contexto que se dá a liberdade de consciência necessária para aceitar ou não esse diálogo de vida e para a vida.

Por isso, missão é a propagação da vida e de seu sentido ao mundo, visando a geração e regeneração própria da vida. É escolha e chamado. A responsabilidade da propagação da vida se estende até os confins da terra. Comunidades e pessoas devem promovê-la. E assim nos posicionamos radicalmente entre o céu e a terra.


44.


Um diálogo necessário

Assim, após a restrição, tendo formado um vácuo e um espaço precisamente no centro da luz infinita, um lugar foi formado, onde o emanado e criado podem residir. Então da luz infinita uma única linha estendeu-se, desceu dentro daquele espaço. E através daquela linha, ele emanou, criou, formou, e fez todos os mundos. Antes destes mundos virem a ser havia um infinito, um nome, em maravilhosa e oculta unidade, E mesmo nos mensageiros mais próximos a ele não há capacidade de atingir o infinito, pois não há mente que possa a ele perceber, porque ele não tem lugar, nem limite, nem nome.

Já no final deste livro, quero que pense comigo uma questão: quem é o ser humano e o que caracteriza a nossa existência. É um assunto complicado, mas importante para quem deseja agir e construir o mundo. E nesta conversa teremos algumas personagens, Yoffe, Brianda e alguns amigos. E é Yoffe quem começa a conversa falando com um descendente amado.

Estou na sala de casa, de paredes brancas, enrugadas, sentado em uma almofada, bem à moda safardi. E penso: a busca pela justiça passa por colocarmos no seu devido lugar a questão da identidade humana. Veja você, será que a existência se reduz a um conjunto de sensações, de emoções? Não podemos admitir a identidade de uma pessoa se ela não puder ser percebida pelos sentidos? Se for assim, o cérebro é a causa da identidade e qualquer outra hipótese é inútil.

Vou entrar com toda a cautela na conversa. É gostoso conversar com um descendente sábio. Se no corpo humano existem apenas fenômenos sucessivos, sem laço que ligue o passado ao presente, como se explicam o hábito, a associação de ideias e a memória? Ora, é necessário admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro e se liga aos atos que praticamos. Esta realidade é a própria identidade que expressa a existência de cada um de nós. E se existe a existência, tenho que perguntar o que ela é. Tomando como modelo a complexidade do mundo, prefiro dizer que devemos ver que existem duas hipóteses: a existência se projeta na eternidade ou só existe o momento presente e o resto é aparência e virtualidade? Como combinar uma indigestão com o sentido pleno da vida? Somos substância extensa, divisível e palpável, seguimos e vamos além do momento. A existência é essa extensão e cada pessoa tem identidade na existência. Não é uma unidade numérica, mas una na sua diversidade. Mesmo quando a gente envelhece a identidade permanece. Somos um ao longo do tempo e é esta unidade na existência que me confere identidade. 

Talvez você por ser um descendente sábio, me questione: certo, você defende o princípio da existência que se projeta na eternidade. Você está dizendo que eu sou hoje e também amanhã. Um pedaço de mim envelhece, se desgasta, mas a identidade permanece. Não concordo com isso! Eu sei muito bem que o cérebro está ligado à vida mental. Se uma pessoa sofre uma lesão cefálica é quase certo que vai sofrer algum tipo de dano psicológico. O funcionamento do cérebro, as emoções e a memória estão relacionados. Embora não possamos genericamente correlacionar os estados psicológicos com os estados cerebrais, sabemos que tal correlação existe. Por isso eu digo que a vida mental tem origem no cérebro e que a existência enquanto extensão não existe.

Nada como conversar com gente inteligente, querido descendente. Por isso, deixe-me aprofundar os argumentos. A existência está unida ao momento e participa da vida, inclusive para realizar as suas operações. Mas, também é independente nas suas funções. Deste modo, a existência pensa e deseja. Assim, a existência não está imersa no tempo presente, é independente sob diversos aspectos. Lembro-me de que Aristóteles, o mestre grego, dizia que um ser se conhece por suas operações. Ora, de onde vêm as ideias? Ser inteligente, pensar, são atividades da pessoa ou da existência? É a existência que trabalha a inteligência. A matéria está presa às leis da matéria, mas a existência por ser extensiva tem maior liberdade diante dos impulsos da sensibilidade. A existência goza de livre arbítrio. A simplicidade que caracteriza os fenômenos da inteligência impede que afirmemos que o cérebro seja a causa do pensamento. Mas, é verdade, a inteligência precisa de um cérebro saudável para se expressar. 

Estou vendo, querido descendente, você desenhar rabiscos no ar. Diga o que você acha. E o descendente constrói um diálogo, que já não é virtual, mas tomou forma e lugar.

Yoffe, ancestral amado, há uma parte do seu argumento que eu gosto, aquela em que você fala da liberdade humana. Só que para falar de livre arbítrio não é necessário falar de existência. Você disse que a existência é extensa, una e indivisível, então como ela pensa, como se relaciona com os cérebros? Além disso, você não explicou o que torna uma existência a mesma ao longo do amanhã e do depois de amanhã? 

Deixemos Brianda falar também. De maneira nenhuma aceitaria ficar fora da conversa. E Brianda diz: Bem, caríssimos, creio que aqui os argumentos se esgotam e explicam os diferentes caminhos que buscamos para encontrar a justiça. Aqui está a divergência: o cérebro é ou não é o instrumento de que se vale a existência para expressar os pensamentos extensos? E se tomarmos como ponto de partida o sábio Aristóteles, quando disse que pensamos sem órgãos, que o entendimento não está ligado a nenhum órgão, e que pode trabalhar e existir separado do corpo...

Mas nosso descendente não se deu por vencido. Até esse momento não tinha se sentado. Caminhava devagar pela sala, fitou Brianda, a avó, com carinho e teceu sua argumentação: 

Bem, já que a avó Brianda citou Aristóteles, quero trazer para esta conversa uma hipótese. Na verdade, uma parábola: um príncipe interrogou-se sobre como seria viver como um sapateiro. E um sapateiro sonhou em ter uma vida de príncipe. Um dia eles tiveram a oportunidade de trocar todas as características mentais de ambos. O sapateiro passou a ter a memória, conhecimento e atributos pessoais do príncipe, cujas características mentais migraram para o sapateiro.  Depois da troca, a pessoa que agora é sapateiro lembrou-se ter sido um príncipe que desejava experimentar a vida de sapateiro. Ele disse: Puxa, satisfiz minha curiosidade! Reconheceu-se como príncipe e não como sapateiro. E vice-versa. Será isso mesmo? 

Mas a estória se complica, isto porque o príncipe havia cometido um crime horrível, e para escapar da condenação resolveu recorrer à troca de cérebros. Após a troca, o crime foi descoberto, e os guardas vieram buscar o culpado. Sem saberem o que aconteceu, prenderam a pessoa que agora é o príncipe, que começou a gritar se dizendo inocente. A pessoa que agora é o sapateiro, que se reconheceu como o príncipe criminoso, saltou de alegria por ter escapado da condenação. Ora, se foi assim, era uma enorme injustiça, pois quem deveria ser condenado era a pessoa que agora é o sapateiro e não a pessoa que agora é o príncipe. Veja, avô Yoffe, a nossa identidade obedece à continuidade do cérebro. Uma pessoa no passado permanece idêntica a ela mesma no futuro se forem mantidas a memória e as características individuais dela. O príncipe que agora é o sapateiro é de fato o príncipe e, por isso, aquele que agora é o sapateiro é culpado pelos crimes do príncipe, uma vez que lhe é psicologicamente contínuo. E este deveria ser o veredicto correto: o sapateiro com o cérebro do príncipe é quem deveria ser condenado.

Opa, percebi o ponto fraco do argumento do descendente e resolvi, então, complicar a estória: Mas eu desejo acrescentar uma pergunta a sua estória, meu querido descendente: e se pudéssemos duplicar um cérebro e colocá-lo em corpos diferentes. Esses dois corpos seriam pessoas iguais ou diferentes? E se fossem diferentes, onde estaria a base da identidade da pessoa, o que faria dela uma pessoa diferentes da outra? Logicamente, não o cérebro, mas a existência que cada uma passaria a viver a partir dos cérebros colocados nos corpos. Com isso, quero dizer que a identidade de uma pessoa não reside no cérebro apenas, mas na existência que se vive. Ou seja, é a existência que constrói o nosso cérebro. Por isso, descendente creio que talvez haja um ponto de contato entre nós. Talvez essa existência seja aquele sopro inicial lançado em nossas narinas pela eternidade, que será construção no caminhar de nossas experiências, emoções, sentimentos. E se for assim até mesmo a identidade é uma construção, algo que nos pertence enquanto potência.

O descendente caminhou devagar em direção a uma almofada grande. Procurou uma posição confortável e ouviu com atenção os argumentos do avô. Com deleite se lembrou de uma estória que falava do humano pobre e do humano rico. Essa estória traz imagens ilustrativas de julgamento e recompensa. Era uma estória construída para sábios e religiosos. Os sábios não pensavam existir vida eterna no sentido de recompensa e julgamento, apoiando-se na visão de que o repouso eterno é o lugar de todos os que morreram, sem diferenciação. Mas a estória estava dirigida também aos religiosos, que esperavam a instalação do reino eterno. As palavras tiveram uma audiência específica. A ênfase das palavras era referente ao julgamento e não à recompensa. Porque a penalidade do juízo não é o contraponto da recompensa, mas do reino do eterno. Nestes termos, as palavras também visavam os sábios. 

O reinar da eternidade já chegou e começou no ontem, está no hoje e se projeta no amanhã. Esta vida no reinar da eternidade é a vida das eternidades, que começa aqui e continua para sempre. Como a vida do reino é deixar que o eterno reine nas gentes, a recompensa é a continuação do reinar da eternidade. A morte não interfere no reinar, apenas modifica a esfera de sua atuação. O ser humano após a morte tem suas emoções, histórias e memórias guardadas eternidade a dentro, a espera do ser levantado que lhe abrirá os céus e terra novos -- na intimidade do reinar da eternidade ou na separação do que é eterno. Para tratar a estória do homem pobre e do homem rico, é necessário ver que as palavras estão dirigidas a pessoas para evocar respostas. Assim, é necessário compreender o contexto das palavras a quem estava sendo dirigida e com que objetivo foram empregadas. Algumas questões devem ser colocadas de antemão. O contexto maior começa fazendo uma diferenciação entre a prática dos religiosos e a forma de vida do reinar eterno. Há críticas ao espírito da religiosidade. A crítica enfatiza o tipo de vida do reinar da eternidade, a vida das eternidades, por sua qualidade. A crítica questiona a confiança de quem tem certeza de que estará presente no grande banquete do reino eterno: são os pobres, os coxos e os cegos que se encaminham ao banquete, porque as pessoas mais óbvias da lista de convidados estão preocupadas com outros assuntos.

Então Brianda deu um salto de sua almofada e falou rápido, como se não quisesse ser interrompida por ninguém: Temos um acordo. Seu argumento é: se um louco pudesse ter transplantado o cérebro lesado por um outro que fosse são, com certeza pensaria de modo correto. Isto porque a desordem e a deterioração dos órgãos não lesam a inteligência em si mesma, mas somente a privam das condições e meios requeridos para o seu funcionamento normal. Pode-se dizer, então, que o cérebro é a interface entre o espírito e o mundo material.

Oba, não estou só. Aristóteles e os nossos ancestrais não admitiam nas pessoas dois princípios de vida, mas afirmavam que além da atividade consciente e psicológica, a existência inteligente possui também a faculdade de presidir às funções fisiológicas. Desta maneira, a existência seria o único princípio de toda a atividade vital das pessoas -- da vida vegetativa e sensitiva mas, também, da vida propriamente espiritual. A corpolítica íntima que existe entre as diversas operações da existência pensante, inteligência, sensibilidade e vontade, prova a unidade substancial do princípio de onde elas se originam. Esta mesma correlação se verifica entre as operações as funções orgânicas e psicológicas. 

E nesse momento, o descendente fez um dueto com o avô: Uma comoção violenta da existência pode parar a circulação do sangue ou pode gerar o medo que paralisa. Mas pode também, ao contrário, levar à confiança que sustenta as forças físicas. Ou seja, os distúrbios físicos atuam sobre nosso estado moral, e isso é reciproco. Demonstrada a união da existência, como se faz esta união? 

E eu acrescento: A pessoa não existe fora da existência. Da existência, o corpo recebe a sua unidade, a organização, a vida e atividades próprias, numa palavra, tudo o que faz dele humano. Assim, o corpo apenas se separa da existência pela morte, quando perde todos estes caracteres, todas as suas determinações específicas, dissolvendo-se nos elementos químicos de que foi formado. Quanto à existência, sem dúvida, existirá, na sua trajetória que engloba todos os humanos, sem corpo não há as faculdades que exigem o concurso dos órgãos corporais, como a imaginação, a percepção externa e a sensibilidade. Deste modo, o corpo é a matéria e a existência é a forma, e a união do corpo com a existência constrói um todo substancial e verdadeiro. É esta união no ser que faz da existência e do corpo um só princípio de ação, que faz com que não haja ação humana na qual o corpo não faça a sua parte, nem ação humana tão humilde e material que não repercuta na existência.

Talvez por não ter tantas oportunidades de uma conversa franca com Yoffe, devido as limitações do espaço-tempo, o descendente se mostrou curioso diante dos argumentos do avô. E disse agora com carinho: É certo, entendo, com a morte o corpo se dissolve. Acontecerá o mesmo com a existência e morreremos inteiramente? O que é a eternidade?

Vejo essa pergunta, querido descendente, como um clamor da existência. Considero, e desejo essas reflexões ecoem através de todos vocês que leem, pensam e agem, que no eterno está a sobrevivência pessoal e substancial, a identidade permanente da existência, que conserva as suas faculdades de amar e conhecer, sem as quais não há felicidade humana. No eterno, a existência mantém a consciência da sua identidade, com as lembranças e responsabilidades do ontem que permanece, sem as quais não poderia haver nem recompensa nem julgamento: em uma palavra, não existiria o princípio da justiça do eterno. O corpo se desagrega e se dissolve logo que se separa do seu princípio de unidade, da sua forma substancial que é a existência. A existência do ser como é não pode decompor-se, nem se desagregar, permanece no coração do eterno. Este é o argumento ontológico da premissa de que a existência se projeta na eternidade. Se há o eterno e sua lei moral, a justiça exige que o crime seja punido e a virtude seja recompensada. 

Neste mundo, nem a natureza, nem a sociedade, nem a própria consciência dispõem de atributos suficientes para recompensar plenamente a virtude ou punir adequadamente o vício. É necessário, portanto, que haja projeção da existência onde a justiça seja plenamente satisfeita e a ordem seja estabelecida. Este é o argumento moral, que demonstra a projeção da existência, mas não prova que esta existência seja ilimitada na sua duração. O argumento psicológico, que prova a perseverança da existência humana, assenta sobre o princípio de que o Eterno não se contradiz, por isso ao dar um fim a um ser, lhe dá também os meios de o atingir. Tudo na natureza do humano aponta para o fato de que é criado para atingir a felicidade. Mas, se não pode alcançá-la neste mundo, deve haver outra realidade onde tal projeto se concretize. E como a felicidade pressupõe expansão sem limites, segue-se que a realidade futura teria esta qualidade. 

O ser humano aspira a um objeto eterno, a uma beleza, bondade e verdade absolutas, cuja posse nos deve fazer felizes. Nossas faculdades superiores possuem capacidade ilimitada, que não podem se satisfazer fora deste bem eterno, que não é outro senão o próprio eterno. Mas, encontramos neste mundo o que sacia esta sede de felicidade humana, que preencha o vazio do coração criado para o eterno? A natureza é tão limitada e o mundo tão pequeno; esta vida é tão curta e a realidade tão imperfeita! Queremos amar, queremos viver o mais possível, mas encontramos decepção, dor e morte. Assim, é evidente a desproporção entre os nossos meios e as nossas necessidades. O repouso eterno e alguns outros sinônimos que aparecem falam de um lugar para aqueles que deixaram o mundo dos vivos. O repouso eterno sempre foi visto com uma multiplicidade de facetas. Pode ser lugar de destruição, lugar de silêncio, reino dos mortos. Mas todos as leituras remetem à ideia de lugar dos que dormem. E também podemos falar de abismo, deserto e profundezas. 

O contraste entre o desespero que se agarra às existências das pessoas e a esperança do reino do eterno também está expressa no ser levantado para a vida. Quando falamos do repouso eterno, as fronteiras da vida são definidas. As leituras da estória do homem pobre e do homem rico não visa realçar a dimensão espacial, mas a realidade relacional. Por isso, o repouso eterno não é tanto a dimensão do espaço e do tempo, mas estado de solidão, separação da vida. Não podemos esquecer que lei implica no conceito normativo de retribuição. O justo deveria receber recompensa material e o injusto carecia de bens, prazeres e saúde. Ricos eram naturalmente abençoados e dignos do reino. Mas as leituras da estória do homem pobre e do homem rico desconstrói essa norma e nomeia o mendigo. É interessante notar que o pobre tem nome, é Lázaro, mas o rico não. Lázaro é Eliezer, aquele a quem o eterno ajuda. Ter nome compõe identidade, nomeia o quem é quem. Há aí distinção entre o valor da vida do pobre em política ao rico. Lá naquele época, o rico tinha destaque e atuava com desprezo frente ao mendigo. O eterno, porém, o socorre. Donde, as críticas às práticas dos religiosos: a negligência para com os sem posses de bens e direitos, o fazer bem aos que podem retribuir, o orgulho e a infidelidade à lei, que exige amor ao próximo. 

A estória fala da vida e levanta algumas questões que dirigem o pensar: ao renascer para um vida há consciência do estado, memória, juízo imediato, o que implica em alguma forma de retribuição. Há conforto para os justos oprimidos, não há mudanças no juízo, e a informação para receber o descanso está na lei do eterno. Assim, a eternidade se preocupa com aqueles descartados pela sociedade. Não há retorno para esta vida terrestre. A confiança no eterno é o único mérito de homem pobre, que se expressa no nome que tem, Eliezer. A vida neste mundo é de pouca valia quando se passa à dimensão da eternidade.

Uma pergunta que provém do estudo dessa estória pode ajudar a redefinir as prioridades do quotidiano. Que diferença faz a presente circunstância ou forma de atuar em termos de vida daqui a dez mil anos? Em certo sentido, é esta a pergunta que a estória faz aos religiosos. Outras registram a preocupação de ter um corpo inteiro quando formos levantados -- para tal devemos guardar qualquer parte do corpo que for amputada para ser incluída com o resto do corpo no sepultamento. Mas, parece que é melhor perder um olho se fizer a diferença no ingressar no reinar da eternidade. Melhor viver no reino coxo, cego, ou aleijado do que perder o reino por completo.

O descendente olhou para mim e quase como desabafo disse: Eu não concordo, aqui e no mundo, em todo ele, as gentes estão nas ruas, clamam por liberdade e justiça e você avô lança a questão para as calendas. Mas entendi o seu argumento: a questão da justiça, por relacionar identidade e eternidade se resolve numa equação: há a eternidade sábia e justa; nenhuma contradição é definitiva. Temos então uma dimensão onde se estabelece o equilíbrio entre o que desejamos e o que podemos. E porque a existência se projeta na eternidade, a eternidade constitui o elemento essencial da felicidade completa, já que não se pode gozar plenamente um bem quando receamos perde-lo. 

Ao que eu, cheio de alegria, por esta conversa com a minha descendência, completo: É, caro leitor e leitora, por isso, afirmo: a existência futura, a eternidade, é infinita e sem limites, e sua realização é justiça e liberdade, em conformidade com os desígnios do eterno.


Bendita seja a eternidade de nossa descendência. Envia a redenção aos povos. Bendita seja a eternidade de nossa descendência.